empreendimentos em rede

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Leadership & Management


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Empreendimentos em rede: tendências e desafios (2013) é um texto de Augusto de Franco

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Page 1: Empreendimentos em rede

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Page 2: Empreendimentos em rede

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Empreendimentos em rede: tendências e desafios

Augusto de Franco, 2013.

Versão Beta, sem revisão.

A versão digital desta obra foi entregue ao Domínio Público.

Domínio Público, neste caso, significa que não há, em relação a versão digital desta

obra, nenhum direito reservado e protegido, a não ser o direito moral de o autor ser

reconhecido pela sua criação. É permitida a sua reprodução total ou parcial, por

quaisquer meios, sem autorização prévia. Assim, a versão digital desta obra pode ser –

na sua forma original ou modificada – copiada, impressa, editada, publicada e

distribuída com fins lucrativos (vendida) ou sem fins lucrativos. Só não pode ser

omitida a autoria da versão original.

FRANCO, Augusto de

Empreendimentos em rede: tendências e desafios / Augusto de Franco. – São

Paulo: 2013.

36 p. A4 – (Augusto de Franco 1)

1. Redes sociais. 2. Empresas. 3. Augusto de Franco. I. Título.

http://www.augustodefranco.org

Page 3: Empreendimentos em rede

3

SSUUMMÁÁRRIIOO

Apresentação

Introdução

As organizações da categoria VESA

É possível viver de um negócio em rede?

Como ajudar pessoas a construir negócios em rede

A transição para a empresa em rede

Page 4: Empreendimentos em rede

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AAPPRREESSEENNTTAAÇÇÃÃOO

Neste texto vamos examinar por que damos às vezes respostas

inconsistentes ou inverídicas para as seguintes perguntas (em vez de falar

sobre as tendências e desafios que já percebemos neste momento):

É possível organizar (na prática) um coletivo estável de pessoas em

rede ou isso é apenas uma tendência (apontada pela teoria) que só

será aplicável no futuro, quando toda sociedade já estiver mais

conectada em rede?

Já é possível fazer um negócio em rede? Se sim, é possível fazer um

negócio em rede distribuída (ou mais distribuída do que

centralizada)?

Um negócio em rede, nas circunstâncias do mundo atual (quer

dizer, neste exato momento) é sustentável em termos econômicos?

É possível viver de um negócio em rede? É possível ficar rico (ou

ganhar muito dinheiro, ou pelo menos ganhar um bom dinheiro)

com um negócio em rede? Ou um negócio assim por enquanto dá

apenas, no máximo, para uma sobrevivência (austera)?

Page 5: Empreendimentos em rede

5

Em que medida um consultor, coacher ou netweaver pode ajudar

outras pessoas a organizar negócios em rede se ele mesmo não tem

experiência de ter feito negócios em rede que "deram certo"?

É possível criar um ambiente realmente de rede para estimular o

surgimento de negócios em rede? Como fazer isso? Um ambiente

de rede é um equipamento (por exemplo, uma casa, um

laboratório, um local de eventos, de trabalho coletivo, de

cocriação)? Um equipamento desse tipo pode ser montado por

alguém antes da interação (quer dizer, antes da existência de uma

rede de pessoas da qual emergiu tal necessidade)? Um

equipamento desse tipo pode ser montado com o objetivo de atrair

pessoas para fazer a rede?

Qual o papel do financiamento na estruturação de novos negócios

em rede? Quem investe faz parte da rede em igualdade de

condições com os investidos (ou detém poderes regulatórios

aumentativos em relação aos demais)? Neste caso, não introduz

centralizações deformando a rede?

É possível fazer a transição de uma empresa hierárquica para uma

empresa em rede? Isso independe do tamanho da empresa ou do

ramo do negócio? Quais os riscos envolvidos nesse processo?

Temos exemplos de empresas que fizeram a transição do seu

padrão hierárquico para um padrão de rede (mais distribuída do

que centralizada)? Em que medida isso deu certo?

Quais os exemplos de empresas em rede já funcionando que

podemos conhecer?

Page 6: Empreendimentos em rede

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IINNTTRROODDUUÇÇÃÃOO

Com a transição da sociedade hierárquica para a sociedade em rede - e a

percepção da emergência de novos fenômenos sociais interativos - muitas

pessoas passaram a se interessar pelo tema das redes, pelos mais variados

motivos.

Vamos focalizar neste texto o subconjunto crescente daquelas pessoas

que, de algum modo, estão interessadas em empreendimentos em rede.

Vejamos alguns exemplos:

Empreendedores em geral (ou seja, pessoas que querem montar

um negócio inovador, pessoal de startups idem e, também, gente

que quer descobrir outras maneiras mais cooperativas de trabalhar

em rede e sobreviver disso);

Consultores de inovação em empresas tradicionais e outras pessoas

que se dedicam ao coaching (com ou sem fins lucrativos) com o

objetivo de apoiar os que querem organizar novos negócios em

rede;

Pessoas que têm responsabilidades de direção em empresas já

constituídas, que estão preocupadas com inovação e que

Page 7: Empreendimentos em rede

7

descobriram que há alguma relação intrínseca entre redes e

inovação.

Ouvimos diariamente dessas pessoas muitas perguntas. Neste texto

sustento que é sempre melhor falar a verdade apontando realmente quais

são as tendências e os desafios.

UMA CONVENÇÃO

Uma convenção preliminar. Doravante neste texto, salvo menção em

contrário, a expressão "em rede" será usada para designar "em rede

distribuída" ou "em rede mais distribuída do que centralizada".

Page 8: Empreendimentos em rede

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Ninguém pode entender o que é rede se não entender a diferença entre

descentralização e distribuição. O melhor caminho para entender tal

diferença é ler o velho paper On distributed communications, de Paul

Baran (Santa Mônica: Rand Corporation, 1964). No mencionado paper

sugiro espiar diretamente a figura acima. Entre a monocentralização (o

grau máximo de centralização, que no diagrama de Baran aparece como

rede centralizada) e a distribuição máxima (todos os caminhos possíveis,

correspondendo ao número máximo de conexões para um dado número

de nodos - que não aparece no terceiro grafo do diagrama de Paul Baran,

por razões de clareza de visualização), existem muitos graus de

distribuição. É entre esses dois limites que se realiza a maioria das redes

realmente existentes.

Os diagramas de Baran são autoexplicativos. Mas as consequências que

podemos deles tirar não são. O primeiro corolário relevante é que a

conectividade acompanha a distribuição. Inversamente, quanto mais

centralizada for uma rede, menos conectividade ela possui. O segundo

corolário relevante é que a interatividade acompanha a conectividade e a

distributividade. Inversamente, quanto mais centralizada é uma rede,

menos interatividade ela possui.

Quem quiser saber mais sobre as relações entre a topologia de uma rede

e as características de uma empresa deve ler o texto Processos de Rede

em Empresas, que está disponível no link http://goo.gl/AwTE08

Page 9: Empreendimentos em rede

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AASS OORRGGAANNIIZZAAÇÇÕÕEESS DDAA CCAATTEEGGOORRIIAA VVEESSAA

A primeira pergunta que ouvimos de todas as pessoas interessadas em

empreendimentos em rede é a seguinte:

É possível organizar (na prática) um coletivo estável de pessoas em

rede ou isso é apenas uma tendência (apontada pela teoria) que só

será aplicável no futuro, quando toda sociedade já estiver mais

conectada em rede?

Esta é uma pergunta geral que fazem (e se fazem) tanto empresários e

gestores de empresas tradicionais curiosos com o tema, quanto pessoas

que querem empreender em rede. Costumo dizer que a maior parte das

organizações que existem hoje ou que já surgiram em qualquer época na

história é composta por organizações em rede. Fazendo uma brincadeira

(mas é verdade), digo que essas organizações - que somam bilhões - são

da categoria VESA. Diante do espanto do interlocutor esclareço que a sigla

significa "Você E Seus Amigos".

As VESAS são organizações em rede (mais distribuída do que centralizada).

Não têm chefe, não têm hierarquia. Mas o fato de serem informais não

significa que não sejam organizações (formas estáveis, com estrutura

característica, de agrupamentos de pessoas).

Page 10: Empreendimentos em rede

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Isso é significativo porque essas estruturas do tipo VESA estão presentes

em todo lugar, inclusive nas organizações hierárquicas de qualquer setor.

Inclusive nas empresas fortemente centralizadas elas estão lá, embaixo de

várias camadas de entulho hierárquico (que foram sobrepostas pelos

modelos de gestão baseados em comando-e-controle). As pessoas se

conhecem, experimentam o coleguismo e se comprazem na convivência,

muitas viram amigas e passam a manter relações recorrentes: namoram,

vão ao cinema e ao shopping, combinam happy hours, vão ao jogo ou ao

show, levam seus filhos para brincar na mesma praça ou no clube ou na

praia, frequentam as casas umas das outras, planejam viagens coletivas;

enfim: são pessoas interagindo de modo mais distribuído do que

centralizado e quando isso acontece... acontecem as redes! Não importa o

propósito: a rede é um padrão de organização, não um tipo determinado

de entidade que tenha necessariamente um objetivo ou finalidade.

Em termos de quantidade não há nem como comparar essas formas

estáveis de sociabilidade horizontal com aquelas que têm topologia

centralizada (ou mais centralizada do que distribuída), como as entidades,

instituições e organizações formais verticais do Estado, do mercado ou da

sociedade civil. É outra ordem de grandeza: as primeiras são dezenas de

bilhões enquanto que as segundas não passam de poucas centenas de

milhões.

Então não se trata de inventar algo que ainda não existe ou que existe

apenas embrionariamente. Não. A maior parte da nossa experiência de

relacionamento estável, desde que existe o Homo Sapiens (há pelo menos

Page 11: Empreendimentos em rede

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250 mil anos), se deu em estruturas mais distribuídas do que

centralizadas, quer dizer, em rede.

A pergunta, então, não é por que as organizações não são em rede e sim

por que existem organizações que não são em rede. O problema é que as

pessoas ficam procurando "organizações hierárquicas em rede" e aí não

podem achar mesmo.

Ora, para "fazer" rede não é preciso fazer quase nada. Deveríamos

perguntar, portanto, o que é necessário fazer para impedir que as pessoas

se relacionem horizontalmente ou de forma mais distribuída do que

centralizada, porque, aí sim, é necessário fazer muita coisa. Capturar,

condicionar e direcionar fluxos (me refiro aqui aos fluxos da convivência

social) para erigir hierarquias é muito mais difícil do que deixar fluir.

Esclarecido este ponto, podemos passar às questões mais específicas

feitas pelos diferentes grupos de pessoas interessadas em

empreendimentos em rede.

Page 12: Empreendimentos em rede

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ÉÉ PPOOSSSSÍÍVVEELL VVIIVVEERR DDEE UUMM NNEEGGÓÓCCIIOO EEMM RREEDDEE??

Vamos ver agora algumas perguntas feitas por empreendedores, incluindo

nessa categoria aquelas pessoas que desejam montar um negócio

inovador, passando pelo pessoal de startups idem e por gente que quer

descobrir outras maneiras mais cooperativas de trabalhar em rede e

sobreviver disso.

Suas três principais perguntas são:

Já é possível fazer um negócio em rede? Se sim, é possível fazer um

negócio em rede distribuída (ou mais distribuída do que

centralizada)?

Um negócio em rede, nas circunstâncias do mundo atual (quer

dizer, neste exato momento) é sustentável em termos econômicos?

É possível viver de um negócio em rede? É possível ficar rico (ou

ganhar muito dinheiro; ou, pelo menos, ganhar um bom dinheiro)

com um negócio em rede? Ou um negócio assim por enquanto dá

apenas, no máximo, para uma sobrevivência (austera)?

Vamos falar a verdade: as tendências e desafios que conseguimos divisar

neste momento indicam que sim, que já é possível fazer um negócio em

Page 13: Empreendimentos em rede

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rede - sobretudo no sentido estrito e fraco do conceito (ver abaixo) - mas

ainda não é possível ganhar muito dinheiro com isso. Negócios em rede,

em geral, permitem uma sobrevivência parca nas circunstâncias atuais.

Claro que, antes disso, é preciso entender o que é exatamente um negócio

em rede. Estamos tomando aqui as palavras negócio e empreendimento

como sinônimos (se o empreendimento for lucrativo).

Em um sentido muito geral, todo negócio é em rede (e digo mesmo: em

rede mais distribuída do que centralizada), ainda que não se identifique

essa rede (que sempre existe), como "dona" ou autora do negócio. No

entanto, olhando apenas a unidade empreendida (o negócio stricto

sensu), nem sempre ele é configurado como uma rede: se for, então o

negócio (ou empreendimento) é em rede (stricto sensu). A partir daí já

podemos divisar alguns elementos importantes para caracterizar um

negócio em rede (stricto sensu).

Temos, entretanto, que distinguir negócios em rede (mesmo stricto sensu)

no sentido forte do conceito e no sentido fraco do conceito. As quatro

primeiras proposições abaixo valem para ambos, as duas últimas apenas

para cada um:

1 - Em qualquer sentido, forte ou fraco do conceito, um negócio em

rede não pode ser um negócio individual, simplesmente porque não

existe rede de um indivíduo. Costumo dizer que, se definimos redes

como múltiplos caminhos, então nem uma dupla de nodos - "A

interagindo com B" - forma uma rede (porque aí o caminho é único,

ainda que transitivo: A <=> B). Então são necessárias pelo menos

Page 14: Empreendimentos em rede

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três pessoas (o "átomo-rede"): "A interagindo com B (e B com A,

porque por definição há transitividade na interação) e A interagindo

com C (idem) e C interagindo com B (idem-idem)".

2 - Ainda num sentido forte ou fraco do conceito, cabe acrescentar

que não vale considerar A, B e C como estruturas hierárquicas

(organizações centralizadas de pessoas). Redes (sociais) são redes

de pessoas. Empreendimentos ou negócios em rede são redes

sociais (e não associais ou antissociais, no sentido maturaniano do

termo). Então A, B e C só podem ser pessoas (ou redes de pessoas).

Redes de empresas (centralizadas) não são redes: uma rede de

supermercados não é rede, a Rede Globo não é rede, Herbalife não

é rede, uma rede de escolas públicas governamentais não é rede.

3 - Igualmente num sentido forte ou fraco do conceito, também não

vale encarar os recursos não-humanos utilizados por um

empreendimento como constituintes da suposta rede (como é feito,

em alguns casos, com certos empreendimentos tomados como

exemplos, como o Airbnb). Podemos ter um conjunto de recursos

não-humanos constelados em rede e, mesmo assim, não ter um

empreendimento em rede se os recursos propriamente humanos

não estiverem configurados como rede (e sim como hierarquia).

4 - Por último, tanto para o sentido forte quanto para o sentido

fraco do conceito, os "donos" (ou acionistas ou quaisquer tipos de

quotistas com direito a uso patrimonial) de um negócio em rede são

todos os que compõem o negócio. Se o negócio é composto por

Page 15: Empreendimentos em rede

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duas categorias - os donos e os empregados dos donos - então ele já

não pode ser caracterizado como um negócio em rede, mesmo que

os donos estejam organizados (entre si) em rede distribuída,

tenham as mesmas quotas e os mesmos direitos econômicos etc.

5 - No sentido forte do conceito, um negócio em rede não pode ser

fechado, não pode se constituir como unidade isolada do

ecossistema composto por seus stakeholders diretos (aqueles

imediatamente ligados em até 'n' graus de separação - poder-se-ia

arbitrar o valor de 'n' por convenção - conquanto, a rigor, não seja

assim se tomarmos o negócio em rede em sentido mais amplo,

como um negócio social propriamente dito). Na verdade a rede que

representa o negócio é esse ecossistema. O que significa que o

negócio em rede social é um metabolismo daquele mundo social,

daquela sociosfera onde ele surge e se realiza como tal (como

negócio). Negócios em rede - no sentido forte do conceito - são

comunidades móveis de negócios conformados na rede dos seus

stakeholders. São, portanto, fluxos ecossistêmicos.

6 - Num sentido fraco do conceito, negócios em rede podem se

constituir como redes de pessoas que se associam para empreender

lucrativamente, interagindo com o ecossistema de seus

stakeholders mas mantendo restritos a um cluster determinado os

direitos de uso patrimonial e a autonomia operacional (sendo que

devem permanecer válidas - como condições necessárias - as quatro

primeiras proposições desta lista de características).

Page 16: Empreendimentos em rede

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Pois bem. Negócios (stricto sensu) em rede, no sentido fraco do conceito,

não são fontes de grande riqueza neste momento, o que não significa que

não venham a ser no futuro (e em futuro bem próximo, a julgar pelo

aumento alucinante da interatividade numa sociedade-em-rede).

Mas não se deve enganar as pessoas dizendo que o mundo das redes é o

mundo da abundância (confundindo de propósito abundância de

conexões ou caminhos com possibilidades de apropriação privada de

abundantes recursos); ou, pior ainda, dizendo que haverá dinheiro

abundante na rede para todos no curto prazo. Não, no curto prazo não

haverá.

E não haverá porque os negócios tradicionais ainda deformam o campo

social de um modo tal que as iniciativas de empreendimentos que não

tenham seu DNA tendem a ser automaticamente expelidas, recusadas ou

preteridas pelo mercado. Isso está mudando velozmente, é verdade. Mas

ainda não mudou a ponto de podermos afirmar que já há excelentes

oportunidades lucrativas para todos, independentemente da forma como

se organizem. Não há. Quem quiser fazer negócios em rede, mesmo no

sentido fraco do conceito, vai ralar um bocado. A não ser que trapaceie,

chamando de rede o que não atende às quatro primeiras proposições da

lista de características (expostas acima) de negócios stricto sensu em rede.

É possível discordar dessa avaliação, claro, mas quem discordar deve

apresentar contra-exemplos de empreendimentos lucrativos em rede no

qual as pessoas estão tendo uma excelente (ou mesmo uma satisfatória)

remuneração (não vale, porém, citar exemplos de trapaças).

Page 17: Empreendimentos em rede

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O papo de que tudo que colocarmos na rede voltará para nós multiplicado

parece ser verdade de um ponto de vista de uma ecologia da dádiva. Mas

isso é válido para a rede-mãe (um termo que criei para designar aquela

rede que existe pelo fato de sermos pessoas - entroncamentos de fluxos -,

independentemente de nossos esforços conectivos voluntários) e,

portanto, para os negócios em rede social lato sensu.

Ou seja, isso é válido, para lançar mão de uma metáfora cinematográfica

(do filme Avatar), para a "rede neural biobotânica de Pandora", mas não

para um conjunto de pessoas atraídas por razões instrumentais - em geral

com o objetivo de ganhar dinheiro - para um propósito, projeto ou

equipamento propostos por nós e que então resolvemos chamar de

"rede". Esse é um papo dos que querem organizar negócios em rede para

os outros e que examinaremos a seguir.

Page 18: Empreendimentos em rede

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CCOOMMOO AAJJUUDDAARR PPEESSSSOOAASS AA CCOONNSSTTRRUUIIRR NNEEGGÓÓCCIIOOSS EEMM RREEDDEE

Vamos ver agora as perguntas dos consultores de inovação em empresas

tradicionais e outras pessoas que se dedicam ao coaching (com ou sem

fins lucrativos) com o objetivo de apoiar os que querem organizar novos

negócios em rede. As pessoas que se enquadram nesta categoria não

fazem muitas perguntas. Essas pessoas, por definição, são as que se

prepararam para fornecer respostas... Mas não é possível que elas, ao

menos intimamente, não se façam também algumas perguntas como as

seguintes (são perguntas que eu mesmo me faço, já que me enquadro

nesta categoria de netweaver, conquanto não me dedique a organizar

ninguém para montar negócios em rede):

Em que medida um consultor, coacher ou netweaver pode ajudar

outras pessoas a organizar negócios em rede se ele mesmo não tem

experiência de ter feito negócios em rede que "deram certo"?

É possível criar um ambiente realmente de rede para estimular o

surgimento de negócios em rede? Como fazer isso? Um ambiente

de rede é um equipamento (por exemplo, uma casa, um

laboratório, um local de eventos, de trabalho coletivo, de

cocriação)? Um equipamento desse tipo pode ser montado por

alguém antes da interação (quer dizer, antes da existência de uma

Page 19: Empreendimentos em rede

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rede de pessoas da qual emergiu tal necessidade)? Um

equipamento desse tipo pode ser montado com o objetivo de atrair

pessoas para fazer a rede?

Qual o papel do financiamento na estruturação de novos negócios

em rede? Quem investe faz parte da rede em igualdade de

condições com os investidos (ou detém poderes regulatórios

aumentativos em relação aos demais)? Neste caso, não introduz

centralizações deformando a rede?

Só pode ter um entendimento profundo das redes para atuar como

netweaver (articulador e animador de redes) quem experimenta se

organizar em rede. Uma compreensão intelectual não basta: do contrário,

todas as pessoas inteligentes, que fossem capazes de entender os

rudimentos das teorias da nova ciência das redes (e a maioria das pessoas

é suficientemente inteligente para tanto), estariam aptas a ser

netweavers: sim, elas poderiam de fato ser (netweavers), mas não são

enquanto ocupam "lugares" em hierarquias que são contraditórios com o

netweaving. Em outras palavras, o que se diz aqui é tautológico: para

articular e animar redes (o objetivo do netweaver) é necessário articular e

animar redes (a experiência do netweaver).

No caso daquelas pessoas que querem ajudar outras pessoas a construir

negócios em rede isso também é válido. Seria necessário que essas

pessoas estivessem fazendo negócios em rede. Do contrário não há como

responder à seguinte pergunta: "Por que você orienta as pessoas a fazer

negócios em rede se, você mesmo, não faz negócios em rede (e, pelo

contrário, vive de negócios tradicionais que não são em rede)?"

Page 20: Empreendimentos em rede

20

Não se deve dizer às pessoas que vivam no fluxo (ou do fluxo) quando, nós

mesmos, não vivemos. Não se pode - sob pena de estar trapaceando -

dizer às pessoas que elas não devem fazer açudes (porque isso represaria

o fluxo) quando, nós mesmos, vivemos de um açude.

Quem tem que trabalhar cotidianamente para sobreviver, quem não tem

açude, quem vive no fluxo ou do fluxo, pode ficar numa situação muito

difícil quando o fluxo fica menos volumoso (e ele às vezes fica, podemos

dar isso como certo nas atuais circunstâncias). Então não podemos

enganar as pessoas com promessas de prosperidade em rede, de dinheiro

fácil em rede.

Para compreender o fluxo é preciso se jogar no fluxo, pular no abismo da

interação, experimentar as alegrias e agruras dessa condição instável e

arcar com as suas consequências favoráveis e desfavoráveis.

Todavia, é possível, sim, estimular negócios em rede. Pode-se fazer isso

configurando ambientes favoráveis à emergência de empreendimentos

(de todo tipo, não apenas lucrativos, não apenas negócios) em rede. Em

geral empreendimentos lucrativos em rede surgem sempre coligados ou

sinergicamente relacionados à empreendimentos não lucrativos, porque

ambos fazem parte de um mesmo metabolismo da rede social (nós é que

separamos o que é lucrativo, o que é negócio, do que não é).

Configurar ambientes é a resposta. Mas a questão é: como fazer isso? Em

primeiro lugar precisamos entender o que é um ambiente do tipo descrito

acima. McLuhan disse, com razão, que é o ambiente que muda as pessoas

e não a tecnologia. Um ambiente não é um espaço físico, não é um prédio,

Page 21: Empreendimentos em rede

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não é uma ferramenta virtual (ainda que possam ser necessários espaços

físicos, prédios e ferramentas virtuais) - que são tecnologias. Um ambiente

é, portanto, tudo o que sobra, tirando essas e outras tecnologias. Ora, o

que sobra são... as pessoas interagindo para configurar o ambiente; ou

seja, o que sobra é a rede social.

É a rede que configura e que, mais do que isso, constitui o ambiente. É

essa rede que, a partir da sua interação, vai dizer de qual tipo de

tecnologia vai precisar. Às vezes vai precisar de um grande auditório, às

vezes de um laboratório com equipamentos, às vezes não vai precisar de

nada disso: apenas de um plataforma como o GitHub.

Se aportamos as estruturas (físicas e virtuais) antes da interação, se

disponibilizamos as tecnologias (de qualquer tipo) antes da rede

manifestar suas necessidades e propósitos, então não estamos

configurando um ambiente favorável à emergência de empreendimentos

em rede, simplesmente porque, neste caso, não foi a rede que configurou

e constituiu o ambiente. Neste caso o ambiente não existe, a rede não

existe e os nossos esforços são direcionados à capturar pessoas para

conformá-la e rechear a estrutura vazia que montamos (e que achamos

que é o ambiente). Ou seja, neste caso estamos tratando de rede, sim,

mas de rede de pescar! Um instrumento para pescar pessoas (e suas

ideias). Isso raramente dá certo, se é que deu alguma vez. Ambientes de

rede não podem ser reservatórios de gente para pescarmos em aquário

("fish in the barrel"). Redes sociais não são redes de pescar.

Page 22: Empreendimentos em rede

22

Se capturamos membros para uma rede que tem um objetivo já

determinado por nós ex ante à interação, estamos manipulando. Se nosso

objetivo for lucrativo (como alcançar mais riqueza) então os membros

serão encarados como potenciais investidos, clientes, consumidores,

fornecedores. Se nosso objetivo for sem fins lucrativos - como alcançar

mais reputação, mais prestígio; ou até mesmo hierárquicos, como

conquistar mais poder ou glória - então os membros serão encarados

como instrumentos de nossos propósitos, escadas, recursos dos quais

devemos lançar mão para concretizar nosso plano.

Quem quer fazer redes não pode arquitetar secretamente um plano, uma

estratégia, uma tática, em que os outros (os membros da rede) sejam

peões, peças da máquina ou recursos humanos funcionais para a

realização de seus objetivos.

Quem quer fazer redes não pode manipular pessoas. Isso não é uma

prédica moral, não! É só porque, quando manipulamos, centralizamos.

Mas a pergunta que vem agora é a seguinte: por que algumas pessoas

acham que devem manipular as outras pessoas?

Creio que a razão para tal comportamento está mais radicada na velha

vibe da concorrência mercantil do que propriamente numa intenção

deliberada de enganar os outros. Sim, a concorrência empresarial -

própria das velhas empresas hierárquicas e fechadas - que encara todo

mundo que não somos "nós" como "nosso" potencial inimigo é uma

cultura muito resiliente, que resiste e ainda vai resistir por muito tempo às

Page 23: Empreendimentos em rede

23

mudanças que já estão se processando em uma sociedade cada vez mais

em rede.

Então qualquer pessoa que não conseguiu se desvencilhar dessa cultura

pode, mesmo que não seja este seu desejo ou seu objetivo consciente,

reproduzi-la em ambientes (que deveriam ser) de rede. Isso acontece com

mais frequência quando estão em jogo atividades potencialmente

lucrativas. O lucro, quer dizer, não a produção de resultados positivos e

sim a apropriação privada de um sobrevalor gerado socialmente, acaba

turvando a visão dos empreendedores e dos que querem estimular

empreendedores com objetivos lucrativos.

Mas não é o lucro em si o problema e sim a expectativa hierarquizante de

vencer, subir na vida, fazer sucesso, se destacar dos semelhantes, que

frequentemente vem associada à busca do lucro (quando o lucro deixa de

ser uma obrigação normal das atividades lucrativas e passa a ser um

objetivo instrumental para obter mais poder - o poder de mandar nos

outros - e alcançar a glória).

Basta dar uma olhada na ideologia adotada por organizações como

Endeavor para ver a que ponto pode chegar a deformação. Em diferentes

graus de intensidade (ou de deformação) todo movime

nto de startups também está contaminado por crenças e comportamentos

semelhantes. E essas visões e práticas também se fazem presentes

naqueles investidores alternativos de capital de risco, angels investors e

assemelhados.

Page 24: Empreendimentos em rede

24

O problema é quando o investidor quer ser netweaver, mas atua como

aqueles caras que montam prédios, alojamentos e acampamentos para

incubar, acelerar e - obviamente - para comprar com preferência,

negócios inovadores emergentes.

Se um investidor individual, criador (e legalmente dono ou titular) de um

ambiente estruturado para o surgimento de negócios em rede (ou que

detenha neste ambiente poderes regulatórios aumentativos em relação

aos demais) puder escolher (em desigualdade de condições com outros

investidores) em quais negócios surgidos em rede ele vai investir, então

esse tipo de relação com os negócios surgidos em rede certamente

introduz centralizações deformando a rede.

Não é legal comprar as pessoas. Isso não casa muito bem com ambientes

de rede. Não é legal atrair pessoas com a promessa de financiar seus

projetos.

Não que o interesse financeiro, o desejo de ganhar um bom dinheiro ou a

necessidade de ganhar algum dinheiro para sobreviver não sejam

importantes. São importantíssimos. Mas dificilmente uma rede social

(quer dizer, uma rede de pessoas) voluntariamente articulada começará

assim.

Na década passada, quando me dedicava full time ao desenvolvimento

local, travei mil vezes esse debate com um ilustre ex-Ministro da Fazenda

e vários economistas. Eles diziam: "Tem que atrair o pessoal pelo bolso".

Eu respondia: "Se atrair pelo bolso não vai sobrar nada". Porque ganhar

dinheiro, naquele caso, fazia parte do metabolismo de uma comunidade,

Page 25: Empreendimentos em rede

25

era uma função do seu capital social ou do fluxo ecossistêmico próprio de

cada cluster. Uma pessoa individualmente interessada em ganhar dinheiro

fora desse fluxo, vai ficar correndo atrás das oportunidades que

aparecerem. Dez anos depois, pelo visto, a mesma conversa continua.

Como capital social não é nada mais do que a rede social, minha resposta

também continua a mesma.

Page 26: Empreendimentos em rede

26

AA TTRRAANNSSIIÇÇÃÃOO PPAARRAA AA EEMMPPRREESSAA EEMM RREEDDEE

Passemos agora às pessoas das empresas hierárquicas. Suas três principais

perguntas são:

É possível fazer a transição de uma empresa hierárquica para uma

empresa em rede? Isso independe do tamanho da empresa ou do

ramo do negócio? Quais os riscos envolvidos nesse processo?

Temos exemplos de empresas que fizeram a transição do seu

padrão hierárquico para um padrão de rede (mais distribuída do

que centralizada)? Em que medida isso deu certo?

Quais os exemplos de empresas em rede já funcionando que

podemos conhecer?

Para responder estas perguntas, creio que devemos evitar os subterfúgios

e falar a verdade.

É claro que é possível a transição de uma empresa hierárquica para uma

empresa em rede. O processo já está em curso em boa parte das

empresas, em maior ou menor intensidade, tenham ou não as direções

dessas empresas consciência disso e tenham ou não deliberado tomar

medidas específicas para "fazer a transição". Por que? Ora, porque a

Page 27: Empreendimentos em rede

27

estrutura das empresas está ficando mais distribuída e seus

procedimentos estão ficando menos autocráticos. A empresa monárquica

associada ao Estado hobbesiano do início do capitalismo não é mais a

mesma. Está mudando por exigências de adaptação a um mundo que

também não é mais aquele da época das primeira grandes manufaturas. É

o óbvio.

A transição para um padrão de rede não é a substituição de um modelo

por outro. Não há um novo modelo, um novo desenho, ao contrário do

que apregoam muitos gurus da administração empresarial. O que há é o

aumento do grau de distribuição (que altera a topologia do padrão de

organização) com a compatível democratização dos modos de regulação:

a transição é exatamente isso. E nada mais.

Assim, não existem exemplos de grandes empresas que fizeram

totalmente a transição do seu padrão hierárquico para um padrão de

rede. A expressão "totalmente" não cabe porque não há um ponto de

chegada (um novo modelo para substituir pelo antigo).

Acompanhando - cada qual no seu próprio passo, com maior ou menor

sinergia (ou, às vezes, até temporariamente resistindo) - à transição para

uma sociedade em rede, as empresas vão tentando se adaptar para

sobreviver às novas condições ambientais. Não há um mesmo ritmo. Não

haverá um mesmo resultado. Muitas empresas desaparecerão (ou se

estilhaçarão, dando origem a novas empresas). Algumas empresas

remanescerão com estruturas fortemente centralizadas e conseguirão, a

despeito disso, sobreviver por um tempo razoavelmente longo. Outras,

Page 28: Empreendimentos em rede

28

conseguirão se redesenhar como estruturas mais distribuídas do que

centralizadas (mas ainda com graus significativos de centralização). E

outras, ainda, adotarão estruturas fortemente distribuídas e se

transformarão em outra coisa.

As empresas que chegarem ao "final" da transição (se houvesse um final,

mas não há) não serão mais as mesmas empresas que foram e nem algo

que tradicionalmente se identifique como empresa (tal como hoje se

entende o conceito).

Como disse Fernando Baptista, "tem que ficar claro que uma empresa

pode ser menos hierárquica, pode aumentar os graus de distribuição,

pode até ser um nascedouro de bolhas [zonas mais distribuídas do que

centralizadas no seu interior] e que ela, inclusive, pode passar a ter

fronteiras menos definidas (como áreas cinzas)... mas que empresa é

instituição enquanto que empreender é ação e que o empreender pode

ocorrer dentro de empresas ou fora delas". A confusão se dá, segundo

Baptista, "quando as pessoas pensam que o "empreender em rede" leva à

"empresa em rede"; na verdade é o contrário: a transição significa que a

ideia de "empresa" (instituição) dá lugar à de "empreender" (ação livre e

cooperativa em rede). O destino último de uma empresa que transita para

rede seria deixar de ser empresa e tornar-se ação empreendedora".

Mas não se trata, quando falamos de transição, de destinos últimos e sim

de trajetórias diversas de adaptação. O que é impossível encontrar são

exemplos de empresas em rede hierárquicas (instituições centralizadas

reconhecidas atualmente como empresas).

Page 29: Empreendimentos em rede

29

A empresa totalmente não-hierárquica será outro tipo de arranjo,

provavelmente não identificável como empresa. Mas é preciso ver que os

casos centralização máxima e distribuição máxima são casos

(matemáticos) limites: entre uma organização totalmente centralizada e

uma organização totalmente distribuída temos um amplo espectro de

topologias possíveis. Grande parte das empresas está tornando sua

estrutura mais distribuída e, assim, podemos afirmar, que elas estão na

transição para mais distribuição (ainda que muitas não tenham chegado

ainda a apresentar uma estrutura mais distribuída do que centralizada).

Repetindo: a rigor todas as empresas - tenham ou não percebido isso e

tenham ou não decidido fazer qualquer movimento nesse sentido - estão

se tornando mais distribuídas.

Não há um case, uma best practice, um exemplo a partir do qual se possa

fazer benchmarking, porque é muito difícil perceber as pequenas,

progressivas ou intermitentes, mudanças no grau de distribuição.

Ademais, o processo é meio caótico, avança e recua e, não raro, empresas

que seguiram no caminho da distribuição voltam atrás e se recentralizam

(ou se hierarquizam mais).

Quem está vivendo a transição, em geral, não percebe o sentido do

movimento, mas apenas os problemas, as confusões e os efeitos

colaterais do desafio de ter que mudar o seu padrão de adaptação a um

mundo em franco processo de distribuição querendo manter, entretanto,

o seu padrão de organização fortemente centralizado (é claro que é

impossível manter o estado pretérito do padrão de organização quando

muda o padrão de adaptação: a alostase de uma empresa exige

Page 30: Empreendimentos em rede

30

simultaneidade da mudança do padrão de adaptação e do padrão de

organização e, por isso, haverá "choro e ranger de dentes" por parte de

quem está experimentando diretamente os dilemas da mudança).

A transição é narrativa de quem vê a onda, quer dizer, a continuidade (o

fenômeno ondulatório, próprio de um meio contínuo) só é percebida pelo

observador que observa tudo isso numa linha temporal mais longa. Quem

está na onda - e não vê que é uma onda longa e nem mesmo vê que é

uma onda - só percebe a arrebentação (quer dizer a descontinuidade, o

fenômeno discreto) como choques sucessivos com as pedras ou com o

solo (a onda arrebentando na praia). É por isso que as pessoas das

empresas têm dificuldade de perceber a transição e, muitas vezes, acham

que estão fazendo alguma coisa errada quando a frequência da onda

aumenta (com o aumento da interatividade do meio) e aparecem também

com mais frequência os problemas da inadaptação (em geral decorrentes

do descompasso entre a mudança do padrão de adaptação e a mudança

do padrão de organização).

Olhando de outro ponto de vista, entretanto, veremos que sempre

existiram empreendimentos em rede. A rigor, todos os empreendimentos

são em rede porque "embaixo" de qualquer empreendimento existe uma

rede articulada e animada pelos empreendedores.

Mas essas redes não são identificadas como empresas, quer dizer, como

unidades administrativo-produtivas separadas do meio, isoláveis e,

portanto, identificáveis do ponto de vista do seu padrão de organização

(como se fossem caixas fechadas). É uma trama de relações que se

Page 31: Empreendimentos em rede

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confunde com o meio, pois em uma rede não existem fronteiras claras,

paredes opacas separando o que está dentro do que está fora. As

fronteiras em uma rede são fronteiras de identidade que não se

cristalizam como separações se não houver acentuado grau de

centralização da rede.

Nenhuma empresa fará uma transição "acabada" (e, portanto, claramente

identificável para servir de exemplo ou modelo) para um padrão de rede

na integralidade da sua estrutura e do seu funcionamento, mas... eis a

questão: nenhuma empresa, de qualquer tamanho, poderá evitar a

aplicação (ou melhor, a realização) de processos de rede no seu interior e

no seu ecossistema, se quiser aumentar suas chances de evitar o risco

sistêmico - um risco de colapso ou morte por baixa interatividade (que se

revela como queda simultânea de inovatividade e produtividade, mesmo

em situações de alto crescimento) - que ameaça todas organizações

hierárquicas em um mundo cada vez mais em rede. Na medida em que

descobrirem isso, as empresas implantarão processos de rede no seu

ecossistema: não para ganhar mais e sim para durar mais.

Resumindo mais uma vez: as empresas tradicionais - enquanto tais - na

maior parte dos casos, não vão virar totalmente redes (mais distribuídas

do que centralizadas), mas também não vão poder evitar as redes! Num

mundo de alta interatividade a organização que não tiver uma estrutura e

uma dinâmica adaptáveis à interação tende a desaparecer ou a se tornar

obsoleta e irrelevante.

Page 32: Empreendimentos em rede

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Os processos de rede que uma empresa já está sendo compelida a realizar

(sobretudo porque está condenada a inovar permanentemente enquanto

que sua estrutura e sua dinâmica foram desenhadas para a reprodução e

não para a inovação) vão, progressivamente, tornando sua estrutura cada

vez mais distribuída e sua dinâmica cada vez mais democrática (ou

pluriárquica). No limite, pode-se dizer que - se sobreviver - ela acabará

virando rede mesmo: mas, quando isso acontecer, não será mais

identificável como aquela empresa original. Porque não será mesmo. Será

outra coisa.

Existem, por certo, muitas grandes organizações (não-empresariais),

consideradas bem-sucedidas, que se estruturam claramente em rede; por

exemplo, como empreendimentos sociais, os AA (Alcoólicos Anônimos) e

o CVV (Centro de Valorização da Vida); e, como empreendimentos sociais

virtuais, o eMule e numerosos outros. Existem também empreendimentos

lucrativos que já começaram em rede, mas grande parte desses entra

naquela categoria não facilmente identificável por quem está com o

"velho binóculo", procurando "empresas hierárquicas em rede". Querer

achar exemplos de "empresas hierárquicas em rede" para conquistar o

cliente ou convencer o interlocutor é cometer uma não-verdade. Vamos

ver alguns exemplos:

Google - muitas vezes apresentado como empresa em rede para

convencer o interlocutor de que podemos ter grandes e bem-sucedidas

empresas em rede - não é, definitivamente, uma empresa em rede.

Google é uma empresa hierárquica, fortemente centralizada, ainda que

tenha "regiões" e funções estruturadas em rede com graus significativos

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de distribuição. E ainda que lance mão - até pela natureza do seu negócio -

de processos e ferramentas mais compatíveis com mundos em rede,

mesmo assim não é rede. Quando Google quis aumentar sua

inovatividade, o que ele fez? Criou (para todos os efeitos práticos de

gestão) outra empresa (a GoogleX) que funciona na base de comunidades

de projeto (e, portanto, mais em rede); e fez isso para escapar dos

modelos de gestão comando-e-controle que seu mainframe (centralizado)

foi obrigado a adotar para dar conta de regular um metabolismo

compatível com sua natureza de empresa hierárquica, fechada, em luta

permanente contra inimigos, com um rígido código de segredo (que

lembra, mal-comparando e exagerando um pouco, alguma coisa como a

Omertà mafiosa).

Outro exemplo: Airbnb não é uma empresa em rede. Ainda que tenha

adotado uma "rede" de recursos descentralizados de terceiros e tenha

aberto mão de erigir um mainframe proprietário centralizador, a estrutura

e a dinâmica de Airbnb não é a de uma rede (mais distribuída do que

centralizada). Todavia, como Airbnb é um negócio inovador, com

estrutura e dinâmica não tradicionais e como é um empreendimento de

sucesso (no início deste ano tinha algo como 10 milhões de nights booked,

sem ter sequer um hotel), então ficamos tentados a apresentá-lo como

exemplo de empresa em rede. Se fazemos isso apenas para ganhar o

cliente ou convencer o interlocutor, sabendo que Airbnb não é de fato

uma organização em rede, então decaímos para um estado de

conversação de não-verdade.

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Como disse Nilton Lessa, "dar exemplos de Google e Airbnb como

empresas em rede é (quase) o mesmo que dizer que o exército americano

é uma organização em rede porque está adotando modos-de-combate

mais flexíveis em seus pelotões".

Olhando as coisas de outro ponto de vista, entretanto, veremos que em

todas as empresas já temos rede, que nas profundezas das entidades

empresariais que foram erigidas hierarquicamente existem redes e que

sem essa "empresa-viva" subterrânea (como uma floresta de clones

fúngicos), ainda que soterrada por entulho hierárquico, nenhuma empresa

poderia florescer. Mais do que isso! É dizer que esse entulho hierárquico

(operando por meio de obstruções de fluxos), conquanto viabilize o

funcionamento de eficazes mecanismos de reprodução, impede que a

empresa configure ambientes favoráveis à inovação, sem os quais ela (a

empresa) terá dificuldade de aprender, quer dizer, de mudar-com-o-

mundo, realizando sua alostase (o único processo capaz de viabilizar sua

sustentabilidade).

A adoção de processos de rede em uma empresa implica sempre riscos.

Mas como qualquer outro processo em uma atividade empresarial, em

geral não há o risco imediato de destruir a empresa. Não por isso.

O risco maior, entretanto, é o de não acontecer nada, nenhuma mudança,

como ocorre com frequência em aplicações de rede em empresas

promovidas por consultorias de inovação, num jogo de cartas marcadas

entre os contratadores e os consultores (para que não aconteça nada). A

gerência média das empresas - a burocracia que constitui a sua hierarquia

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propriamente dita - vai tentar sempre agir como anticorpo corporativo

para impedir as mudanças (aquelas mudanças que ela perceber como

ameaças e que avaliar como riscos para a homeostase da organização,

quer dizer, que ameaçarem mudar seu "firmware" ou seu "bios" - onde

estão programados seus parâmetros de adaptação) e isso será feito

independentemente das diretivas dos donos, dos acionistas majoritários,

do CEO ou da alta administração da empresa. É uma função sistêmica

(daquele tipo de sistema) e, portanto, dificilmente sujeita às ordens dos

que estão no comando. É por isso, por exemplo, que o CEO não manda

efetivamente na TI, nem no RH, nem no Jurídico, que funcionam da

mesma maneira em qualquer empresa semelhante: porque os sistemas

são homólogos.

Diferentes ramos de negócios, entretanto, se comportarão

diferentemente: empresas da área do conhecimento terão menos

resistência às mudanças do que empresas fabris da "era das chaminés"

(como siderúrgicas) ou, menos ainda, do que empresas extrativistas (como

madeireiras).

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NNOOTTAA

As citações de Fernando Baptista e Nilton Lessa foram comunicações

pessoais com o autor