em que fonte você bebe?
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"Quem bebe água salgada sentirá sua sede aguçar-se ainda mais. O deserto permanece seco e estéril, não há trégua. Quem bebe em água doce e cristalina tê-la-á temporariamente aliviada, pode repousar por algum tempo no oásis. Certamente voltará a sentir sede no longo percurso da viagem, mas terá descoberto o caminho da fonte." Pe. Alfredo J. Gonçalves, CSTRANSCRIPT
EM QUE FONTE VOCÊ BEBE?
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
Quem bebe água salgada sentirá sua sede aguçar-se ainda mais. O deserto permanece seco e
estéril, não há trégua. Quem bebe em água doce e cristalina tê-la-á temporariamente aliviada,
pode repousar por algum tempo no oásis. Certamente voltará a sentir sede no longo percurso da
viagem, mas terá descoberto o caminho da fonte.
São inúmeras e variadas as fontes que a sociedade do espetáculo, moderna ou pós-moderna, nos
oferece: ricas, iluminadas, atraentes, apelativas, enfeitadas de acessórios e atrativos, revestidas
de cores e magia, envernizadas pelo marketing, acessíveis a todos os bolsos e idades... Basta
percorrer as lojas dos shopping-centers ou os centros comerciais populares. Mas com frequência
há uma forte pitada de sal publicitário que só faz agravar a sensação de sede e reacender o
desejo imperativo.
Através de uma dinâmica espiral, cria-se um círculo vicioso. Uma propaganda insistente e
estridente invade a existência, desperta a sede e desencadeia a corrida à fonte. Com relativa
facilidade, realiza-se o desejo imediato dos objetos à venda como mercadoria ao alcance de
todas as classes sociais. Águas abundantes, sem dúvida, mas turvas e superficiais. Fortemente
apimentadas e salobras, com limitado prazo de validade. A sede se reaviva com força
redobrada... E o círculo se fecha. Uma gaiola de ferro da qual é difícil escapar.
Fontes falsas e ilusórias, onde a água parece farta, mas cedo perde o efeito e o encanto.
Miragens que enganam os olhos, sem acalmar a alma ressequida do peregrino. Este, seguindo a
direção de tais alucinações, cambaleia em passos cada vez mais incertos e titubeantes, até perder
o rumo do horizonte e as próprias energias. Com algum tempo, enfraquece, definha e tomba.
Logo será pasto dos abutres esfaimados.
Onde então encontrar a fonte de água doce e cristalina? De início, no íntimo de si mesmo.
Extrair do tesouro da própria memória as pérolas que marcaram a vida. Podem ser sucessos ou
fracassos, alegrias ou tristezas, luzes ou sombras... Não importa! O importante é sacudir-lhes a
poeira, dar-lhes novo brilho, ressegnificar sua validade à luz do presente e de um futuro cheio de
esperança. Se é verdade que os fatos do passado não mudam, é igualmente certo que o sentido
dos mesmos depende da iluminação de um reencontro consigo mesmo. Da redescoberta de
antigas e novas motivações, de um entusiasmo rejuvenescido e de novo ardor na ação. Cada
pessoa, na companhia de seu “eu”, descobrir-se-á um poço de água viva.
Em segundo lugar, um encontro com o outro, a outra, os outros, as outras. Uma amizade ou
companheirismo autêntico também ilumina retrospectivamente as sombras da própria trajetória.
Neste caso, será necessário apostar em momentos de convivência e convivialidade, de
comensalidade, onde se partilha pão e vida. Descobrir a riqueza do “ócio criativo”, aprender a
“jogar conversa fora”, saber “perder tempo” com os companheiros e companheiras de vida. Os
conceitos de casa e mesa, enquanto sinônimos de ambiente familiar e encontro, são
fundamentais. Cultivar a refeição e o calor da lareira, curtir sem culpa as trivialidades do
cotidiano, reenergizar-se através do “estar juntos”. Aqui também há um poço de água limpa e
transparente.
Da mesma forma que a trajetória pessoal, também a história de um povo constitui um poço
inesgotável de valores que nutrem a caminhada. Novamente aqui, de um ponto de vista lógico,
os fatos sociais não podem ser apagados. Como diz o ditado popular, “a vida é a arte de escrever
sem borracha”. Mas, desde o enfoque do significado, os mesmos fatos brutos, são
continuamente lapidados. Uma experiência forte de resistência, solidariedade e libertação, no
aqui e agora, ao mesmo tempo que iluminam os acontecimentos da história vivida, podem abrir
os horizontes de um amanhã renovado. Expressões culturais e religiosas costumam vir
carregadas de sabedoria, além de converter em luz as sombras da história. É o que ocorre com a
saga do Povo de Israel. A experiência fundante da libertação do Egito joga luz não apenas sobre
o porvir, mas ressegnifica igualmente o que ficou para trás. Se é verdade que no coração de cada
pessoa e de cada cultura existem sementes do Verbo, estas fecundam simultaneamente o
presente, o passado e o futuro.
A melodia do universo representa uma quarta fonte de água cristalina. Cada coisa, planta,
animal ou pessoa faz parte de uma gigantesca orquestra. Nesta, é chamada a tocar determinado
instrumento musical único e irrepetível, numa harmonia ao mesmo tempo perfeita e
descomunal. Na alquimia do silêncio, da oração e da contemplação, os próprios ruídos podem
transfigurar-se em inefáveis notas musicais. Tudo e todos cantam a glória da criação. A sinfonia
não deixa de tocar mesmo em meio às tempestades ou turbulências do cotidiano. As próprias
ameaças de devastação, de poluição e de naufrágio deste enorme Titanic que é o planeta Terra,
não impedem que o grande e invisível Maestro siga manuseando sua batuta.
Por fim, mas em primeiríssimo lugar a fonte primordial do “Abba=Pai” da espiritualidade de
Jesus Cristo. Não é a única, se levarmos em conta hoje o pluralismo religioso e as alternativas
do hinduísmo, do budismo, do judaísmo, do islamismo, do candomblé, entre tantas outras. Mas,
desde uma perspectiva cristã, a trajetória de Jesus segue sendo “o caminho, a verdade e a vida”.
Surgem espontâneas algumas perguntas: por que esse “profeta itinerante” se revela, a um só
tempo, pobre e alegre, humilde e com tamanha autoridade? Por que se eleva acima do estrito
cumprimento da lei, rompendo com qualquer tipo de discriminação, preconceito e moralismo?
A resposta é espantosamente simples: o homem de Nazaré bebe no imenso oceano de amor que
é a misericórdia do Pai.
Nutre-se continuamente de sua luz, bondade e amor inesgotáveis. Daí apresentar-se tão livre.
Capaz de voar e cantar como os pássaros e as borboletas que cruzam os ares; de abrir-se e sorrir
como as flores do campo; de brilhar misteriosamente em meio à escuridão, como as estrelas; e
de correr e pular, brincar e dançar com as crianças e os que se amam. Por cultivar uma profunda
intimidade com o Pai, não conhece encontros proibidos, não vê as pessoas como “problemas”,
apenas pessoas que inauguram um tempo novo. Tampouco conhece as fronteiras entre povos,
línguas, credos, bandeiras. A todos abre as portas do Reino de Deus, com particular predileção
para os pobres cuja vida encontra-se mais ameaçada e que se encontram à margem do caminho e
da história. O Pai, os pobres e a alegria dos amigos constituem suas paixões. Por tais causas não
hesita em subir a Jerusalém e enfrentar o tormento da cruz.