en passant [prévia]

30

Upload: lico-mota

Post on 29-Mar-2016

237 views

Category:

Documents


2 download

DESCRIPTION

Teaser do livro En Passant programado para ser lançado no dia 20/12/2012. Trata-se de uma ficção onde drásticas mudanças sociais começam a afetar o mundo que vivemos e o modo de agir e pensar das pessoas.

TRANSCRIPT

Page 1: En Passant [prévia]
Page 2: En Passant [prévia]

en passanten passanten passanten passant

por Lindenberg Mota

Page 3: En Passant [prévia]

Era uma vez, um lugar chamado PANGÉIA

Nesse lugar brotava o individualismo:

o braço queria ser independente,

a perna queria ser independente,

os olhos queriam ser independentes

e cada um decidiu seguir seu próprio rumo.

Discretamente foram afastando-se uns dos

outros e, antes que dessem conta,

conquistaram sua independência.

Para que jamais voltassem a se unir, passaram

a vigiar dia e noite e a consumir a tudo e a todos.

Assim nasceram os Estados.

Page 4: En Passant [prévia]

PARTE I

ESCALENO

O mais interessante foi que entenderam errado.

Não estavam sendo abduzidos,

mas consumidos.

Page 5: En Passant [prévia]
Page 6: En Passant [prévia]

Antes de começar a ler esse livro, quero que

tenha em mente que a partir de agora você deve

estar disposto a quebrar paradigmas. A sair do

conforto do pensamento do conformismo e enfrentar

suas próprias convicções da realidade.

Não peço para que discorde da sua percepção

do mundo, mas que confronte as limitações que

afetam o todo com uma forma diferente de pensar.

É importante entender seu papel na Sociedade,

entender o papel do Estado em relação à Sociedade

e, principalmente, entender o papel da Sociedade

em relação ao Governo.

O Governo é arauto de um gigante faminto

chamado Estado cujo interesse único é consumir

tudo e todos. Por essa razão, o Governo, regido por

homens, é o responsável por intermediar as

necessidades humanas com o gigante devorador.

É indiscutível que o Governo fracassa nesse

papel por incontáveis tempos justamente por ser

controlado por homens – imperfeitos, injustos,

corruptos e aproveitadores que em sua perversão

visam o bem de seu próprio ventre e não percebem

que são manipulados pelo Estado.

Page 7: En Passant [prévia]

Seja com a monarquia - onde o governo do rei

explora os plebeus – seja na oligarquia - onde

poucos exploram muitos - ou na democracia – onde o

povo escolhe por quem prefere ser explorado – o

Governo sempre sucumbe na corrupção do homem.

E o Estado não se importa. Pelo contrário, se

alimenta disso.

O problema é e sempre foi o Governo.

A única forma de garantir a aceitação do povo,

evitar a guerra civil e o colapso interno é manter o

povo satisfeito e consumindo.

As pessoas pensam que são consumistas. Que

consomem TV, cinema e comida industrial. Revistas,

livros e músicas baixadas pela internet.

Esse é o grande engano: elas não consomem,

mas são consumidas.

Os modismos da geração, o apego fanático aos

esportes, as tendências religiosas, os noticiários

manipuladores de informação e o ufanismo pátrio

consomem pessoas todos os dias sem que elas

percebam.

O títere pensa ser livre.

Page 8: En Passant [prévia]

CAPÍTULO 1 – O ÚLTIMO TREM

Eu olhava aquelas pessoas ao meu redor e não

conseguia aceitar o fato que a grande maioria não

reagia.

Parecia que estava em uma excursão de escola rumo

a um trem para Auschwitz.

A apatia geral era tão grande que sentia como se

estivesse em um sonho tentando dar forças ao meu

corpo pra fazer o que meu coração mandava.

Foi então que um sujeito misterioso me puxou com

força pelo braço me tirando da fila. Nesse momento,

percebi que estava bem acordado.

“Qual o seu problema afinal?”, ele gritou me olhando

com seus olhos assustadoramente negros. “Por que

insiste em relutar? Você devia saber melhor do que

todo mundo!”

Por um instante eu hesitei, mas depois como por

instinto, despejei o que pensava:

“Afinal, quem – ou o que – são vocês? Não sei de

onde vieram e nem porque querem nos conquistar,

mas não vou dar o prazer a vocês de me entregar!”

O Sujeito Misterioso riu. Sua feição que estava sisuda

um segundo atrás agora tinha um largo sorriso

debochado.

Page 9: En Passant [prévia]

“Você acha mesmo que isso é uma invasão? Está bem

diante de seus olhos e você ainda não percebeu? Seu

idiota...isso não é uma invasão; é um êxodo!”

Aquele comentário me deixou confuso. Ele largou meu

braço e me deixou voltar pra fila que seguia em

passos cansados.

Fui embora olhando pra trás e o Sujeito Misterioso

continuou ao longe parado me fitando. Disparou um

último comentário:

“Você acha que é um sonho porque sabe a verdade,

mas não aceita. Eles estão assim porque

simplesmente aceitaram.”

Aquelas palavras acertaram em cheio os meus

pensamentos. Tentei não pensar naquilo enquanto

continuava caminhando com a volumosa fila - para o

que tudo indicava, a morte certa.

Faltava pouco para chegarmos a estação de trem e eu

tinha que pensar rápido em alguma coisa, então deixei

de lado as palavras do Misterioso.

Fingi prosseguir num estado de conformismo, andando

tranquilo como os demais, até o momento que

nenhum dos seguranças prestava atenção em mim e

eu corri pra trás de um muro.

Minha adrenalina subiu e eu sabia que era uma

questão de pouco tempo até que notassem minha

Page 10: En Passant [prévia]

ausência na multidão. Precisava encontrar Elisabete e

cair fora dali.

Procurei rapidamente ao redor por um local onde

pudesse ter uma visão mais ampla para encontrar

Elisabete no meio daquela longa fila de gente. Nunca

fui muito bom em estimativas, mas parecia haver pelo

menos uma dezena de milhares de pessoas. Achá-la

não seria nada fácil.

Um hotel de 5 estrelas estava bem à minha vista do

outro lado da rua. Corri atravessando a rua sem

interrupções, mas senti que havia sido notado.

Quase cai ao trombar de ombros contra a porta

giratória parando no saguão principal. Alheios a tudo

que ocorria na rua como se não fosse nada

importante, os hóspedes e funcionários transitavam

normalmente.

Aproveitando essa atitude estranha das pessoas, logo

me misturei com os demais clientes para não ser

notado. Encostei no balcão e pedi um quarto ao

recepcionista. Ele virou-se para as chaves e eu

aproveitei pra examinar cada detalhe: elevadores,

escada de emergência e acesso exclusivo de

funcionários.

Reparei que a porta giratória rodou, mas não vi quem

entrou. Para minha sorte, um auditório no térreo abriu

Page 11: En Passant [prévia]

as portas e saíram vários executivos ao mesmo tempo

e rapidamente me misturei com eles.

Vários deles entraram no banheiro e eu entrei

também.

Tratei logo de encontrar uma porta reservada e me

tranquei. Me acomodei no assento sanitário atento a

todo o falatório sobre a palestra, aos passos dados, ao

abrir e fechar das torneiras e as conversas de mictório

sobre bolsa de valores, casa, carro e negócios. Meu

coração estava acelerado, mas tinha a sensação que

havia enganado meus perseguidores.

A sensação de tranquilidade foi aos poucos me

dominando e já conseguia me desconcentrar aos

poucos daquele agito. Um impropério escrito na porta

me chamou a atenção. Era normal ver aquele tipo de

coisas em portas de banheiro de locais públicos, mas

não em um hotel de luxo como aquele.

Reparei que não era o único impropério. Olhando um

pouco mais pra baixo, vi outra escrita na porta –

dessa vez, um nome marcado com a ponta de uma

chave. Fui reparando na porta e comecei a estranhar

que havia também um outro texto com erros

gramaticais que também não havia prestado atenção.

Minha vista parecia confusa. Esfreguei os olhos e ao

olhar de novo, gelei. Toda a porta parecia estar escrita

com toda sorte de impropérios, telefones escusos,

Page 12: En Passant [prévia]

datas e nomes aleatórios. A cada segundo a porta

parecia ser preenchida por uma doença social diante

de meus olhos.

Meu coração voltou a disparar e eu percebi que não

havia mais nenhum barulho dentro do banheiro que há

muito pouco estava lotado de executivos tagarelas

entusiasmados.

Abri a porta com tudo saindo do reservado sem refletir

na hipótese que poderia estar sendo esperado. Não

havia ninguém nem nos mictórios e nem nas pias.

Com muito mais cautela dessa vez, entreabri a porta

do banheiro e vi que não havia ninguém mais no

saguão principal. Estranho, pois parecia que não ouvia

mais nenhum barulho.

Fui devagar até a recepção e quando não vi nem o

recepcionista e nem nenhum funcionário, achei que

estavam a minha procura pelos corredores do hotel.

O tumulto da rua também parecia ter passado e

resolvi sair. Passei pela porta giratória e qual foi a

minha surpresa ao reparar que não havia mais nada

na rua.

Deixe-me fazer entender: não só não havia mais

ninguém na rua, mas também não havia mais nada

em questão de muitas quadras dali. Todos os prédios,

casas, postos de gasolina, estabelecimentos

Page 13: En Passant [prévia]

comerciais, escolas – tudo, exceto o hotel 5 estrelas,

desapareceu!

Acreditei que estava salvo quando na verdade havia

perdido o último trem.

Page 14: En Passant [prévia]

CAPÍTULO 2 – AS PRETAS JOGAM

“Dentro de cada um de nós há um outro que não

conhecemos. Ele fala conosco por meio dos sonhos.”

- Carl Jung

SEIS MESES ANTES

P4R. As pretas jogam.

Acordei assustado. O mundo inteiro era mentira. Eu

não via, mas sabia. A verdade estava além do alcance

dos meus olhos, mas eu sentia. Tudo aquilo era mídia,

jogos de interesses alheios, mão lavando a outra, mas

em nenhum momento havia verdade. Era só reparar...

tava ali o tempo todo!

Estava irrequieto com a idéia de que no mundo todo

somente eu pensava daquele jeito.

Voltei a dormir apenas quando percebi Elisabete

dormindo intranquila com a mesma preocupação que

eu.

***

Page 15: En Passant [prévia]

Meu sono agitado me fez acordar mais cedo do que

deveria. Pra não incomodar Elisabete, peguei meu

livro de cabeceira favorito e sentei por algumas horas

no sofá da sala para ler e meditar.

Resolvi sair de casa pra tomar café na padaria e

espairecer um pouco antes de ir pro trabalho.

As ruas estavam bem quietas e, apesar de não ter

chovido, os pés atolavam no barro até o cano da bota.

Sentei no balcão e pedi um expresso e um pão na

chapa. A televisão estava ligada com as notícias dos

acontecimentos do início da noite de ontem.

UMA NOVA RESSACA DO MAR ATINGIU DEZENAS DE

CIDADES LITORÂNEAS NAS REGIÕES SUL E SUDESTE

DO PAÍS. COM ESSA, JÁ SÃO 12 RESSACAS NOS

ÚLTIMOS DIAS NO PAÍS E 236 NO MUNDO TODO

DESDE O INÍCIO DO ANO.

OS ESTRAGOS SEGUEM SENDO CONTABILIZADOS E

VÁRIAS CIDADES ESTÃO EM ESTADO DE

CALAMIDADE PÚBLICA.

ENQUANTO AMBIENTALISTAS APONTAM AS CAUSAS

PARA OS DANOS CLIMÁTICOS CAUSADOS PELO

HOMEM, ASTRONOMOS AFIRMAM QUE A

PROXIMIDADE DA LUA É A ÚNICA POSSÍVEL

RESPONSÁVEL. NO ENTANTO, A COMUNIDADE

CIENTÍFICA PERMANECE DIVIDIDA POR NÃO

Page 16: En Passant [prévia]

ENCONTRAR QUALQUER PROVA DE MANIFESTAÇÃO

ASTROFÍSICA...

_ Noite assustadora, não?

Procurei a voz que me distraiu e vi um cara sentado

uns três bancos olhando fixo pra televisão com cara de

acabado.

_ Fiquei vendo tudo pela janela. _ ele continuou _

Moro no 15º andar, deu pra ver muita coisa. A água

invadindo as ruas, o lixo boiando.

_ Nunca tinha visto uma enchente desse jeito. _

respondi. _ Pelo que ouvi na rádio ontem à noite, as

águas invadiram praticamente a cidade inteira em

questão de minutos. Morreu gente perto da orla...

_ Morreu MUITA gente, falou aí na tv agora há pouco.

E continuam morrendo em todos os lugares do mundo

a cada nova ressaca desse tipo.

...NA AUSÊNCIA DE EXPLICAÇÕES, AS PESSOAS

ESTÃO DEIXANDO O LITORAL CADA VEZ MAIS PARA O

INTERIOR COM MEDO.

_ Fim do mundo? _ ele disse tirando uns trocados do

bolso na direção do caixa.

_ De novo? _ desfiz da idéia. _ Nah! Isso é muito

clichê.

Page 17: En Passant [prévia]

_ Sabe o que é estranho mesmo? _ ele voltou do caixa

caminhando em minha direção. _ Momentos antes de

começar a ressaca, eu tinha despertado de uma

espécie de transe. Eu estava há muito tempo vivendo

de um jeito sem perceber que era uma trilha de

autodestruição. Parece maluquice, mas ouvi algo

muito duro que mudou alguns conceitos na minha

cabeça, desconstruindo algumas idéias...corrigindo

outras.

_ Desculpe, amigo, mas por que está me confessando

tudo isso?

_ Porque ele que me falou. _ ele disse meio

estabanado, já virando pra sair. _ Ele falou pra

espalhar a notícia. Bom, deixa pra lá.

_ Quem falou? Que notícia? _ perguntei enquanto ele

saia, mas pareceu não ter ouvido. Ou fingiu que não

ouviu.

Terminei o café sem entender muito o final daquela

conversa. Voltei minha atenção para o noticiário e

esqueci todo o resto – como a televisão sempre nos

costuma fazer.

***

No ônibus lotado a caminho do trabalho lia na capa do

jornal a notícia do dia, a bola da vez: dezessete

Page 18: En Passant [prévia]

mortos na inundação do bairro mais pobre do litoral

ontem à noite. Ao menos foi o que um dos canais da

TV disse. Outro informou a confirmação de apenas 13,

enquanto na rádio minutos antes já haviam fontes

seguras da Defesa Civil informando 20 mortes.

Tanto faz. Os jornais continuam vendendo. A rádio

continua sendo paga pelas informações

desencontradas. A TV continua tendo patrocínio dos

seus anunciantes mesmo errando um pouco de

estatística. Uns mortos a mais ou a menos ninguém

percebe.

Fechei o jornal e reparei que o trânsito estava

congestionado e o ônibus mal se movimentava. Devo

chegar atrasado no trabalho. Outro dia típico.

Olhei pela janela e vi uma pichação no muro que dizia

“VOCÊ É UM ESCRAVO DO TRÂNSITO”. Retribui com

um sorriso irônico à mensagem também irônica do

comunicador. Somos escravos de muitas coisas.

Dobrei o jornal e voltei minhas atenções pra dentro do

ônibus. Todos estavam falando sozinho. Conversavam

e riam com pessoas conceituais dos assuntos mais

diversos.

Com os fones de ouvido de seus celulares, estavam ali

presencialmente, mas todos distantes um do outro.

Isolados na presunção de ter eliminado a distância.

Page 19: En Passant [prévia]

Por fim estar só não é tão ruim quanto mentir pra si

mesmo. Falar sozinho só é loucura quando se diz

mentiras.

Passei o resto da viagem lendo o jornal procurando a

razão pela qual as pessoas poderiam estar tão

desinteressadas no mundo ao seu redor. Tudo que

encontrei foram anúncios de grandes empresas de

caráter supostamente idôneo financiando notícias de

guerra pelo mundo e de crimes locais. Propagandas de

condomínios de luxo ao lado da rede de prostituição

disfarçada entre excessivos textos nos classificados.

Os donos do dinheiro financiam a imprensa. A

imprensa transmite tudo pra população de forma

nociva pra despertar interesse. A população alimenta

os donos do dinheiro. O ciclo se fecha e reinicia.

Acontece ao seu redor.

Desci do ônibus em direção do trabalho e joguei fora o

jornal na primeira lixeira que encontrei.

Preocupado, pois a notícia da inundação era de

conhecimento de todos, mas não havia qualquer

sensibilização por parte das pessoas. Aquilo aconteceu

ali perto, naquela noite e ninguém estava interessado.

17, 13, 20 mortos. A vida continua.

***

Page 20: En Passant [prévia]

Ouvia vários dedos batendo nos teclados ao mesmo

tempo por todo o escritório. Em um breve intervalo

entre os ruidosos telefones tocando, consegui ouvir

alguns passarinhos cantando.

Voltei minha atenção para a janela e reparei que

estava uma bela tarde ensolarada de terça-feira.

Recostei na cadeira e tomei ar por um instante.

Percebi que Salomão também olhou para a janela,

mas com um olhar muito mais crítico e distante.

Parecia aborrecido com algo mais.

_ Esse lugar _ resmungou _ tudo isso está me

deixando maluco aos poucos.

Percebi que era um desabafo e deixei que continuasse.

_ Uma bela tarde de sol e mais uma vez não posso

aproveitar porque estou preso aqui dentro. Já

percebeu quanto da vida foi perdido aqui? Digitando

contratos. Atendendo ao telefone com textos

repetitivos. Gerando burocracia. _ levantou-se e foi

até a janela afugentando os passarinhos. _ Digo, eu

preciso desse emprego, mas fico aqui dentro sem ver

a hora de ir logo pra casa.

_ Você nunca deve torcer para o tempo passar. _

respondi finalmente. _ O tempo é parte integrante da

sua vida. É muito importante na equação. Vale tanto

quanto sua saúde.

Page 21: En Passant [prévia]

_ Em que mundo você vive, Natanael? _ Salomão deu

um sorriso irônico _ O tempo acabou para as pessoas!

Parece que os dias passam cada vez mais rápidos pra

todo mundo e isso acontece por quê? A rotina do dia-

a-dia venceu. Tanto faz ter tempo ou vê-lo passar. De

qualquer forma, ele vai embora rápido e sem

qualidade. Somos escravos da rotina de nossos

trabalhos, de nossos lares, de nossos costumes. Dê

uma boa olhada, acontece ao seu redor!

Levantei e fui até o bebedouro. Peguei um copo de

água calmamente olhando para todas as pessoas do

escritório e refletindo no que Salomão havia me dito.

Ele dizia a verdade. Mesmo que aquelas pessoas

ocupadas estivessem com o dia livre, não saberiam o

que fazer com seu tempo. Desperdiçariam assistindo

TV, navegando na internet ou buscando lugares para

gastar seus ganhos com coisas que acham que

precisam.

Voltando para minha mesa, reparei na mesa de uma

senhora de idade, muito cuidadosa e prestativa e que

sentava há anos próximo a janela. Decidi passar na

mesa de Salomão compelido a dizer algo:

_ A rotina não existe.

Salomão me olhou com olhar de descrédito e

continuei:

Page 22: En Passant [prévia]

_ Sim, rotina é uma bobagem. Todos os dias temos a

oportunidade de fazer tudo de forma diferente do que

já fizemos antes. Podemos usar nossa capacidade

criativa para desafiar nossa forma repetitiva de

pensar. A reprise dos dias é um desperdício de tempo

de vida gerado pela burocracia do próprio coração.

Olhei pela janela e vi que os passarinhos voltaram.

Cantavam procurando uma forma de entrar e alcançar

o pote de alpiste da mesa da senhora de idade, mas

estavam bloqueados pelo vidro. Ela havia esquecido

de colocar do lado de fora como fazia todos os dias e

saira mais cedo para uma consulta médica.

_ Afinal, quem está preso? Quem está do lado de cá

ou do lado de lá do vidro? _ dei sinal em direção a

janela. _ A rotina é você.

Salomão não disse uma palavra e voltou a olhar para

seu monitor com cara sisuda. Sentei em minha mesa,

satisfeito por ter chegado a tal conclusão, pois era

algo novo pra mim também.

Percebi Salomão em silêncio, refletindo, olhando para

a janela e ouvindo o canto dos passarinhos.

Page 23: En Passant [prévia]

CAPÍTULO 3 – FALSO POSITIVO

“Ceci n’est pás une pipe.”

- René Magritte

C@im has joined chat

jalapao has joined chat

garota_do_fantastico has joined chat

uberflussig has joined chat

C@im: quem tah faltando?

jalapao: vamos começar a reuniao. quem

chegar depois se inteira

uberflussig: soh diretoria!

huahauhuahuahaha

C@im: entaum...consegui um patrocinio

forte. vamos comprar a terceira ilha

jalapao: blz!

MadaFadrinha has joined chat

garota_do_fantastico: forte tipo o que?

C@im: uma multinacional. e ñ eh coisa

pouca nao

uberflussig: uia! 8-o

Page 24: En Passant [prévia]

jalapao: pra dar certo, o esquema tem que

ser igual das outras duas...hotel/spa com

tema surrealista pra chamar a atençaum na

estaçaum de destino

garota_do_fantastico: acho que dah pra

colocar de atracao passeio de unicornio,

banho de mar com sereias etc

C@im: vamos colocar mais surrealismo e

menos minimalismo dessa vez

uberflussig: eu aprovo! coisa bem

diferente que eh o que o povo do SL

procura, principalmente newbies

l@StniGHt has joined chat

C@im: o projeto Ilha da Fantasia foi

eleito um dos melhores spots do SL no ano

passado. choveram propostas de patrocinio.

agora eh colher os louros

evolution has joined chat

MadaFadrinha: C@im, logo vc vai se tornar

o cara mais rico do SL...anota o que eu to

dizendo

jalapao: celebridade ja eh! toque de

midas!

C@im: he he he

Abel has joined chat

Page 25: En Passant [prévia]

garota_do_fantastico: Abel?!?!?!?!

jalapao: huahuahahahaha

l@StniGHt has left chat

* jalapao laughs out loud

Abel: boa noite.

uberflussig: ñ tem medo de entrar na mesma

sala que o seu irmaum?

C@im: por favor, apresente-se. qual seu

avatar no SL?

jalapao: esse Abel soh pode ser o

Patricio, ow...esse folgado tah me devendo

uma pah de lindendolares!

Abel: isso eh relevante?

evolution has left chat

l@StniGHt has joined chat

C@im: Abel...não sei como veio parar aqui,

mas esse canal eh pra um grupo RESERVADO

do Second Life. se for noob, entra em

outra sala de chat

Abel: estou bem aqui

l@StniGHt: a conexão hj tah osso!

C@im: estah bem, mas ñ por muito tempo

Abel was kicked by C@im

l@StniGHt: que que tah pegando?

Page 26: En Passant [prévia]

garota_do_fantastico: WB, l@StniGHt! a

gente tava tc sobre negocios qdo apareceu

esse Abel

MadaFadrinha: Como esse Abel entrou aqui?

Esse canal ñ tah reservado, C@im?

C@im: E tah....tb ñ entendi...o canal tah

fechado, soh entra com convite.

jalapao: a rede ficou lenta

uberflussig: CADE TODOS VCS?

uberflussig: CADE TODOS VCS?

uberflussig: CADE TODOS VCS?

garota_do_fantastico: laaaaaaaaaaaag!!

l@StniGHt: alguem aih tah lendo?

l@StniGHt has quit server. Reason:

connection timed out.

jalapao has quit server. Reason: user

banned from server.

garota_do_fantastico has quit server.

Reason: connection timed out.

MadaFadrinha has quit server. Reason:

connection timed out.

uberflussig has quit server. Reason: user

banned from server.

Abel has joined chat

Page 27: En Passant [prévia]

Abel: vejo que soh vc sobrou no canal,

C@im. onde estao os que vc chama “amigos”?

C@im: vc de novo? “amigo”, o canal eh

restrito! como vc consegue entrar sem

convite?

Abel: vc tem passado em torno de 14 horas

por dia no Second Life. vc perdeu seu

emprego. sua mulher foi embora e levou

seus dois filhos.

Abel: sua casa estah repleta de lixo. vc

mal lembra de sua propria higiene pessoal

ou mesmo de se alimentar.

Abel: seu rosto no espelho é um reflexo

distante de um ser humano. vc sabe disso e

evita o espelho. não quer ver seus olhos

fundos e defrontar com sua própria apatia.

Abel: ate qdo ira com sua propria auto-

destruicao?

C@im:...??????????

C@im: quem eh vc? o que quer afinal??

Abel: que importa? talvez eu seja apenas

você mesmo se confrontando com a verdade.

estou tentando fazer vc me ouvir. quero

tirar vc do Second Life e te mostrar que

vc precisa arrumar sua vida de verdade

Page 28: En Passant [prévia]

C@im: seja la quem vc for, n tem o direito

de se meter na minha vida pessoal

C@im: eu nunca tive uma “vida de verdade”

e simulando uma nova, consegui dinheiro e

sucesso que nunca tive antes no RL

Abel: se essas pessoas de sala de bate-

papo fossem seus amigos mesmo iriam te

alertar que sua vaidade virtual está

levando você pra ruina.

C@im: ñ preciso ficar lendo esse monte de

desaforo!

C@im: e daí que minha vida real agora seja

uma que eu mesmo tenha criado no second

life? o que vc tem com isso?

Abel: é minha obrigacao vir aqui te dizer

tudo isso, pois não ha mais muito tempo

C@im: pra vc nao ha mesmo

Abel: vc nao entende e apenas reage.

Abel: acabe logo com isso. espalhe a

noticia.

C@im: CALA ESSA MATRACA!

Abel was permanently banned from server by

C@im

jalapao has joined chat

garota_do_fantastico has joined chat

Page 29: En Passant [prévia]

uberflussig has joined chat

MadaFadrinha has joined chat

l@StniGHt has joined chat

uberflussig: fazia tempo que nao via isso

acontecer

jalapao: cara...o que aconteceu?

C@im: ñ sei

C@im: kra...q raiva!

C@im: melhor a gente deixar esse papo pra

outra hora

garota_do_fantastico: tah td bem?

garota_do_fantastico: onde foi parar akele

Abel?

C@im: pessoal, vão me desculpar, mas ñ toh

com kbeça pra tc mais...depois a gente se

fala,ok? boa noite a todos

l@StniGHt: mas a gente precisava acertar

detalhes da compra da ilha ainda hj

C@im has left chat

uberflussig: caramba...que bicho mordeu

ele?

C@im desligou o computador e sentiu-se impotente.

Faziam dias desde que havia desligado o micro pela

última vez.

Page 30: En Passant [prévia]

Viu sua imagem no reflexo do monitor desligado e

odiou ainda mais Abel e todas as suas palavras ditas

no chat. Seja quem fosse, mostrou uma verdade que

ele não gostaria de confrontar.

Ao sair da frente do micro, estaria vagando errante

pela Terra em busca de expiação para o que fez

consigo mesmo.

Com o computador desligado, não era mais C@im.

E nem mais ninguém.