encontro internacional participação, democracia e ... · da democracia que se instalava. ......
TRANSCRIPT
Encontro Internacional Participação, Democracia e Políticas Públicas: aproximando
agendas e agentes
23 a 25 de abril de 2013, UNESP, Araraquara (SP)
"As Instituições Participativas e o Arranjo Federativo Nacional: elementos para a
avaliação da efetividade das IPs."
Prof. Dr. Osmir Dombrowski – Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Unioeste /
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
As Instituições Participativas e o Arranjo Federativo Nacional: elementos para a avaliação da
efetividade das IPs.
Este artigo irá apresentar alguns argumentos em favor da incorporação da
dimensão “federalismo” nas pesquisas sobre a efetividade das Instituições Participativas
(IPs) no Brasil e enunciar uma primeira hipótese explicativa para o desempenho destas
instituições que o relaciona com a posição ocupada no arranjo federativo nacional.
Sabemos que os estudos sobre a efetividade das IPs no Brasil compõem uma
“terceira geração” de pesquisas sobre a participação (PIRES 2011, passim). Os primeiros
trabalhos podem ser classificados como “apologistas”, ainda que resida certo grau de
injustiça nessa pejoração, pois refletiam as expectativas depositadas por grande parte da
sociedade sobre a presença de instituições de caráter “participativo” no interior de um
sistema político tradicionalmente “representativo” que se colocava como alternativa ao
regime militar durante o longo processo de transição. A atuação das massas populares
dirigindo as ações do Estado deveria permitir o pleno usufruto dos direitos de cidadania
formalmente reinstituídos garantindo a um só tempo o aprofundamento e a consolidação
da democracia que se instalava. Por estreitar a distância que separa Estado e Sociedade,
se esperava que as IPs uma vez ativadas, pudessem produzir melhoras efetivas nos
serviços públicos, otimizando os recursos sempre escassos, evitando desperdício,
dificultando a corrupção e aumentando, consequentemente, a capacidade do Estado de
atender cada vez mais e melhor as demandas da sociedade. A participação poderia
desencadear uma espécie de “circulo virtuoso”, onde o cidadão fortalecido pelos
resultados da sua ação, teria cada vez mais poder, interesse e capacidade de participar
ativamente do sistema político e este por sua vez, melhorado pela parti pação cidadã,
seria cada vez mais capaz de gerar bens e serviços que cada vez fortaleceriam o
cidadão. Logo, uma segunda e caudalosa onda de trabalhos advindos dos mais diferentes
centros de pesquisa espalhados pelo território nacional, na qual, com poucas exceções,
preponderou estudos de casos voltados para instituições ou setores específicos, se
encarregou de revelar que o funcionamento daquelas IPs que materializavam as
aspirações participativas introduzidas na Constituição de 1988 apresentavam problemas e
pareciam longe de corresponder às expectativas que haviam sido depositadas sobre elas.
Em alguns casos, como diz Kunrath Silva (2011, p. 233), se passou da “apologia” para
uma “condenação”, com a crítica se desdobrando do funcionamento das instituições
estudadas até a ideia de “participação” que começa a aparecer como um conceito
contaminado por uma carga valorativa muito grande. Entretanto, mau grado seus
problemas e os debates teóricos em torno delas, as IPs foram disseminadas por todo o
território nacional, integrando definitivamente o sistema político nacional, independente de
qual seja a postura teórica ou político-ideológica do observador. E assim, na condição de
uma realidade empírica ineludível, as IPs se impuseram como objetos de uma terceira
geração de estudos com objetivo de entender quais são os resultados produzidos por
estas instituições. Em outros termos, trata-se agora de mensurar qual o grau de
“efetividade” das IPs, isoladamente ou em conjunto; de verificar o impacto da sua
existência sobre a formatação e a gestão de políticas e a qualidade dos bens públicos
ofertados.
São inúmeras as sugestões e múltiplos os caminhos que se abrem. Roberto Rocha
C. Pires organizou e publicou para o IPEA em 2011 um volume reunindo contribuições de
alguns dos mais destacados pesquisadores de importantes centros de pesquisa nacionais
totalizando mais de vinte artigos, onde resulta patente que as definições teóricas e
metodológicas prevalecentes nessa terceira geração de estudos ainda não foram
totalmente estabelecidas (Pires, 2011). Alguns elementos, entretanto, conferem um grau
de unidade a este conjunto de estudos. Entre eles, a sugestão de que o foco das
pesquisas deva ser ampliado, extrapolando os limites internos das instituições e inserindo
as IPs em contextos sociais, políticos e econômicos mais amplos. Esta é uma ideia
presente em vários momentos ao longo da obra, mas aparece com destaque nas análises
de Brian Wampler, Julian Borba, Marcelo Kunrath e Soraya Vargas Cortes. Nenhuma
destas colaborações, entretanto, chama atenção para uma variável específica que
adequadamente trabalhada pode apresentar grande potencial explicativo para o
funcionamento e a disseminação atual das IPs no Brasil. Trata-se do arranjo federativo
nacional. Se é fato que, como afirma um dos autores reunidos pelo IPEA, estas
instituições não estão em um “vácuo organizacional”, mas inseridas em um “organograma
da administração pública nos diversos níveis de governo” (FONSECA, 2011), a
compreensão das consequências da sua localização no sistema federativo não deveria
ser uma variável descartada em tais análises.
Tocqueville já havia percebido a importância do arranjo federativo como variável e
sua influencia no desempenho da democracia. Na Democracia na América ele aborda o
problema sob a rubrica da “centralização vs. descentralização”. O intelectual francês que
atravessou o oceano para conhecer de perto o funcionamento daquele sistema político
que despertava a curiosidade de uma Europa em transformação, observou a “feliz
ocorrência” na América de uma forte “centralização governamental”, ao lado do que ele
denominou de uma “grande descentralização administrativa”.
Tratava-se de uma ocorrência “feliz” porque, no seu entendimento, quando acompanhada
da “centralização administrativa”, a “centralização governamental” leva os homens “(...) a
fazer abstração completa e contínua de sua vontade; a obedecerem, não só uma vez e
num ponto, mas em tudo e todos os dias”. (TOCQUEVILLE, 1998, p. 98).
Por “centralização governamental” ele entendia a concentração em um mesmo
local, “ou numa mesma mão”, o poder de dirigir os interesses que são “comuns a todas as
partes da nação, como a formação das leis gerais e as relações do povo com os
estrangeiros”. E por “centralização administrativa” ele se referia “interesses que são
específicos de certas partes da nação, como, por exemplo, os empreendimentos
comunais. (TOCQUEVILLE, 1998, p. 98.)
Tocqueville se admira do nível de centralização governamental verificado nos
Estados Unidos, onde segundo ele, atingiu o seu “mais alto grau”. Na América, dizia, o
poder nacional “está mais concentrado do que foi em qualquer das antigas monarquias da
Europa” e a legislatura de cada Estado não encontra nenhum poder capaz de resistir a
ela. Os ganhos da centralização governamental em vigor são evidentes, principalmente
no que diz respeito às relações com os estrangeiros: os Estados Unidos compunham uma
nova nação no cenário mundial que para sobreviver teria que rivalizar com as grandes
potencias europeias em disputa, o que somente seria possível com a união de todas as
forças. Mas também do ponto de vista das relações internas a centralização
governamental desempenhava um importante papel, assegurando a coesão social
ameaçada pela leniência dos costumes favorecida pela dispersão de uma população
dispersa um amplo território livre dos poderes tradicionais. Ocorre que tendo o poder de
legislar sobre todas as coisas gerais, o poder governamental apresenta como regra, uma
forte tendência para se imiscuir nos assuntos locais negando-lhe a autonomia e tornado
passivo o cidadão: não vendo a necessidade da sua atuação, o cidadão tende a abster-se
cada vez mais e a esperar do poder governamental a provisão de tudo quanto for
necessário para sua vida. Completa-se desta forma, a transformação do cidadão em
servo acostumado a obedecer.
A força do poder governamental na América, entretanto, segundo Tocqueville, não
era acompanhada pela centralização administrativa. Ocorre que as comunas na América
nunca estiveram totalmente sujeitas ao poder metropolitano e desde cedo aprenderam a
resolver sozinhas os seus problemas. Mesmo quando a metrópole impunha sua soberania
sobre as colonias, limitava-se ao governo central, e desta maneira, na formação do
Estado Independente, aquelas comunas não receberam poderes do novo Estado. Pelo
contrário, diz Tocqueville, “parecem é ter aberto mão, em favor do Estado, de uma porção
de sua independência”, por reconhecerem a necessidade da união para a preservação da
liberdade pela qual lutavam. Como resultado, na América independente os municípios
eram subordinados ao poder central somente naquelas coisas que eram de interesse
geral, comuns a toda a sociedade. Em tudo o mais, considerado particular ou local, os
municípios permaneceram completamente independentes. Segundo Tocqueville, não há
entre os habitantes da América quem reconheça o direito do Estado intervir na direção
dos interesses da comuna: “Se [o Estado] quiser organizar a instrução num plano
uniforme em toda a extensão do território, a comuna é obrigada a criar as escolas
exigidas pela lei. […] a existência de uma escola é imposta, mas é a comuna que a
constrói, paga e dirige”. (TOCQUEVILLE, 1998, p. 77)
E é na feliz combinação entre centralização governamental e descentralização
administrativa que Tocqueville encontrava explicação para o comportamento político do
cidadão:
O habitante da Nova Inglaterra prende-se à sua comuna, porque ela é forte e
independente; interessa-se por ela, porque colabora para dirigi-la; ama-a porque
não tem de queixar-se de sua sorte; deposita nela sua ambição e seu futuro;
envolve-se em cada incidente da vida comunal. (Idem, p 80)
A participação direta do cidadão, possível apenas em um regime de
descentralização administrativa, era para o pensador francês a maior garantia da
liberdade dos cidadãos, que de outra forma, fatalmente se tornariam servos “habituados a
obedecer”.
O Brasil, como se sabe, assumiu a forma de uma república federativa inspirado
pelo exemplo dos americanos do norte. A sorte dos municípios entre nós, entretanto, foi
outra. E a dinâmica da política local em quase nada se parece com a vida comunal
descrita por Tocqueville.
A hipótese que apresentamos nesse trabalho, que a um só tempo pretende explicar
a disseminação e a efetividade das Instituições Participativas entre nós, vem sendo
elaborada há algum tempo1 e parte do princípio que , apesar da autonomia conferida pela
Constituição aos municípios alçado à condição de entes federados, as administrações
municipais no interior do sistema federativo brasileiro apresentam reduzido grau de
1 Publicamos um ensaio onde suas linhas gerais são enunciadas. Ver Dombrowski, 2011.
interferência no desenho das políticas sociais, que são definidas em nível federal (Cf.
ARRETCHE e VAZQUEZ, 2009). Embora áreas fundamentais da administração pública
estejam constitucionalmente sob a competência das administrações locais é flagrante a
incapacidade dos municípios de arcarem com os custos de manutenção dos serviços de
saúde, educação e assistência social ou com volumosos investimentos em infraestrutura
urbana e saneamento básico, tornando-os reféns dos repasses de recursos ou de
investimentos diretos do governo central. Cálculos apresentados por Celina Souza (2004)
mostram que a receita própria de 74,8% dos municípios brasileiros representa apenas 7%
do total dos seus recursos. Os municípios são, portanto, no seu conjunto, incapazes
promover políticas adequadas aos interesses da sociedade local independentes da
mediação das elites centrais. Dessa perspectiva, as instituições participativas no Brasil
não funcionam como instituições de descentralização política ou administrativa e sim,
sobretudo como meios através dos quais o poder central tenta submeter os governos
subnacionais utilizando em seu favor o “controle social”, ou seja, utilizando a participação
da população como instrumento para submeter o poder local e garantir que a política
desenhada no nível do governo central seja rigorosamente aplicada pelos governos
locais.
Há dois argumentos fundamentais a serem considerados na formulação da
hipótese acima anuncia da. Primeiro, deve-se anotar o peso da tradição no pensamento
político brasileiro e a forma como o “poder local” é enquadrado por esta tradição
intelectual. Trata-se de uma referência comum o fato de que o “local” na política brasileira
tem sido tomado como lócus de desmandos autoritários por parte das elites locais ou
regionais que submetem o aparelho do Estado aos seus desígnios particulares afastando
todos os demais segmentos sociais, exercendo o poder de forma perdulária e quase
sempre corrupta. A origem e a disseminação dessa forma de pensamento no Brasil nos
remetem às primeiras décadas da República. Praticamente toda reflexão política e social
do Brasil das décadas de 1920 e 1930, fazia – como não podia deixar de ser – uma crítica
profunda e vigorosa da descentralização republicana que abandonara o país ao apetite
das oligarquias regionais de base rural (PÉCAUT, 1990). A ideologia centralizadora em
gestação naqueles anos se constitui em uma espécie de negação do liberalismo
oligárquico2 e da correspondente farsa democrática que caracterizou a Primeira República
brasileira3. Mas em vez de apontar para o aprofundamento da democracia, em grande
2 A expressão “liberalismo oligárquico” não é – como pode parecer à primeira vista – contraditória: ela apenas pretende revelar que as oligarquias rurais no Brasil se aproveitaram do lhe convinha no ideário liberal para legitimar o exercício poder político na forma de uma república oligárquica, que excluía cerca de 85% da população da vida política.
3 Eleições com voto aberto, o cadastramento de eleitores a cargo dos próprios interessados, o “voto de defuntos”, o
medida influenciados por um cenário internacional marcado pela ascensão de regimes
autoritários, os ideólogos da centralização no Brasil puderam facilmente relacionar
democracia com dominação oligárquica e negando uma, recusaram também a outra. Os
germens do centralismo no Brasil trazem, portanto, marcas de um pensamento
profundamente antidemocrático. É de Oliveira Vianna, célebre precursor da sociologia
política brasileira, uma das mais bem acabadas justificativas do centralismo
antidemocrático. Para aquele que foi um dos colaboradores do novo regime que
ascenderia ao poder com o presidente Getúlio Vargas na Revolução de 1930, contido no
interior dos latifúndios, o país não desenvolveu a “consciência perfeita e clara da sua
unidade nacional” e “o sentimento profético de um alto destino histórico”, tarefa que agora
só poderia ser realizada pela “ação lenta e contínua do Estado - um Estado soberano,
incontrastável, centralizado, unitário, capaz de impor-se a todo o país pelo prestígio
fascinante de uma grande missão nacional”. (VIANNA, 2005, p. 366.)
O que se vê nos anos seguintes à Revolução de 1930 é a consolidação do
“desenvolvimentismo” como ideologia hegemônica: de uma vaga ideia de “progresso” –
presente na bandeira nacional republicana, mas nunca suficientemente definida – se
caminha para um pensamento muito bem articulado que fazia do Estado o condutor do
processo de modernização nacional4. Nesse processo de conquista da hegemonia pelo
pensamento desenvolvimentista o país iria aparecer dividido; eram “os dois Brasis” na
célebre expressão de Jacques Lambert5: um, moderno, urbano e industrial, ligado ao
futuro e o outro, rural e agrícola, ligado ao passado, ao mundo feudal, ao latifúndio. O
poder do Estado central, condutor do processo de modernização, sediado na capital,
aparece como centro do primeiro mundo, e os poderes locais, sediados no interior,
estarão, profunda e definitivamente identificados com o atraso do mundo rural e
oligárquico. O poder local no pensamento político brasileiro passou a ser entendido como
o repositório dos resíduos feudais da colonização portuguesa, o mundo dos desmandos
oligárquicos, do coronelismo e do clientelismo.
Essa forma de pensamento foi denunciada em seu conteúdo altamente ideológico por
uma rica produção sociológica que seguiu caminhos abertos sobretudo por Maria Isaura
Pereira de Queiróz e também pela intensificação dos movimentos sociais no campo
mesmo sob a forte repressão que vigorava nos anos 1970. Nas condução de seus
“voto bico-de-pena”, fantasmagoria existente apenas na redação das atas, ao lado de outras artimanhas que culminavam com o pronunciamento dos vencedores por uma sessão do Congresso Federal a que competia o “reconhecimento”, ou não, das atas, compunham o sistema eleitoral vigente que garantia a permanência da elite no poder. Nesse sistema, as disputas políticas eram resolvidas pela força, onde os contendores mobilizava poderosos exércitos particulares em defesa de seus interesses.
4 Sobre a saga da ideologia desenvolvimentista no Brasil ver Bielschowsky, 1995.5 Lambert, Jacques. Os Dois Brasis. São Paulo: Cia. Ed. Nac., 1967.
estudos sobre o poder local, a fundadora do Centro de Estudos Rarais da USP havia se
colocado contra a ideia preconcebida e acriticamente difundida de que as classes
populares – sobretudo as classes rurais – eram incapazes de agir racionalmente,
demonstrando que nem todo voto no meio rural era necessariamente um “voto de
cabresto”. Como sugere Glaucia Vilas Bôas (2010), Queiróz percebe que “os grupos e
indivíduos dominados, sujeitos ao poder de mando, tinham capacidade de discernimento
e, no limite, sabiam das condições estreitas de suas escolhas”.
Paralelamente, embora o poder central houvesse sido sequestrado pelos militares – e
também por isso mesmo – o poder local aparece no cenário político nacional como único
espaço aberto à disputa. Ainda que nos limites do bipartidarismo imposto, esse espaço
será ocupado por movimentos sociais e associações de defesa dos mais diversos
interesses públicos e também por diferentes setores de elite em crescente conflito com o
poder central autoritário que se mostrava incapaz dar respostas adequadas para
problemas sociais progressivamente agravados por uma severa crise econômica. É no
nível local, portanto, que novos e velhos atores protagonizariam uma prática política
renovada e renovadora. A atuação não dirigida para o poder central seria uma das
características marcantes do que na academia se convencionou chamar de “novos
movimentos sociais” incluindo aí o “novo sindicalismo” (SADER, 2001; KRISCHEKE,
1987) e experiências administrativas inusitadas surgiriam tanto nas periferias das
grandes metrópoles a exemplo dos conselhos populares de saúde criados EM São Paulo
ainda nos anos 1970 (COUTINHO, 1999; BÓGUS, 2003), como nas prefeituras de
cidades a exemplo de Lages/SC, Boa Esperança/ES, Diadema/SP e Recife/PE (ALVES,
1988; SOUZA, 1992)
Todos este conjunto de fatores conflui para a edição em 1988 de uma nova Constituição
que em alguma medida refletia aspirações descentralizadoras difundida em amplos
segmentos da sociedade. O novo texto colocou o Município ao lado dos Estados e da
União como ente federado autônomo e autogovernado com executivo e legislativo
próprios e independentes e limitou o poder de intervenção das unidades superiores sobre
as locais, condicionando este tipo de ação à razões concretas sob o juízo do legislativo.
Tudo isto coroado com uma nova partilha da receita fiscal entre os diferentes níveis de
governo que aumentou a receita dos municípios para um patamar inédito na história:
especialistas calculam que nos primeiros anos da década de 1990 a parcela destinada
aos municípios passou a ser de cerca de 16% do total das receitas tributárias, contra um
valor próximo a 8% recebido no início da década anterior (Cf. ALMEIDA & CARNEIRO,
2003; SILVA, 2002; VARSANO, 1998).
Diante do novo arranjo federativo pactuado na Constituição de 1988, alguns
chegaram a acreditar que aquela antiga forma de pensamento estava destinada a
desaparecer e a descentralização propiciaria base para uma prática política renovada.
Muito breve, entretanto, começariam operar mecanismos de restrição à autonomia fiscal
dos governos municipais. A partir de meados da década de 1990, enquanto o governo
federal promovia a criação de novos tributos, especialmente, “contribuições sociais” não
sujeitas à divisão com outras esferas de governo6, os municípios que sentiam ainda o
peso de dívidas passadas, se viram pressionados pelo aumento das despesas com novas
responsabilidades sociais e pelas vinculações orçamentárias obrigatórias nas áreas da
saúde e da educação básica. (ALMEIDA, 2005; ARRETCHE, 2005 e 2012) Como
resultado desta tendência, nos dias atuais pelo interior do Brasil, quando se aproxima o
fim do ano civil, assistimos estupefatos prefeituras municipais reduzindo seu horário de
expediente (literalmente fechando as portas!) como forma de conter despesas -
basicamente energia elétrica e telefone - na tentativa de equilibrar seu caixa e manter-se
dentro dos preceitos estabelecidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal.
Esse processo de recentralização foi percebido como central na literatura dedicada ao
tema do federalismo e em algumas abordagens de análise de políticas públicas
referenciadas no arranjo federativo, mas sua importância, como fator que impacta
diretamente a vida política dos entes subnacionais da federação, ainda não foi
devidamente considerada pela análise do desempenho daquelas instituições
participativas (IPs) que muitos julgavam materializar supostas intenções
descentralizadoras anunciadas pela Constituição de 1988. Análises do desempenho do
sistema federativo irão sugerir até que não se pode falar exatamente de uma
“recentralização”, haja visto que não houve uma verdadeira descentralização, pois nesse
processo permaneceu intocada a autoridade do poder central para legislar todas as áreas
das políticas públicas, podendo até mesmo alterar a capacidade de arrecadação e de
gasto das unidades subnacionais, sem que estas possam sequer exercer algum poder de
veto. E as pesquisas de Arretche (2012) nos informam que este poder foi amplamente
usado pelos governos federais ao longo dos anos seguintes à promulgação da
Constituição com impacto negativo sobre a arrecadação de estados e municípios. Assim,
muito embora os municípios tenham sido alçados à condição de entes federados
autônomos e tenham se tornado executores de importantes políticas que afetam
6 A Constituição determina uma divisão quadripartida dos tributos da seguinte forma: As taxas e contribuições de melhoria são tributos comuns aos três níveis de governo, podendo ser instituídos por Municípios, Estados e União; os empréstimos compulsórios e as contribuições sociais são tributos privativos da União e os impostos são instituídos exclusivamente pela Constituição (Barroso, 2000)
diretamente a vida dos cidadãos como saúde básica, educação fundamental, assistência
social, coleta de lixo, transporte público e infraestrutura urbana, o poder de normatização
e supervisão do governo federal, aliado à sua condição privilegiada na distribuição dos
recursos tributários, torna a compreensão das ações da união essencial para entender a
dinâmica local das políticas públicas.
Adotando uma distinção entre “quem delibera” (policy decision-making) e “quem executa”
(policy-making) e que em muito faz lembrar a distinção tocquevilliana entre centralismo
administrativo (poder de executar) e centralismo político (poder de tomar decisões com
efeito vinculante), Arretche assevera que a autonomia vivida pelos municípios não é
suficiente para lhe conferir a condição de policy decision-maker. Trata-se de uma
autonomia que é grande sim, quando comparada a outras federações no cenário
mundial, mas, ainda assim, uma autonomia limitada à execução: “As regras
constitucionais, a autoridade dos ministérios federais para regulamentar e supervisionar
as políticas executadas, bem como o poder de gasto de União, são fatores explicativos
centrais da agenda dos governos subnacionais”, afetando diretamente o estabelecimentos
das prioridades de gasto e a implementação de políticas pelos municípios (Arretche,
2012, p 20. Grifos meus)
Com isso introduzimos o segundo argumento que sustenta nossa hipótese. Verificamos
que o movimento testemunhado no sentido de limitar a autonomia das unidades
subnacionais com a imposição de novas responsabilidades à administração municipal ao
lado das restrições orçamentárias, foi acompanhado por uma decidida política de
institucionalização de instituições participativas no desenho institucional da gestão das
políticas públicas, notadamente, na chamada área social – movimento este, que se não é
totalmente contraditório, merece ao menos ser melhor explicado. Como resultado desta
ação, dados divulgados pelo IBGE indicam que já na virada do milênio existiam mais de
26 mil conselhos gestores municipais em todo o país, perfazendo uma média de quase
cinco por município e em apenas vinte localidades não foram encontrados qualquer tipo
de conselho. A disseminação de Instituições Participativas no período posterior à
Constituição é um fato que vem sendo explicado por diferentes fatores, incluindo a
pressão de movimentos sociais e setores progressistas da elite política, mas, insistimos,
isto não pode ser feito sem que se considere a relação entre os governos central e locais
e a posição subordinada destes na estrutura federativa.
Na área da Saúde, os conselhos e as conferências municipais, previstos na estrutura do
Sistema Único de Saúde - SUS, se tornariam naqueles anos condição para a habilitação
dos municípios para receberem repasses dos recursos necessários para o gerenciamento
dos serviços de saúde em seus territórios (Lei 8.142/1990). Na área da Assistência Social
verifica-se que a descentralização e a participação previstas na Constituição ganham
regulamentação nos anos 1990 com a Lei Orgânica da Assistência Social - LOAS (Lei
8.742/1993) a qual institui os conselhos nacional, distrital, estaduais e municipais como
“as instâncias deliberativas do sistema descentralizado e participativo de assistência
social, de caráter permanente e composição paritária entre governo e sociedade civil” (Art.
16). A LOAS é explícita, ainda, ao considerar “a instituição e o funcionamento” de
Conselhos Municipais como condição para o repasse de verbas da União (Fundo
Nacional de Assistência Social) aos municípios (Art. 30). Também a Lei 8069/1990,
conhecida como ECA, Estatuto da Criança e do Adolescente, preconiza que a União “fica
autorizada a repassar aos estados e municípios, e os estados aos municípios, os recursos
referentes aos programas e atividades previstos nesta Lei, tão logo estejam criados os
conselhos dos direitos da criança e do adolescente nos seus respectivos níveis”. E hoje,
os conselhos estaduais estão presentes nas 27 unidades federativas do País, e cerca de
92% dos municípios brasileiros contam com estas estruturas conforme informa o sitio
oficial do Conselho Nacional da Criança e do Adolescente7. Na Educação, a lei que criou
o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do
Magistério – FUNDEF, Lei 9.424/1996, determinou a criação de conselhos com a
atribuição de supervisionar a aplicação dos recursos provenientes deste fundo e a
realização do Censo Escolar anual no âmbito dos municípios. Também o Programa
Nacional de Alimentação Escolar, desde o ano de 2001, determina que os municípios
instituam Conselhos de Alimentação Escolar com a participação de representantes dos
poderes Executivo e Legislativo, de professores, pais de alunos e “outro segmento da
sociedade civil” para credenciar o município para recebimento das verbas deste fundo.
Esta parece ser, portanto, a tendência dominante explicitada em diferentes leis nas mais
estratégicas áreas de atuação do Estado brasileiro: a criação de conselhos e a realização
de conferências em âmbito municipal foi obtida graças à pressões do governo central, que
se utilizou para isto da sua condição privilegiada de principal recolhedor dos tributos e
distribuidor dos recursos arrecadados. Devemos observar ainda que, do ponto de vista
institucional, os municípios, definidos pela Constituição como entes federados autônomos,
não estão subordinados hierarquicamente aos governos estadual ou central e não são
obrigados a seguir determinações políticas ou administrativas. Por isso a submissão das
unidades subnacionais ao governo central somente pode ser obtida a partir da
manipulação de incentivos financeiros, possível apenas graças à posição privilegiada da
7 http://www.direitosdacrianca.org.br (último acesso em 22/03/2013).
união na estrutura fiscal.
Em auxílio ao nosso argumento, observe-se que de forma também aparentemente
contraditória, o mesmo governo central que se mostrou ao longo daqueles anos, tão
decidido a impor a participação do cidadão no nível da administração local, não
demonstrou o mesmo interesse quando se refere aos processos decisórios na esfera
federal. É comum se reconhecer que a Constituição de 1988 incorporou a participação
direta do cidadão nos processos decisórios com a institucionalização do plebiscito, do
referendo ao lado das leis de iniciativa popular, mas a realidade é que duas décadas
depois da promulgação daquela carta, se observa que tais praticamente não foram
ativados. Em vinte anos foram realizados apenas um plebiscito – que versava sobre o
regime de governo: monarquia, república presidencialista ou república parlamentarista – e
um referendo – que revogou uma lei que restringia o porte de armas de fogo pela
população civil. Cabendo ainda o registro de que o plebiscito sobre a forma de governo
estava previsto pela Constituição de 1988 em suas Disposições Transitórias, ou seja, não
foi convocado por vontade dos governantes da época. Por fim, ainda no mesmo sentido,
um eminente jurista observou que em 20 anos Constituição federal recebeu nada menos
que 68 emendas, sem que a população jamais tenha sido chamada a opinar sobre tais
alterações (COMPARATO, 2010).
Este comportamento, aparentemente, contraditório de uma elite central que
patrocina a disseminação de instrumentos de participação no nível local, ao mesmo
tempo em que recusa a mesma participação nos assuntos federais encontra explicação
nos quadros da hipótese aqui sugerida: a estratégia de submissão do poder local, iniciada
com a subtração da autonomia política e econômica dos municípios nos anos 1990, se
completaria então com o “controle social” exercido pela sociedade civil sobre os governos
locais.
Ocorre que as administrações municipais no atual sistema federativo brasileiro
apresentam reduzido grau de interferência no desenho das políticas socais, que são
definidas em nível federal. Embora setores fundamentais da administração pública
estejam constitucionalmente sob a competência das administrações locais é flagrante a
incapacidade dos municípios de arcarem com os custos de manutenção dos serviços de
saúde, educação e assistência social ou com volumosos investimentos em infraestrutura
urbana e saneamento básico, tornando-os reféns dos repasses de recursos ou de
investimentos diretos do governo central. Cálculos apresentados por Celina Souza (2004)
mostram que a receita própria de 74,8% dos municípios brasileiros representa apenas 7%
do total dos seus recursos. No mesmo sentido, Marta Arretche (2012) demonstra que
mesmo que a Constituição de 1988 tivesse estabelecido o município como executor, em
nível local, de políticas em todas estas áreas, o governo central permaneceu com seu
poder regulador praticamente intocado, não apenas normatizando a oferta destes serviços
como legislando sobre os próprio gastos municipais.
Os municípios se tornaram assim dependentes da mediação das elites centrais
para promover políticas mesmo em áreas onde goza de exclusividade
constitucionalmente estabelecida. Desta perspectiva, os conselhos e as conferências
municipais não são instituições de descentralização política ou administrativa, mas
funcionam como instrumentos através dos quais o poder central tenta submeter os
governos subnacionais utilizando em seu favor o “controle social”, ou seja, utilizando a
participação da população como instrumento para submeter o poder local e garantir que
as decisões tomadas em nível federal sejam rigorosamente seguidas pelos governos
locais, apesar da autonomia conferida pela Constituição aos municípios alçados à
condição de entes federados. E esta dimensão não deve ser abstraída das análises que
pretender avaliar o funcionamento e a efetividade das instituições participativas.
O papel que é reservado à participação popular na estratégia das elites centrais,
entretanto, não é de fácil execução, pois os governantes nos municípios, ainda que
frágeis diante do governo central, são poderosos em nível local e conseguem exercer
forte influência sobre a dinâmica de funcionamento das instituições em nível local. Eles
dominam os cargos diretivos dos conselhos, controlam suas agendas e orientam a ação
de representantes de diferentes segmentos da sociedade, manipulando informações
técnicas e jurídicas, quando não, seduzem parte dessa representação mediante a oferta
vantagens ou compensações políticas (DOMBROWSKI, 2008). Afinal, o domínio
oligárquico e seus filhotes comuns como o clientelismo, o mandonismo, o coronelismo
etc. não são fictícios; são fenômenos históricos reais e possuem sólidas bases
sociológicas que permanecem vigentes pelo menos em dois aspectos. O primeiro, diz
respeito à extrema desigualdade econômica que caracteriza a sociedade brasileira e que
projeta uma pequena, porém poderosa, elite ao lado de uma numerosa massa que por
não dispor de outros recursos se coloca a serviço daquela elite como forma de garantir
sua sobrevivência.
O outro, ainda que elucidado por Vitor Nunes Leal há mais de meio século,
permanece ignorado em muitas das análises sobre o desempenho das IPs. O
“coronelismo”, como fenômeno típico da política brasileira que se manifesta na forma de
uma submissão completa dos aparelhos de governo aos desígnios do mandatário no
poder não encontra explicação apenas no poderio das oligarquias locais, mas também na
fragilidade das instituições republicanas, entre elas a fraqueza dos municípios no interior
do arranjo federativo erguido com a república. É de se estranhar que Marta Arretche,
mesmo tendo percebido com toda clareza o movimento em direção da submissão dos
municípios, não retire desse fato todas as consequências para a manutenção de um
sistema com características clientelista bastante acentuadas. Arretche supõe que a
regulamentação das transferências orçamentárias, ao fixar em leis a forma como o total
da arrecadação é distribuído entre os entes federados em todos os níveis “afasta a
federação brasileira contemporânea daquela descrita por Vitor Nunes Leal” e que a
regulamentação dos gastos e das políticas locais impede que os prefeitos municipais
tenham “carta-branca” nos assuntos locais para usar arbitraria e discriminadamente os
recursos públicos beneficiando seus amigos em detrimento dos outros cidadãos
(ARRETCHE, 2012, p. 22). O sistema, na visão da autora, parece se aproximar da
perfeição burocrática: o poder central obrigado a repassar os recursos devidos baseado
em parâmetros fixados em lei e o poder local obrigado a gastar tais recursos de forma
também regulada, condicionariam a efetividade das políticas públicas. Quando isto não
ocorre, é porque “as políticas cujo desenho mobilizam a desconfiança por parte das
unidades constituintes tendem a reduzir suas chances de efetividade” (p. 24). Em síntese,
na tese de Arretche, “ambos os governos são fortes, porém em diferentes dimensões da
produção de políticas públicas” (p. 24) e a possibilidade de efetividade de tais políticas
reside em um equilíbrio, obtido por meio de negociação política, no qual tantos os
interesses do governo central como os dos subnacionais estejam garantidos. Um dos
problemas dessa tese é que nela não existe espaço para a participação direta do cidadão
na gestão das políticas públicas e com isso se poderia explicar inoperância das
instituições de controle social8, mas não se explicaria a incorporação de instituições deste
tipo no interior das principais políticas elaboradas em nível federal. Escapa também, uma
das observações centrais do estudo de Vitor Nunes Leal; a saber, a de que o coronelismo
reside antes na decadência do que na fortaleza das elites locais rurais. Incapazes de
continuar exercendo a dominação baseada em forças próprias, as elites locais recorrem
ao poder central que, assim, se torna o principal responsável pela perpetuação do status
quo. É ele que sustenta a elite local no poder. Desde que esta se submeta ao seu
controle, o governo central coloca a sua disposição uma série de recursos e instrumentos
políticos fundamentais para a manutenção do seu poder. Esta é a essência do
coronelismo tal qual se consolidou na primeira república e cujos traços fundamentais, de
8 Outras instituições participativas locais como os orçamentos participativos atuam dentro do limite da autonomia dos municípios deliberando sobre a aplicação de recursos que são de sua libre competência.
acordo com a nossa hipótese aqui apresentada, estão reproduzidos na organização
política que se definiu após a Constituição de 1988. Ao criar um canal político que pode
ser acessado pelos setores que não fazem parte do governo municipal (que aparece nas
análises das IPs sob a rubrica de “sociedade civil”) o governo central reduz o poder de
dominação das elites locais, fortalecendo a sua própria condição, que é completada pela
submissão das elites locais a uma poderosa máquina clientelista da qual fazem parte não
apenas os prefeitos municipais, como também deputados estaduais e federais e
senadores (que são avaliados por sua capacidade de trazer recurso para a cidade/região)
sem o apelo a qual as elites locais não conseguiriam a manutenção do status quo.
Outro problema que pode ser identificado amiúde nas análises do sistema
federativo, reproduz acriticamente uma leitura de Tocqueville sobre as relações entre os
diferentes níveis de governo. Na leitura do pensador francês a ameaça à liberdade do
cidadão americano tinha origem no governo central. É uma apresentação da clássica
oposição liberal entre Estado Vs Sociedade, onde o mal reside no âmbito do Estado,
enquanto a sociedade aparece como detentora de todas as virtudes. Além de tratar-se de
um raciocínio maniqueísta, explicado pela presença no pensamento europeu do século
XIX de uma lembrança muito forte da monarquia absoluta que oprimia toda a sociedade,
trata-se de um artifício ideológico que fortalece a ideia de “nação” e de “povo” como uma
unidade, ocultando as suas divisões internas sejam linguísticas, religiosas ou de classe.
Tocqueville, por acreditar que o aprofundamento da igualdade era o processo sociológico
que sustentava o fortalecimento do Estado moderno, não podia identificar no interior da
sociedade um segmento com força suficiente para oprimir os outros. Faltou ao nobre
intelectual acuidade para perceber a profundidade da cisão entre burguesia e proletariado
e assim, na sua análise a liberdade da comuna, era o mesmo que a liberdade de toda a
sociedade. De certa forma, este procedimento é compreensível na análise que Tocqueville
faz dos EEUU, uma sociedade onde a pequena propriedade ainda era majoritária e que,
sobretudo, historicamente desconhecera a existência da nobreza. No Brasil, porém, tanto
na primeira república como hoje, a desigualdade salta aos olhos de qualquer analista.
Entre nós a norma é a grande propriedade como base de uma sociedade desigual, onde
os proprietários possuem recursos suficientes para oprimir os outros segmentos que na
maior parte das vezes recorrem ao Estado em busca de proteção. No Brasil,
historicamente, a liberdade da comuna representa uma maior possibilidade das elites
locais reforçarem sua posição e aprofundar a dominação e a opressão.
Não obstante, a participação da sociedade preconizada na estratégia da elite no
governo central não visa a autonomia dos segmentos populares. Ela tão somente tem
como objetivo o controle e a submissão das elites locais. A grande contradição que se
observa, é que ao fazer uso da participação popular para seus fins de controle sobre as
elites locais, o governo central não pode impedir que os setores subalternos,
eventualmente, usem esta estrutura participativa para realizar projetos populares, mesmo
que para isso ela tenha que travar uma disputa encarniçada com as elites locais em uma
estreita margem de deliberação deixada pelo governo central. Mas esta não é a regra. É
fenômeno esporádico que ocorre apenas em conjunturas especiais de intensa
mobilização de movimentos sociais e/ou da fração oposicionista da elite local. A regra,
pelo que temos visto, é que “o povo não participa”. Ocorre que a estratégia das elites
centrais conta com a participação da “sociedade civil” (não dos segmentos populares)
derivada de uma espécie de imperativo moral, pelo qual o cidadão deve participar porque
sua participação é necessária para a realização de uma pretensa “vontade geral”
interpretada por ela, e não para fazer valer algum interesse próprio, ou realizar um projeto
distinto daquele definido nas instâncias superiores (mesmo que eventualmente isto possa
acontecer). Por isso, quando a participação esperada não acontece, o julgamento é
sumário e aponta sempre para uma suposta fragilidade moral da população: o povo não
participa, porque é “desinteressado”, “desinformado”, “acomodado”, “alienado” etc. Este
julgamento moral, ao condenar o povo, inocenta as elites e oculta a debilidade das
instituições participativas que atuam em um espaço reduzido premidas pelas forças em
disputa das elites centrais e locais.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, M. H. T. de; CARNEIRO, L. C., Liderança local, democracia e políticas públicasno Brasil. Revista Opinião Pública, Campinas, Vol. IX, n 1, 2003.
ALMEIDA, Maria H. T. de, Recentralizando a Federação? Revista de Sociologia e Política,v. 24, Curitiba, 2005.
ALVES, Márcio M. A força do povo: democracia participativa em Lages. São Paulo: Brasiliense, 1988.
ARRETCHE, M. e VAZQUEZ, D., Descentralização, instituições políticas e autonomia: padrões de gasto dos governos locais no Brasil. Prepared for delivery at the 2009Congress of the Latin American Studies Association, Rio de Janeiro, Brazil June 11-14, 2009. Disponível em: http://www.cultiva.org.br/pdf/arretche_marta_gastos_municipais.pdf (Ultimo
acesso em 15/03/2010).
ARRETCHE, Marta., Quem taxa e quem gasta: a barganha federativa na federação brasileira. Revista de Sociologia e Política. v. 24, Curitiba, 2005.
_________. Democracia, federalismo e centralização no Brasil. Rio de Janeiro, ed FGV/Fiocruz, 2012.
BARROSO, L. R., A Derrota da Federação: o colapso financeiro dos Estados e Municípios. Revista Dir. Proc. Geral, Rio de Janeiro, 53, 2000.
BIELSCHOWSKY, R., O Pensamento Econômico Brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 1995.
BÔAS, Glaucia V., Para Ler a Sociologia Política de Maria Isaura Pereira de Queiroz. Revista Estudos Políticos, junho, 2010.
BÓGUS, C. M. et All. Programa de Capacitação Permanente de Conselheiros Populares de Saúde na cidade de São Paulo. Saúde e Sociedade, vol. 12 nº.2, São Paulo July/Dec. 2003
COMPARATO, F., Nem República, nem Democracia. Revista Carta Capital, São Paulo, n.º578, p. 54-9, 13 jan. 2010. Entrevista concedida a Gilberto Nascimento e Walter F. Maierovitch.
COUTINHO, Joana A., A participação popular na gestão da saúde de São Paulo. Lutas Sociais, v.2 1º sem 1999.
DOMBROWSKI, O., Poder Local, Hegemonia e Disputa: os conselhos municipais em pequenos municípios do interior. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 16, nº 30, jun 2008.
FONSECA, Igor F., Relações de Poder e Especificidades do Contexto em Fóruns Participativos. In PIRES, R. R. C. (Org.), Efetividade das Instituições Participativas no Brasil: estratégias de avaliação. Brasília, Ipea, 2011.
KRISCHKE, Paulo, "Movimentos sociais e transição política: contribuições da democracia de base". In: SCHERER-WARREN, I. e KRISCHKE, P. (org.). Uma revolução nocotidiano? Os novos movimentos sociais na América do Sul. São Paulo: Brasiliense 1987.
LAMBERT, Jacques, Os Dois Brasis. São Paulo: Cia. Ed. Nac., 1967.
LEAL, Vitor N., Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. São Paulo: Alfa-Omega , 1975.
PÉCAUT, D., Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo:Ática, 1990.
PIRES, R. R., C. (Org.), Efetividade das Instituições Participativas no Brasil: estratégias de avaliação. Brasília, Ipea, 2011.
SADER, Eder, Quando novos personagens entraram em cena: experiências e lutas dos trabalhadores da grande São Paulo 1970-1980. 4.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
SANTOS JR., O. A.; AZEVEDO, S. & RIBEIRO, L. C. Q.(Orgs.). Governança democrática e poder local: a experiência dos conselhos municipais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2004.
SILVA, M. K., Dos Casos aos Tipos: notas para uma apreensão das variações qualitativas na avaliação das instituições participativas. In PIRES, R. R. C. (Org.),
Efetividade das Instituições Participativas no Brasil: estratégias de avaliação.Brasília, Ipea, 2011.
SILVA, M. S., Federalismo fiscal no Brasil: arrecadação, transferências e disponibilidades (1988 – 2000). Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Administração Pública, FGV/RJ, 2002.
SOUZA, C., Governos locais e gestão de políticas sociais universais. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, Vol. 18, n. 2, 2004.
SOUZA, Herbert José. Município de Boa Esperança; participação popular e poder local. In: MOISÉS, José Álvaro et al. Alternativas populares da democracia: Brasil, anos 80. Petrópolis : Vozes/ CEDEC, 1992.
TOCQUEVILLE, A. de, A Democracia na América. Rio de Janeiro, Biblioteca do Exécito Editora, 1998.
VARSANO, R., Evolução do Sistema Tributário Brasileiro ao Longo do Século. Texto para Discussão nº 405. Rio de Janeiro, IPEA, 1998.
VIANNA, O. Populações meridionais do Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2005.