empreendedorismo e desenvolvimento territorial

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1 1˚ Fórum International Território, Desenvolvimento Rural e Democracia Banco do Nordeste, IICA, Ministério do Desenvolvimento Agrário, Ministério da Integração Nacional, EMBRAPA, SEBRAE, Banco Mundial e Governo do Estado do Ceará/Secretaria de Desenvolvimento Local e Regional Desenvolver os territórios fortalecendo o empreendedorismo de pequeno porte Ricardo Abramovay Professor Titular do Departamento de Economia da FEA e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da USP – Pesquisador do CNPq – Grupo de Pesquisa: As instituições do desenvolvimento territorial — www.econ.fea.usp.br/abramovay/ Relatório final Fortaleza, 16 a 19 de novembro de 2003

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Desenvolvimento Territrial

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    1 Frum International Territrio, Desenvolvimento Rural e Democracia

    Banco do Nordeste, IICA, Ministrio do Desenvolvimento Agrrio, Ministrio da Integrao Nacional, EMBRAPA, SEBRAE, Banco Mundial e Governo do Estado do

    Cear/Secretaria de Desenvolvimento Local e Regional

    Desenvolver os territrios fortalecendo o empreendedorismo de pequeno porte

    Ricardo Abramovay

    Professor Titular do Departamento de Economia da FEA e do Programa de Ps-Graduao em Cincia Ambiental da USP Pesquisador do CNPq

    Grupo de Pesquisa: As instituies do desenvolvimento territorial www.econ.fea.usp.br/abramovay/

    Relatrio final

    Fortaleza, 16 a 19 de novembro de 2003

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    Desenvolver os territrios fortalecendo o empreendedorismo de pequeno porte

    Ricardo Abramovay*

    1. Apresentao nos territrios urbanos ou rurais que podem ser implantadas polticas voltadas a mobilizar as energias necessrias a que a pobreza seja significativamente reduzida, por meio do fortalecimento do empreendedorismo de pequeno porte. A vitria sobre a pobreza depende, antes de tudo, do aumento das capacidades produtivas e da insero em mercados dinmicos e competitivos dos milhes de famlias cuja reproduo social se origina em seu trabalho por conta prpria. O alargamento dos horizontes contidos nesta proposio s pode vir de uma poltica nacional que estimule a ampliao dos vnculos sociais localizados dos que hoje esto em situao de pobreza e este o sentido maior da noo de desenvolvimento territorial.

    A primeira parte deste texto, logo aps a apresentao, procura expor, de maneira resumida, seu argumento central: o combate pobreza s ter sucesso se forem criados ambientes locais que favoream a ampliao dos investimentos produtivos das famlias vivendo hoje em situao de pobreza. Em seguida, (parte 3), o trabalho apresenta, as mais importantes correntes de opinio sobre a luta contra a pobreza, no Brasil. Existem basicamente duas vertentes a respeito do tema. Por um lado, esto os que acreditam que o crescimento econmico sempre que apoiado em inovaes tcnicas que representem aumento de produtividade acaba-se difundindo e provocando elevao nos salrios dos mais pobres. O territrio entendido como expresso de formas localizadas de interao social, cujo fundamento no se encontra apenas em relaes de mercado desempenhar um papel secundrio para esta corrente de idias. Uma segunda corrente cujas opinies so cada vez mais apoiadas pelas organizaes internacionais de desenvolvimento enfatiza o fato de o crescimento econmico ser muito lento na reduo da pobreza e insiste, conseqentemente, em polticas explcitas de distribuio de renda. Os territrios a so decisivos no apenas como forma de controle social sobre a transferncia de renda, mas porque formam a base sem a qual impossvel fazer com que a distribuio de ativos (terra, crdito, educao, assistncia tcnica) aos mais pobres traduza-se em ampliao de suas capacidades produtivas e de sua insero em mercados dinmicos.

    A parte quatro expe as razes principais que fazem dos territrios os locais privilegiados de concepo e execuo de polticas economicamente consistentes de combate pobreza. Ela contm tambm proposies quanto ao formato organizacional de uma

    * Professor Titular do Departamento de Economia da FEA e do Programa de Cincia Ambiental da USP Pesquisador do CNPq Grupo de Pesquisa: As Instituies do Desenvolvimento Territorial Autor de O Futuro das Regies Rurais (UFRGS Editora, 2003).

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    poltica de luta contra as desigualdades regionais que se apie no fortalecimento dos territrios. Na parte cinco esto as concluses do trabalho.

    2. Aumentar a capacidade de investimento dos mais pobres O eixo da luta contra a pobreza no Brasil est no fortalecimento do empreendedorismo de pequeno porte (ver box 1). Um tero daqueles que mal conseguem preencher suas necessidades bsicas cotidianas vivam eles nas regies metropolitanas ou no interior do Pas so classificados, nas estatsticas, como trabalhadores por conta prpria. Isoladamente, os por conta-prpria representam o mais importante contingente social entre os pobres, mais numerosos que os empregados informais, os empregados formais e os inativos (tabela 1). So famlias pluriativas, cuja reproduo social depende da relao com mercados na maior parte das vezes imperfeitos e incompletos (Ellis, 1988; Abramovay, 1992/1998) onde compram o que necessitam para organizar suas atividades e vendem os produtos de seu trabalho.

    Tabela 1 Porcentagem do total da populao vivendo abaixo da linha de pobreza, segundo condio de trabalho - Brasil 1996

    Inativos 16,96

    Desempregado 4,36

    Empregado formal 17,82

    Empregado informal 19,01

    Por conta-prpria 31,45

    Empregador 1,43

    Servidor pblico 5,20

    No remunerado 3,70

    Outros/no especificado 0,07

    Total 100

    Fonte: Ferreira et al. (2001), com base em dados da PNAD.

    Melhorar as capacidades produtivas e as condies de acesso aos mercados dos empreendedores de pequeno porte o mais importante desafio das polticas de desenvolvimento territorial, cujo objetivo bsico estimular um ambiente em que a cooperao social localizada abra caminho para inovaes tecnolgicas e organizacionais que ampliem o poder competitivo dos que hoje se encontram em situao de pobreza (Schejtman e Berdegu, 2002).

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    primeira vista, parece uma contradio nos termos. De fato, inovao e competitividade so expresses que no pertencem ao vocabulrio brasileiro corrente, quando se trata do combate pobreza. Nossa histria recente e o prprio debate atual mostra imensa preocupao em se acertar o alvo na transferncia de renda a determinados segmentos sociais (1). Mas sem aumentar a capacidade de investimento dos mais pobres, no possvel superar a precariedade que marca suas vidas. E este aumento s trar resultados importantes se estiver apoiado em um conjunto de fatores que reduzam os riscos de iniciativas que possam conduzir melhoria dos resultados econmicos de seus empreendimentos e a sua melhor insero em mercados aos quais tm hoje acesso precrio.

    1 Bolsa-Famlia tem alcance restrito, o ttulo da matria publicada na Folha de So Paulo (10/11/03, p. A 4), mostrando que dos 4.396 municpios integrados ao Bolsa-Famlia em outubro, 1.106 tinham no mximo dez beneficiados cada um. O debate pblico sobre a transferncia de renda pauta-se por saber quantos e quais foram os beneficiados pelas polticas pblicas. Documento recm divulgado pelo Ministrio da Fazenda revela apreciao crtica sobre a capacidade de os programas de transferncia de renda reduzirem, de fato, a pobreza. A declarao do prof. Scheinkman ao Globo (15/11/03, p. 12) resume o diagnstico do documento: No resto do mundo os pases conseguem, com impostos e transferncia de renda diminuir o nvel de desigualdade. No Brasil isso no feito. Na verdade, no se trata de uma idiossincrasia brasileira, mas de um trao de sociedades muito desiguais, conforme ser visto mais abaixo no Box 2.

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    Box 1

    Empreendedorismo de pequeno porte: uma contradio nos termos?

    Pode parecer estranho o uso da expresso empreendedorismo para caracterizar atividades de populaes vivendo prximo linha de pobreza. A principal tradio a este respeito, no interior da cincia econmica, formada a partir da obra de Joseph Schumpeter, certamente no aprovaria este emprego. Mesmo que, como bem mostra Swedberg (2000), o ponto de vista de Schumpeter a respeito do tema tenha mudado ao longo de sua vida, o que permanece a idia do empreendedor como algum cuja iniciativa rompe o equilbrio existente e promove, por isso mesmo, o desenvolvimento econmico. Na primeira edio da Teoria do Desenvolvimento Econmico, em 1911, Schumpeter sustenta a idia de que toda mudana verdadeiramente importante na economia vem da iniciativa dos empreendedores. E isso no ocorre apenas no domnio econmico, mas tambm na arte ou na poltica: o empreendedorismo o contrrio das atividades rotineiras com as quais os indivduos esto habituados na gesto de suas vidas e seus negcios. Criatividade e intuio so componentes decisivos, nesta primeira teorizao de Schumpeter. Na segunda edio de seu livro, em 1926 Schumpeter aborda o empreendedorismo de maneira muito mais tcnica e desapaixonada: a inovao, que o jovem Schumpeter, em 1911, tinha descrito de forma quase dionisaca, tornou-se agora muito mais apolnea em sua natureza e simplesmente definida no livro Business Cycle como a organizao de uma nova funo de produo (Swedberg, 2000:15). De qualquer maneira, Schumpeter insiste que o empreendedorismo marcado por uma nova combinao dos materiais e das foras j existentes e que ele consiste em fazer inovaes. Schumpeter lista cinco traos do empreendedorismo: 1. a introduo de um novo bem; 2. a introduo de um novo mtodo de produo; 3. a abertura de um novo mercado; 4. a conquista de uma nova fonte de oferta de matrias-primas e 5. a criao de uma nova organizao na indstria.

    Mesmo que se opondo orientao schumpeteriana a idia de empreendedorismo de pequeno porte encontra respaldo em outras tradies tericas. Para Jean-Baptiste Say (1776-1832) o empreendedor aquele que compra por um preo certo e vende por um preo incerto. Para Richard Cantillon (1680-1734) o empreendedorismo consiste na combinao dos fatores produtivos no interior de um organismo (Swedberg, 2000:19). O importante, nestas definies e isso ser retomado, posteriormente por Friedrich von Hayek (1899-1992) que o empreendedorismo envolve no apenas risco, mas, sobretudo, conduz a um processo de descoberta das condies produtivas, das oportunidades de mercado por parte dos prprios atores sociais.

    Ambientes sociais marcados por pobreza, dependncia personalizada dos indivduos com relao aos que vivem da explorao de seu trabalho e mercados pouco desenvolvidos no so propcios inovao e, portanto, inibem o empreendedorismo. Ao mesmo tempo, nas organizaes internacionais de desenvolvimento cada vez mais recorrente a constatao de que o fortalecimento do empreendedorismo de pequeno porte um

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    elemento decisivo no revigoramento de regies atrasadas e, de forma geral, na luta contra os efeitos destrutivos do desemprego em massa. Existem ao menos trs razes para se falar de empreendedorismo de pequeno porte ao caracterizar as atividades dos agricultores familiares e dos trabalhadores urbanos por conta prpria:

    1. Uma parte significativa, embora minoritria, destas atividades tem um potencial de inovao e por a de desenvolvimento que o trabalho de diversas organizaes de apoio (desde o SEBRAE at o movimento sindical, passando por inmeras organizaes no governamentais) frequentemente revelam: a insero de agricultores familiares em mercados certificados, as inovaes tecnolgicas envolvidas na convivncia com a seca no semi-rido so apenas alguns exemplos neste sentido.

    2. O empreendedorismo no apenas individual, mas tambm coletivo e no envolve apenas a figura mstica do empreendedor isolado e sim um conjunto de iniciativas socialmente coordenadas: arranjos produtivos locais, gesto de recursos comuns (desde recursos naturais at marcas territoriais de qualidade) so algumas das mais importantes expresses do empreendedorismo coletivo.

    3. Falar em empreenedorismo de pequeno porte significa exatamente evitar o ponto de vista segundo o qual o trabalho por conta prpria uma forma social efmera, uma defesa dos indivduos contra o desemprego e que ser suprimida quando as polticas macroeconmicas permitirem a retomada do crescimento. Ignacy Sachs resume bem a questo ao mostrar que os corifeus da modernizao tendem a considerar estes pequenos produtores e empreendedores como resqucios de um passado fadado ao desparecimento medida em que a grande indstria, a agricultura mecanizada e os servios a elas associados acabaro por absorver no setor moderno da economia os excedentes de mo-de-obra acumulados no que se chamava de setor tradicional antes da introduo do conceito de economia informal (Sachs, 2002:55). A noo de empreendedorismo de pequeno porte afirma a importncia de polticas voltadas explicitamente a aumentar as capacidades produtivas e de melhor insero nos mercados de milhes de empreendimentos que hoje mals conseguem reproduzir-se.

    No se trata apenas de declarar que as polticas compensatrias sero acompanhadas de polticas estruturantes: necessrio contribuir para a criao de um ambiente em que a aprendizagem e a inteligncia sejam aplicadas no apenas aos segmentos econmicos de ponta, mas igualmente queles que s conseguem inserir-se em mercados hoje pouco dinmicos e com base em tcnicas produtivas e organizacionais rotineiras e, atualmente, de futuro pouco promissor (2).

    2 O atual governo parece sensvel criao desta inteligncia estratgica em alguns setores de ponta e neste sentido que se organiza sua poltica industrial. A criao de um centro de exelncia em circuitos eletrnicos, por exemplo, vai nesta direo. Edmundo de Oliveira resume a inteno, em entrevista ao jornal Valor Econmico (16/02/04, p. A3): a idia criar inteligncia no setor dentro de uma poltica de Estado e no de um ou outro governo. Embora existam organizaes e polticas voltadas a agricultores familiares e a empreendedores de pequeno porte, nem de longe se inserem dentro do mesmo tipo de horizonte estratgico.

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    A pobreza no se explica apenas por atributos dos indivduos seu nvel de escolaridade, seus ativos, seu capital fsico, humano e financeiro. Ela deve ser compreendida tambm com base no estudo de seu capital social (3), do limitado crculo de relaes humanas em que se movem e em sua restrita capacidade de ampli-lo para desfrutar de novas oportunidades.

    Este crculo social localizado e s pode ser, igualmente, localizada a criao das condies que vo permitir a quebra de seus limites e a ampliao de seus horizontes. A grande contribuio de Amartya Sen (1988 e 2001) aos estudos sobre desenvolvimento consiste em mostrar que superar a pobreza no apenas dispor de certos recursos materiais: , antes de tudo, ter acesso a novas oportunidades com base na aquisio e no exerccio de capacidades (capabilities) que no faziam parte dos hbitos sociais (beings e doings, os seres e os fazeres) at ento prevalecentes. O bem-estar dos indivduos, para Sen, no pode ser avaliado por uma medida to geral como o PIB. Os bens materiais de uma sociedade so apenas os meios e no os fins do desenvolvimento: tudo depende de quem utiliza e, sobretudo, de como utiliza estes bens materiais. isso que a noo de funcionamentos procura destacar, na obra de Sen. Os elementos que formam o PIB oferecem, apenas, uma espcie de leque virtual de possibilidades: mas os fins so os funcionamentos, o que, de fato, os indivduos fazem com o resultado das atividades sociais (4). Conseguir um emprego mais bem remunerado, transformar sua base tcnica em direo a novos produtos e novos mercados so conquistas cujo pressuposto bsico est no estabelecimento de relaes sociais inditas e que materializam valores, normas, expectativas, modelos mentais, em suma, instituies novas (North, 1990).

    Echeverri (2003) insiste no fato de que mercados no so pontos neutros de equilbrio para a formao de preo, mas exprimindo o que se faz de mais significativo na sociologia econmica contempornea construes sociais. E estas construes so concretas, encarnadas, localizadas e, portanto, territoriais, dotadas de histria, conflitos e organizaes sociais. O territrio , portanto, um espao de convergncia no apoio a funes bsicas no desenvolvimento. no territrio que se encontra o mundo vivido pelos atores e, portanto, a que se podem fazer laos de solidariedade capazes de ampliar os horizontes produtivos dos mais pobres. No mesmo sentido, o IICA insiste na importncia dos mercados locais para a agricultura familiar (Seplveda et al., 2003)

    O Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) marca uma virada na histria das polticas pblicas brasileiras exatamente por associar o acesso a um ativo fundamental o crdito relao social com um ator que no fazia parte do crculo habitual de relaes do agricultor familiar o banco (Abramovay e Veiga, 1999). E exatamente a que reside o seu limite: no s o acesso a servios financeiros por parte dos agricultores familiares foi muito parcial (Abramovay, 2003 a), como

    3 ...diferenas residuais ligadas, grosso modo, aos recursos que podem ser reunidos, por procurao por meio de redes de relaes mais ou menos numerosas e mais ou menos ricas...(Bourdieu, 2000:12). 4 Esta idia dos bens materiais como meios e no como fins no s recupera (como insiste Sen, 1986) a tradio aristotlica que v na economia a arte de ocupar-se do oikos, da casa, da sobrevivncia, mas faz parte tambm da orientao terica do trabalho de Ignacy Sachs (1984), quando insiste na importncia do que chama de economia real, da materialidade do que fazem os indivduos e no s de sua expresso no sistema abstrato de valores na contabilidade nacional.

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    tambm a obteno de apoio tcnico e organizacional voltado a sua insero em mercados dinmicos no se inscreveu como prtica para a qual estivessem voltados os extensionistas e o conjunto da rede que compe o Programa. O importante era e ainda fazer com que o crdito chegasse aos agricultores familiares e, neste sentido, o PRONAF foi um notvel sucesso. Mas no se conseguiu alterar, de maneira significativa, as prticas produtivas, tcnicas e organizacionais das quais depende sua gerao de renda: este seu principal limite (Abramovay, 2002).

    Uma poltica de desenvolvimento territorial tem a misso de converter o PRONAF num programa pblico voltado agora fundamentalmente busca de formas organizacionais que cultivem a aprendizagem, a inovao e que resultem no aumento da competitividade dos agricultores familiares. Os vnculos territoriais de proximidade podem ser um elemento decisivo na inovao e no aumento do poder competitivo dos empreendimentos. Estimulam a atuao conjunta na obteno de insumos e de crdito, na venda de produtos, na valorizao de atributos regionais de qualidade ligados a caractersticas dos prprios produtos.

    Nos lugares em que se concentra a pobreza nas cidades e no meio rural os vnculos sociais tendem, entretanto, a perenizar a restrio nas oportunidades de escolha dos mais pobres. Explorar produtos pouco promissores em mercados restritos e sem dinamismo no se explica apenas por ignorncia e por hbito, mas, fundamentalmente, por necessidade: quanto mais pobres as famlias, menos podem arriscar-se em prticas inovadoras, cujo insucesso pode ser catastrfico para o frgil equilbrio em que subsistem (Lipton, 1968; Galbraith, 1979). Ao mesmo tempo, com base em suas relaes locais que estas famlias podero construir laos que lhes abram horizontes capazes de representar avano na luta contra a pobreza. Por mais importantes que sejam as polticas de transferncia de renda, elas no alteram em quase nada a qualidade da insero social das famlias beneficiadas (5), mesmo que permitam aumentar seu consumo. Polticas de desenvolvimento territorial consistem num conjunto de mecanismos voltados especialmente a romper a estreiteza das relaes sociais em que vivem os mais pobres, abrindo-lhes, por a, novas oportunidades de expresso da capacidade criativa de seu trabalho.

    Embora os mais importantes, os agricultores familiares no so os nicos empreendedores de pequeno porte no meio rural. Alm disso, nem todos os membros das famlias dos agricultores podem ou querem desenvolver suas capacidades no interior do estabelecimento agropecurio. Ao mesmo tempo, a paralisia e o marasmo de tantas regies interioranas so, cada vez menos, compensadas por expectativas promissoras de migrao para as grandes cidades, mesmo que fora das regies metropolitanas. Ampliar as oportunidades de gerao de renda nas prprias regies em que se formaram, um dos

    5 Mesmo uma relao to impessoal - como o recebimento da aposentadoria - pode ser absorvida por laos clientelistas de dependncia personalizada: foi o que percebeu Rodrigo Junqueira (2004) em trabalho de campo no Cariri, onde constatou a prtica comum de o aposentado deixar seu carto com um comerciante e pagar-lhe uma comisso a cada vez que utiliza o dinheiro. A ausncia das organizaes caractersticas de um universo concorrencial exprime um ambiente institucional em que a dependncia personalizada permanece e se reproduz, apesar das polticas sociais redistributivas.

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    mais importantes compromissos que as polticas de desenvolvimento territorial tm com as geraes mais jovens.

    E esta a razo pela qual a luta contra a pobreza no interior do Pas exige da assistncia tcnica uma dupla converso: por um lado, contribuir implantao de um ambiente inovador que se traduza na aquisio de novas competncias produtivas e organizacionais por parte dos agricultores e que lhes permita melhor inserir-se em mercados mais dinmicos e competitivos; por outro lado ser capaz de assistir tambm empreendedores no agropecurios e enriquecer assim o tecido econmico local o que exige, claro, uma reformulao radical no prprio carter da extenso rural que, de escritrio de assistncia tcnica, deve transformar-se em um dos ncleos centrais em que so concebidas e apoiadas as medidas necessrias ao desenvolvimento dos territrios em que se encontram (Abramovay, 1998).

    Fortalecer o tecido social dos territrios rurais consiste basicamente em propiciar ambientes em que o fortalecimento das capacidades empreendedoras dos mais pobres sobretudo, mas no apenas dos agricultores sejam a base econmica para inovar suas formas de insero social. Mas antes de examinar o vnculo entre empreendedorismo de pequeno porte e desenvolvimento territorial, convm expor, ainda que rapidamente, o debate brasileiro atual sobre as principais formas e polticas de combate pobreza.

    3. Principais correntes de opinio O indispensvel livro de Gustavo Maia Gomes (2001) sobre o semi-rido brasileiro exprime de maneira viva um dos lados em torno dos quais se pode fazer uma primeira separao polar do debate sobre o combate pobreza, no Brasil. Embora voltado especificamente ao semi-rido, seu trabalho importante no s pelo peso relativo da regio na pobreza brasileira (6), mas, sobretudo, pela coerncia com que exposto um certo caminho na luta contra sua perpetuao (7). Alm disso, um livro que se volta com clareza ao debate pblico e no s aos especialistas e cuja repercusso foi muito menor que sua importncia emblemtica para a discusso atual.

    Maia Gomes parte da constatao de que os ltimos anos assistiram formao de novos sertes, de um conjunto de mudanas na economia do Semi-rido e dos Cerrados nordestinos, expressas nas indstrias de calados e txteis, no crescimento da produo agropecuria dos cerrados, das reas irrigadas do So Francisco e igualmente lado menos nobre, mas no menos significativo, destas dinmicas pela consolidao do polgono da maconha no Estado de Pernambuco, do qual faz uma engenhosa avaliao econmica. A soma do valor produzido por estas novas atividades inferior, em muito, ao que Maia Gomes chama de economia sem produo, ou seja, o conjunto de transferncias pblicas para os pobres (das quais a mais importante a aposentadoria rural), fundamental na luta imediata contra a misria, mas absolutamente incapaz de 6 Ferreira et al. (2001) mostram que embora no Nordeste estivessem 29,56% dos brasileiros, em 1996, a se concentrava nada menos que 48.9% da pobreza brasileira. Se fosse considerado apenas o semi-rido, bem provvel que os nmeros fossem ainda mais alarmantes. 7 Este item apia-se em trabalho realizado para o DFID e a CEPAL a respeito dos mercados do empreendedorismo de pequeno porte. Ver Abramovay et al. 2003.

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    contribuir de maneira minimamente consistente para a gerao de atividades que representem um salto qualitativo na emancipao social dos pobres. Na estimativa de Maia Gomes, o valor aproximado da renda apropriada localmente com a fruticultura irrigada de Petrolina-Juazeiro-Mossor-Au chegava a R$ 470 milhes em 1998. A soja do cerrado gerava cerca de R$ 300 milhes, a indstria txtil e de calados R$ 30 milhes e a maconha algo em torno de R$ 100 milhes. Neste mesmo ano s a renda de aposentados e funcionrios pblicos chegava a R$ 5 bilhes de reais, superior da agricultura tradicional (R$ 3,5 bilhes) e muito superior das novas atividades.

    O que torna, entretanto, promissor o horizonte destas novas atividades exceo feita maconha, bem entendido a inovao tcnica em que se apiam. Maia Gomes procura mostrar que o crescimento da indstria e, sobretudo, da fruticultura irrigada de exportao terminar se transferindo, por contgio, dos setores exportadores para os demais, infundindo economia sertaneja, um elemento de dinamismo que a renda dos aposentados e dos funcionrios pblicos jamais lhe poder dar (Mais Gomes, 2001:270).

    verdade que as transferncias de renda do lugar a atividades econmicas. ... a demanda produzida pela economia sem produo , correspondentemente, muito grande, mas constituda por um nmero enorme de pequenssimas parcelas que, alm disso, se dispersam por mais de 1 mil pequenos municpios e, talvez, trs mil ainda menores distritos (Maia Gomes, 2001:266). uma demanda derivada: ou seja, no h como esperar que dela se origine, no futuro qualquer impulso autnomo que permita sustentar um processo de crescimento da economia sertaneja... Afinal, at hoje, ningum conseguiu demonstrar que barracas de feiras livres, bancas de jogo de bicho, padarias e farmcias podem vir a ser atividades lderes em um processo de desenvolvimento (Maia Gomes, 2001: 266).

    To crtico quanto aos resultados e consistncia das transferncias de renda a populaes pobres, o livro de Maia Gomes no aborda, entretanto, a renncia fiscal que est na origem de tantos empreendimentos tecnologicamente avanados do Nordeste. que em seu raciocnio, os efeitos multiplicadores espontneos da introduo de novas formas de produo, acabaro por gerar dinmicas virtuosas, sobretudo, quando se trata da agricultura irrigada, altamente intensiva em mo-de-obra (8).

    A crtica ao papel das transferncias pblicas correlativa ao ceticismo quanto ao futuro das atividades econmicas caractersticas das populaes mais pobres, cuja base tecnolgica tende a ser tradicional. Maia Gomes exprime bem o ponto de vista segundo o qual a inovao tecnolgica e o crescimento acompanhados, evidentemente, por educao parecem condies necessrias e suficientes para o enfrentamento do problema da pobreza (9). O eventual melhoramento de mercados em que os pobres inserem seus produtos trar contribuio marginal a sua melhoria social, caso no seja alterada de forma radical a base tcnica de seus sistemas produtivos. Portanto, sem inovao tecnolgica concentrada em empresas de ponta, capazes de liderar o

    8 Para uma abordagem crtica dos efeitos multiplicadores da agricultura irrigada, ver Abramovay, 2002. 9 Theodore Schultz (1964/1965) o expoente internacional deste ponto de vista, na literatura de economia agrcola.

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    crescimento econmico, impossvel combater de forma durvel a pobreza. E esta inovao s pode ser obra de empresrios inovadores no sentido caracteristicamente schumpeterianos (ver box 1) atuando numa escala competitiva e que no caso da irrigao traz a vantagem social de contar com uso generalizado de mo-de-obra assalariada.

    A importncia deste ponto de vista para a nossa discusso que o territrio e a rede de relaes sociais que ele subentende desempenham papel secundrio no processo de desenvolvimento. O fundamental que a dinmica de crescimento irradia-se pela economia e acaba beneficiando os mais pobres pela elevao de seu nvel salarial e das novas competncias que adquirem em seus ambientes de trabalho. importante salientar tambm embora no seja este o foco da ateno de Maia Gomes que o empresrio inovador responsvel pelos investimentos que permitem a transformao das bases tecnolgicas dos setores em que atuam , em geral, algum que vem de fora e que vai ser um empregador da mo-de-obra local. o que se verifica, em plos importantes de inovao tecnolgica no Nordeste, como Barreiras, a fruticultura irrigada do Vale do Rio So Francisco ou a regio de produo de meles no Rio Grande do Norte (Abramovay, 2002).

    O outro plo do debate em torno dos caminhos de superao da pobreza no Brasil e do papel a desempenhado pelos vnculos territoriais de proximidades a partir de trs horizontes bsicos.

    No IPEA, a equipe dirigida por Ricardo Paes de Barros vem mostrando a insuficincia do crescimento econmico como forma de resoluo do problema da pobreza. Pases com o mesmo nvel de renda apresentam, sistematicamente, condies sociais menos precrias que o Brasil. Pior: apesar das diversas transformaes e flutuaes macroeconmicas [dos ltimos vinte anos] a desigualdade exibiu uma estabilidade surpreendente (Paes de Barros et al., 2000:33). Mesmo com crescimento econmico expressivo, o tempo necessrio para que as condies sociais dos indigentes melhorassem seria longo demais. Alm disso, os nveis de pobreza so mais sensveis a alteraes no grau de desigualdade do que a alteraes no crescimento econmico Razo pela qual a erradicao da pobreza deve passar por estratgias voltadas de maneira direta reduo da desigualdade. As transferncias de renda podem ento jogar um papel central na mudana deste panorama e uma das preocupaes centrais do programa de pesquisa dirigido por Paes de Barros est em avaliar a eficincia do Estado em fazer chegar aos pobres os recursos que lhes so destinados. O principal motivo que impede que os pobres se beneficiem diretamente com o crescimento econmico a precariedade de seu nvel educacional. A educao encarada como o mais importante ativo de que podem ser dotados os pobres para melhorar sua insero econmica (Paes de Barros, et al., 2000). Mas, da mesma forma que a OCDE constatou recentemente com relao ao Mxico (ver Box 2), no Brasil tambm a educao por si s ser excessivamente lenta para permitir que os pobres aumentem de forma expressiva sua participao na renda nacional.

    A nfase aqui est nas transferncias de renda e o desafio central est em localizar de maneira correta quem so os pobres, evitando que os recursos a eles destinados sejam recebidos por outros segmentos sociais. Estes autores defendem o que vem sendo

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    estranhamente chamado, no debate brasileiro, de focalizao das polticas pblicas. Estas polticas tm inegvel dimenso territorial, j que supem controle social localizado sobre o destino das transferncias de renda.

    O segundo horizonte com base no qual as transferncias diretas de renda so importantes para a luta contra a pobreza exposto em diferentes trabalhos de Marcelo Nri e do Centro de Polticas Sociais da Fundao Getlio Vargas. Alm de reforar as informaes referentes importncia da desigualdade (e, portanto da distribuio de renda) na luta contra a pobreza, Nri volta-se de maneira mais explcita para a capacidade de gerao de renda de certos ativos de que dispem os pobres. Dois destes ativos poderiam servir de base para a obteno de crdito por parte dos pobres. Em primeiro lugar, a legalizao de seu patrimnio imobilirio poderia abrir caminho para o oferecimento de garantias em pedidos de emprstimos (10). Alm disso, o horizonte estvel de recepo de recursos, sob a forma de aposentadoria, por exemplo, tambm oferece base estvel para uma relao futura com os bancos (Nri et al. 2001). A aposentadoria, o bolsa-famlia e outros programas de transferncia de renda poderiam substituir garantias patrimoniais na obteno de emprstimos.

    Nenhum destes dois programas de pesquisa o mesmo pode ser dito dos estudos de Snia Rocha (2003), do IPEA dedica-se, entretanto, a estudos referentes aos vnculos territoriais determinantes da pobreza destas famlias e aos mercados em que operam.

    O terceiro horizonte desta vasta corrente que enfatiza os aspectos distributivos na luta contra a pobreza e que conta com o reforo crescente de estudos vindos da OCDE e do Banco Mundial, como mostra o Box 2 vem de organizaes voltadas fundamentalmente a atividades prticas com populaes vivendo em situao de pobreza. Como tal, produzem um conhecimento importantssimo sobre os mercados localizados em que vivem os pobres e sobre as alternativas para melhorar sua insero. Na esmagadora maioria dos casos, entretanto, este conhecimento pouco elaborado e exposto de maneira precria. So iniciativas variadas que se apiam no pressuposto de que a melhoria da insero dos pobres nos diferentes mercados de que dependem no vir de mudanas tcnicas revolucionrias em suas formas produtivas, mas da mutao das prprias atividades tradicionais. Existem possibilidades de crescimento econmico, baseadas em alteraes tcnicas ao alcance de famlias hoje vivendo em situao de muita pobreza, mas que podem aumentar, proporcionalmente, sua renda de forma significativa com base em investimentos relativamente modestos. A se encontra o fundamento econmico da idia de que o combate pobreza passa, antes de tudo, pelo fortalecimento do empreendedorismo de pequeno porte: trata-se de promover mudanas sociais, tcnicas e organizacionais que permitam a uma quantidade expressiva dos atuais agricultores familiares e trabalhadores urbanos por conta prpria as inovaes necessrias a sua melhor participao em mercados dinmicos. O importante no congelar a situao presente sob o pretexto da evidente fragilidade econmica das condies em que as famlias pobres conduzem seus empreendimentos e sim permitir que o acesso a novas tcnicas, novos conhecimentos e novos mercados no seja um elemento destrutivo, que

    10 Nri bem mais prudente que autores como de Soto (2000) que fazem da legalizao da moradia uma panacia com base na qual os pobres aumentam seu capital por meio da obteno de crdito.

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    faa dos mais pobres a mo-de-obra barata em que se apiam transformaes revolucionrias na vida local.

    O programa de construo de um milho de cisternas exprime este caminho em que recursos pblicos tornam-se fatores de gerao de ocupao e renda e no apenas de sobrevivncia. As melhorias tcnicas voltadas, no semi-rido, convivncia com a seca como os sistemas que integram sisal e caprinocultura, sob orientao da Associao dos Pequenos Agricultores da Bahia indicam tambm um caminho de crescimento econmico que associa combate pobreza, aumento do produto e valorizao dos recursos naturais. O esforo do Centro de Pesquisa Agropecuria do Trpico Semi-rido (CPATSA) vai igualmente nesta direo: uma das poucas organizaes estatais brasileiras cuja inteligncia est voltada fundamentalmente misso de dotar os mais pobres de meios tcnicos para melhor suas condies produtivas.

    Aqui contrariamente ao horizonte exposto no livro de Gustavo Maia Gomes as inovaes sociais e organizacionais que so as premissas para um conjunto de mudanas tcnicas e econmicas, capazes de alterar de maneira expressiva as condies de vida de milhes de pessoas (11).Todas estas organizaes tm em comum a idia de que possvel ampliar a renda dos pobres com base em atividades ao alcance de suas capacidades produtivas atuais. Um de seus desafios maiores consiste exatamente em melhorar as condies produtivas e a insero das populaes beneficiadas por seus trabalhos nos diferentes tipos de mercados de que dependem. Isso passa, antes de tudo, por redes sociais localizadas, compostas por uma diversidade de atores privados, pblicos e associativos, capazes de exprimir-se por meio de um projeto de desenvolvimento. o que ser visto a seguir.

    Box 2

    Crescimento e desigualdade: dois relatrios recentes Os dois principais cones internacionais do pensamento econmico contemporneo (o Banco Mundial e a OCDE) produziram recentemente relatrios que colocam em questo o poder do crescimento econmico em reduzir a desigualdade. O prprio ttulo do trabalho do Banco Mundial (World Bank, 2003) coloca nfase em elementos estruturais responsveis pela desigualdade: Inequality in Latin America and Caribbean: Breaking with History. A desigualdade latino-americana s comparvel da frica ao Sul do Sahara. Ela deve ser rejeitada por trs razes bsicas: em primeiro lugar por ser eticamente inaceitvel e pelo fato de ser repudiada pela imensa maioria da opinio pblica do Continente, conforme mostram as pesquisas sobre o tema. Alm disso, a desigualdade um dos fatores bsicos na explicao da prpria pobreza. Quanto maior a desigualdade, maior a dificuldade de que o crescimento econmico consiga reduzir a

    11 A idia de que inovaes sociais podem ser a base de um processo massivo ainda que no espetacular de mudanas tcnicas encontra-se em inmeros trabalhos de Ignacy Sachs (1986), um dos eixos de sua produo intelectual e est na raiz do prprio termo ecodesenvolvimento. Michael Lipton (1968) tambm em interessante crtica a Theodore Schultz tambm oferece contribuio importante, neste sentido. As organizaes vinculadas rede AS-PTA tambm oferecem contribuio fundamental nesta direo.

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    pobreza. Em pases muito desiguais a elasticidade da reduo da pobreza diante do crescimento menor. Em terceiro lugar, tudo indica que, a partir de um certo ponto, a desigualdade comprometa o prprio desempenho econmico e seja um obstculo ao crescimento. E isso por duas razes bsicas. Primeiramente, porque os pobres no possuem ativos que lhes sirvam de garantias para que obtenham os crditos necessrios a seus investimentos produtivos. Portanto, a pobreza conduz, por a, a um desperdcio fantstico de recursos sociais. A segunda razo pela qual a desigualdade bloqueia o crescimento econmico envolve questes de economia poltica e de poder: em pases muito desiguais as elites no s escolhem estratgias de crescimento que perpetuam a desigualdade, como tambm acabam impedindo que os pobres tenham acesso aos ativos que permitiriam sua emancipao social. Em suma, a desigualdade faz com que a sociedade desperdice imensa quantidade de talentos e capacidades e, por isso, compromete o crescimento. Convm observar que o vnculo entre desigualdade e poder e no apenas entre desigualdade e dotao de fatores produtivos corresponde a mudana muito significativa no que tem sido a abordagem do Banco Mundial sobre o tema.

    Escrito a partir de preocupaes bem diferentes, o relatrio da OCDE (OECD:2003 a) sobre desenvolvimento territorial no Mxico traz uma impressionante confirmao dos principais achados do trabalho do Banco Mundial. Durante os anos 1990, o Mxico registrou desempenho impressionante no crescimento de suas exportaes e na atrao de investimentos estrangeiros... Entretanto, com relao renda individual e regional , ainda, um dos pases-membros com mais alta disparidade. O que chama a ateno que entre 1950 e 1985 as disparidades entre indivduos e regies tinham sido reduzidas, para ampliar-se drasticamente, desde ento. Mas o mais instrutivo o julgamento da OCDE sobre o modelo de crescimento mexicano: o fluxo de investimentos estrangeiros diretos, de fato, aumentou a produtividade dos trabalhadores que j eram qualificados. Mas o crescimento baseado nas exportaes no pode ser a nica maneira de se chegar ao desenvolvimento eqitativo, pois favorece grupos que esto nos estratos alto e mdio da distribuio da renda (OECD, 2003:35). O mesmo raciocnio aplicado para a questo regional: todas as oportunidades criadas pelo NAFTA relacionam-se s maquiladoras (OECD, 2003:36).

    O problema no est apenas na baixa escolaridade da fora de trabalho. O exame da distribuio existente dos ativos em capital humano torna evidente que qualquer vantagem dinmica deste tipo de incentivo [acesso educao] s ser realizada a longo prazo, diz a OCDE colocando em dvida o que denuncia ser o lugar comum segundo o qual a educao tudo resolve.

    A importncia do crescimento econmico no colocada em questo, evidentemente, pelo Banco Mundial e pela OCDE. Mas suas pesquisas mais recentes mostram que a reduo da pobreza no pode ser considerada resultado mais ou menos automtico do crescimento econmico. Mais que isso: o modelo de crescimento baseado no dinamismo de indstrias de ponta no tem o condo de distribuir seus efeitos positivos para os segmentos sociais de menor renda. importante frisar que o relatrio da OCDE nem

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    chega a mencionar a deteriorao da prpria situao das maquiladoras, vtimas do xodo industrial em direo a regies de mo-de-obra muito barata como a China.

    4. Os territrios do empreendedorismo A ligao entre fortalecimento do empreendedorismo de pequeno porte e combate pobreza ocupa um lugar cada vez mais importante nas publicaes internacionais, desde o incio dos anos 1990. A inteno da Cpula do Microcrdito, em 1997, de fazer chegar servios financeiros a mais de 100 milhes de famlias a expresso mais clara do reconhecimento generalizado da dificuldade de as polticas macroeconmicas serem capazes de debelar o problema do desemprego e do sub-emprego no mundo contemporneo. Nos pases desenvolvidos, constata-se que, mesmo em perodos de crescimento econmico, formam-se reas urbanas e rurais cuja precariedade social no superada, ainda quando se tomam medidas macroeconmicas de estmulo ao crescimento: De fato, diz um estudo da OCDE (1997:10), os novos empregos parecem inacessveis aos que vivem em zonas desqualificadas, onde a pobreza no parou de crescer com uma porcentagem cada vez mais importante de pessoas cujos recursos limitam-se aos oferecidos pelos sistemas de redistribuio prprios a cada um dos pases membros (ajuda social, seguro desemprego, polticas familiares). Nestas condies, fortalecer as economias locais e as iniciativas justamente dos que vivem em situao de pobreza um dos meios mais promissores para o caminho do desenvolvimento.

    Num interessante levantamento sobre o tema Higgins e Savoie (1997:33) mostram que no fcil determinar precisamente se o empreendedorismo que traz desenvolvimento ou se o desenvolvimento provoca a emergncia das energias empreendedoras. O tema envolve dimenses variadas que vo da economia psicologia social e foi tratado por vrios dos maiores mestres das cincias sociais (12). Higgins e Savoie dividem a literatura sobre o assunto em basicamente duas vertentes. As que sustentam que basta to get something going (uma fbrica, uma estrada, uma descoberta) e o empreendedorismo surgir como decorrncia; e as que acreditam na necessidade de incubadoras para estas frgeis plantas que so as empresas iniciantes. Na introduo a sua interessante coletnea sobre o tema, Richard Swedberg (2000) orienta-se por este segundo ponto de vista: tanto assim que sugere claramente que o empreendedorismo seja uma disciplina ensinada nas escolas de negcios e no apenas a juno mais ou menos ocasional de certos talentos com circunstncias especialmente favorveis (13).

    12 Trs interessantes balanos tericos brasileiros recentes sobre o tema podem ser citados: o de Veiga (2003), o de Favaretto (2003) e o de Ehlers (2003). 13 Praticamente todas as escolas de negcio possuem hoje ao menos um curso de empreendedorismo e cada vez mais clara a conscincia de que os gerentes e os homens de negcios, na atualidade, precisam no apenas de habilidades gerenciais, mas tambm empreendedoras. Uma expressiva parcela dos membros da comunidade de escolas de negcios defendem tambm que veio o tempo de desmistificar o empreendedorismo e de transform-lo numa habilidade que pode ser ensinada mdia dos estudantes de MBA (Swedberg, 2000:8). As incubadoras de empresas existentes no interior de vrias universidades so a expresso prtica desta mesma convico.

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    O chefe do Programa de Desenvolvimento da Economia Local e do Emprego da OCDE mostra que, uma vez que o desemprego e a pobreza esto crescentemente concentrados em reas urbanas desfavorecidas, os governos procuram acertar geograficamente o alvo das polticas, movendo-se de uma tica setorial para uma abordagem territorial. O auto-emprego e a criao de empresas podem reverter uma economia local negativamente atingida pelo declnio, motivado, por exemplo, pelo fechamento de plantas industriais, bases militares ou outros episdios econmicos adversos (Arzeni, 1997:51). Trinta e cinco por cento da criao de empregos nos Estados Unidos, em 1995, vieram de empresas com at quatro empregados. Nos primeiros anos da dcada de 1990, proporo importante do crescimento da ocupao veio tambm do auto-emprego e de micro-empresas no Canad. Da o surgimento, em pases desenvolvidos, de inmeros programas que vinculam a abordagem territorial do desenvolvimento criao e ao fortalecimento de iniciativas empresariais ao alcance das iniciativas dos indivduos vivendo em situao precria. Arzeni (1997:51) cita como exemplos: no Reino Unido, Entreprise Zones and Training e Entreprise Councils, na Irlanda os Local Partnerships, nos Estados Unidos, as Empowerment Zones (14) e os Pactos Territoriais na Itlia.

    Existe uma contradio bvia entre a capacidade de aproveitamento de novas oportunidades que a noo de empreendedorismo supe e o marasmo social prprio dos ambientes em que vivem as populaes pobres. Pode parecer puro voluntarismo, desprovido de qualquer contedo econmico, o objetivo de fortalecer o empreendedorismo de pessoas que vivem em situao de pobreza: sua condio atual as obriga a manter-se em certo equilbrio de relaes sociais que permite sua reproduo e dificilmente favorece a busca de novas oportunidades. Nas regies em dificuldade, as redes sociais e econmicas so frequentemente limitadas. Os desempregados, em geral, tm poucos laos sociais. Eles tendem a encontrar, sobretudo, outros desempregados, constata o mais recente estudo da OCDE (2003b:53-54) sobre a relao entre empreendedorismo, desenvolvimento local e gerao de renda.

    O trabalho da OCDE (2003b) cita os principais obstculos que freiam o avano do empreendedorismo exatamente ali onde ele mais necessrio na luta contra a desagregao social.

    O primeiro deles a insuficincia das redes sociais e das redes de empresas nos locais marcados por muita pobreza. Alm disso, as habitaes so precrias, o que inibe seu uso como garantia nos financiamentos. De forma geral, so regies e localidades em que o acesso ao crdito especialmente difcil. Tanto que nos Estados Unidos, no Quebec e em vrios pases da Unio Europia a formao de organizaes locais para obter crdito voltado a empreendimentos individuais e coletivos populares vem ganhando importncia crescente desde o incio dos anos 1990 (OCDE, 1997). A prpria legislao bancria norte-americana por meio do Community Reinvestment Act controla os bancos regionais impedindo-os de operar excluindo bairros pobres e certas minorias tnicas (Servet, 2001). A ausncia de experincia e qualificao profissionais so tambm obstculos importantes criao de novas empresas ou adoo de prticas inovadoras por parte das j existentes. A escassez de exemplos virtuosos a serem

    14 Sobre as quais uma exposio mais detalhada pode ser encontrada em Beduschi e Abramovay, 2003.

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    seguidos tambm dificulta enormememente o surgimento de novas empresas: o desenvolvimento do esprito de empresa repousa, ao que tudo indica, sobre um fenmeno de imitao (OCDE, 2003b:55). No caso da agricultura familiar, as dificuldades vividas pelos produtores acaba orientando os mais jovens a associar o sucesso profissional capacidade de no seguir a profisso paterna, como mostram estudos recentes sobre sucesso profissional entre agricultores familiares (Silvestro et al., 2001). Relacionado com a falta de um ambiente que generalize e legitime a prtica empreendedora como projeto vivel para os indivduos est, segundo a OCDE, a excessiva concentrao setorial: As localidades pobres abrigam, com frequncia, uma proporo excessiva de empresas cuja atividade se exerce em mercados de fraco crescimento e de acesso excessivamente fcil. So ramos de atividades com necessidades em capitais e qualificao relativamente limitadas. Os custos administrativos para criar uma empresa nova so tambm fatores que inibem o florescimento do empreendedorismo.

    O reconhecimento destas dificuldades no exclui a importncia de se vincular desenvolvimento territorial e fortalecimento do empreendedorismo de pequeno porte. As proposies abaixo procuram reunir argumentos e sugerir questes para a reflexo em torno do tema.

    1. O potencial de inovao contido na idia de empreendedorismo est presente apenas em parte do conjunto de detentores de pequenos negcios.

    Pesquisa elaborada pelo Babson College e pela London Business School, aplicada em 37 pases, representando quase dois teros da populao mundial, mostra o Brasil no stimo lugar em capacidade empreendedora (15). As comparaes internacionais no permitem qualquer ufanismo com relao a esta informao, pois deixam claro que o empreendedorismo, tal como detectado no estudo, um trao tpico de pases em desenvolvimento. Alm disso, no Brasil (bem como na Argentina e na China), o empreendedorismo por necessidade maior que aquele que decorre do surgimento de oportunidades.

    O nmero utilizado na pesquisa do Babson College e da London Business School corresponde, provavelmente (16), soma de duas informaes: as 9,5 milhes de unidades estimadas pelo IBGE em seu levantamento de 1997 sobre a Economia Informal Urbana (ECINF) e as unidades formais (dotadas de um CNPJ e estudadas no Cadastro de Empresas do IBGE e de cujo total de 4,1 milhes, 3,8 milhes tinham menos de 10 empregados). Ao que tudo indica, a agricultura familiar foi ignorada pela pesquisa.

    15 No Brasil, a pesquisa - que pode ser enconctrada em http://www.gemconsortium.org/download/1068745787484/Empreendedorismo%20%20Brasil%202002.pdf - foi coordenada pelo Instituto Brasileiro de Qualidade e Produtividade do Paran, em parceria com o SEBRAE e apoio da PUC-PR e IEL-PR. 16 O texto no deixa claro sua base de clculo e no verossmil que seus nmeros sejam uma extrapolao de sua pesquisa de campo.

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    Vale a pena examinar rapidamente algumas informaes da ECINF por duas razes bsicas. Em primeiro lugar por ser o nico estudo brasileiro a respeito daquilo que a OIT chama de economia informal urbana: aquela que, independentemente de possuir ou no um registro jurdico, ocupa menos de seis pessoas e evita recensear unidades como pequenos escritrios de advocacia, consultrios ou empresas pessoais de consultoria. Alm disso, a ECINF tem a virtude de fundir, na mesma pesquisa, o domiclio e o negcio, dando uma viso mais integrada da situao social dos pequenos negcios.

    Na esmagadora maioria dos 9,5 milhes de negcios da economia informal urbana trabalham no mximo duas pessoas, como se pode ver na tabela 2. Trata-se, portanto de um amplo conjunto de empreendimentos de propriedade, gesto e trabalho familiar.

    O EMPREENDEDORISMO DE PEQUENO PORTE FUNDAMENTALMENTE INDIVIDUAL OU FAMILIAR

    TABELA 2. BRASIL: Empresas do setor informal, por nmero de pessoas

    ocupadas 1997. Empresas do setor informal

    Nmero de pessoas

    ocupadas Nmero de empresas

    Freqncia acumulada absoluta* Percentual*

    Freqncia acumulada percentual*

    1 7.545.317 7.545.317 79,62 79,622 1.155.450 8.700.767 12,19 91,813 389.016 9.089.783 4,10 95,914 196.352 9.286.135 2,07 97,995 109.681 9.395.816 1,16 99,14

    Mais de 5 81.114 9.476.930 0,86 100,00Sem declarao 1.043

    Total 9.477.973 Fonte: IBGE ECINF 1999.

    Para efetuar o clculo no foram includas as empresas sem declarao. As empresas sem declarao correspondem a 0,011% do total pesquisado.

    claro que no tm a importncia econmica na economia urbana que a agricultura familiar possui para a economia rural. As informaes tornam temerria a estimativa de sua participao no valor da produo, mas nem de longe chega aos quase 40% que o estudo FAO/INCRA estimou para as unidades familiares de produo agropecuria.

    Ainda assim, so negcios cujo porte os aproxima do nvel de renda da agricultura familiar, como se v na tabela 3 e cuja magnitude social impressionante: a considerar apenas as informaes da ECINF, os estabelecimentos familiares urbanos so mais que o dobro do que corresponde agricultura familiar (9,5 milhes contra 4,2 milhes).

  • 19

    O IBGE estratificou as empresas por classe de valor da receita obtida no ms de outubro de 1997. A tabela 3 mostra que das 9.477.973 milhes de empresas do setor informal, 4.777.961 tiveram receita at R$ 500,00 em outubro de 1997. A tabela prope uma dupla extrapolao: ela anualiza o valor de outubro de 1997, multiplicando-o por doze e atualiza-o com base no INPC. Claro que impossvel saber se outubro um ms tpico o que exige precauo nos resultados aqui atingidos.

    Feita esta ressalva, as 4.777.961 de empresas, correspondentes a pouco mais da metade do universo total, teriam tido um faturamento (sem descontar as despesas) inferior a R$ 10.000,00 (R$ 9.577,00) caso a receita de outubro de 1997 exprimisse mdia mensal e com base na atualizao dos valores em que se apoiou a estratificao proposta pelo IBGE para aquela data.

    MAIS DA METADE DAS EMPRESAS FATURA AT R$ 10 MIL POR ANO TABELA 3 BRASIL: Empresas do setor informal, segundo as classes de valores da

    receita em outubro de 1997. Empresas do setor informal Classes de

    valores da receita em

    outubro de 1997 (R$)

    Valor for a corrigido (R$)*

    Nmero de empresas

    Freqncia acumulada absoluta**

    Nmero percentual de empresas**

    Freqncia acumulada

    percentual**1 a 100 at 1.915 1.154.476 1.154.476 12,58 12,58 101 a 200 1.916 a 3.830 1.283.680 2.438.156 13,99 26,57201 a 300 3.831 a 5.746 944.490 3.382.646 10,29 36,86301 a 500 5.747 a 9.577 1.395.315 4.777.961 15,21 52,07501 a 1.000 9.578 a 19.154 1.686.208 6.464.169 18,38 70,441.001 a 2.000 19.155 a 38.308 1.283.315 7.747.484 13,98 84,432.001 a 5.000 38.309 a 95.772 954.613 8.702.097 10,40 94,835.001 ou mais 95.773 ou mais 474.535 9.176.632 5,17 100,00Sem receita 236.430 Sem declarao 64.912

    Total 9.477.973 Fonte: IBGE ECINF 1999.

    Corrigido pelo INPC de outubro de 1997 a julho de 2003. ** Para efetuar o clculo no foram includas empresas sem receita ou sem declarao.

    Entendido como sinnimo de atividade inovadora, capaz de modificar as prticas habituais e alterar os equilbrios existentes para provocar crescimento econmico, claro que o empreendedorismo no a caracterstica social que define este imenso e variado conjunto de empresas: os 4,2 milhes de agricultores familiares tampouco podem ser vistos como empresrios schumpeterianos tpicos. E, na verdade, no existem critrios

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    que permitam dizer quantos, deste total, possuem condies de levar adiante iniciativas que renovem suas prticas rotineiras, permitindo ento a abertura de novos horizontes e oportunidades econmicas. Mas a ECINF tem algumas informaes que fornecem pistas interessantes, neste sentido. Vale a pena mencionar aqui duas delas.

    A MAIORIA QUER CONTINUAR OU AUMENTAR O NEGCIO TABELA 4 BRASIL: Empresas do setor informal, segundo planos futuros para o

    negcio 1997

    Planos para o futuro do negcio Empresas do

    setor informal Percentual Aumentar o negcio 3.543.836 37,39Continuar o negcio no mesmo nvel 2.843.884 30,01Mudar de atividade e continuar independente 885.272 9,34Abandonar a atividade e procurar emprego 1.145.466 12,09Outros planos, no sabe ou sem declarao 1.059.515 11,18Total 9.477.973 100,00Fonte: IBGE ECINF 1999.

    A primeira est na tabela 4: dos 9,5 milhes de empresas estimadas pela ECINF 3,5 milhes manifestaram planos para aumentar o negcio e apenas 1,1 milho declaram que vo abandonar a atividades e procurar emprego. Claro que esta proporo minoritria pode esconder o que os especialistas chamam de desemprego por desalento: talvez os que vo procurar emprego tenham melhor sorte como assalariados do que como trabalhadores por conta prpria. E no impossvel que muitos dos que permanecem na condio de por conta prpria estejam em situao sofrvel, mas no tm qualquer esperana de encontrar colocao no mercado de trabalho. Mas, de qualquer maneira, interessante observar que a idia de valorizar o prprio negcio pertence a uma quantidade aprecivel de seus titulares, mais de um tero deles.

    A segunda informao que pode sinalizar para algum tipo de ambio inovadora na gesto do negcio est na tabela 5: do total de 9,5 milhes de empresas, 1,5 milho fizeram investimentos em 1997. Ainda que a ECINF no diga em que foram feitos estes investimentos e/ou aquisies pode-se presumir que se trate uma espcie de aposta na melhoria do negcio feita por seu titular. Tanto mais que os investimentos so feitos basicamente com recursos prprios, cujo custo de oportunidade, em princpio muito alto. Se fossem investimentos feitos com base em crditos altamente subsidiados no seria fcil saber se tm consistncia econmica ou se so motivados pelos prprios subsdios. Mas investir recursos prprios num negcio um importante sinal de iniciativa empreendora.

    Mesmo que a ambio revolucionria da palavra empreendedorismo esteja muito distante das possibilidades da grande maioria destas unidades produtivas (ver box 3) bem como das que constituem a agricultura familiar o fato de apenas 75 mil terem obtido crdito

  • 21

    para investir mostra um impressionante contraste entre as energias produtivas deste segmento e os recursos sociais voltados a que suas iniciativas se materializem. uma ilustrao da idia contida no relatrio do Banco Mundial (2003) sobre a Amrica Latina sobre o poder que a desigualdade social via assimetria de informao tem que inibir o prprio crescimento econmico.

    PARTE IMPORTANTE EMBORA MINORITRIA DOS EMPREENDEDORES FAZ INVESTIMENTOS

    TABELA 5. BRASIL: Empresas do setor informal que fizeram investimentos,

    segundo a origem dos recursos 1997 Fizeram investimentos e/ou aquisies nos ltimos 12 meses

    Origem dos recursos Nmero de empresas Percentual Lucros de exerccios anteriores 959.568 62,5

    Emprstimos bancrios 74.745 4,9Outros tipos de emprstimos 127.943 8,3Outros 371.782 24,2Sem declarao 1.569 0,1Total 1.535.606 100

    Fonte: IBGE ECINF 1999.

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    BOX 3

    Por conta-prpria e empreendedores O importante estudo recente da OCDE (2003b) sobre empreendedorismo e desenvolvimento econmico local insiste em que no se faa do vcio virtude, quando se trata do empreendedorismo de pequeno porte: trabalho por conta prpria e empreendedorismo no podem ser tomados como sinnimos:

    O trabalho independente e o empreendedorismo no so categorias inteiramente intercambiveis. Alguns trabalhadores independentes exercem uma atividadeque apresenta muitas caractersticas de uma atividade empreendedora. Eles estabelecem um plano de empresa, adquirem competncias e exercem funes de dirigentes de empresas, realizam investimentos financeiros importantes, procuram ser autnomos em suas decises e empregam outras pessoas (nas dcadas de 1980 e 1990, nos pases membros da OCDE, cerca de um tero dos trabalhadores independentes eram, eles mesmos, empregadores, embora com muitas variaes de pas a pas). Na grande maioria, entretanto, suas condies de trabalho diferem pouco daquela dos assalariados e, em muitos pases a principal diferena que sua situao no lhes d direito a tantas vantagens sociais nem a aposentadoria. Em certos casos, os empregadores obrigam seus assalariados a aceitar um estatuto de trabalhadores independentes para escapar s cargas salariais. Seria, portanto, um erro assimilar todo trabalho independente a empreendedorismo. Isso dito, favorecer o trabalho independente fez parte, com frequncia, de uma poltica maior de encorajamento ao empreendedorismo (OCDE, 2003b).

    interessante que nas anlises da OCDE sobre trabalho por conta prpria a agricultura tomada como caso parte. A nem se discute o fato de que a grande maioria da fora de trabalho opera sob regime individual ou familiar e que o assalariamento minoritrio. Fora da agricultura, o trabalho por conta prpria , em mdia, de apenas 13% do total da ocupao na OCDE, muito menos que nos pases em desenvolvimento. Nestes provvel que a distncia entre trabalho por conta prpria e empreendedorismo seja muito maior; ao mesmo tempo, exatamente pelo fato de uma propoo muito mais importante dos trabalhadores no ser assalariada que o combate pobreza passa pelo esforo de melhorar a qualidade dos empreendimentos dos que vivem de seus prprios negcios. Este esforo tanto mais legtimo quanto mais se constata a dificuldade de acesso a servios pblicos que poderiam melhorar as condies produtivas e de insero no mercado de muitas destas unidades produtivas.

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    2. Fortalecer o empreendedorismo de pequeno porte exige a formulao de contratos entre o poder pblico federal e trs tipos de atores: os eleitos locais, o setor privado e o setor associativo.

    A noo de Contrato Territorial de Desenvolvimento est no centro da reflexo a que deu lugar todo o processo de elaborao do Ministrio do Desenvolvimento Agrrio nos ltimos anos (CNDRS, 2002; Veiga, 2002). So bastante conhecidas as avaliaes crticas a respeito do PRONAF infra-estrutura e servios, que salientaram as limitaes a que conduz a abordagem estritamente municipal da vida local, a participao de atores ligados apenas agropecuria e a precria participao popular em sua elaborao (Abramovay, 2003b). As mudanas recentes levadas adiante nesta linha do PRONAF pelo atual Conselho de Desenvolvimento Rural e Agricultura Familiar (CONDRAF) apontam para um importante avano, no sentido de corrigir estas limitaes. Devem-se assinalar, entretanto, dois pontos de estrangulamento para os quais a reflexo talvez ainda no tenha avanado o suficiente.

    a) O desenvolvimento territorial supe lgica de atribuio de recursos pblicos a partir do julgamento da qualidade dos projetos apresentados e no apenas das necessidades sociais das localidades e comunidades que os apresentam. Esta a caracterstica central tanto do LEADER europeu como do Empowerment Zones and Entreprise Communities norte-americano (Beduschi e Abramovay, 2003). No EZ/EC o importante no a participao genrica dos cidados, mas a ao de planejamento estratgico de longo prazo, que seja permanentemente monitorada e envolva os diferentes atores das comunidades. Planejamento estratgico nem sempre compatvel com o atendimento imediato de necessidades urgentes. A lgica que faz do poder pblico federal o provedor dos bens e servios bsicos dos quais as comunidades locais no dispem acaba conduzindo a uma relao que inibe o planejamento estratgico e a descoberta de vocaes em torno das quais podem ser trilhados caminhos inditos de gerao de renda. Existe uma carncia fantstica de inteligncia voltada ao planejamento estratgico nas regies de pobreza e suprir esta deficincia um dos mais importantes objetivos de uma poltica de desenvolvimento territorial. Associar transferncia de recursos obrigao local de convocar e receber talentos voltados ao planejamento pode ser um caminho importante para a inovao institucional da qual depende o fortalecimento do empreendedorismo de pequeno porte. O papel das faculdades e das universidades do interior do Pas pode ser a decisivo, desde que haja uma orientao governamental clara sinalizando para o fato de que o combate pobreza exige inovaes que permitam tornar economicamente viveis os projetos em que vo envolver-se os empreendedores que hoje vivem em situao de pobreza. Na expresso utilizada pela DATAR francesa, em documento recente, o contrato de

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    desenvolvimento tem a misso de expor vocaes prioritrias de cada regio, objetivos comuns identificados conjuntamente pelo Estado e pelas comunidades (DATAR, 2003:22). O fortalecimento do empreendedorismo o resultado de um certo ambiente para cuja criao o poder pblico pode contribuir: o mais importante uma atmosfera local que valorize o conhecimento, o que se traduz nas noes hoje empregadas pela OCDE de comunidades, cidades e regies de aprendizagem (Beduschi e Abramovay, 2003). A criao e o fortalecimento de empresas emite sinais que ampliam a prpria confiana dos atores locais em suas atividades empreendedoras. neste sentido que Richard Locke insiste na afirmao de que a confiana pode ser construda, mesmo em situaes adversas, mediante processos seqenciais que misturam ao auto-interessada, poltica de governo e o desenvolvimento de mecanismos de auto-governo.

    b) A maior ameaa consistncia das polticas territoriais brasileiras sua reduo a um pacto entre movimentos sociais, autoridades pblicas locais e governo (estadual e/ou federal). No h dvida que coordenar aes de diversos nveis de governo e ampliar a audincia dos movimentos sociais um imenso progresso, ainda mais em sociedades marcadas por disparidades sociais to gritantes como o Brasil. Mas muito difcil conceber processos de desenvolvimento localizados sem que empresrios consolidados possam a ter participao ativa. Construir prosperidade exclusivamente com base no aporte de recursos pblicos economia popular, de costas (ou at em oposio) s atividades empresariais j existentes, ignora o papel central da confiana na construo do desenvolvimento. O atraso de uma regio pode ser definido exatamente pela precariedade dos laos de confiana entre seus habitantes que faz com que qualquer desvio com relao aos caminhos j conhecidos seja interpretado como inadmissvel quebra de regras, profundamente ameaadora para todos e, sobretudo, para os mais pobres. A definio de confiana de Richard Locke, neste sentido, instrutiva: os atores econmicos manifestam confiana quando, em situaes de informao incompleta e incerteza (que eu creio caracterizar a maior parte das situaes econmicas no mundo) estes atores, apesar disso, expem-se ao risco de comportamento oportunista por parte de outros, por terem razo de acreditar que estes outros no vo tirar vantagem desta oportunidade. O parasitismo latifundirio e as situaes de submisso personalizada e clientelista, to comuns no meio rural do Nordeste brasileiro so obstculos objetivos formulao de pactos territoriais com contedo econmico promissor. O pressuposto bsico dos contratos de desenvolvimento territorial que possam conduzir ampliao dos espaos pblicos de negociao entre atores sociais cujos interesses no so, evidentemente, idnticos. Richard Locke sustenta que a confiana pode ser construda num processo seqencial que coloca juntos elementos de auto-interesse encapsulado, interveno governamental e o desenvolvimento de mecanismos de auto-governo por parte dos prprios

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    atores. claro que situaes de imensa disparidades sociais no so propcias a que a defesa do auto-interesse seja exercida em situao de cooperao social: o risco de que a cooperao se confine a um crculo limitado de pessoas que j se conhecem e acabam at utilizando recursos pblicos em benefcio prprio e contra os interesses da maioria imenso. O que mostra a reviso de literatura feita por Locke que o governo pode utilizar um conjunto de incentivos para induzir a comportamentos cooperativos entre grupos sociais que, at ento, encontravam-se em situao de conflito ou de dependncia perniciosa. O que no se pode imaginar um ambiente em que a atuao empresarial faz-se sombra de critrios que no resistem a um julgamento pblico quanto a sua utilidade social e onde, apesar disso, constri-se um pacto territorial de desenvolvimento. claro que ningum tem a frmula mgica para resolver esta espcie de quadratura do crculo do combate pobreza: o que no se pode ignorar sua existncia.

    neste sentido que documento recente do IICA (Splveda et al. 2003) insiste qua a base do desenvolvimento territorial a articulao entre os locais mais pobres e as regies dinmicas que so essenciais para sua vitalizao. No mesmo sentido, mostra que no possvel imaginar que as regies pobres possam melhorar suas condies sociais com base apenas em investimentos pblicos.

    E exatamente a que se pode detectar uma dimenso preocupante do incipiente processo de formao de polticas territoriais de desenvolvimento, no Brasil: na pesquisa de Weigand Jnior (2003) sobre experincias de desenvolvimento territorial em todo o Brasil sobre a base de 40 experincias apenas em trs delas mencionada a participao de empresas. Destas trs situaes em que as empresas tm alguma participao, no h nenhuma no Nordeste. O mesmo se observa na exposio que faz Seplveda (2003) do trabalho do IICA com base em experincias de desenvolvimento territorial na Colmbia, no Mxico e no Equador: as empresas no fazem parte do universo social do desenvolvimento territorial.

    A prova dos nove de que contratos de desenvolvimento tm natureza verdadeiramente territorial distinguindo-se assim tanto da ajuda restrita ao crescimento de um certo setor econmico, como das transferncias de renda para os mais pobres pode ser obtida pela resposta a trs perguntas:

    i) A assinatura dos contratos exige dos atores compromissos com a busca de prticas at ento inexistentes no plano local?

    ii) Os signatrios dos contratos so atores que no faziam, at ento, parte do crculo de relaes sociais, econmicas e polticas dos segmentos sociais que se pretende mais fortemente beneficiar (17)?

    17 A ausncia, nos Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural, no s de atores como os bancos (Favaretto et al. 2001) , mas tambm das associaes comerciai, do SEBRAE e outros representantes do

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    iii) Os contratos de desenvolvimento vo conduzir a processos sociais capazes de contribuir para a reduo da desigualdade ?

    O empreendedorismo de pequeno porte fortalecido por um ambiente local que estimula a cooperao social, a aprendizagem e, ao mesmo tempo, a inovao e a competitividade. Esta orientao no se reduz ao estabelecimento de contratos entre poderes pblicos de vrios nveis. Claro que a atuao conjunta de unidades administrativas que vinham at ento operando isoladamente ministrios setoriais, prefeituras preocupadas em responder s demandas mais imediatas de suas bases localizadas, por exemplo um avano, que pode melhorar os resultados das polticas de governo. O que, entretanto, at hoje, a legislao brasileira no contempla a possibilidade de contratos que renam os atores centrais do desenvolvimento local o setor privado, o setor associativo e os eleitos locais como seus protagonistas centrais (18). O Brasil ampliou, de fato, a partir de 1988, os poderes das unidades descentralizadas (19), ao fazer dos municpios entes federativos no sentido pleno da palavra. Mas no permitiu, at agora, um mnimo de flexibilidade que fortalea o estabelecimento de unidades locais com geometria varivel reunindo atores pblicos diversos (vrias prefeituras, por exemplo) e, sobretudo, que incentive a presena ativa do setor privado e associativo nos compromissos em torno dos quais os recursos chegam s regies. neste sentido que Urquiza (2003) insiste num conjunto de vcios e impropriedades da gesto estatal, entre os quais destaca-se a a centralizao excessiva (20). A verdade que o modelo de atribuio de recursos s regies obedece ao formato piramidal tpico do momento histrico em que ao Estado cabia distribuir os resultados de sua arrecadao. A criao de um fundo de desenvolvimento regional e a proposta de que 35% dos recursos do BNDES sejam aplicados no Nordeste podem ser elementos importantes para reverter as prticas habituais, desde que a atribuio de fundos seja condicionada a projetos regidos por qualidade, participao e inovao (21).

    Inovao e competitividade no so apenas atributos isolados de cada empresa, mas sobretudo os resultados sistmicos de suas relaes sociais (Seplveda et al, 2003). empreendedorismo de pequeno porte no agrcola no meio rural um sinal preocupante da dificuldade em se passar de uma viso setorial para uma abordagem, de fato, territorial do desenvolvimento. 18 A experincia da Andaluzia, descrita por Plata (2003) mostra que na Espanha no s existem muito mais unidades administrativas locais que, em geral, na Amrica Latina s a Andaluzia possui 700 municpios mas so institucionalizadas as unies entre municpios, por meio das comarcas. O mais importante na exposio de Plata que as organizaes locais (os grupos de desarrollo rural) reunindo setores privados, pblicos e associativos tm poder de fazer contratos e de gerir recursos pblicos: so uma forma inovadora de gesto de fundos pblicos. Este grupos respondem pela elaborao de estratgias locais de desenvolvimento, com base na concertao dos atores que deles participam. A experincia da Andaluzia resultou, na avaliao de Plata, em significativa diversificao da economia rural da regio. Nada semelhante parece existir no Brasil neste sentido. 19 Estes poderes, a partir de 1994 foram novamente reduzidos, em funo da elevao da carga tributria dirigida ao Governo Federal, por meio de impostos como a CPMF. 20 Urquiza insiste no carter burocrtico e nas funes de puro controle exercidas pela grande maioria dos conselhos gestores: o que se entende por participao reduz-se muitas vezes tentativa do poder pblico de dividir responsabilidades. Ver, no mesmo sentido, Abramovay (2003b). 21 Infelizmente as discusses mais recentes sobre a reforma tributria indicam, que este Fundo no ser mais criado: o Pas no vai dispor, ento, de um elemento que poderia ser importantssimo na mudana do formato institucional de destinao de recursos a regies mais pobres.

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    Documento do programa LEADER (Farrell e Thirion, 2001:5) resume bem a questo: ser que podemos dizer que um territrio competitivo quando produz, por exemplo, matrias-primas agrcolas baratas, mas em condies sociais deplorveis e sem qualquer respeito pelo ambiente? Esta interrogao conduz a um sentido mais lato de competitividade, que se exprime num conceito de competitividade territorial: um territrio torna-se competitivo sempre que possa fazer frente concorrncia de um mercado, assegurando ao mesmo tempo, uma durabilidade ambiental, econmica social e cultural baseadas em lgicas de rede e de articulao interterritorial. Vale a pena reter a definio de competitividade econmica da Unio Europia, tal como se exprime neste documento do LEADER (2001:5): capacidade dos agentes de produzir e reter um mximo de valor acrescentado no territrio, reforando a relao entre setores e fazendo a combinao dos recursos das vantagens para valorizar o carter especfico dos produtos e servios locais. Competitividade econmica no se reduz ento, nem de longe, capacidade de colocar produtos indiferenciados nos mercados internacionais a baixo preo. Se assim fosse, o espao para o crescimento do empreendedorismo de pequeno porte e para o prprio desenvolvimento territorial seria muito restrito. exatamente porque a competitividade econmica se apia no conhecimento, na organizao, na cooperao social e no esprito inovador que os territrios podem apoiar-se no fortalecimento do empreendedorismo de pequeno porte para afirmar sua presena em diferentes tipos de mercados (22).

    neste sentido que Echeverri (2003) insiste nas consequncias econmicas da cidadania: sem cidadania, diz ele, no possvel construir as instituies bsicas que permitem o funcionamento de mercados que possam representar horizonte de melhor qualidade de vida para os mais pobres. A Amrica Latina est passando por uma transio que tem dupla natureza: por um lado, ampliam-se os espaos de participao de variados grupos sociais na esfera pblica da vida social. Alm disso, h mudana nas prprias competncias das instncias estatais. At os anos 1960, era o Estado nacional que detinha o monoplio das competncias e das decises, inclusive quanto s regies. Hoje isso mudou: h novos espaos de protagonismos e no s no plano local. No Mercosul, por exemplo, tomam-se decises que seria difcil imaginar que Brasil ou Argentina autorizassem at alguns poucos anos atrs. A consequncia prtica que no se pode considerar que apenas os recursos financeiros estatais formam a base do desenvolvimento dos territrios. fundamental a participao ativa de recursos privados. A insistncia de Echeverri (2003) sobre o vnculo entre fortalecimento da cidadania e dinamismo econmico crucial: situaes locais em que a atuao empresarial caracteriza-se pelo 22 A guerra fiscal como forma de atrao de recursos para regies atrasadas representa o contrrio do desenvolvimento territorial: a empresa atrada por atributos incapazes de fazer com que sua presena represente aumento da coeso social e da capacidade localizada de agregao de valor por parte de uma rede mltipla de atores sociais (Arbix, 2001). Tnia Bacelar (2003) insiste que a guerra fiscal uma espcie de filha bastarda do Estado centralista: quando a alocao de recursos deixa de ser definida por um Estado autoritrio,instaura-se uma espcie de guerra de todos contra todos, em que a renncia fiscal leva a uma perda de recursos que poderiam ser aplicados no processo de desenvolvimento. Pior: a guerra fiscal faz com que as empresas levem para regies pobres no seus departamentos de pesquisa, de marketing, em suma, sua inteligncia estratgica, mas, ao contrrio, apenas sua folha salarial que contrata o caso da Grandene, em Sobral operrios mal formados e que recebem pouco mais de um salrio mnimo por ms. A empresa no atrada pelos servios e pela qualidade do territrio e sim por sua pobreza e pelos recursos fiscais que abrem caminho para sua explorao.

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    desrespeito a direitos e interesses elementares da populao local exigem a expanso de uma esfera pblica que possa resultar no apenas na participao dos cidados, mas tambm no fortalecimento de vrias instituies econmicas, a comear pelo prprio mercado.

    Por fim, convm assinalar que os contratos territoriais de desenvolvimento devem evitar o que Judith Tendler (2003) chamou de pacto com o diabo: situaes em que as vantagens atribudas aos atores locais so socialmente nefastas e no conduzem valorizao dos atributos regionais: a dinmica do pacto com o diabo refora atitudes descompromissadas mantidas por vrios planejadores do desenvolvimento econmico e por gerentes e diretores de bancos de desenvolvimento referentes a pequenas empresas informais. Quando estes gerentes e funcionrios pblicos admitem a importncia da assistncia a pequenas empresas e ao setor informal, esta assistncia vista mais como uma medida de bem-estar social no mbito dos rgos de governo que tratam da poltica social e no no domnio daqueles rgos envolvidos com a promoo do desenvolvimento econmico (Tendler, 2003). O que Judith Tendler est denunciando aqui justamente a contraposio entre a necessidade socialmente justificada de se manter e criar empregos e a baixa eficincia da economia em que estes objetivos so atingidos. fundamental que os pactos territoriais de desenvolvimento promovam justamente transformaes tcnicas e organizacionais que permitam melhorar as condies produtivas e a insero nos mercados das iniciativas dos empreendedores de pequeno porte.

    3. O empreendedorismo de pequeno porte, no meio rural, deve combinar atividades agropecurias e no agropecurias.

    J so bastante conhecidos os trabalhos brasileiros que mostram o aumento da importncia das atividades no agrcolas levadas adiante por populaes que vivem no permetro que o IBGE chama de reas rurais (Campanhola e Graziano da Silva, 2000). Este permetro, entretanto, apenas parte do que pode ser chamado de territrios rurais, desde que se adote para sua definio critrios sociais e geogrficos e no puramente administrativos (Veiga, 2002 e Abramovay, 2003c). As regies rurais incluem, portanto, no s o campo aberto, mas as sedes de milhares de pequenos municpios.

    Polticas de desenvolvimento rural so concebidas exatamente para contemplar estas mltiplas atividades a que se dedica a populao rural. Elena Sarraceno (2002) mostra, em texto recente, que na Europa, o desenvolvimento rural procurou at o final dos anos 1970 adaptar as estruturas fundirias pulverizadas a um formato prprio que permitisse agricultura do Continente concorrer com as grandes unidades produtivas norte-americanas. Por esta concepo as reas rurais deveriam caminhar para conter em seu interior fundamentalmente agricultores e apenas aqueles capazes de competir nos mercados internacionais (Abramovay, 1999). Durante os anos 1980 ficou claro no s que os agricultores eram minoria no meio rural, mas que o povoamento das regies no densamente povoadas tinha, muitas vezes, potencial de gerao de renda superior ao de atividades agrcolas tradicionais. Alm disso, a presena social diversificada no meio rural contribua para pressionar seus habitantes a fazer da preservao da biodiversidade e do patrimnio natural e cultural importante fonte de gerao de renda. neste momento

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    que se caracteriza a passagem da abordagem setorial para a territorial, a respeito do desenvolvimento rural. Na Unio Europia o grande trunfo das regies rurais est na preservao e no reforo da diversidade de suas economias.

    No o caso de expor com mais detalhes aqui a evoluo histrica que tornou o desenvolvimento territorial um princpio bsico das polticas de desenvolvimento da Unio Europia. O importante compreender tanto o que esta experincia pode ter de instrutiva para ns, quanto suas profundas diferenas com relao situao brasileira: entre ns, o peso da agricultura nas reas rurais bem maior que nos pases desenvolvidos. Infelizmente a j citada pesquisa do IBGE sobre Economia Informal Urbana no faz a separao dos informantes por tamanho de municpio. Mas importante mencionar que dos 9,5 milhes de unidades produtivas levantadas pelo IBGE em 1997, cerca de 2,5 (quase um quarto) estavam no Nordeste. Note-se que a proporo de agricultores familiares nordestinos sobre o total de agricultores familiares do Brasil muito maior: quase metade dos estabelecimentos agropecurios familiares estavam no Nordeste em 1996 e a situava-se a esmagadora maioria dos que encontravam-se em situao de pobreza. J os trabalhadores por conta prpria urbanos nordestinos correspondem a um quarto do total nacional desta categoria, o que j um forte indicativo da maior participao da pobreza ligada, de uma forma ou outra, agricultura no Nordeste, quando se compara a regio com o restante do Pas.

    Destes 2,5 milhes de unidades produtivas do que o IBGE chama de economia informal urbana, entre metade e um tero estavam nas regies metropolitanas (23). Metade da economia informal urbana do Cear est na regio metropolitana de Fortaleza, por exemplo. Em Salvador, est um tero da economia informal urbana do Nordeste. Considerando que existem reas urbanas no metropolitanas no Nordeste (Sobral, Campina Grande, Barreiras, entre outras) a concluso que dos 2,5 milhes de empresas da economia informal urbana, do Nordeste bem menos da metade est nos pequenos municpios, o que mais um indcio da conhecida precariedade da diversificao das economias locais. Existem nas reas rurais do Nordeste muito mais agricultores do que trabalhadores por conta prpria em atividades no agrcolas. Quando se fala, portanto, de trabalhadores por conta prpria no interior do Nordeste, a grande maioria tem relao direta com a agricultura, mesmo que no consiga tirar de suas atividades agropecurias o essencial do necessrio a sua sobrevivncia. Mais que isso: a pobreza tende a ser maior em municpios menores sobretudo em regies mais carentes, bem entendido. E entre os pobres, os que se dedicam agricultura encontram-se em pior situao. Esta uma das razes que motiva o IICA (Seplveda et al. 2003), em documento recente, a insistir na importncia da agricultura para o desenvolvimento rural, apesar da importncia crescente de outras atividades no meio rural.

    Promover a diversificao de economias rurais dominadas pela pobreza de pessoas cuja renda depende ao menos em parte da agropecuria bem mais difcil do que faz-lo em situaes como a europia em que h atores sociais no envolvidos diretamente com a agricultura e interessados na valorizao dos recursos ambientais e paisagsticos

    23 Nos volumes sobre a Economia Informal Urbana nos Estados, h tabelas sobre a situao das regies metropolitanas.

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    locais. A reunio entre baixa densidade demogrfica, pobreza e grande dependncia de uma agricultura precria sinal de um tecido econmico pouco diversificado e que responde com muita dificuldade a polticas de desenvolvimento. A atrao empresarial que estas regies podem exercer sobre investidores locais ou de outras regies movida, em geral, pela presena de mo-de-obra ou de recursos naturais abundantes e baratos e no por suas virtudes organizacionais ou pela existncia de infra-estruturas e servios de qualidade.

    Mas exatamente a este desafio que se lana um projeto de revalorizao dos territrios rurais. Por um lado, ele no pode consistir em garantir renda para manter os agricultores nas atividades a que se dedicam hoje. At aqui as polticas voltadas aos segmentos mais pobres entre os agricultores familiares o seguro-renda, por exemplo sempre atuaram de forma emergencial, para evitar catstrofes como perda de safra por seca, por exemplo: e assim nunca puderam induzir e oferecer segurana queles que tivessem iniciativas inovadoras. O seguro-renda para agricultores atingidos por sinistros naturais limitam-se sempre aos produtos tradicionais cultivados pelos agricultores. Da mesma forma, o Fome Zero, tambm insistia na complementariedade entre o aumento da demanda decorrente das transferncias de renda e a elevao na oferta de produtos tradicionais (feijo, milho e mandioca). Por maior que seja a utilidade social imediata destas polticas, elas no so capazes de despertar o entusiasmo dos que pretendem levar adiante atividades empreendedoras, sobretudo dos mais jovens. O risco ento que a proteo aos agricultores familiares em torno do que j fazem iniba os processos de inovao implcitos no prprio conceito de desenvolvimento territorial. Em suma, diversificar a prpria produo agropecuria em direo a produtos que representem agregao de valor um primeiro desafio que se ope lgica at aqui prevalecente nas polticas pblicas.

    Alm de diversificar e ampliar os horizontes de mercado dos agricultores, um projeto de desenvolvimento territorial deve tambm conhecer e fortalecer as capacidades produtivas e a insero em melhores mercados dos pequenos negcios no agrcolas. Somente parte dos filhos dos agricultores podero manter-se na profisso paterna. Entretanto, muitos dos que no se tornaro agricultores podem desenvolver suas capacidades aproveitando os crculos de relaes sociais em que cresceram e contribuindo assim valorizao de suas regies de origem.

    5. Concluses A noo de desenvolvimento territorial est muito longe de representar uma dimenso significativa da ao do Estado brasileiro na luta contra as desigualdades regionais nos dias de hoje. A discusso nacional continua centrada nas diferentes formas de redistribuio dos recursos entre as macrorregies do Pas e no existem novos mecanismos de incentivo capazes de provocar reagrupamentos locais com potencial de gerao de novas polticas e novas dinmicas. verdade que o termo incorporou-se ao vocabulrio do Ministrio do Desenvolvimento Agrrio; mas no existe qualquer sinal de coordenao entre as aes do MDA, do Planejamento e da Integrao Nacional no sentido da valorizao dos potenciais dos territrios. Confinados ao Ministrio do Desenvolvimento Agrrio, os territrios sero apenas nova denominao para as aes j

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    conhecidas em que se escolhe o pblico do Ministrio (os agricultores familiares, os acampados e os assentados) e a estes dirigem-se recursos, sem que os instrumentos contratuais referentes ao aumento das capacidades locais de planificao apaream. O desenho atual das transferncia de renda permanece dentro da lgica segundo a qual o importante localizar bem o alvo das polticas sociais e controlar por meio dos conselhos municipais sua correta execuo. Nas regies urbanas nada existe que se assemelhe ao que tem sido o PRONAF: um dispositivo institucional voltado a fortalecer as iniciativas de cenetenas de milhares de agricultores familiares. O Brasil possui inteligncia estratgica voltada para o crescimento de diferentes segmentos da indstria, mas no tem sido capaz de organizar at hoje, um programa consistente capaz de aproveitar as energias produtivas de milhes de empreendimentos de pequeno porte que existem por todo o territrio. Este aproveitamento no pode depender diretamente do poder pblico federal: mas ele s ser real, se o Governo animar um movimento nacional que envolva as foras vivas da sociedade o setor privado, os eleitos locais e o setor associativo e que no se limite a contemplar a chegada de recursos federais aos mais pobres.

    A prtica de atribuir recursos s regies em funo da qualidade dos projetos que elaboram um dos mais importantes caminhos para estimular o surgimento de projetos consistentes na luta contra a pobreza. claro que as regies mais pobre