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Em Nome do Espetáculo: Megaeventos, Cidades e Representações Midiáticas1

Ricardo Ferreira Freitas – Docente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Rodrigo Karl Fernandes – Bolsista PIBIC/CNPQ da Universidade do Estado do Rio de

Janeiro

Miguel Oliveira Nunes - Bolsista PIBIC/CNPQ da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Renata Gallo Spinola do Amaral – Graduada em Relações Públicas pela Universidade do

Estado do Rio de Janeiro

Resumo

Os megaeventos têm se transformado em uma das importantes receitas turísticas do Brasil,

tanto na área de entretenimento e lazer como também nos diversos campos dos negócios. O

Rio de Janeiro é uma das cidades brasileiras que participam ativamente desse processo, apesar

da imagem de violência associada a seu cotidiano urbano. Com a Copa do Mundo no Brasil

em 2014 e os Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro em 2016, percebemos que o discurso

midiático tem estabelecido novos paradigmas de cobertura jornalística, priorizando mais as

ações de transformação para o sucesso desses megaeventos do que a violência urbana sempre

tão explorada pelos diversos MCM. Neste artigo, analisamos a mudança desse discurso no

Reveillon e no Carnaval cariocas entre o ano de 2009 e de 2010. Outro objetivo deste trabalho

é estimular o campo das Relações Públicas a desenvolver novas reflexões críticas sobre a área

de eventos.

Palavras-chave

Megaeventos; cidade; relações públicas; violência urbana; mídia

Introdução

Sempre presentes na história da humanidade (...) os eventos somente têm sua

estrutura e (...) intensidade modificada, tal como apresentado no formato “mega”, no

contexto da cultura de massas e à estética por esta imposta, característica do século

XX, que altera não somente as relações espaço-temporais e as estruturas de vivência

do homem (...), mas, principalmente, sua percepção do mundo. (Contrera, 2008, p.

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1 Trabalho apresentado no GT 6 - Comunicação pública, governamental e política do IV Congresso Brasileiro

Científico de Comunicação Organizacional e de Relações Públicas.

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Nunca se falou tanto em megaeventos na mídia carioca e brasileira. A escolha do Rio

de Janeiro para sediar os Jogos Olímpicos de 2016 e o fato de o Brasil também ter sido

escolhido para receber a Copa de 2014 transformaram radicalmente a maneira da mídia e dos

políticos tratarem as cidades-sede, sobretudo em relação a sua infraestrutura e a sua imagem

no Brasil e no exterior. O discurso crítico das mazelas das cidades tem dado lugar a um

discurso de compromisso. O problema é que esse compromisso político está mais voltado

para o espetáculo do que para o bem estar dos cidadãos das cidades envolvidas.

Todo o discurso dos políticos e da mídia tem sido construído em cima das

perspectivas para esses dois megaeventos. Os transportes devem ser melhorados e adaptados

aos locais dos jogos, o sistema hoteleiro deve comportar o número de visitantes esperado, a

segurança deve ser exemplar de forma a garantir a integridade dos atletas e dos turistas.

Assim, ações que deveriam fazer parte normalmente dos projetos políticos para as cidades em

nome dos cidadãos tomam outro lugar: o do espetáculo. O legado tão falado parece não passar

de um agrado aos visitantes. Evidentemente, há ganhos políticos, econômicos e urbanísticos

importantes, mas percebemos que o show ganha vulto muito mais importante do que o bem

estar futuro da população.

Assim, o que se vê não é, por exemplo, um planejamento de transportes a partir das

necessidades dos trabalhadores que cruzam as cidades, mas, sim, que deslocamentos

favorecerão os públicos envolvidos nos megaeventos. No Rio de Janeiro, isso é evidente

quando somos apresentados ao sistema viário e metroviário que está sendo reprojetado em

função da Copa do Mundo e das Olimpíadas. O mesmo acontece em relação ao tratamento de

esgotos, das lagoas e do mar; a impressão é que somente os locais onde haverá competições

serão contemplados com melhorias na infraestrutura sanitária. E, mesmo nesses lugares, já

percebemos que muitas obras serão precárias ou efêmeras. A comunicação pública parece,

algumas vezes, a idéia de ser falsa ou distante da realidade.

Neste artigo, elegemos o Reveillon e o Carnaval da cidade do Rio de Janeiro para

nossa análise. Nosso objetivo é demonstrar a mudança no discurso midiático, especialmente

em relação à violência, nesses dois eventos no ano de 2010 em comparação aos anos

anteriores. Desde que a cidade passou a ser escolhida como sede da final da Copa do Mundo

de 2014 e dos jogos olímpicos de 2016, a mídia tem sido muito mais generosa com as

prospecções para a metrópole. No Reveillon, por exemplo, as manchetes dos jornais

impressos ressaltavam as maravilhas das Unidades Pacificadoras instaladas nos Morros da

Zona Sul carioca, garantindo, assim, a tranqüilidade no evento. No ano anterior, os mesmos

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jornais denunciavam balas perdidas na orla, violência em Copacabana e a festa dos traficantes

no momento da passagem do ano. O mesmo imaginário foi percebido em relação ao Carnaval

de 2010. A cidade foi representada como muito mais segura e organizada, ou seja, a caminho

de bem receber os dois megaeventos internacionais de 2014 e 2016.

Apresentamos neste texto, um breve histórico do Reveillon e do Carnaval e algumas

representações da violência urbana nos jornais impressos do Rio de Janeiro. Foram analisadas

as matérias das primeiras páginas, além das editorias de Cidade do Jornal do Brasil e Rio de O

Globo, no período de dezembro a março de 2009 e 2010. Nossa intenção é colaborar com a

reflexão crítica sobre o imaginário de paz e felicidade que está sendo construído na cidade

para bem receber os megaeventos supracitados, o que, obviamente, repercutirá na economia e

na auto-estima local, deixando, no entanto, seqüelas traumáticas em diversos bairros.

Outro objetivo deste artigo é contribuir, na área de Relações Públicas, com novos

pensamentos sobre um tema que carece de viés acadêmico no Brasil, os megaeventos. Aliás, a

bibliografia sobre eventos no país ainda é, com raras exceções, muito incipiente sob o ponto

de vista teórico e crítico. Daí nosso interesse em conjugar reflexões sobre a cidade, os

megaeventos e os estudos culturais. Sem querermos ser ambiciosos, pretendemos lançar

novos olhares a um tema tão caro às relações públicas, inovando nas abordagens teórica e

metodológica.

Entendemos megaeventos como encontros que repercutem na mídia, despertando o

interesse de milhares de pessoas. Mais do que a presença física no certame, levamos em conta

se o evento teve alcance de público pelos meios de comunicação de massa e se uma parcela

importante da sociedade se expressou sobre o assunto. Nessa perspectiva, podemos recorrer às

paradas gays de São Paulo, ao reveillon de Copacabana, ao carnaval do sambódromo do Rio,

como exemplos de megaeventos que não só contam com a participação de milhares, às vezes

de milhões, de pessoas, mas, também, ocupam o espaço midiático de forma importante antes,

durante e depois do evento.

Sobre o Reveillon

...O foco no presente vivenciado, por meio de ritos e ritmos específicos, proporciona

uma espécie de iluminação. É causa e efeito de uma autêntica força sagrada. Um

divino não mais transcendente, mas que emana do grupo em fusão. (Maffesoli, 2004,

p.162)

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Diferentes culturas do mundo todo sempre comemoraram o Ano Novo como uma

etapa de renovação, de início de uma nova época e um novo ciclo de transformações. Esse

ritual de comemoração tem sua origem ligada à natureza, aos ciclos celestes e lunares e à

agricultura. Daí, a idéia de recomeço preservada até os dias atuais. As primeiras

comemorações de virada de ciclo anual que se tem registro tiveram início cerca de dois mil

anos antes da era cristã, quando os antigos babilônios festejavam o Ano Novo. Esta época,

não por acaso, coincidia com a primavera no hemisfério norte e também com a plantação de

novas safras. Na Babilônia, os deuses da fertilidade Marduk e Dumuzi recebiam do povo da

Mesopotâmia oferendas de alimentos no Cigarat, um templo em forma de torre. A

comemoração da virada de ano ocorria por volta do dia 25 de março. No entanto, foram os

romanos que, em 1582, adotaram o calendário criado pelo Papa Gregório VIII. A partir de

então, aconteceu a mudança desta data para 1° de janeiro2.

O termo Réveillon surgiu mais tarde, no século XVII, na França. A palavra vem do

verbo francês réveiller, que significa “acordar”, como se representasse um despertar para o

novo ano que estar por vir. A palavra surgiu, na verdade, como uma forma de identificar os

eventos populares entre os nobres franceses. Eram verdadeiros banquetes, que iam até depois

de meia-noite, na véspera de datas importantes. No Brasil, as primeiras comemorações de

Reveillon aconteceram durante a corte de Dom Pedro II, no Rio de Janeiro, e mais tarde

foram espalhadas pelo resto do país. O jantar francês foi mantido, mas sofrendo algumas

incorporações dos costumes brasileiros. A data só foi considerada feriado nacional após a

proclamação da República, num decreto assinado pelo chefe do governo provisório, Marechal

Deodoro da Fonseca.

Atualmente, no dia 31 de Dezembro, em Copacabana, algo em torno de dois milhões

de pessoas dos mais diversos lugares do Brasil e do mundo se reúnem na praia para celebrar a

chegada do Ano Novo. A vista para o mar é iluminada por embarcações de todos os tipos que

se reúnem à espera do momento da virada do ano. Na areia, pessoas das mais diversas

origens, gostos, religiões e etnias pedem boas vibrações para o ano que estar por vir. Há

aqueles que fazem suas oferendas à Iemanjá, e assim, barcas e flores são lançadas ao mar, na

esperança de que a rainha das águas os proteja. Outros, simplesmente esperam pelo momento

da virada para mentalizar seus desejos para o ano seguinte.

2 http://www.scrittaonline.com.br/imprimir.php?id=423 (pesquisa em 15/09/09)

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Antes de se tornar esse megaevento que vemos hoje, Copacabana era cenário de uma

simples festa de cunho religioso que agregava poucos moradores do bairro e alguns devotos.

O Reveillon de Copacabana foi, na verdade, uma invenção dos praticantes de Candomblé, que

a partir dos meados dos anos 60 passaram a se reunir na praia para saudar a chegada do Ano

Novo, vestidos de branco, com muitas flores e oferendas à Iemanjá. Eles aproveitavam aquele

momento para fazer suas rezas e danças e, no momento da virada, caminhavam cantando até o

mar.

Aos poucos, no decorrer dos anos 80, o número de pessoas que ia assistir ao

espetáculo começou a aumentar, e foi então em meados dessa década, com a adesão de alguns

hotéis da orla e o apoio da prefeitura, que o local passou a ter uma estrutura maior. O Hotel

Le Méridien Rio, passou inclusive a fazer uma queima de fogos que descia do topo do

edifício em forma de cascata, o que passou a atrair ainda mais pessoas.

No entanto, o caráter de megaevento só passou a existir a partir de 1992, quando o

prefeito César Maia, ao perceber o potencial de marketing da festa, que já reunia perto de um

milhão de pessoas, passou a utilizá-la como evento da prefeitura. A produção mudou então

completamente sua estrutura, passando a ter grandes shows no local, fogos de artifícios e uma

verdadeira infra-estrutura com equipe de segurança, bombeiros, ambulâncias, equipe de

limpeza, banheiros químicos, postos médicos, entre outros recursos.

O Reveillon de Copacabana é considerado hoje um dos maiores eventos em

comemoração ao Ano Novo do mundo, recebendo mais de 2 milhões de pessoas por ano,

dentre eles milhares de turistas estrangeiros. Apesar de a imagem do Rio estar vinculada à

violência, principalmente nos meios de comunicação, o sucesso do Reveillon de Copacabana

tem sido associado à segurança. Se levarmos em conta o número de pessoas que freqüentam a

festa de Copacabana, podemos perceber a inviabilidade de se conter um grande tumulto. Não

estamos falando de focos de briga, mas de conflitos ou tumultos que envolveriam milhões de

pessoas. Carlos Lessa classifica a ocorrência deste evento muito mais pela pacificação da

multidão, que neste momento parece estar contida, do que pela intervenção da polícia: “a

cidade é capaz de produzir, sem qualquer violência ou barbarismo, esta imensa mobilização.

A cidade não tem na polícia a variável explicativa deste evento. Aliás, uma multidão deste

tamanho não é controlável por polícia nenhuma”. (Lessa, 2000, p. 422).

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Sobre o Carnaval

...Tempo também profundamente perturbador por aquilo que, permanecendo

relativamente oculto ao longo do tempo anual ordinário, revela-se durante o carnaval

bem a nossa frente, solicitando mesmo nossos aplausos: são afinal criminosos ou

mecenas quem os recebe? (Cavalcanti, 2009, p. 93)

Ao investigar a origem do carnaval deve-se primeiro observar que as festividades

populares ocorridas na Antiguidade e o Carnaval da atualidade possuem semelhanças, mas

não são a mesma coisa. Os cultos populares a divindades nas civilizações do período clássico

são as raízes não apenas daquilo que hoje se conhece como Carnaval, mas de todos os tipos de

festas populares que vieram em seguida, conforme observado por Felipe Ferreira em “O livro

de ouro do Carnaval brasileiro” (FERREIRA, 2004, p.17).

Segundo Ferreira, alguns pesquisadores inspirados numa prática comum no mundo

antigo – que consistia em “incorporar charretes em forma de pequenos navios às procissões”

(2004, p. 19) – acabaram comparando erroneamente tais celebrações ao Carnaval da

atualidade, imaginando que o nome da festa de Momo fosse inspirado neste “carrus navalis”

clássico.

No início do século 7 depois de Cristo, o Papa Gregório I deliberou que os cristãos

deveriam abdicar de suas vidas particulares por um período de 40 dias, para que se

dedicassem apenas ao lado espiritual – período este que passaria a ser chamado de quaresma.

Após alguns séculos, numa reunião de altos membros da hierarquia eclesiástica, foi escolhida

a data oficial do período, tendo como dia inicial a chamada Quarta-feira de Cinzas. Ao fim

dos 40 dias seria celebrada a ressurreição de Cristo, no Domingo de Páscoa. Dada a influencia

da Igreja no mundo medieval e o consequente respeito dos cidadãos aos dogmas instituídos

durante a quaresma – tais como o jejum baseado na abstinência ao consumo de carne,

castidade, supressão dos demais prazeres mundanos, entre outros – começou-se a chamar os

dias anteriores a este período de dias do “adeus à carne”, “carne vale” em italiano. Assim,

Felipe Ferreira caracteriza a origem do Carnaval como uma reação à invenção da quaresma.

(2004, p. 26).

Em Carnavais, malandros e heróis, Roberto DaMatta classifica o Carnaval como um

ritual nacional, com características que se fundam sobretudo na possibilidade de dramatizar

valores globais de nossa sociedade. Além disso, tal rito é chamado nacional porque implica

uma espécie de sincronia, onde toda sociedade, de certa forma, se orienta ou “pára” em

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função do evento. DaMatta caracteriza o Carnaval brasileiro com base em seu conceito

dicotômico de rua e casa. O autor identifica dois domínios sociais básicos cuja oposição

“pode servir como instrumento poderoso na análise do mundo social brasileiro” (DAMATTA,

1997, p. 90). São eles: a casa, local de controle e autoritarismo e a rua, lugar de descontrole e

massificação. Na festa de Momo carioca, bem como em outras cidades brasileiras, existe um

carnaval de rua em contraste a um carnaval de clube. O primeiro assume a forma de uma

festa aberta, dominada por um desfile de escolas de samba, enquanto o segundo diz respeito a

um espaço privado. Contudo, esta segmentação não pode ser tomada de forma rígida, pois tal

qual casa e rua, os carnavais de rua e de clube se relacionam e se reproduzem.

Ainda segundo o antropólogo, devido a seus costumes e tradições, o Carnaval constitui

um campo social cosmopolita e universal. É um espaço heterogêneo onde personagens

diversos do mundo social brasileiro são representados através de fantasias, que acabam por

reforçar e mediar as relações dadas nesse campo polissêmico. “Forma-se então o que pode ser

chamado de um campo social aberto, situado fora da hierarquia” (1997, p. 63). E este campo

social aberto, continua o autor, é lugar onde os personagens não se relacionam por meio de

um eixo hierárquico, mas sim pelo contrato temporário de suspensão das regras sociais do

mundo cotidiano.

O Carnaval necessita de um espaço próprio para ser realizado, seja na festa de clubes

ou de rua. Nesta última, nota-se um verdadeiro esquema carnavalesco, onde, geralmente, o

centro da cidade (local de decisões e de negócios) fica fechado ao trânsito de automóveis e

passa a ser ocupado por foliões. O próprio deslocamento de pessoas, de casa para o centro,

como num dia de trabalho, ocorre de modo diferente durante a festividade: “essa ocorrência

não se deve a uma súbita melhora dos transportes urbanos durante o carnaval, mas o espaço

da condução se transforma num espaço carnavalesco” (DAMATTA., 1997, p. 112). Aqui,

ficam claras a ritualização e a inversão, presentes em praticamente todo o espaço urbano do

Rio de Janeiro durante o carnaval, onde a cidade, vista como uma megalópole “intensamente

integrada por meio de vários sistemas, subitamente fica articulada num grande número de

subdivisões carnavalescas” (1997, p. 113).

Nessa ocupação das vias públicas por foliões observada no carnaval, o autor indica

uma certa domesticação das ruas, exemplificando com relatos do que observou no carnaval de

1977. “Era como se a Avenida Rio Branco, ponto central do mundo bancário, lojista e

comercial do Rio de Janeiro (...) tivesse se transformado num conjunto de „casas‟(...) Era a

cidade repartida em mil aldeias” (1997, p. 114). Entretanto, levando-se em consideração a

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oposição entre rua e casa, a primeira, durante o carnaval, torna-se palco onde acontecem

dramatizações espontâneas sem ordem específica, transformando o mundo social num

verdadeiro espetáculo popular, onde os papéis de atores e espectadores por vezes se

confundem.

Representações sobre a violência urbana no Reveillon e no Carnaval de 2009 e

2010

Não tem sentido o Rio de Janeiro insistir em recuperar a imagem de Paraíso

Tropical. Qualquer metrópole tem violência; é impossível obter a “violência zero”,

mesmo com instituições modelares. O Rio está violento. No Rio, há fome, exclusão

social e desemprego... (Lessa, 2000, p. 414)

O Rio de Janeiro é mundialmente conhecido por abrigar anualmente megaeventos que

atraem uma infinidade de turistas, que buscam não só a confraternização, mas, também, a

oportunidade de conhecer as belezas naturais e culturais da cidade. A grande procura pelo

Reveillon e Carnaval na cidade, que recebe milhões de visitantes todos os anos, movimenta a

economia em múltiplos planos, sendo, por isso, um dos carros-chefe da agenda midiática, que

parece ter deixado de lado, nos primeiros meses de 2010, o tema violência como prioritário.

Dada a importância dessas confraternizações no imaginário carioca e suas

representações na mídia impressa, observamos a mudança no discurso da imprensa no ano de

2010. O tratamento positivo nas matérias jornalísticas teve início desde que o Governo do

Estado do Rio de Janeiro iniciou uma política pública de intervenção policial nas favelas,

tendo como ponto de partida as comunidades próximas à Copacabana, onde ocorre a maior

festa de Reveillon da cidade. Outro ponto a ser levado em consideração é o interesse de

caráter político e econômico decorrente da escolha da cidade como sede da final da Copa do

Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016.

Ao compararmos as matérias dos jornais O Globo e Jornal do Brasil do Reveillon da

passagem de 2008/2009 com aquelas de 2009/2010 notamos a clara diferença no teor das

narrativas. O mesmo foi percebido nos carnavais de 2009 e 2010. Em vez de títulos como

“Mais violência contra turistas” (O Globo, 20/02/2009) ou “Violência atravessa o samba” (JB,

20/02/2009), encontramos abordagens de outras naturezas: “Bloco bate recorde de público” e

“Vende-se uma vaga de madrinha da bateria. A combinar” (O Globo, 14/02/2010). No estudo

do clipping dos dois jornais nos dois períodos, a equipe de pesquisadores detectou claramente

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a abordagem em um ano priorizando a violência urbana e a abordagem no ano seguinte

valorizando a alegria nas ruas em uma cidade menos violenta.

No Reveillon de 2009/2010, os dois jornais escolhidos, O globo e Jornal do Brasil,

elegeram, como pauta, a pacificação dos morros da zona sul do Rio e as tragédias decorrentes

do excesso de chuvas em Angra dos Reis e outras cidades do país, em vez de abordar a

violência no Rio. Pelo registro desses veículos, uma leitura possível seria que não houve

violência na cidade na noite da passagem do ano.

Os dois jornais utilizados neste artigo publicaram, durante o Carnaval de 2010,

cadernos especiais sobre o evento, com a proposta de cobrir a programação, explicar os

enredos das Escolas de Samba e dar dicas de como chegar aos lugares. O assunto violência

não fez parte desse repertório. Também percebemos que esse tema, tão cultuado pela mídia

impressa carioca, tampouco foi devidamente contemplado no restante do jornal, sobretudo

nos espaços em que costuma ser pauta de várias matérias, como a primeira página e o caderno

Cidade (JB) ou editoria Rio (O Globo). Por ser tratar de um megaevento, é natural que ele

seja o assunto principal, especialmente em uma festa que leva vários dias seguidos, como o

carnaval, mas a mudança das narrativas em relação à violência foi bastante significativa.

Outras considerações

É importante, com efeito, observar em que a ciência, pelo menos no terreno

social, já não pode limitar-se a ser a lembrança mumificada de uma descoberta

antiga, devendo, pelo contrário, recobrar o frescor, o verdor da experiência viva.

(Maffesoli, 2007, p. 145)

Neste texto, entendemos os eventos como acontecimentos especiais que socializam

informações e experiências de ordem técnica ou afetiva, representando, assim, processos de

mediação social. No caso dos megaeventos, isso se multiplica de forma exponencial quanto a

patrocínios, públicos-alvo, infraestrutura, recursos humanos especializados, entre tantos

outros aspectos econômicos, além de representar uma enorme possibilidade de se vivenciar

novas sociabilidades.

Nossa intenção é provocar a discussão sobre a repercussão dos megaeventos nas

cidades à luz das relações públicas. Consideramos essencial que esse campo de estudos entre

nessa discussão de forma contundente, com argumentos técnicos e acadêmicos. Não é à toa

que este artigo é um dos frutos do primeiro ano de trabalho de um grupo de estudos do

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departamento de Relações Públicas da UERJ que estuda Comunicação e Cidade, com ênfase

em megaeventos e violência urbana. Trabalhamos com revisão teórica e clipagem de 2009 e

2010 dos jornais O Globo e Jornal do Brasil. Ao compararmos esse material, ficou clara a

diferença no tratamento do discurso jornalístico em relação à violência no reveillon e no

carnaval do Rio de Janeiro. Com a perspectiva da Copa e dos Jogos Olímpicos, os jornais

estudados frisaram, nos eventos de 2010, a qualidade da segurança e as melhorias na cidade

com as Unidades pacificadoras. Percebe-se com nitidez a mudança de ordem política e

econômica nas narrativas analisadas.

Os megaeventos são fatos sociais que, muitas vezes, podem entrar de vez para a

história de uma cidade. Para o melhor ou para o pior. Para o melhor, se o seu legado

efetivamente for útil à população ou se, pelo menos, não trouxer danos urbanísticos e

acrescentar maior movimento à economia local. Para o pior, quando o dinheiro público for

desperdiçado em função de uma maior preocupação com o espetáculo midiático do que com o

bem estar da população que continuará a viver naquele lugar. Em ambas as situações, é

importante que a área de relações públicas esteja atenta, não só para poder fincar seus marcos

teóricos nessa prática, mas, sobretudo, para contribuir com efetivas estratégias de

responsabilidade social de governos e empresas.

Ao escolhermos o Reveillon e o Carnaval do Rio de Janeiro, optamos em analisar a

mudança do discurso midiático em relação à cidade e sua valorização das melhorias

provenientes da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos. A mistura de eventos é proposital,

visto que este rápido estudo parece apontar para o discurso paradigmático de que a cidade está

pronta para receber grandes ajuntamentos de pessoas. Discurso construído tanto pelas

autoridades públicas como pela mídia.

Referências bibliográficas

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In CAVALCANTI, Maria Laura e GONÇALVES, Renata (orgs.). Carnaval em múltiplos planos.

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DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis. Para uma sociologia do dilema brasileiro. 6ª

ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

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FERREIRA, Felipe. O livro de ouro do Carnaval Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

KUNSCH, Margarida (org.). Relações públicas: história, teorias e estratégias nas organizações

contemporâneas. São Paulo, Saraiva, 2009.

LESSA, Carlos. O Rio de todos os Brasis. Rio de Janeiro, Record, 2000.

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