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FENOMENOLOGIA EM DEBATE ANAIS DO EVENTO em colaboração com

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FENOMENOLOGIA EM DEBATE

ANAIS DO EVENTO

em colaboração com

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Fenomenologia em Debate

17 e 18 de maio de 2018

Universidade Estadual de Londrina

Programa de Pós-graduação em Filosofia

Em colaboração com o

Central-European Institute for Philosophy (SIF)

Charles University Prague - Faculty of Humanities

ANAIS DO EVENTO

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COMMISSÃO OGRANIZADORA: Prof. Dr. José Fernandes Weber (UEL) [email protected] Prof. Dr. Hans Rainer Sepp (Charles University Prague) Dr. Giovanni Jan Giubilato (Bolsista PNPD-CAPES) [email protected] Mg. Anna Luiza Coli (Charles University Prague – BUW Wuppertal) [email protected]

ISBN: 978-85-7846-488-2

Universidade Estadual de Londrina Rodovia Celso Garcia Cid | Pr 445 Km 380 | Campus Universitário Cx. Postal 10.011 | CEP 86.057-970 | Londrina – PR

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Índice

Apresentação ............................................................................. 3

Programação ............................................................................. 6

Resumos ..................................................................................... 8

Conferências ............................................................................ 30

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Apresentação

A fenomenologia vem se afirmando na atualidade como uma das

correntes filosóficas mais inovativas, diversificadas e frutíferas no panorama

internacional da filosofia contemporânea. Isso é devido, em grande parte, à

sua capacidade de abrir pontes hermenêuticas e estabelecer diálogos com as

demais áreas da filosofia e do saber humano em geral (como as ciências

cognitivas, as neurociências, a psicologia, a sociologia e até mesmo a

medicina).

O encontro “Fenomenologia em Debate”, realizado de 17 a 19 de maio

de 2018 no Centro de Letras e Ciências Humanas da Universidade estadual

de Londrina – UEL, integra as atividades do ‘Grupo de estudo e pesquisa em

fenomenologia’, vinculado ao Núcleo de Pesquisa em Fenomenologia do

Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UEL, cujas reuniões semanais

vem contribuindo para a introdução de um espaço de trabalho sistemático

acerca da fenomenologia e de seu método, e de fórum de aprofundamento e

debate das filosofias de Husserl, Heidegger, Fink e Patočka, entre outros. O

‘Núcleo de pesquisa em fenomenologia’ surgiu a partir dos projetos de

pesquisas que há alguns semestres é desenvolvido pelo professor José

Fernandes Weber e que conta com a participação de alunos da graduação e

do mestrado. Os projetos coordenados pelo professor Weber se dedicaram a

temáticas muito próximas ao núcleo principal de problemas da

fenomenologia, como a questão da técnica e suas implicações filosóficas no

pensamento de Martin Heidegger, Peter Sloterdijk e Gilbert Simondon. Com

a participação do bolsista de Pós-doutorado PNPD-CAPES, Giovanni Jan

Giubilato, as atividades do grupo se voltaram ao estudo das bases filosóficas

e metodológicas da fenomenologia de Edmund Husserl e de seus

interlocutores diretos.

Este encontro, portanto, dá prosseguimento tanto às atividades

vinculadas à bolsa de Pós-doutorado PNPD-CAPES de Giovanni Jan

Giubilato (Projeto de pesquisa 2018 “Fenomenologia e filosofia da liberdade.

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Fundação conceitual e alcance atual”), quanto às atividades dos projetos de

pesquisa do Prof. Weber, das quais participa ocasionalmente ainda o

professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da

UEL, Eder Soares Santos. A primeira atividade de extensão ligada ao Núcleo

de Pesquisa em Fenomenologia foi o ciclo de palestras organizado no ano

acadêmico 2017 e que teve como tema a “Atualidade da fenomenologia” e a

suas interseções com a crítica da cultura, a estética e em particular com o

pensamento do pensador tcheco-brasileiro Vilém Flusser.

O objetivo maior do evento que se empreende aqui é, por um lado, o

de apresentar principalmente aos alunos de graduação e mestrado em filosofia

da UEL, mas igualmente aos alunos e aos interessados em geral, a relevância

e a abrangência dos temas e questões que constituem o escopo da chamada

“filosofia fenomenológica”. Por outro lado, contudo, é também do interesse

da comissão organizadora e dos participantes dos referidos projetos e grupos

de estudos criar um espaço para compartilhar aquilo que tivemos a

oportunidade de estudar juntos por aproximadamente um ano, e confrontar as

diferentes perspectivas surgidas daí com a produção e o estudo da

fenomenologia realizado por outros professores tanto do departamento de

Filosofia quanto de outros departamentos da UEL. O centro comum que liga

todas as apresentações é a fenomenologia em suas mais variadas concepções

e perspectivas – a fenomenologia chamada ao debate.

Esse evento conta ainda com o apoio internacional do Central-

European Institute of Philsophy – SIF [Středoevropský Institut pro Filosofii],

sediado na Charles University em Praga, República Tcheca e do professor

Hans Rainer Sepp, grande especialista na obra de Husserl e interessado na

discussão que a fenomenologia pode incitar em suas várias interseções

temáticas e interdisciplinares, além de um dos maiores divulgadores de obras

de fenomenólogos ainda pouco conhecidos e explorados, como Eugen Fink e

Jan Patočka. O SIF foi criado com o objetivo de promover a pesquisa

interdisciplinar em filosofia, e valoriza a transdisciplinaridade e o debate

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acadêmico em seus aspectos interculturais a partir de cooperações

internacionais, como a que agora estabelece com a UEL.

Aproveitamos para agradecer a todos que aceitaram participar do

evento e nos ajudaram, com isso, a dar um passo além nessa ainda breve

trajetória do Núcleo de Pesquisa em Fenomenologia.

José Fernandes Weber

Giovanni Jan Giubilato

Anna Luiza Coli

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Programação

17/05/18 - Quinta-feira, 14.00–21.30

14:00-14:45 – Filosofia, existência e finitude: Eugen Fink para além do transcendental e do factual Prof. Dr. José Fernandes Weber 14:45-15:15 – As operações de nominalização e objetificação representativa na apreensão de objetos categoriais em Husserl: apectos epistemológicos e semânticos Yuri José Victor Madalosso 15:15-16:15 – Distância e ausência no pensamento do ‘negativo’ em Eugen Fink Anna Luiza Coli (Charles University Prague – BUW Wuppertal)

Pausa 16:45-17:15 – O despertar do infinito na finitude: uma análise do jogo na obra “O Jogo como Símbolo do Mundo” de Eugen Fink Camila Ferreira Oliveira 17:15-18:15 – Cerimônia oblíqua: Nostalgia Prof. Dr. Cláudio Luiz Garcia 20:00-21:30 – Conferência de Abertura: Exercitium, experimentação, performance. A transformação fenomenológica do pensamento em Martin Heidegger Dr. Giovanni Jan Giubilato

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18/05/18 - Sexta-feira, 14.00–21.30 14:00-15:00 – A questão do conhecimento científico em Husserl e Foucault Prof. Dr. Marcos Alexandre Gomes Nalli 15:00-16:00 – Husserl/Deleuze: distinções na imagem de pensamento Prof. Dr. Américo Grisotto

Pausa 16:30-17:30 – Transicionalidade e jogo (brincar) fenomenológico Prof. Dr. Eder Soares Santos 17:30-18:00 – A Fenomenologia existencial de Martin Heidegger Douglas Giovani Ezequiel 20:00-21:30 – Conferência de Encerramento: Notas sobre uma fenomenologia da Universidade Prof. Dr. Roberto Wu (UFSC)

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RESUMOS

Organizados por ordem de apresentação

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17.05.2018

Filosofia, existência e finitude:

Eugen Fink para além do transcendental e do factual

José Fernandes Weber

Cada nova teoria filosófica expressa implicitamente, num nível mais

fundamental aos problemas que pretende resolver por meio da elaboração

conceitual, uma nova definição do que é filosofia. Quanto a isso, dois

exemplos: Husserl, em A ideia da fenomenologia, ao designar a

fenomenologia como um método e uma atitude intelectual, afirma que ela é

“a” atitude especificamente filosófica e “o” método especificamente

filosófico. Nietzsche, em A genealogia da moral, identifica o destino “da”

filosofia futura como coincidente com uma nova exigência imposta ao

pensamento, que consistirá na tarefa de avaliar o valor dos valores. Para

Husserl, doravante, filosofia será fenomenologia; para Nietzsche, genealogia.

Assim sendo, a definição do que é método e atitude, para o primeiro, ou

moral, para o segundo, não é uma operação conceitual restrita à solução de

problemas localizados sendo, antes, a própria concreção do esforço de dizer

o que é “a” filosofia. Paralelamente, na distinta maneira como ambos

concebem filosofia, opera uma distinta compreensão de existência. Se, para

Husserl, a atitude fenomenológica se expressa como uma nova atitude, o

“conceito operatório” (Fink) que educa fenomenologicamente a inteligência

é a epoché (Ideias, §32). Dela decorre a hipótese da aniquilação do mundo

(Ideias, §49): se o mundo fosse aniquilado, o ser da consciência seria

modificado, mas não alterado em sua existência. Portanto, existência é um

índice formal, cujo sentido recai sobre a dimensão transcendental da

consciência. Já em Nietzsche, o ponto de partida inegociável da genealogia,

uma espécie de signo de probidade intelectual, é o reconhecimento da

inseparabilidade entre o humano e a natureza. Em virtude de sua “natureza

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não fixada”, o que o leva a planos aparentemente não naturais, “o ser humano,

em suas mais elevadas e nobres capacidades, é totalmente natureza,

carregando consigo seu inquietante duplo caráter” (A disputa de Homero).

Aqui, existência é o modo de ser da efetividade humana, inseparável do corpo

e das suas pulsões constitutivas, e embora não seja meramente fáctica, tem no

factual um domínio constitutivo incontornável. A partir destas antagônicas e

excludentes compreensões de filosofia e existência, buscar-se-á mostrar a

maneira como Eugen Fink, em sua obra Fenômenos fundamentais da

existência humana, recusa tanto uma fundamentação metafísica ou

transcendental da atividade filosófica e da existência humana quanto uma

compreensão da filosofia e do humano como atividade meramente fáctica de

um ente fáctico. Ao pensar a existência a partir da noção de fenômeno, Fink

põe fora de circulação a tradicional opção interpretativa que consiste em

pensar a atividade filosófica e o humano a partir da disjuntiva: ou

transcendental, ou factual. No §1 da referida obra, Fink afirma que “a essência

da existência humana não pode ser apreendida por uma abstração da

realidade. A realidade de nossa existência é o pressuposto de nossas

distinções entre essência e factum”. Tal como em Husserl e Nietzsche,

também em Fink a compreensão de um problema situado num lócus

específico já supõe uma compreensão do que é filosofia, a saber: “pensar

finito, uma possibilidade finita da existência finita”, portanto, conhecimento

da própria finitude. Dessa maneira, em Fink, finitude é o ponto de amarração

de filosofia e existência.

Palavras-chave: Fink. Filosofia. Existência. Finitude.

* * *

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As operações de nominalização e objetificação representativa na

apreensão de objetos categoriais em Husserl: aspectos epistemológicos e

semânticos

Yuri José Victor Madalosso

O objetivo geral desta comunicação é explicitar, no contexto das

Investigações Lógicas, a constituição dos objetos categoriais através da

tematização das nominalizações e objetificações representativas.

Especificamente, busca-se clarificar os principais problemas semânticos e

epistemológicos pertinentes a estas operações. Além disso, o objetivo é

também mostrar os limites destas operações na construção de sínteses de

preenchimento e identificação categoriais complexas. Por fim, busca-se

problematizar os conceitos de conteúdo e fundação, de modo que os

resultados das reconstruções anteriores sejam avaliados conforme a estrutura

teórica das Investigações e o modo como Husserl enfrenta as dificuldades

desta obra. Como hipótese de interpretação destes problemas, defende-se que,

para justificar epistemologicamente sínteses de identificações categoriais

complexas, é necessário reconsiderar a fundação dos preenchimentos

categoriais com base na variabilidade das nominalizações e objetificações

representativas. Para sustentá-la, primeiramente será feita a reconstrução dos

conceitos das operações acima apresentadas na Quarta e Quinta Investigação.

Em seguida, será efetuada a reconstrução da teoria da intuição categorial e a

constituição dos objetos correlatos exposta na Sexta Investigação. Logo após,

serão expostos os problemas referentes às sínteses de preenchimentos e

identificações categoriais e os critérios respectivos a preenchimentos em

geral; aqui, o trabalho de clarificação se torna complexo ao tematizar as

operações dadas na matéria intencional, que são o objeto de estudo desta

comunicação. Em continuidade, será problematizado o conceito de

“conteúdo” empregado por Husserl, coligado tanto com as operações

intencionais tematizadas aqui quanto com as acepções epistemológicas e

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ontológicas dos conceitos de “fundação” e “dependência”. Confronta-se,

neste ponto, a avaliação do próprio Husserl com relação aos problemas

principais da epistemologia das Investigações. Enfim, as consequências a

serem avaliadas aqui serão: a) como os conceitos de evidência e verdade

devem ser trabalhados nestas relações complexas e b) as implicações, no

conceito de “existência ideal”, de preenchimentos em níveis categoriais

superiores.

Palavras-chave: Modificação significativa. Objetificação representativa.

Síntese. Intuição categorial. Conteúdo.

* * *

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Distância e ausência como figuras do ‘negativo’

na filosofia meôntica de Eugen Fink

Anna Luiza Coli

(Charles University Prague – BUW Wuppertal)

Desde suas primeiras formulações, a filosofia meôntica de Eugen Fink

procura pensar o problema da impossibilidade de um discurso positivo a

respeito do que não se apresenta à nossa experiência como doação direta aos

sentidos. Além de recorrer à definição kantiana da ‘dialética transcendental’

para pensar o não-dado, Fink se dedica também à questão do negativo e de

todo o espectro metafísico necessariamente envolvido na determinação de

algo como me-on, ou seja, não como a negatividade ‘negativa’ ou a nadidade,

mas enquanto negação da identidade fixa e permanente que impede a criação

e a manifestação do outro ‘inerente’ ao ‘mesmo’. A filosofia meôntica (de

me-on, não-ente), portanto, arrisca-se no terreno árido de questões como o

absoluto e a origem para repensar os pressupostos da fenomenologia

husserliana e, dentre eles, o problema do mundo. A presente contribuição tem

por objetivo apresentar as figuras da ‘distância’ e da ‘ausência’ como fio

condutores de uma proposta interpretativa da figura do negativo nos dois

volumes de notas de estudo recentemente publicados nas obras completas de

Fink. Essas notas – que acompanham e testemunham os bastidores de parte

importante de seus escritos de 1927 a 1935, dentre os quais a famosa 6ª

Meditação Cartesiana – nos permitem retraçar as primeiras formulações de

Fink acerca da intrusão do ‘negativo’ em toda positividade que se estabeleceu

como objeto da fenomenologia. Nesse sentido, essas primeiras formulações

tomam uma distância metodológica clara em relação ao trabalho que Fink

vinha desenvolvendo junto a Husserl, como seu último assistente, e são elas

que nos permitem, por sua vez, compreender as reviravoltas que só

posteriormente à morte de Husserl e ao fim da Segunda Grande Guerra se

fizeram notáveis em sua filosofia cosmológica. Distância e ausência são duas

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figuras do negativo que nos permitem compreender a articulação que o jovem

Fink elaborou entre os problemas da fenomenologia e os fundamentos da

cosmologia que caracterizou seu pensamento tardio por introduzir de maneira

mais clara, nesses primeiros anos, o problema das totalidades contingentes

que, conquistadas numa tomada de “distância meôntica”, nos permitem

atribuir sentido filosófico ao que se nos apresenta à experiência tanto como

dado quanto como não-dado. Essa articulação, não por acaso, assumiu-se

como o problema do ‘mundo’ e arrastou consigo os conceitos centrais de

‘origem’ e ‘absoluto’ para formar a base da filosofia meôntica de Eugen Fink.

A hipótese interpretativa do trabalho, no entanto, consiste em mostrar que o

elemento central dessa articulação reside no problema do negativo, e que

somente à luz da negatividade específica de que se valeu Fink – não sem uma

grande ajuda da lógica hegeliana – podemos encontrar as bases de sua

filosofia cosmológica.

Palavras-chave: Distância. Ausência. Totalidade. Filosofia meôntica.

Mundo.

* * *

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O despertar do infinito na finitude: uma análise do jogo na obra

“Jogo como Símbolo do Mundo” de Eugen Fink

Camila Ferreira de Oliveira

Este trabalho objetiva realizar uma análise do jogo na obra Jogo Como

Símbolo do Mundo, de Eugen Fink. Nesse livro, Fink reivindica a

possibilidade de uma abordagem filosófica do jogo e se propõe a pensar esse

tema para além dos contornos estabelecidos pela metafísica tradicional por

meio da filosofia platônica, a qual concebe o jogo como uma mera reprodução

da realidade. É a partir desse contexto que Fink desenvolve a sua interpretação

do jogo como uma abertura extasiante do ser humano em relação ao mundo,

como símbolo do mundo. Apesar de sua significativa contribuição para o

pensamento filosófico do século XX e início do século XXI, a filosofia de

Fink ainda permanece sendo pouco estudada sob o ponto de vista de sua

singularidade. Tendo esses pressupostos como base e recorrendo à

reconstrução dos argumentos do autor como método, o texto aqui apresentado

segue em diálogo com a organização da obra em estudo, na qual Fink

desenvolve sua investigação sobre o jogo por meio de três noções

estruturantes: a totalidade, a medialidade e a noção de símbolo. Ao

estabelecer um contexto que opera através de suas próprias regras no qual o

ser humano explora a sua capacidade de constituir sentido, o jogo é ele mesmo

“sentido de totalidade”, pois indica o modo como os seres humanos se

comportam em relação ao mundo e também o modo como opera o próprio

jogo do mundo. O contexto estabelecido pelo jogo, ou seja, o mundo do jogo,

funda uma realidade intermediária entre o real e o não-real pois promove a

abertura do irreal na realidade, estabelece, portanto, uma “realidade medial”.

O jogo é símbolo do mundo pois a partir de sua própria dinâmica permite que

o ser humano experiencie a dinâmica do todo do mundo, ou seja, por meio da

experiência do jogo mundano o ser humano se reconhece como parte do jogo

do mundo. Neste sentido, Fink compreende o jogo como uma abertura

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extasiante para o mundo, como manifestação do infinito do mundo no ser

humano finito. O ser humano joga, portanto, quando por meio da liberdade e

da desmesura da irrealidade do mundo do jogo, experimenta, mesmo que por

um breve instante, o “poder do todo do mundo”.

Palavras-chave: Fink. Jogo. Mundo. Símbolo. Ser humano.

* * *

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Cerimônia oblíqua: Nostalgia

Cláudio Luiz Garcia

A proposta consiste, concretamente, em uma tela de tecido transparente e leve

esticada na sala escura, como um lençol no varal. Na tela será projetado um

trecho do filme NOSTALGIA, de Andrei Tarkovski. Atrás dela, um

ventilador ligado dará movimento ao tecido. Alguns artistas entrarão na sala

com velas acesas; acenderão as apagadas que já foram distribuídas entre os

participantes quando entraram na sala. Durante a projeção os “artistas” farão

alguma ação com água. O público poderá interagir ou não. Assim, a instalação

estará completa, em trinta minutos, quando o som e a imagem do filme, as

luzes das velas e os “atores” mexendo na água configurarem a proposta.

O objetivo consiste em oferecer elementos visuais e textuais para uma

conversa sobre fenomenologia, na Cerimônia Oblíqua. Diante de um

problema insolúvel, o enfrentamento acontecerá no caminho oblíquo, pois é

no atalho que o mistério aparece. Assim, a Cerimônia não visa à demonstração

nem à solução do problema ora em questão, mas à aproximação das dúvidas

que temos em relação ao papel da arte na universidade. O trecho do filme

consiste em cena em que a protagonista entra em uma capela na qual Piero

Della Francesca (1416 – 1402) pintou o afresco Madonna del Parto (1455).

No diálogo entre ela e o padre, percebe-se uma luta entre o ceticismo e a fé,

entre o desejo e a negação, entre a vida mundana e a religiosa, entre a

melancolia e a simplicidade, entre a arte e a religião. A seguir, resumimos

alguns diálogos.

"Veio rezar para ter um bebê também? Ou para não tê-lo?" / "Só estou

olhando." / "Se houver algum estranho só olhando, a súplica não

acontecerá." / "O que deve acontecer?" / "O que quiser, o que precisar

muito." / "Mas tem que ficar de joelhos."

Hesitante diante da ordem do padre, a personagem tenta se ajoelhar, mas não

consegue. Nesse momento, entra um corso com uma Santa que é depositada

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no chão, diante da qual uma mulher se ajoelha. O diálogo prossegue: "Não

posso. Elas fazem desse jeito. Elas estão acostumadas." / "Elas têm fé." /

"Devem ter."

A personagem aproxima-se do padre: "Posso perguntar uma coisa?" /

"Segundo você, por que só as mulheres rezam tanto?" / "Pergunta isso para

mim?"/ "Você vê muitas mulheres aqui, deveria saber o porquê." / "Sou

somente um sacristão." / "Mas por que as mulheres são mais devotas que os

homens?" / "Você deveria saber mais do que eu."/ "Porque sou mulher?

Mas isto eu nunca entendi."/ "Sou um homem simples, mas penso que a

mulher serve para ter filhos, criá-los com paciência e sacrifício."/ "E não

serve mais para nada?"/ "Eu não sei."/ Entendi, obrigada. Foi de grande

ajuda." / "Perguntou-me o que penso. Você quer ser feliz, mas existem

coisas mais importantes. Espere!"

O foco da câmera muda em direção às mulheres que estão rezando

diante da Madonna, à fantasia sobre o andor e ao afresco de Piero Della

Francesca. Finda a reza, a mulher de fé, que deseja um filho, abre o manto e,

nesse momento, saem de dentro da santa vários pássaros. O ambiente é

iluminado por uma claraboia e por velas.

Assim, a proposta visa a trazer alguns elementos do trecho do filme

para a sala de aula, ou seja, para a realidade onde a conversa sobre

fenomenologia acontecerá de um modo oblíquo. Amém.

Palavras-chave: Nostalgia. Fenomenologia.

* * *

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Exercitium, experimentação, performance.

A transformação fenomenológica do pensamento em Heidegger

Giovanni Jan Giubilato

A intenção das minhas reflexões é a de apresentar as grandes linhas temáticas

e as chaves interpretativas fundamentais de uma aproximação da filosofia de

Martin Heidegger que, a partir de uma elucidação da sua peculiar

reinterpretação e reapropriação de alguns conceitos (ou ferramentas teóricas)

próprios da fenomenologia de Husserl, pretende destacar a importância da

dimensão performativa, prática e experimental. Em geral, elas se inscrevem

no contexto mais amplo de uma confrontação com determinada crítica a

Heidegger – formulada paradigmaticamente por Habermas – que o considera

como o ponto mais extremo daquela linha de pensamento que assume um

ideal antidiscursivo, contrário à argumentação racional e à sua determinação

ética, e que, em última instância, revelar-se-ia como um intuicionismo

esotérico e extralinguístico. Contudo, apesar do incontestável carácter

anticonceitual, antiteoreticista, monológico, exclusivo e até autoritário do seu

filosofar, a inclusão inapelável de Heidegger no processo contemporâneo da

“estetização da teoria” peca por não deixar nenhum espaço a uma reflexão

positiva sobre esta novidade “estética” e sobre esta tão incômoda mudança de

perspectiva.

O propósito, portanto, consiste em ao menos indicar a direção e

sugerir uma possibilidade interpretativa da obra de Heidegger que considere,

séria e filosoficamente, a sua praxis filosófica experimental, constantemente

dirigida à renovação e à transformação das formas do discurso filosófico,

incluindo todos aqueles âmbitos extrafilosóficos, anticlássicos e ultratextuais

que se confrontam com as práticas artísticas, como por exemplo a

performance e a instalação. Levando em consideração os numerosos

elementos do corpus heideggeriano que demostram uma atenção muito

particular e seguramente consciente para a dimensão performativa do

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discurso filosófico, além da vontade de renová-lo e repensá-lo na época da

dominação planetária da técnica através de uma autêntica experimentação

com as formas e com o medium do dizer filosófico, a pesquisa sobre esta

mudança de registro expressivo e conceitual aborda 1. as origens

fenomenológicas da crítica heideggeriana à filosofia tradicional e a sua

concepção enquanto θεωρία; 2. o conceito de Vollzugssinn, ou sentido da

execução; 3. o esquecimento da questão acerca do “como” da filosofia; 4. a

preparação de um “outro pensar” que não seja mais filosofia e que seja,

“muito mais simples que ela na sua própria coisa, mas muito mais difícil na

execução”; 5. os vários elementos constitutivos deste pensar que chegam a

coincidir com o seu exercício, com a sua prática e a sua encenação

performativa.

Palavras-chave: Estetização da teoria. Performance. Execução. Discurso

filosófico.

* * *

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18.05.2018

A questão do conhecimento científico em Husserl e Foucault

Marcos Nalli

É fato notório que tanto Husserl quanto Foucault jamais se pretenderam

epistemólogos. Jamais a ciência foi seu objeto privilegiado de investigação.

Entretanto, também é fato publicamente reconhecido que tanto um quanto o

outro sempre tematizaram a questão da ciência de uma forma metódica e

constante, ainda que por motivos circunstanciais. É o que o próprio Foucault

atesta, por exemplo, ao justificar a preponderância temática da ciência, a

despeito de outros possíveis objetos da investigação arqueológica

(FOUCAULT, L’Archéologie du Savoir, p. 252). E parece-me que em

Husserl se dá algo similar, na medida em que sua leitura da ciência tem papel

capital para, dentre outras possibilidades, conferir à Filosofia um estatuto

científico – o que se pode conferir sem maiores problemas em sua A Ideia da

Fenomenologia (1907). Em suma: ainda que nem Husserl e nem Foucault

fossem epistemólogos ou filósofos da ciência – conceitos entre os quais não

fazemos aqui nenhuma distinção cabal –, ambos sempre se voltaram

tematicamente sobre a ciência.

O objetivo geral dessa comunicação é apresentar de que modo

Foucault – notadamente em Histoire de la Folie (1961/1972) – se vale da

filosofia de Husserl para produzir seu modo próprio de pensar a questão do

conhecimento científico, principalmente a partir da constituição da loucura

como objeto da psiquiatria, isto é, como doença mental.

Foucault nos mostra que a objetivação, a constituição de um objeto

epistemológico se dá de uma forma não-científica, isto é, por “atos

objetivantes” não-cognitivos, como no caso da loucura, de natureza ética. Ou,

dito de uma forma, que pode ser compartilhada terminologicamente tanto por

Foucault quanto por Husserl (embora talvez não o possa em termos

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conceituais), a objetivação da loucura é possível graças a uma percepção e

uma modalidade de consciência que, embora objetivantes, não são cognitivas,

mas sim éticas. E, como falamos antes, dado que o conhecimento vem por

assim dizer a posteriori, ele só pode ser interpretado como ato judicativo, mas

não como objetivante. Também se deve notar que, diferentemente da

dinâmica cognitiva que Husserl estabelece com sua teoria do preenchimento,

Foucault evita a crença numa continuidade de complemento e ampliação

gradativa do conhecimento acerca de um objeto dado. Pelo contrário, sua

teoria da objetivação da loucura, ou sua história do referente, se processa

como um mecanismo constante – mas descontínuo, porquanto imprevisível

em seus resultados e consequências – de dissolução e reorganização

semântica.

Palavras-chave: Ciência. Objeto epistemológico. Loucura. Foucault.

Husserl.

* * *

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Husserl/Deleuze: distinções na imagem de pensamento

Américo Grisotto

A filosofia pode ser definida como a teoria das multiplicidades. E Deleuze,

em O Atual e o Virtual, esclarece esta abordagem dizendo que toda

multiplicidade implica elementos atuais e elementos virtuais. Tal enfoque

coloca em relevo tanto a inexistência de objetos puramente atuais, quanto a

noção de que todo atual se envolve de uma névoa de imagens virtuais. Com

efeito, para a filosofia deleuzeana, as fenomenologias, bem como todas as

filosofias, embora tenham se atualizado num dado momento do pensamento

filosófico, guardam virtualidades. Estas imagens virtuais armazenadas trazem

a potência de uma oposição, de uma resistência e enfretamento face ao objeto

atual do que significa pensar. Através das camadas virtuais podemos dizer,

no caso particular desta comunicação, que o atual fenomenológico tende a

tornar-se, por sua vez, virtual. Neste aspecto ainda, podemos afirmar que a

fenomenologia guarda dentro de si um segundo, um terceiro, um quarto,

múltiplos nascimentos, o que significa dizer que possibilidades outras da

filosofia podem nascer desta filosofia. De outro modo, todas as filosofias

guardam as potências de suas virtualidades e não poderiam, em hipótese

alguma, serem vitimadas pelos incitamentos degenerativos do pensamento.

No caso particular da filosofia deleuzeana, as virtualidades do enfoque

fenomenológico permitiram ao filósofo francês atualizações. E isto não

significa que este pensamento não fez senão contemporizar esta perspectiva.

Pelo contrário, há conceitos, situações/problema desenvolvidas por Deleuze,

a partir de Husserl, que não são trabalhadas como tais por este pensador. Ou

seja, não se trata de justificar a importância ou o papel de um conceito, ou

situação/problema em uma obra, mas em mostrar a sua pertinência

elaborando-os por eles mesmos graças a uma obra. E isto porque Deleuze,

por um lado, sempre rejeitou qualquer tipo de justificação dos problemas e

dos conceitos em uma obra. Para ele este tipo de ação inibe a força desta obra

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e, por outro, este filósofo francês não se confessa um adepto da totalização,

uma vez que esta tende a fechar o passado decretando a morte do novo no

pensamento. Em se tratando das considerações e utilizações deleuzeanas

quanto à fenomenologia e precisamente em relação a um de seus

representantes, Edmund Husserl, um dos conceitos de que o pensador francês

se utiliza, no tópico Da proposição, na obra Lógica do Sentido, é o de noema.

E no momento oportuno de desenvolvimento deste trabalho, trataremos de

desenvolver as necessárias deferências. Por outro lado, como já

mencionamos, embora haja este mostrar da pertinência de um conceito

elaborado por ele mesmo graças a uma obra e não simplesmente justificando

sua importância ou o papel em uma obra já posta, há elementos de rivalidade

entre a fenomenologia e o pensamento deleuzeano. Conquanto Deleuze

rebatize conceitos e problemas da fenomenologia, o que ele busca são,

propositalmente, desvios: aqueles diametralmente opostos àquilo que

rebatizou. Digamos que almeja se distanciar da hermenêutica em prol da

experimentação. Na sua visão, a fenomenologia tem certa dificuldade de

romper com as formas do senso comum. A propósito, o novo em filosofia é

sempre distinto para Deleuze. Sua filosofia, mesmo se apropriando do

pensamento fenomenológico, o faz obliquamente: retirando-lhe os

fundamentos. São imagens distintas do que significa pensar. Daí os elementos

a serem desenvolvidos aqui e que passam, como pano de fundo, por uma

problemática envolvendo tanto a constituição do sujeito transcendental

quanto a sua desconstrução, isto é, o sujeito e a consciência sendo gerados na

dimensão intrínseca de um plano de imanência e não mais segundo a categoria

dos universais, da essência, do fundamento, do eu unificado. As obras que

serão passadas em revista transitam, do lado husserliano, pelas Meditações

Cartesianas, Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia

fenomenológica; do lado deleuzeano, pelas proposições da obra Lógica do

Sentido, contando, em ambos os casos, com os comentários da tese de

doutorado Como sair da ilha da minha consciência: Gilles Deleuze e uma

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crítica à subjetividade transcendental em Edmund Husserl, de Alex Fabiano

Correia Jardim.

Palavras-chave: Deleuze. Husserl. Virtualidade, Imagens de pensamento.

* * *

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Transicionalidade e jogo (brincar) fenomenológico

Eder Soares Santos

A fase da transicionalidade está caracterizada, para Winnicott, pela presença

de objetos e fenômenos transicionais. Isto quer dizer que o objeto, percebido

objetivamente por nós, será subjetivo para o bebê, pois é criado por ele como

se fosse uma espécie de alucinação. Sendo assim, a mãe deve apresentar os

objetos ao bebê no momento adequado, a fim de que ele, em alucinando um

objeto (punho, dedos, pulso etc), crie a ilusão de que este pôde ser criado e

de que o que é criado é o mundo. O que se percebe aqui é que os objetos

estão lá na natureza porque eles foram criados por mim e por qualquer outro

dentro de um mundo subjetivo igualmente criado. Há uma espécie de jogo,

de brincadeira com os fenômenos que se realiza a partir da relação dual e

inicial mãe-bebê. Num primeiro momento, é possível se pensar que a

passagem do mundo dos objetos subjetivos para o mundo dos objetos

objetivos seja impossível, já que cada um se sustenta em "realidades"

diferentes. Tal impossibilidade é, realmente, apenas aparente. Essa

passagem, na verdade uma transição, é feita através de um espaço

intermediário, uma "ponte", um espaço potencial ou de uma terceira área do

que existe (third area of exisiting), pois “o bebê ainda não tem o sentido do

que é externo ou do que é interno, o lugar da relação é um ‘entre’”, em que

se pode jogar/brincar com os fenômenos se ser necessário requisitar sua

realidade ou validade.

A transicionalidade nos indica outro fenômeno que nos remete ao

essencial sentido de ser enquanto um poder-ser um si-mesmo (self), isto é,

remete à possibilidade de se ser um eu (me) integrado e unitário. Trata-se de

se poder dizer: “eu sou”.

Palavras-chaves: Winnicott, transicionalidade, fenomenalidade, jogo,

brincar.

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A fenomenologia existencial de Martin Heidegger

Douglas Giovani Ezequiel

Em 1927, Martin Heidegger publicou Ser e Tempo, sua mais influente e mais

polêmica obra. Nela o filósofo traz à tona conceitos que até então não haviam

sido tratados pela Fenomenologia. Depois de as discussões metafísicas terem

perdido forças no século XX, Heidegger paradoxalmente coloca-se a tarefa

de “destruição da metafísica”, ao mesmo tempo em que se empenha em

recolocar a questão essencial à Filosofia desde os seus primórdios, que

segundo ele, a tradição filosófica não esteve em condições de colocá-la de

modo adequado: a pergunta pelo Ser. Para Heidegger, o grande erro da

tradição filosófica foi ter tentado determinar o que significa “Ser”, em sua

multiplicidade de aparições ao pensamento, sem definir antes a essência deste

ente que é capaz de colocar tal questão. O seu projeto fenomenológico

privilegiou o “Dasein”, um conceito criado a fim de distinguir o simples ente

humano, visto pela tradição como uma dualidade de corpo e alma, e o ente

apto a compreender seu próprio ser, caracterizando-se como uma

antropologia existencial. Com esta distinção, o filósofo se desvia dos

equívocos aos quais uma interpretação do Ser metafísica poderia conduzir. A

condição prévia para se elaborar satisfatoriamente a questão do ser é a análise

dos modos como este ente, o Dasein, “é” no mundo, ou seja, como ele existe

no cotidiano. No projeto heideggeriano, este método fenomenológico foi

chamado de “analítica existencial”, um dos pontos centrais de Ser e Tempo e,

portanto, indispensáveis para a sua compreensão. O objetivo da apresentação

consiste em apresentar as características da “analítica existencial” de Ser e

Tempo, a sua importância na investigação pelo sentido do Ser, bem como os

principais conceitos usados por Heidegger, como Dasein, hermenêutica,

existência, modos de ser, mundo, fenômeno. Complementarmente, buscar-se-

á explorar a concepção de fenomenologia implícita na obra, com a intenção

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de avaliar a importância do pensamento de Heidegger na Filosofia do século

XX.

Palavras-Chave: Heidegger. Dasein. Analítica Existencial. Fenômeno.

Fenomenologia.

* * *

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Notas sobre uma fenomenologia da Universidade

Prof. Dr. Roberto Wu

(UFSC)

O objetivo da palestra é apresentar as bases de uma estruturação

fenomenológica para discutir a universidade. Em primeiro lugar, serão

examinados: a) os traços principais do assim chamado modelo Humboldtiano

de universidade, b) a concepção proposta por Karl Jaspers sobre a ideia da

universidade, e c) as contribuições de Jürgen Habermas sobre o assunto.

Disso resulta uma discussão sobre o sentido de idealidade que subjazerá aos

argumentos subsequentes e uma comparação entre as concepções normativas

e fenomenológicas de universidade. Em segundo lugar, a comunicação

propõe uma concepção de visibilidade como uma chave interpretativa para

discutir a universidade. Esta visibilidade consiste no resultado do modo como

coordenadas de interpretação articulam sentido em diversos níveis de estratos

fenomenológicos. Em terceiro lugar, explora-se os diferentes modos em que

assuntos ganham visibilidade na universidade, tomando como exemplo a

análise de temas como a extensão universitária e as ocupações das

universidades públicas em 2016 no Brasil. Por fim, a comunicação conclui

relacionando o conceito de visibilidade com uma concepção fenomenológica

de autocompreensão.

Palavras-chave: visibilidade, ocupação, idealismo.

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CONFERÊNCIAS

Organizadas por ordem de apresentação

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FILOSOFIA, EXISTÊNCIA E FINITUDE: EUGEN FINK PARA

ALÉM DO TRANSCENDENTAL E DO FACTUAL

José Fernandes Weber

Cada nova teoria filosófica expressa implicitamente, num nível mais

fundamental aos problemas que pretende resolver por meio da elaboração

conceitual, uma nova definição do que é filosofia. Dito de outro modo: cada

teoria filosófica, mesmo quando a isso não se propõe, apresenta, a seu modo,

uma definição particular, dada em nome próprio, do que é filosofia, mas, ao

mesmo tempo, também fornece indicações sobre o que é requerido, sobre o

que deve ser evitado, para a instauração de um autêntico ato de filosofar. Dito

em linguagem fenomenológica: a atitude requerida ao filosofar. Daí ser

possível afirmar que para a fenomenologia, filosofia é uma questão de atitude!

Em A ideia da fenomenologia, à “atitude intelectual/espiritual

natural”, Husserl contrapõe a fenomenologia, assim definida: “[...] uma

ciência, uma conexão de disciplinas científicas; mas, ao mesmo tempo e

acima de tudo, ‘fenomenologia’ designa um método e uma atitude intelectual;

a atitude intelectual especificamente filosófica, o método especificamente

filosófico” (HUSSERL, 1990, p. 46). A mútua implicação e dependência entre

método e atitude fenomenológicos constitui um ethos próprio do

fenomenólogo enquanto pesquisador, um modo de ser no qual vige a recusa,

tanto da atitude intelectual/espiritual natural, o psicologismo da orientação

natural, mas também do cientificismo. É na noção de Epoché, vertida para o

vernáculo como redução, que se expressa a conexão entre método e atitude.

No § 32 de Ideias I, Husserl caracteriza a Epoché como uma operação

radical de restrição, uma “exclusão fenomenológica” (HUSSERL, 2006, p.

84), que consiste em interditar a aceitação das evidências contidas nas teses

da orientação natural, mas também nas proposições das ciências: “Não me

aproprio de uma única proposição sequer delas” (Idem, p. 81), diz ele.

Assim, a redução expressa uma dupla recusa: “Colocamos fora de ação a tese

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geral inerente à essência da orientação natural” (Idem, ibidem); e “Tiro,

pois, de circuito todas as ciências que se referem a esse mundo natural”

(Idem, Ibidem)1. Disso surge uma inevitável questão, que o próprio Husserl

(Idem, p. 86) se põe: “O que pode, pois, restar, se o mundo inteiro é posto

fora de circuito, incluindo nós mesmos com todo nosso cogitare?”. Resta a

“[...] evidência de que a consciência tem em si mesma um ser próprio, o qual

não é atingido em sua essência própria absoluta pela exclusão

fenomenológica” (Idem, p. 84). Portanto, a Epoché cria as condições para a

aparição da evidência do modo imanente de ser da consciência.

A radicalização destas teses é formulada de modo emblemático no §

49 de Ideias I, por meio da formulação da “hipótese da aniquilação do mundo

[Weltvernichtung]”.

[...] o ser da consciência, todo fluxo de vivido em geral, seria necessariamente modificado por uma aniquilação do mundo de coisas, mas permaneceria intocado em sua própria existência. […] nenhum ser real, nenhum ser que se exiba e ateste por aparições à consciência, é necessário para o ser da própria consciência (no sentido mais amplo do fluxo do vivido). […] Um verdadeiro abismo de sentido se abre entre consciência e realidade. Aqui, um ser que se perfila, que não se dá de modo absoluto, mas meramente contingente e relativo; lá, um ser necessário e absoluto, que não pode por princípio ser dado mediante perfil e aparição. […] está claro, portanto, que a consciência, considerada em sua ‘pureza’, tem de valer como uma conexão de ser fechada por si, como uma conexão do ser absoluto, no qual nada pode penetrar e do qual nada pode escapulir; que não tem nenhum lado de fora espaço-temporal e não pode estar em nenhum nexo espaço-temporal, que não pode sofrer causalidade de coisa nenhuma, nem exercer causalidade sobre coisa nenhuma (HUSSERL, 2006, p. 115-116).

1 A este respeito, conferir o esclarecedor §15 da Meditações cartesianas, intitulado Reflexão

natural e transcendental (HUSSERL, 2010, pp. 81-84).

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Importa perceber nesta passagem, que a hipótese da aniquilação do mundo

não é um passatempo de um cético, levado a cabo por uma lógica imaginativa,

nos moldes da primeira das Meditações de Descartes. Diz Husserl (Idem, p.

81), “[...] não nego este ‘mundo’, como se eu fosse um sofista, não duvido de

sua existência, como se fosse cético, mas efetuo a Epoché ‘fenomenológica’,

que me impede totalmente de fazer qualquer juízo sobre existência espaço-

temporal”. Trata-se, portanto, de reter “[...] somente o fenômeno de ‘por entre

parênteses’ ou ‘tirar de circuito’” (Idem, p. 80). Portanto, pôr fora de ação,

tanto os juízos quanto o assentimento aos juízos. Numa conferência nos

famosos Colóquios de Royaumont, em abril de 1957, intitulada Os conceitos

operatórios na fenomenologia de Husserl, Eugen Fink (1994, p. 63) assinala

que “Pelo método da ‘redução’, Husserl abre o campo da subjetividade

absoluta que, nos seus processos vitais de natureza intencional, ‘edifica’ toda

objetividade mundana”.

Portanto, a denominação, feita por Husserl (2010, p. 15) no parágrafo

de abertura das Conferências de Paris, segundo a qual a fenomenologia seria

“[...] um novo Cartesianismo, um Cartesianismo do século XX”, não é mera

frase de efeito para agradar a plateia parisiense. Será, ao juízo de Husserl, um

cartesianismo consequente com a enorme intuição de Descartes, agora,

porém, livre da pressuposição do ideal de ciência que acabou se esgueirando

pela porta dos fundos, operando como estrutura oculta para a edificação do

edifício cartesiano do saber. A questão: se à Husserl também não preside um

ideal de ciência e de conhecimento, não será aqui abordada.

Jan Patocka (1999, p. 398), num breve, mas esclarecedor texto sobre

Heidegger, sustenta que “Husserl busca, com a ajuda da redução

fenomenológica, mostrar que, num verdadeiro sentido filosófico, os

fenômenos são relativos à subjetividade transcendental, por meio da qual se

alcança a suspensão da crença no mundo, a suspensão da ‘tese geral da

orientação natural’. O ponto de vista de Heidegger me parece ser a única

resposta radical ao pensamento altamente especulativo da redução”. Por essa

razão, segundo Patocka, o sentido da ontologia fundamental de Heidegger

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consiste em mostrar fenomenologicamente que “[...] a fenomenologia

transcendental, do modo como Husserl a compreendeu, é impossível” (idem,

Ibidem). E isso pelo simples fato de que “A ‘crença no mundo’ não é uma

crença; a tese geral, nenhuma tese geral que pudessem ser suspendidas

intelectualmente” (Idem, Ibidem), pois, tanto a crença quanto a orientação

natural se dão a partir do fenômeno da facticidade do Dasein, e não, como

queria Husserl, da estrutura intencional da consciência. Vê-se, portanto, que

a crítica de Heidegger à Husserl mostra-se como uma recusa da noção

husserliana de Epoché. Se a atitude fenomenológica requerida por Husserl,

instituía-se em consonância com a Epoché, a crítica heideggeriana da noção

de redução terá efeitos significativos sobre a compreensão do que seja a

atitude própria ao filosofar, donde surge uma nova compreensão de atitude e

da própria filosofia: apreender o sentido de ser do Dasein como ser-no-

mundo. Sem isso, diz Patcoka (1999, p. 399), “[...] nada somos, não

existimos”. Dar abertura à facticidade em que é manifesta a finitude como

modo de ser do Dasein, eis a nova atitude. Nos últimos anos, Heidegger

concebe tal atitude como coincidente com um pensar meditativo, um abrir-se

à aparição do mundo, um modo de estar à espreita, à espera. Pensar

meditativo, pensamento poético, intimidade, proximidade, simplicidade,

abertura-clareira-iluminação, silêncio, quadratura (céu, terra, mortais,

imortais) todas elas noções do “último Heidegger”, antes de serem imagens,

noções, metáforas, figuras conceituais ou noções de pensamento, são

disposições, “tonalidades afetivas fundamentais” (Stimmungen), atitudes, de

quem pensa originariamente, nas quais já não opera a distinção formal entre

o teórico e o prático, às quais também são impostas restrições, interdições,

que também exigem preparação, enfim, exercício, as únicas que

possibilitariam acesso a um pensar que não seria mais representacional.

Portanto, nestas distintas compreensões de atitude aparecem duas

compreensões distintas de fenomenologia e de filosofia. Ambas posições

expressam a compreensão da filosofia como uma atitude que exige zelo e

constância, expressa como exercício, sempre novamente reposto, iniciado a

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cada momento, e que cria um modo de vida, o que autorizaria a concluir que

a fenomenologia retoma ao seu modo o antiquíssimo problema da filosofia

como exercício e cuidado de si, embora em outra chave interpretativa.

*********

Eugen Fink, autor referido no título, no semestre de verão de 1955, ministrou

um curso, apenas publicado postumamente em 1979, sobre Os Fenômenos

fundamentais da existência humana2. Nele, Fink – que foi assessor de Husserl

na década de 30, mas também manteve uma proximidade com Heidegger

bastante marcante para seu pensamento, e que teve os dois como avaliadores

da sua tese de doutorado, Presentificação e imagem – mostra-se um

fenomenólogo sui generis: nem mais husserliano, tampouco heideggeriano.

A própria concepção de uma antropologia filosófica, no molde proposto por

Fink, é incompatível, tanto com Husserl quanto com Heidegger.

Embora, num plano mais restrito, particularmente nos parágrafos 5 e

6 dos Fenômenos fundamentais, Fink estabeleça um diálogo apropriativo das

noções heideggerianas do “ser do ente ‘em cada caso meu’” (ST §9) e do

fenômeno da autenticidade/inautenticidade, ainda assim, é possível afirmar

que a própria proposição de uma antropologia filosófica por parte de Fink é

incompatível com o pensamento heideggeriano, pois, de acordo com San

Martín (2006, p. 117): “[...] o que Heidegger acentua com clareza é a

impossibilidade de uma antropologia filosófica enquanto ontologia regional,

porque o homem não é um ente como os outros entes, pois nele se dá a

compreensão do ser”.

Bem conhecidas são as críticas de Heidegger à tentativa de

compatibilização entre filosofia e antropologia. A antropologia, na medida

em que opera no plano mais baixo de uma compreensão metafísica de mundo,

esqueceria que a tarefa de pensar a essência do homem não repousa no homem

2 Doravante, Fenômenos fundamentais.

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ele próprio, e sim, surge no reconhecimento da dependência do homem para

com a essência do ser3, como é possível ler na Carta sobre o humanismo.

Portanto, a verdade do homem deve ser “[...] pensada a partir da questão da

verdade do ser” (HEIDEGGER, 1973, p. 349). Aí também é possível ler:

[...] resta, enfim, perguntar se a essência do homem como tal, originalmente [...] realmente se funda na dimensão de sua animalitas. Estamos nós no caminho certo para a essência do homem, quando distinguimos o homem e enquanto o distinguimos, como ser vivo entre outros, da planta, do animal e de Deus? Pode-se proceder assim, pode-se situar, desta maneira, o homem, em meio ao ente, como um ente entre outros. Com isso se poderá afirmar, constantemente, coisas acertadas sobre o homem. [...] Mas com isso a essência do homem é minimizada e não é pensada em sua origem. [...] A Metafísica pensa o homem a partir da animalitas; ela não pensa em direção de sua humanitas. (HEIDEGGER, 1973, p. 352).

Assim, a antropologia, no seu sentido convencional, mas também a

antropologia filosófica – essa tentativa tipicamente alemã do inicio do século

XX, que busca desesperadamente compor o conhecimento sobre o homem a

partir de um misto composto por filosofia e ciências particulares (na

linguagem da fenomenologia: ciências fácticas, ontologias regionais) –

padecem de um equívoco característico do pensamento ocidental: por operar

no âmbito de um suposto saber prévio sobre o que seja o homem, não

reconhecem o vínculo inevitável, para a apreensão do sentido do homem,

entre a essência do homem e a verdade do ser. Isso faz Heidegger (Idem, p.

353) arrematar:

Causa-nos a máxima dificuldade [...] pensar o ser vivo, porque, por um lado, de certo modo, possui conosco o parentesco mais próximo, estando, contudo, por outro lado, ao mesmo tempo, separado por um abismo da nossa essência ec-sistente. [...] em

3 A este respeito, conferir: SAN MARTIN, 2006, p. 117; RUGGENINI, 2006, p. 143-144.

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comparação pode até parecer-nos que a essência do divino nos é mais próxima, [...] próxima, quero dizer, numa distância essencial, que, enquanto distância, contudo, é mais familiar para nossa essência ec-sistente que o abissal parentesco corporal com o animal, quase inesgotável para o nosso pensamento.

Por sua vez, o sentido mais elementar da incompatibilidade da antropologia

filosófica de Fink com os ensinamentos de Husserl pode ser vista por aquilo

que o próprio Husserl declarava sobre a antropologia. Num cartão postal de

22 de fevereiro de 1937 destinado a Karl Löwith, Husserl exorta:

Oxalá o senhor não faça parte dos “precocemente consumados”, chegados a uma posição pronta, de modo que o senhor ainda tenha a liberdade interior para “por entre parênteses” a sua antropologia e compreender com base em minha nova exposição, mais amadurecida, por que eu considero toda antropologia como uma posição ingênua, em termos filosóficos, e por que eu reconheço o método da redução fenomenológica como o único filosófico, como o único que alcança um conhecimento do Ser ou uma auto-reflexão universal em real concreção. Talvez o senhor entenda então que Scheler, Heidegger – e todos os ex “discípulos” – não entenderam o verdadeiro e profundo sentido da fenomenologia – da transcendental como a única possível – e quanta coisa depende disso (HUSSERL, Apud LÖWITH, 1984, pp. 236-237).

Husserl, num tom paternal, aconselha a Löwith: opere a Epoché! Sem ela, não

há fenomenologia. Percebendo a heresia, em que os mais brilhantes discípulos

tornam-se “ex discípulos” (Scheler e Heidegger), no conselho de Husserl soa

um clamor: não permita que a fenomenologia, que é a filosofia em sentido

estrito, recaia numa posição ingênua, ou seja, torne-se antropologia. A

fenomenologia ou é transcendental ou nada, antropologia, o que,

filosoficamente considerado, dá na mesma. Segundo San Martín (2006, p.

117),

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Para Husserl a antropologia ou é uma ontologia regional ou uma ciência factual de um ente mundano. Por essa razão, o saber da subjetividade transcendental, que, enquanto transcendental não está mais no mundo, não pode mais ser apresentada em uma antropologia.

Nessa mesma direção, à margem de Ser e Tempo, Husserl escreveu:

Heidegger transpõe ou transverte para o antropológico a clarificação constitutivo-fenomenológica de todas as regiões do ente e do universal, da região total do mundo; toda a problemática é transferência, ao ego corresponde a existência etc. Aqui tudo se torna profundamente obscuro e, em termos filosóficos, perde seu valor (HUSSERL, Apud ARLT, 2008, p. 58).

Da parte de Fink, tal incompatibilidade se expressa, na sua recusa em

renunciar à realidade da nossa existência para explicá-la. No primeiro

parágrafo de Fenômenos fundamentais, Fink afirma:

A essência da existência humana jamais é apreensível caso se queira abstrair da realidade. A realidade da nossa existência é o pressuposto de todas as nossas distinções entre essência e factum. Não podemos especular sobre nós mesmos suspensos no espaço vazio; temos de ser nós mesmos enquanto especuladores, e esse pressuposto é irrevogável. [...] Se perguntamos, então, pelas estruturas essenciais do homem, não nos guia, nem o olhar a uma ipseidade que se sustenta em toda a mudança histórica, tampouco a ‘intuição da essência’ que prescinde do fáctico. Pelo contrário, devemos tentar conservar todos os enunciados sobre os ‘fenômenos fundamentais’ de nossa existência [Existenz] numa interpretação da nossa existência atual (FINK, 1979, p. 16).

Embora por razões distintas que aquelas que presidem a recusa, por parte de

Heidegger, de uma antropologia filosófica, é possível afirmar que também à

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Husserl a formulação de uma antropologia filosófica parece uma tarefa

contraditória, pelo simples fato de que na sua elaboração, os vividos a serem

considerados não são os vividos intencionais da consciência, do eu puro,

transcendentalmente considerados. Isso que Fink chama de “estruturas

essenciais do homem” ocupam uma posição intermediária entre o domínio da

imaterialidade, seja o eu puro (Husserl) ou o ser (Heidegger), e a mera coisa,

recusando, tanto a hipóstase dos supostos atributos na esfera transcendental

do eu puro (Husserl), quanto a dependência ao ser como destinação e envio

do sentido, ao qual o humano deveria estar atento pelo pensamento meditativo

(Heidegger), mas também, recusando a férrea fixação às supostas

características das meras coisas, vigente na “atitude natural”.

Nos Fenômenos fundamentais opera, portanto, uma grande recusa:

recusa da posição husserliana que pensa o elemento diferencial do humano a

partir dos vividos intencionais da consciência; recusa da posição

heideggeriana caracterizada por pensar o sentido de ser do ente que nós somos

a partir do envio-destinação dos “clamores do ser”; recusa, também, de uma

típica atitude, para retomar o ponto de partida deste texto, ligada, tanto ao que

Husserl chamava de “orientação natural”, quanto ao conhecimento manifesto

nas ciências particulares. Em ambos os casos, apesar das diferenças

explícitas, é comum a atitude presunçosa de já saber objetivamente aquilo

sobre o que tratará a investigação, a busca, a lição. No caso particular das

ciências, elas creem que estão “[...] a caminho de entender o plano total das

suas conexões internas” (Idem, p. 08), a partir do que elas dariam, então, uma

resposta objetiva às perguntas. As ciências, tanto quanto a orientação natural,

operam com noções prévias inquestionadas. Elas, tanto quanto as instituições,

para funcionar, e Thomas Kuhn o mostrou magistralmente, promovem, nas

palavras de Fink, “[...] a redenção do suplício das perguntas” (Idem, p. 18).

Ou, em outra passagem: “Todas as instituições já sabem demasiado sobre o

homem – não há para elas mais nenhum enigma, nenhum labirinto no qual

poderiam extraviar-se irremediavelmente” (Idem, Ibidem).

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Por fim, também opera em Fink, a recusa de uma antiquíssima e poderosa

tradição, que se confunde com o próprio Ocidente, uma herança antiga e

cristã, que consiste em

[...] determinar o “lugar do homem”, por um lado, em ficar abaixo de Deus, e, por outro, em superar o animal, concebê-lo como um ser intermediário no qual se reúnem tensionalmente animalidade e divindade, a surda vitalidade animal e a chispa espiritual divina. (FINK, 1979, 266).

Por essa razão, o autor manifesta que sua proposta de antropologia filosófica

não se utiliza, nem de “[...] categorias zoológias, nem teológicas na

autocompreensão da existência humana”. (Idem, Ibidem). Pode-se, portanto

chamá-la, como ele próprio o faz, de uma “[...] uma radical antropologia

terrena” (idem, p. 19).

Ao pensar a existência a partir da noção de fenômeno – posição

expressa no título do seu curso: Fenômenos fundamentais da existência

humana –, Fink põe fora de circulação a tradicional opção interpretativa que

consiste em pensar a essência humana, mas também, a atividade filosófica a

partir da disjuntiva: ou transcendental, ou factual. Portanto, nem animal,

tampouco divino; nem vida pura da consciência também não auscultação do

ser no silêncio meditativo.

Como filosofia e existência se ligam neste pensamento? Diz-nos ele:

“Filosofia é menos um saber douto que um modo de existir. [...] Ela nada mais

é que a relação mais tensa da existência consigo mesma, e nisso consiste a

fonte do seu compreender e do seu interpretar” (Idem, p. 35). Se existência é

a abertura compreensiva, um estar aberto, “[...] ela vive no compreender”

(Idem, p. 23), esta abertura se dá intensivamente enquanto relação diferencial,

não apenas com o “[...] campo circundante” (Idem, p. 22) dos objetos e dos

outros humanos, mas também, e principalmente, com a assunção do evento

fundamental do pasmo constitutivo da própria atividade compreensiva: a

existência aparece como um problema. No âmbito do mais conhecido emerge

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o estranhamento, por meio da compreensão de uma “[...] intimidade

originária” (Idem, p. 24), constitutiva da existência. Neste âmbito de simbiose

entre existência e filosofia, “[...] o mais importante é a comoção que nos

acontece como destino – a comoção por um assombro abissal. Este assombro

é a melhor parte do homem” (Idem, p10).

Com isso vemos, como dito no início, que “cada teoria filosófica,

mesmo quando a isso não se propõe, apresenta, a seu modo, uma definição

particular, dada em nome próprio, do que é filosofia”. A explicitação do

significado de existência, opera, ao mesmo tempo, uma explicitação

compreensiva do que é filosofia, a saber: “pensar finito, uma possibilidade

finita da existência finita” (Idem, p. ??). Portanto, compreensão da própria

finitude. Dessa maneira, em Fink, finitude é o ponto de amarração de filosofia

e existência. Um antropologia filosófica que pretenda compreender a

existência em seus fenômenos fundamentais deverá mostrar, acima de tudo,

boa consciência para com a finitude. Não a toa, um dos fenômenos

fundamentais da existência humana é a morte. Se é inevitável reconhecer que

“Nós que aqui estamos, vamos morrer!”, também constitui essencialmente

nossa existência a luta, o trabalho, o amor e o jogo. Como Drummond (pp.

35-38) dizia em seu poema Os últimos dias:

Que a terra há de comer. Mas não coma já. / Ainda se mova / para o ofício e a posse. [...] E cada instante é diferente, e cada / homem é diferente, e somos todos iguais. / No mesmo ventre o escuro inicial, na mesma terra / o silêncio global, mas não seja logo. / [...] A doença não me intimide, que ela não possa / chegar até aquele ponto do homem onde tudo de explica. / Uma parte de mim sofre, outra pede amor, / outra viaja, outra discute, uma última trabalha, / sou todas as comunicações, como posso ser triste?

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AS OPERAÇÕES DE NOMINALIZAÇÃO E OBJETIFICAÇÃO

REPRESENTATIVA NA APREENSÃO DE OBJETOS

CATEGORIAIS EM HUSSERL: ASPECTOS EPISTEMOLÓGICOS

E SEMÂNTICOS

Yuri José Victor Madalosso

Introdução

O objetivo desta comunicação é compreender as mútuas determinações entre

as modificações significativas e as intencionais na constituição de objetos

categoriais. Além disso, busca compreender os conceitos de “nominalização”

e “modificação significativa” esboçada na Quarta Investigação e

“objetificação representativa” expostos nos capítulos IV e VI da Quinta

Investigação, enquanto fundamentos teóricos para constituição de objetos

categoriais. Com efeito, irá também elucidar os problemas e implicações

destas modificações na dinâmica da apreensão de objetos categoriais, com

enfoque nas sínteses de identificação e na realização objetiva destes mesmos

objetos. Por fim, procura entender, em um nível mais profundo, porque tais

modificações se revelam determinantes na construção dos vários conceitos de

conteúdo presentes nas Investigações Lógicas.

Seguem-se, todavia, problemas importantes quando se tratam destes

tipos de modificações intencionais e semânticas. Husserl é consistente ao

correlacionar modificações semânticas puras com as modificações materiais

na teoria do juízo, em especial juízos categoriais? Neste contexto, como são

tratados os conceitos de “existência ideal” e “realização objetiva”? Em que

medida formas e sínteses categoriais são funcional e estruturalmente

dependentes, em especial, das relações de nominalização e objetificação

representativa? É possível verificar um papel determinante das modificações

semânticas nos critérios de unificabilidade e identificação para intuições

categoriais, em paralelo com as condições dadas pela matéria? Como hipótese

de interpretação destes problemas, defende-se que, para se justificar

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epistemologicamente sínteses de identificações categoriais complexas, é

necessário reconsiderar a fundação dos preenchimentos categoriais partindo

da variabilidade das nominalizações e objetificações representativas.

1. Modificações na significação: ato expressivo, unidade ideal e

nominalização

No §11 da Quarta Investigação1, Husserl descreve como se operam

modificações nas expressões, sejam enquanto atos significativos, sejam como

unidades ideais de sentido. Todas estas modificações são reguladas por leis

ideais sobre as formas puras e unitárias de significação, sem levar em conta a

realização objetiva e possível adequação a uma intuição (HUSSERL, 2001b,

p. 49, Introdução à Quarta Investigação) Husserl constata que mudanças

sintáticas podem alterar a significação ideal e o ato em que esta é visada e

expressa. Um exemplo é como há uma mudança no que está sendo

intencionado e designado nestas frases: “Esta árvore é nodosa”; “A árvore

nodosa”; “’Esta árvore é nodosa’ é uma expressão precedida por um dêitico”,

entre outras.

Em especial, Husserl tem por tema principal as modificações

significativas referentes a significados de adjetivos, quando funcionam

predicativa e atributivamente. Além destas, a suppositio materialis - isto é,

quando uma expressão qualquer é usada e significada em formato nominal -,

é levada em conta como um exemplo de modificação tanto simbólica e

representacional quanto ideal/formal (cf. HUSSERL, 2001b, p. 65, §11).

Dois aspectos devem ser levados em conta nessas operações: em

primeiro lugar, caso se tratem de significados, estes não produzem

modificações relacionadas aos objetos visados nos atos expressivos ou que

realizam intuitivamente estas significações (cf. HUSSERL, 2001, p. 59-60,

1 Doravante, denominar-se-á cada Investigação Lógica com o seu cardinal em extenso e,

abreviadamente, Investigação.

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§8); em segundo lugar, há a possibilidade infinita de modificações efetuadas

sobre modificações.

Sobre o primeiro ponto, é digno de menção o aspecto descritivo dos

atos significativos simples que não visam objetos simples como, por exemplo,

a expressão “homem” e atos complexos e fundados como, por exemplo, o ato

judicativo expressado por “Esta cadeira é marrom”, que visa um estado de

coisas muito mais simples que um todo como é o ser humano (cf. HUSSERL,

2001, idem, ibidem).

Ainda, sobre o segundo ponto, vemos que podemos modificar a

função nominal em vários níveis de predicação, mesmo se tratando de um

juízo, como neste caso: “André e Carlos são empresários do ramo

alimentício”; “’ André e Carlos são empresários do ramo alimentício’ é um

enunciado predicativo”; “’André e Carlos são empresários do ramo

alimentício’ é um enunciado predicativo’ designa uma suppositio materialis”;

e assim por diante.

Uma consideração importante a se fazer é se atentar a qual estrutura

enunciativa Husserl trabalha, a saber, baseada no paradigma de que

trabalhamos com nominação na base de nossa vida linguística,

desenvolvendo-se no formato clássico aristotélico de sujeito-cópula-

predicado (cf. BENOIST, 2001, p. 186 e COBB-STEVENS, 2003, p.159-

160), embora não seja limitada a esta, pois nas Investigações há a análise de

enunciados condicionais, conjuntivos, disjuntivos, entre outras expressões

categoriais. Nas expressões nominais, há casos, como os mostrados no §3 da

Quarta Investigação, em que intenções simples unirradiais podem vir a

fundamentar, sob a mesma unidade de visada nominal, uma complexidade

intencional multirradial, principalmente em predicações e atribuições.

Entretanto, vê-se que Husserl contextualiza a captação da referência

significativa simples que venha a ser acrescida de atribuições e predicados

que lhe convém (por exemplo, o nome próprio de um homem chamado

“José”, que sabe-se ser constituído de corpo, mente, certas características

peculiares etc.) em uma unidade de apreensão e expressividade complexa que

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não se perfaz apenas em uma intenção unidirecional, mas supõe essa primeira

constituição unirradial de significado2(cf. HUSSERL, 2001b, p. 52-53, §3).

Há expressões que não são isoladamente significativas, mas partes que

dependem de um todo para obterem significado - são as expressões e

significações sincategoremáticas: a característica essencial deste grupo de

expressões é a não-independência fundacional – são momentos (noção

advinda da ontologia formal) constituintes de uma unidade (cf. HUSSERL,

2001b, p. 55, §5). Esta é uma diferença que reside na essência significativa,

no significado como tal, e não nos signos. Por isso, nem todo componente

expressivo é um sincategoremático: é o que diferencia, por exemplo, um

prefixo (“pós” em “pós-graduação”) ou radical (sincategoremático também

no nível “material”) de uma mera parte do símbolo que é perpassado pela

intenção de significação (“fo” em “força”), sem sentido.

Aqui está um primeiro problema: do mesmo modo que há representações

simples que fundam outras complexas, há significações que se estruturam do

mesmo modo. Isso não é tomado de modo a parecer uma mera transposição

da esfera fenomenológica3. O conceito de representação, enquanto

fundamento para qualquer relação cognitiva, é tematizado na Quinta

Investigação também sob a base destes resultados descritivos obtidos por

Husserl.

Estas operações não se relacionam com estados de coisas ou objetos

visados, mas com representações de significados, de variados níveis. Husserl

explicita, neste ponto, que a nominalização tanto é uma representação

2 Cobb-Stevens chama a atenção de que a forma sintática aristotélica também tem influência

na reconstrução da percepção em estruturas proposicionais, abstraindo-se seu caráter comum (cf. COBB-STTEVENS, 2003, p. 159-160); a fenomenologia mais tardia de Husserl (principalmente as lições sob o título Análises sobre a Síntese Passiva e Ativa (a partir de 1921-23) Lógica Formal e Transcendental (1929) e Experiência e Juízo (1939) irá trabalhar a gênese (enquanto constituição passiva de modos intencionais complexos) destas formas nas unidades sintéticas passivas perceptivas cf. COBB-STEVENS, 2003, p. 160). Todavia, na Sexta Investigação (como se verá na terceira e na quarta seção deste comunicação), formas categoriais e conteúdos sensíveis mantém uma relação unilateral de fundação que, em certos níveis (p. ex.: axiomas) e em intuições puramente universais, prescindem de uma relação tão “transparente”, por assim dizer.

3 No sentido exclusivo da primeira edição (1900-1901), ou seja, psicologia descritiva (sobre conteúdos reais (reale) de consciência).

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psíquica de um significado (“Centauro’ é uma representação de um ser

mitológico”) quanto uma relação essencial semântica, fundada na pura

natureza ideal da mesma significação, em sua legalidade específica

(“Imaginário’ é um atributo de um número irracional complexo”) (cf.

HUSSERL, 2001b, p. 65, §11) . A suppositio materialis é pensada por este

viés, que é regulado por leis ideais puras referentes à essência significativa

enquanto tal, mas que também se referem às significações enquanto atos4.

Expressões que indicam negações ou valores de verdade também modificam

significações, como, por exemplo, na nominalização “’2+2=5’ é falsa”

(HUSSERL, 2001b, idem, ibidem).

O §11 trabalha com uma distinção entre “forma” e “conteúdo”

nuclear, “forma” e “matéria” sintáticas: modificações nominalizadas de

formas nuclareares (preservando conteúdos nucleares) podem produzir uma

matéria sintética nominal que podem entrar em todo tipo de relação sintática

que admite tal relação material nominal. Husserl usa exemplos de adjetivos

que preservam esse núcleo, mas fundamentam legalmente modificações

nominais (“Este papel é verde”; “’ser verde’ é uma diferença específica”; “ A

palavra ‘verde’ é um predicado” etc.) (cf. HUSSERL, 2001b, p. 66, ibidem).

2. Modificações materiais e atos objetivantes: a teoria do juízo e a relação

entre essência intencional e significativa

De antemão, compreende-se que o método e estilo de Husserl é evolutivo no

que se refere aos problemas, aprofundando seus argumentos e clarificações

mais posteriores em relação aos temas anteriormente debatidos. Entretanto,

há diferentes problemas a serem abordados em cada uma das seis

investigações, sendo que o próprio autor menciona a forma de “ziguezague”

de seu progresso teórico dentro da obra de 1900-1901, não constituindo uma

unidade coesa no estilo textual (HUSSERL, 2001a, p. 5, prefácio à segunda

4 Benoist (2001, p. 97-98) afirma não só o paralelo entre a operação intencional e a regulação

categorial na modificação de nominalização, mas uma constituição modalizada de variações tanto intencionais quanto categoriais.

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edição de 1913). A Quinta Investigação não poderia ser diferente: ela

representa um acréscimo conceitual na compreensão dos atos significativos e

seus correlatos, mas aborda problemas classificatórios e pressupostos teóricos

que sustentam argumentos e teorias fundamentais, como a teoria do juízo, a

definição de consciência e o fundamento das vivências intencionais.

Entretanto, Husserl trabalha com estruturas linguísticas paralelas e até

coligadas às estruturas psicológicas descritivas5 (cf. ROLLINGER, 2003, p.

141) e, mesmo afirmando, na segunda edição, que não considera válido o

conceito de “representação nominal” (cf. HUSSERL, 2001a, p. 8), a

diferenciação entre gêneros de qualidades e estruturas materiais intencionais

é obtida com base na diferença entre atos nominais e proposicionais, por um

lado, e “meras representações” e “juízos”, de outro; tais modificações na

essência significativa produzem resultados fenomenológicos materiais e

qualitativos consideráveis que são descritos de modo mais específico a partir

do §32, para uma crítica aprofundada ao princípio de que representações são

base da vida intencional, e na possível evidência desse princípio fundamental

(cf. HUSSERL, 2001b, p. 154, §35 e HUSSERL, 2001b, p. 160-161, §38).

Referente às modificações de significado e expressão, e suas mútuas

relações de fundação e dependência, a perspectiva é essencialmente

psicológica descritiva (referente a quais vivências intencionais fazem

“originar” as significações)6. As relações entre enunciados completos e

nomes, assim como suas partes, são clarificados à luz dos conceitos de

“conteúdo intencional”, “matéria” e “qualidade’, inclusive com a

5 Neste ponto, Rollinger problematiza a noção de “ato nominal posicional” como equívoca,

aludindo ao risco de se considerar a linguagem como um guia para a análise da própria linguagem no tocante à lógica e à fenomenologia, imprudência herdada, segundo o comentador, do ponto de partida de Stuart Mill em seu Sistema de Lógica (cf. ROLLINGER, 1997, 141).

6 Na segunda edição da Quinta Investigação (1913), Husserl quer “elevar ao nível das Ideias” as descrições e argumentos efetuados. Três mudanças e acréscimos são fundamentais nesta “elevação” (mesmo que não se perca o estilo e a lógica interna da primeira edição de 1901): a exclusão do §7, julgado desnecessário, a caracterização da fenomenologia como “eidética” e não meramente psicológico-descritiva (esse processo de ressignificação se dá desde o curso de 1903 Vorselung zur Logik und Erkenntnistheorie)) e, finalmente, as notas que definem e delimitam a mudança de posição quanto à natureza e função do ego na vida consciente.

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classificação das vivências psíquicas conforme variados modos e sentidos de

constituição de referências objetivas.

Assim como na Quarta Investigação há um interesse nas leis e

combinações variáveis de atos expressivos e significações puras, e não em

discussões sobre a natureza dos objetos significados, a Quinta Investigação

tais discussões como derivadas e secundárias diante da explicitação dos

modos e determinação do objeto vivido intencionalmente. Isso significa

considerar na psicologia descritiva também atos dirigidos a objetos

inexistentes, absurdos e contraditórios.

Partindo da definição de matéria e qualidade intencionais - momentos

abstratos da essência dos atos psíquicos -, Husserl analisa possíveis objeções

à sua terminologia e especificações dos caracteres de ato e, mais amplamente,

dentro do conceito de “conteúdo descritivo” de uma vivência intencional.

Definirá, pois, que nem todo componente do ato é essencial: conteúdos

sensíveis (“sentimentos sensíveis”) que são intencionalmente interpretados na

percepção (que não são intencionais, por sua vez), são variáveis e não entram

na estrutura do ato, mas constituem seu conteúdo descritivo. A essência

significativa, por sua vez, é todo conteúdo específico que entra em atos que

dão significação ou que possivelmente o preenchem, cuja abstração ideatória

apreende uma significação pura.

Alguns problemas referentes à essência intencional são confrontados

com possibilidades classificatórias que surgem a partir da descrição do

conteúdo intencional, a saber, se na própria matéria intencional enquanto

possível “representação-base” podem ser descritas qualificações cada vez

mais especificas.

A modificação qualitativa centra-se na relação entre juízos e

representações nominais sem posição de existência e a progressão que vai da

mera pronunciação (e correspondente “mera compreensão”), crença,

assentimento ao preenchimento da intenção judicativa.

Husserl mostra que toda forma de objetivação por meio de juízos e

nomes, mesmo que modificados, em primeira instância se dirigem a estados

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de coisas, e não a outras representações, mesmo que se operem juízos sobre

juízos. Um exemplo na vida prática é o enunciado “Foi dito que hoje choveu

em Londrina. Isso alegrará os pequenos produtores!”. Aqui, não se visa o

enunciado “hoje choveu em Londrina”, mas à situação objetiva7 constatada.

Logo, não é na representação enquanto “objetivada” que se funda,

cognitivamente, o ajuizar e o mero representar (ainda, o visar unirradial, mas

sintético e unitário, e o visar plurriradial, sem essa unidade e síntese

complexas), mas em referência a um objeto determinado em uma matéria, no

“referir-se” com um sentido determinado e em um modo específico, visando

a situação objetiva mesma, apresentando-a ao sujeito. Tais modificações,

tanto na matéria quanto na qualidade, somente se operam com mudança na

essência significativa (cf. HUSSERL, 2001b, p. 156-157, §36).

A análise de Husserl irá se direcionar, já a partir dos §§34-35, para a

análise material intencional, deixando em aberto outras possíveis

configurações sintéticas de “teses”, assim como suas possíveis determinações

sintáticas.

Deste modo, juízos podem ser modificados para representações

complexas de estados de coisas (ou seja, em que essas categorias de objetos

são apresentadas como tais), como no caso do enunciado “‘P ou não-P’ é a

expressão informal do princípio de contradição”, em que “P ou não-P”

representa o estado de coisas correspondente, e não um outro juízo. Logo, não

é a referência objetiva que é alterada, mas o modo intencional e significativo

de visá-la e designá-la.

Na descrição efetuada a partir do §32 da Quinta Investigação – que

intenta, de modo geral, clarificar o conceito de “representação” e

“representação base” - contrapõem-se, em primeiro lugar, juízos que podem

cumprir um papel de ato nominal e nomes que possuem origem em um juízo;

em segundo lugar, uma correspondente expressão atributiva à qual

7 “Situação objetiva” é a exemplificação efetiva de um estado de coisas, e a apreensão deste

objeto categorial é baseada na captação de uma situação objetiva que o instancie. Tal conceito é elucidado epistemologicamente na Sexta Investigação, seção II, capítulo VI, §48.

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corresponde uma expressão predicativa (“ele, o ministro de finanças”; “Ele é

o Ministro de Finanças”); em terceiro, um nome posicional que admite um

contraposto não-posicional; em quarto, por fim, nomes posicionais que

podem ter um correlato judicativo.

Todas estas representações e juízos podem ser distintas em essência

intencional e essência significativa. Husserl sempre leva em conta tanto a

intenção unirradial quanto plurirradial, além do posicionamento sintético

(característica de juízos) e posicionamento simples (nomes e expressões

nominais em geral). O que difere, no que diz respeito à essência intencional,

é o modo e a síntese em que é efetuada uma determinação objetiva: em um, o

estado de coisas é nomeado, enquanto que em outro é predicado algo. Há,

neste ponto das Investigações, um retorno descritivo às vivências nominais

referentes aos adjetivos, tanto em sua função predicativa (“Paulo é alto”)

quanto atributiva (“a altura de Paulo”). Nada dos estados de coisas são

alterados nestas modificações sintáticas.

No capítulo IV, é feita uma descrição mais detalhada das modificações

materiais e qualitativas, com as primeiras fundando objetivações complexas.

O objetivo é distinguir e determinar o gênero “ato objetivante”, em

contraposto aos atos não-objetivantes (sem referência objetiva determinada)

e suas diferenças específicas. Husserl efetua a reformulação do princípio

brentaniano, suposto como auto-evidente, que enuncia a primazia da

representação como base da vida psíquica. Husserl corrige: toda vivência, ou

é um ato objetivante ou tem como fundamentação atos objetivantes (Cf.

HUSSERL, 2001b, p. 167, §41.

3. Intuição categorial e modificações materiais intencionais

A seção anterior elucidou, dentro capítulo IV da Quinta Investigação,

estruturas sintéticas na matéria intencional, que se enformam categorial e

intencional a situação objetiva constituída na matéria. Nesta seção, será feita

uma reconstrução conceitual do conceito de “intuição categorial” e de sua

fundamentação e justificação epistemológicas, que complementa as

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demandas deixadas pela Investigação anterior. Aqui, as modificações

efetuadas na matéria intencional ganham importância quando se estruturam

modos complexos de constituição de objetos “de ordem superior”, seja para

cada tipo de categoria considerada (o lado objetivo da intuição categorial),

seja para cada caráter de ato categorial (lado subjetivo), inclusive relações

legais e descritivas (formas de apreensão, conteúdos intuitivos etc.) entre

vários tipos de atos categoriais.

As sínteses de preenchimento e as modificações significativas e

materiais obtém esclarecimentos importantes na segunda seção da Sexta

Investigação. Husserl toma como tema inicial de sua análise as expressões e

seus componentes, retomando de maneira exclusivamente fenomenológica

uma distinção de natureza gramatical entre “forma” e “matéria” de uma

proposição, que corresponde ao caráter sensível e imediato dos termos

nominais (cf. HUSSERL, 2001b, p. 272, §40).

Esta distinção “gramatical”, mas que tem fundamentos semânticos

(veja-se a seção II deste comunicação) é tomada de maneira propriamente

fenomenológica com os conceitos de “matéria sensível” e “forma categorial”,

derivados da relação entre expressão de intuição e a intuição expressa, ou de

como juízos de caráter geral possuem realização intuitiva (mesmo que

lacunária e meramente ilustrativa) que se estabelece em todas as

representações como distinção absoluta entre forma e matéria do representar,

sendo relativa e funcional nas relações de preenchimento, enquanto “termos

lógicos”, por assim dizer (HUSSERL, 2001b, p. 276, §42).

Entretanto, como modificações de ato possuem importância na

adequação e preenchimento categoriais, principalmente na síntese de

identificação própria desta categoria de atos? Aqui os §§50-51 do capítulo

sexto da Sexta Investigação considera a constituição e apreensão de formas

categoriais conjuntivas e disjuntivas, que não visam estados de coisas, nem

se reduzem à formas nominais (cf. HUSSERL, 2001, p. 290, §50; cf.

HUSSERL, 20001, p. 91, §51, início). Todavia, os termos lógicos, que, em

uma proposição indeterminada (P é Q; o ser Q de P etc.) podem também

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expressar juízos nominalizados (“A proposição ‘P é Q’ é falsa”) ou mesmo

formas complexas (P (p é q) é Q (p’ é q’)).

Como possibilidades de realização objetiva e de estruturação de

significações se relacionam epistemologicamente, já que se mostra

fundamental, em vários casos, a determinação semântica na construção de

objetificações representativas que são fundantes de relações categoriais de

níveis superiores?

Por fim, conteúdos intuitivos de qualquer espécie, tomados dentro da

essência epistêmica8de modo ideal, possuem critérios de possibilidade e

compatibilidade de realização objetiva que são válidos para todos os tipos de

síntese de preenchimento; todavia, como funcionariam os critérios para

síntese de preenchimentos de níveis cada vez mais superiores e matérias

intencionais cada vez mais complexas?

De acordo com o progresso das descrições fenomenológicas dos atos

que cumprem a função de preenchimento, constata-se a possibilidade de

plenitude intuitiva e adequação de intenções que não admitem preenchimento

sensível: conceitos, categorias, proposições, termos sincategoremáticos (não-

independentes de outros significados), etc. Já em frases simples como, por

exemplo, “Esta parede é branca”, a adequação e, em princípio, o próprio

preenchimento não se realizam de modo imediato para todos os elementos

para a intenção deste enunciado, como a cópula e a predicação “ser branco”.

O “ser” que se atribui na relação sujeito-predicado não está presente nas

representações, nem nos objetos em suas características ontológicas; “e”,

“ou” “se ...então”, entre outras formas, não estão “nos” objetos e relações

objetivas sensíveis.

Como foi citado acima, na segunda seção desta comunicação, o

problema também está em como Husserl entende as formas elementares da

linguagem e da lógica, que são os nomes e as significações puras vividas nos

8 A saber, todo o conteúdo e caracteres de ato que entram na apreensão e conhecimento

(enquanto preenchimento adequado): matéria intencional, qualidade intencional e conteúdo representante-apreensivo intuitivo – sendo este presentante (perceptivo) ou presentificante (imaginativo) (cf. HUSSERL, 1980, p. 75, §28).

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atos nominais. Logo, mesmo não compreendendo a lógica de maneira

“genética” e “transcendental”, o conceito de matéria nominal e forma

categorial são o fio condutor linguístico para problematização das

progressões de preenchimento9. Em sentido estrito, toda síntese é efetuada

pela forma categorial, em um ato fundado e unitário sobre as matérias

nominais fundantes (cf. COBB-STEVENS, 2002, p. 90)10.

Ao longo dos §41-43, Husserl enfatiza novamente a rejeição da

hipótese descritiva que afirma a possibilidade de apreensão de formas

categoriais complexas de objetos na esfera dos objetos e estados de coisas

reais; neste sentido, a rejeição inclui a percepção interna ou externa como

constituintes ou portadoras intrínsecas destas formas: a primeira, como já se

pode concluir, apreende objetos sensíveis por conteúdos exclusivamente

sensíveis, dados e preenchidos de maneira imediata e direta, e a segunda

categoria de percepções não pode fornecer senão caracteres psíquicos

“internos” como correlatos de atos reflexivos sobre estas próprias vivências.

Logo, a intuição sensível diz respeito à apreensão de objetos sensíveis,

de modo direto, imediato e em única intenção. Estes atributos essenciais

permanecem exclusivos deste tipo de intuição, mesmo que seu preenchimento

e síntese de preenchimentos seja obtida unitariamente por “fusão” de

recobrimentos intuitivos diferentes e sucessivos no tempo, mas sem sínteses

de identificação ou diferenciação. Contrariamente, intuições categoriais

(incluindo percepções e imaginação) são fundadas, indiretas, e constituem

uma síntese de intenções, em esquemas de identificação ou diferenciação

formais das essências cognitivas (matéria, qualidade e conteúdo representante

pleno/conteúdo intuitivo) dos atos fundantes, fazendo com que a matéria de

uma intuição categorial seja sintética e constituída por outras matérias.

Isso é exigido pela própria natureza das relações de preenchimento,

em que intenções simbólicas e vazias, ou, ainda, intenções preenchidas de

9 Ver nota de rodapé 2 da página 3 desta comunicação, seção II. 10 Cabe, no entanto, questionar a tese de Cobb-Stevens de que Husserl é um herdeiro realista,

por assim dizer, da teoria aristotélica do juízo – por afirmar que juízos se dirigem a objetos no mais amplo sentido, e não somente a representações “internas” no sentido moderno.

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modo lacunário11, são progressivamente satisfeitas e plenificadas de maneira

unitária. Husserl complementa estes caracteres descritivos com a definição

dos conceitos de percepção e intuição segundo seu sentido ou amplo ou

estrito. No primeiro, trata-se de percepções sensíveis e categoriais; no último,

restringe-se às percepções sensíveis e correlatos objetivos individuais. Surge

uma nova determinação do que é “objeto” e “intuição”, também em sentido

amplo: todo ato que entra em sínteses de preenchimento cumprindo um papel

de apresentação, é uma intuição; o correlato apresentado nestes atos é o objeto

ou conteúdo intencional intuitivo que pode ser adequadamente dado ou não.

Esta designação de objeto já aparece em vários pontos das Investigações (cf.

HUSSERL, 2001b, p. 11, §6, Terceira Investigação).

4. Sínteses de identificação categoriais e critérios de unificabilidade:

limites das modificações intencionais e significativas

Em primeiro lugar, preenchimentos de proposições categoriais sintéticas ou

mistas podem ter fundamento sensível para algumas interpretações, segundo

a abstração categorial efetuada (um exemplo efetivo é não podermos

substituir ao bel-prazer a proposição “Y contém y” por Y=Jarra e y=Suco).

Em segundo lugar, a evidência de formas categoriais analíticas puras, que

contém situação objetiva12 fundante variável indefinidamente, como “Toda

propriedade de um todo W é uma propriedade de cada parte w”; o uso de

incógnitas e letras supõe a ideia da instanciação indireta deste tipo de

proposição ou lei.

Toda síntese completa de um estado de coisas se opera na matéria

intencional, e não na qualidade, nas sínteses contínuas de identificação e

diferenciação (complexas) de formas categoriais e material sensível. Aqui,

portanto, não se discute o papel do preenchimento categorial em um “mero

representar” e um juízo, isto é, posicionamentos com base em uma

11 Ver HUSSERL, 2001b, p. 247-258, §27. 12 Diferença entre situação objetiva (sachlage) e estados de coisas (sacherverhalt) no

contexto da teoria das intuições categoriais, ver HUSSERL, 2001b, p. 288, §48

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determinada matéria. Este conceito já era trabalhado na Quinta Investigação,

enquanto conteúdo intencional de juízos, mas na presente Investigação há

uma ênfase na constituição centrada, por assim dizer, nas formações

complexas sintéticas do conteúdo intuitivo, sendo, portanto, um complemento

e um ajuste às descrições já efetuadas.

Na Investigação anterior, um estado de coisas é um correlato objetivo

enquanto visado de modo determinado, unitário e complexo. É a objetivação

unitária e complexa que constitui um estado de coisas, mesmo sendo

intencionada de maneira multirradial e secundária, fundada sobre uma

situação objetiva determinada. Em contrapartida, este conceito agora é tratado

enquanto categoria realizável em um modo determinado de preenchimento e

de possível adequação.

Husserl assevera que, em alguns pontos de suas descrições sobre os

graus e critérios de possibilidade de adequação, faz-se necessário o

complemento da teoria da intuição categorial, principalmente nos conceitos

de “unificabilidade” e “conflito” e, na tematização do conceito de evidência,

o conceito de “identificação”. É decorrente, de qualquer modo, que se trata

do estilo próprio das Investigações, mas faz constatar que Husserl estratifica

estas análises em diferentes perspectivas de fundação e dependência, em que

a apreensão categorial depende da síntese categorial (HUSSERL, 2001b, p.

262, §37).

No caso dos nomes universais e categorias, há problemas em como

descrever adequadamente as sínteses de coincidência, a saber, os seguintes já

expostos por Lampert: como se efetua determinação exata da referência

unitária frente a possíveis sínteses de preenchimento; como ocorrem estas

operações no contexto e pano de fundo em que tais unidades intencionais se

produzem; como as sínteses de escorços perceptivos e recobrimentos dos

conteúdos atingem diversos graus de plenitude e, por fim, quais são os limites

para estes progressos (cf. LAMPERT, 1995, p. 125-126).

A nominalização é um problema relevante em caso de níveis

complexos de objetivações categoriais, em que se fazem sínteses categoriais

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complexas através da mudança de uma matéria de intuição categorial, que é

secundária e complexa, para uma primária quando está sintetizada em

intuição de grau superior (cf. LOHMAR, 2002, p. 140). Se há possibilidades

infinitas de modificações baseadas em nominalização, em um nível mais

básico das séries de preenchimento, então limites para sínteses de

preenchimentos possíveis em casos de intuições categoriais complexas são

estendíveis ad infinitum, exceção seja feita às formas categoriais que não

admitem enformação nominal.

Deve-se atentar que há uma diferença entre leis regendo

compatibilidades de significações ou essências significativas in specie e leis

que se referem a compatibilidades entre as matérias destes significados e as

matérias de essências epistêmicas. Estas últimas são leis que fundam não

somente uniões e conflitos com espécies puras, mas identificações e

diferenciações e, portanto, sínteses correspondentes. A relação, portanto, é

entre uma possibilidade de significações unitárias complexas e a

possibilidade de realização intuitiva das mesmas. Uma combinação como

“quadrado redondo” e “3 é número par” é possível semântica, mas não

intuitivamente; contudo, as significações complexas “O conceito ‘quadrado

redondo” é uma significação complexa” e “A proposição ‘3 é número par’ é

falsa” podem ser possíveis de intuição categoriais, já que os componentes

nominalizados tiveram modificações expressadas pelas partículas “é” e “é

falso”?

Neste caso, Benoist mostra que Husserl toma um ponto de vista

inspirado com Brentano e, mais proximamente com Meinong – ao contrário

da persistente influência de Bolzano ao longo da obra; isso significa que a

referência objetiva é determinada pelo visar, não importando se existe o

objeto ou não (cf. BENOIST, 2001, p. 98). Contudo, a realização objetiva

enquanto apresentação “em si” do objeto não é alterada; vislumbra-se - e isso

é mais notável na segunda edição, dado direcionamento idealista que Husserl

assume após 1907 - que há uma determinação sempre correlacional entre as

significações puras e os atos simbólicos (as modificações são determinadas

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correlativamente) (cf. BENOIST, 2001, p. 91). Além disso, a relação entre

objeto e significação é sempre diferenciada, como já foi mostrado na segunda

seção.

Modificações, como a suppositio materialis, portanto, mesmo que

efetuadas com expressões contraditórias, ainda possuem “sentido

intencional” e constituem parte do discurso, mas não do conhecimento, ou

“sentido impletivo” (diferença estabelecida na Primeira Investigação – ver

HUSSERL, 2001, p. 199, §14). Husserl considera que é por evidência

apodítica que a uma significação contraditória não corresponda realização

objetiva possível, mesmo sendo uma significação pura existente idealmente.

Uma significação pode ser realizável por unificação, pois se deve considerar

a relação de incompatibilidade dentro de um todo determinado. Este

significado complexo, portanto, é possível de validade objetiva. Supõe-se que

o todo T dado na proposição exemplificada acima tenha como partes

“quadrado redondo” e “significação complexa”; pode-se, neste todo, unificar

por compatibilidade, pois há uma essência válida (possibilidade de intuição

completa e adequada) pertinente a ele, e essa união é expresso pelo “é”, neste

caso.

Aqui não estaria um problema apontado por Lampert, referente aos

limites de sínteses unificadoras? Há limites ideais para decepções e conflitos,

que são dados de modo ao todo em que ocorrem as essências consideradas;

dentro de mesmas significações, ademais, uniões e conflitos se excluem.

Excetuando-se às sínteses de percepções sensíveis, que se dão por

perspectivas variadas de recobrimento, o limite de uma síntese categorial se

daria pela própria forma de identificação e unidade, seja expressa na forma

categorial, seja na essência cognitiva e, portanto, na configuração multirradial

material (cf. LAMPERT, 1995, p. 146).

Lohmar mostra que este problema não é tão pertinente no caso de

intuições universais, que podem prescindir da “presentação” própria das

percepções. Entretanto, interpretando a constituição categorial a partir da

percepção sensível mesma, é possível reinterpretar o problema do

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“representante categorial” de maneira a considerar o ato que explicita a

percepção sensível em suas partes contíguas ou coexistentes como um suporte

para a enformação categorial mais complexa (cf. LOHMAR, 2002, p. 139-

140).

5. Conteúdo em sentido amplo, modificações intencionais e significativas:

problemáticas referentes ao conceito de “fundação”

Sabe-se que Husserl, na introdução à segunda edição da Sexta Investigação,

não aceita como válido o conceito de representação categorial, após as

“descobertas” efetuadas no contexto teórico das Ideias I (cf. LOHMAR,

2002, p. 136-137). A revisão efetuada a partir de 1913 e que resulta tanto em

uma versão em rascunho quanto na edição de 1921 da Sexta Investigação

mostra que, no caso das leis e relações fenomenológicas que envolvem a

compatibilidade e unificabilidade intuitivas, houve uma preocupação em

ampliar a reflexão em perspectiva modal (possibilidades e atualidades

intuitivas) quanto delimitar a esfera puramente semântica (ao contrário de

intenções signitivas e intuitivas) de intenções puramente linguísticas (cf.

MELLE, 2002, p. 120).

Considerar tais casos implica no fato de que intuições categoriais e as

sínteses de identificação nela efetuadas expõem problemas e a necessidade de

complementação na própria teoria dos objetos categoriais (cf. LOHMAR,

2002, p.). Este problema não se reduz ao contorno semântico, mas abarca a

possibilidade de um papel epistemológico relevante para nominalizações.

Fraisopi, considera que o acento linguístico da intencionalidade e suas

diversas formações a possibilidade de variadas nominalizações e

modificações nos juízos (FRAISOPI, 2008, p. 19) caracterizam uma

relativização no realismo semântico de Husserl. Por outro lado, a

possibilidade de um sentido ideal não irá se sustentar na justificação de vários

graus dessas modificações, mas no início da tematização da posicionalidade

nos atos categoriais e o papel também determinante de atos imaginativos.

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Fraisopi vê nestas modificações o início da “transcendentalização” da

fenomenologia, que será continuada de forma mais ampla nas lições sobre a

teoria do significado de 1908 (cf. FRAISOPI, 2008, p. 17), atentando-se

também à imensa variabilidade das nominalizações e da múltipla

configuração sintática que a intencionalidade simbólica pode oferecer. Isto se

evidencia, textualmente, nos cursos de 1902 e de 1908.

Intuições categoriais incluem atos perceptivos e imaginativos, e os

dois podem participar de adequações definitivas. Contudo, somente a

percepção tem caráter de presença na plenitude, ao contrário da analogia

“presentificante” dos atos figurativos. Estes casos são estudados na descrição

e defesa da existência de intuições universais. Nestes casos, além de uma

variação constitutiva que não depende em absoluto da fundação sensível

intuitiva, temos possíveis variações de acordo com juízos categoriais de

ordem superior. Um exemplo na prática matemática é a abstração categorial

que podemos fazer, a partir de um dado teorema, para mostrar uma relação de

inferência ou instanciação de um axioma matemático.

No §52 da Sexta Investigação, são contrapostos estes caracteres

epistêmicos do conteúdo representante, em que a apreensão e doação evidente

deste tipo de objeto não é baseada na “posição de ser” dada ao ato (uma

asserção ou suposição, por exemplo, de um universal), mas na sua

possibilidade de preenchimento adequado, que pode se fundar tanto em

conteúdos analogizantes (para atos imaginativos) ou presentantes (para atos

perceptivos) do ato fundante (cf. HUSSERL, 2001b, p. 293, §52).

Um problema que se enfrenta ao tratar dos conteúdos intuitivos

categoriais são as próprias noções de “fundação” e fundamento. Tais relações,

em primeiro lugar, ontológicas, são referentes a conteúdos ideais e suas

referências objetivas (espécies puras), instanciados por conteúdos intuitivos.

Em segundo lugar, pela estruturação dos atos psíquicos e as relações de

preenchimento. Thomas Nenon não identifica na obra de 1900-1901,

entretanto, como essa distinção entre modelos de fundação “ontológica” e

“epistemológica” se sustenta, o que significa que Husserl não dá critérios

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claros e precisos para essa distinção (cf. NENON, 1997, p. 98; NENON,

1997, p. 110-111).

Husserl não hesita em usar essa mereologia de uma forma variada (por

exemplo, matéria e qualidade são momentos abstratos das vivências

intencionais; atos simples de juízo podem fundar nominalizações complexas;

a matéria funda relações de plenitude; todos os atos objetivantes são fundados

em representações representativas) (TAKÁCKS, 2008, p. 65). No entanto,

deve-se fazer uma distinção entre fundamento e fundação, sendo que o

“fundamento”, no sentido epistemológico tradicional, significa a assunção de

princípios ou evidências básicas que sustentam um sistema mais amplo de

crenças justificadas. Este sentido não é tematizado por Nenon, mas mais

profundamente por Takács. Epistemológica e descritivamente, portanto, as

representações representativas são a base para qualquer tipo de síntese mais

complexa, o que se revela problemático na constituição dos “representantes”

categoriais.

Na esfera gramatical lógica, Husserl afirma que as leis de combinação

entre significados pressupõem distinções mereológicas, que não são

idênticas, no entanto, aos objetos significado”. Como elucidado acima, essa

relação pode mudar no caso de nominalizações e também de atos

proposicionais que, sendo imediatamente vividos, podem ser modificados em

essência para atos nominais, com a mesma referência objetiva. Retomando o

sentido do exemplo de Husserl no §11 da Quarta Investigação, a proposição

“’E’ é uma conjunção” modifica o significado de um sincategoremático, e

isso idealmente, ou seja, efetuando-se também uma abstração ideatória da

essência significativa dos atos que perpassam tais expressões.

6. Considerações finais

Pode-se concentrar em dois grupos os resultados do uso dado por Husserl das

operações modificativas intencionais, a saber, epistemológicos e ontológicos.

Contudo, no segundo grupo, não se trata de uma alteração na objetividade

como tal das categorias lógicas, mas na estrutura legal das verdades e objetos

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lógicos e nos limites deste tipo de objetidade. Em contrapartida, no primeiro

grupo, os problemas constitucionais apontados acima não só entram na

justificação do realismo lógico e semântico husserliano, nem na possibilidade

da fenomenologia como ciência voltada ao ideal, mas - de modo mais amplo,

mas contextualizado nas Investigações -, na relação entre linguagem e

conhecimento na fenomenologia de 1900-1901, e de como Husserl lidou com

esses problemas e resultados.

A importância desse amplo questionamento se dá em decorrência da

natureza da lógica das Investigações como um empreendimento semântico

(isto é, voltado para o conteúdo unitário ideal significativo dos juízos e

conceitos - cf. KUSCH, 1989, p. 55), de como Husserl entende a fundação da

própria vida psíquica intencional e, finalmente, de como se constituem

relações legais nestes processos mesmos e as necessidades e possibilidades

implicadas nessas leis (cf. MULLIGAN, 2004, p. 401), e quais os níveis

justificáveis de variabilidade de tais possibilidades e necessidades.

Deste modo, a evidência e verdade de tais tipos de relações categoriais

tem uma dependência estrita com tais modificações: o “ser” dado na

adequação de essências epistêmicas e na correção da intenção é a

possibilidade realizada de recobrimento pleno da matéria (HUSSERL, 1980,

p. 96-97, §39). Viu-se já anteriormente que a critérios de possibilidade de

realização e síntese categorial, em um primeiro momento, devem

corresponder limites semânticos (pura significação – leis de contrassenso e

absurdo) e epistemológicos (decepção e unidade como conflito) de unificação

e identificação, mas cuja possibilidade de variação para níveis cada vez mais

superiores pode localizar unicamente a possibilidade ideal no campo das

significações e não na referência objetiva; e isso em representações

apreensivas enquanto sedes de sínteses.

Correlato ao conceito de existência ideal é o conceito de possibilidade

ideal, que é pura validez – atributo que caracteriza a esfera semântica como

suporte de verdade, mesmo não realizado objetivamente. Esta possibilidade é

desenvolvida descritiva e analiticamente em um conceito amplo de

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“conteúdo” com diferenciações que precisam dar conta da estruturação do

reino ideal enquanto atemporalidade, unidade e identidade, mas também na

realização das mesmas no que se refere aos caracteres de ato e dinâmica de

preenchimentos, inscritas na possibilidade anterior (enquanto conteúdo ideal)

mas que também condicionam possibilidades essenciais que servem de

fundamento no sentido mais amplo do termo, com a noção de representação-

apreensiva. Essa fundamentação, tanto em sentido ontológico formal e

epistemológico, é alterada, como se defende nesta comunicação, nas

modificações intencionais e significativas, pelas mesmas tanto serem

dependentes lógico-gramatical quanto epistemicamente.

Husserl objetivou trabalhar, já em 1913 o campo das possibilidades

nas essências epistêmicas com ampliação qualitativo-posicional da

constituição das mesmas e no uso do par conceitual atualização-

potencialização dentro do contexto também da fantasia (cf. MELLE, 2002, p.

121). O recorte conceitual feito nesta comunicação é centralizado na

correlação suportada pela matéria, ou seja, o contexto conceitual fornecido

em 1900-1901, e não nos conceitos desenvolvidos a partir do período

transcendental; mas isso é uma percepção do próprio Husserl quanto à

importância de se dar atenção às possibilidades. O que se defende nesta

comunicação é que essa base descritiva e semântica-lógica já existia, com

limitações e problemas próprios.

Enfim, à assunção de que a intencionalidade linguística é em si o

laboratório da intencionalidade mesma adquire um sentido mais clarificado;

mas, a despeito de Benoist e Fraisopi, se buscou mostrar que as modificações,

apesar de implicarem problemas no conceito de existência, não prescindem

dele e apresentam a peculiaridade de uma crítica interna às relações (em si

legais) da mereologia husserliana.

Referências

BENOIST, J. Intentionalité et Langage dans les Recherches Logiques de Husserl. Paris: Presses Universitaires de France, 2001(Epiméthée).

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DISTÂNCIA E AUSÊNCIA NO PENSAMENTO DO “NEGATIVO”

NO JOVEM EUGEN FINK

Anna Luiza Coli

Introdução

Eugen Fink, último assistente e colaborador de Husserl, ainda é um pensador

muito pouco conhecido no meio acadêmico. É bem verdade que ele teve a

grande sorte – o que, em seu caso, pode ter sido um inconveniente – de

disputar seu lugar ao sol com dois dos maiores filósofos alemães do século

XX, Husserl e Heidegger. Mas por outro lado, acredito que houve aí uma série

de outros elementos além de acasos ou “ironia” do destino. Fink não deixou

de ser uma figura polêmica mesmo quando ainda era assistente de Husserl, e

as razões disso passam certamente por uma afiliação teórica que o fez

interpretar e apresentar a fenomenologia husserliana – e aqui eu cito o

testemunho de Walter Biemel –: “à luz do pensamento especulativo do

idealismo alemão”.1 Mais notadamente, Fink foi bastante instigado pela

filosofia de Hegel, muito provavelmente influenciado pelo ‘renascimento do

hegelianismo’ que a Alemanha experimentava há poucos anos.2 Mesmo Edith

Stein, assistente de Husserl de 1916-1918, acusou Fink de deturpar a filosofia

husserliana e de transformá-la em algo “completamente diferente e distante

de seus propósitos”3. O rebuliço gerado pela acusação levou os editores da

Kant-Studien a exigirem de Husserl uma declaração em que reconhecia Fink

como legítimo representante do seu pensamento, sob pena de recusar o artigo

de 1933 no qual Fink apresentava A filosofia fenomenológica de Husserl face

1 Biemel, Walter. “Zum Abschluss des Fink-Symposions” in Eugen-Fink-Symposion 1985

(Schriftenreihe der Pädagogischen Hochschule Freiburg: Band II, 1987), p.111. 2 Cujo marco fundamental foi o discurso que Windelband pronunciou sobre a “Renovação

do hegelianismo” em Heidelberg, no ano de 1910. 3 Cf. De Waelhens, A. “L'idée phénoménologique d'intentionnalité” in: VAN BREDA &

TAMINIAUX (Ed.) Husserl et la pensée moderne/ Husserl und das Denken der Neuzeit. Martinus-Nijhoff, Den Haag, 1959, pp. 115-129; 129-142.

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à sua crítica contemporânea4. Se a declaração de Husserl colocou panos

quentes sobre a discrepância que se fazia cada vez mais evidente, por outro

lado ela contribuiu para a confusão que se criou em torno da autoria de

algumas ideias e até mesmo de algumas obras. A VI. Meditação Cartesiana,

escrita por Fink para integrar o projeto de revisão do conjunto das Meditações

husserlianas, foi durante muito tempo atribuída a Husserl.5

Bem, esta é uma história tão longa quanto intrigante, mas que deixo

para outro momento. Para os propósitos da presente contribuição, no entanto,

nos interessa enfatizar a reviravolta que o conceito de ‘negativo’, em sua

inspiração hegeliana, impôs à interpretação da fenomenologia que Fink

propõe desde as suas primeiras obras. Para abordar essa questão mais

sistematicamente, e de modo a indicar a centralidade que ela assume no

conjunto do pensamento de Fink, escolhi falar aqui do que costumo chamar

de ‘figuras do negativo’, ou seja, conceitos que Fink emprega para apresentar

esse traço negativo em suas diferentes perspectivas, incidindo sobre

diferentes aspectos do seu pensamento. Dentre essas ‘figuras’ ou os

‘momentos’ do negativo, escolhi as duas que talvez caracterizem melhor essa

instituição de uma nova forma de pensar a fenomenologia, a saber: a distância

e a ausência.

1. O sentido de negativo:

Mas em primeiro lugar é necessário levantar uma questão fundamental: a que

nos referimos quando falamos aqui de ‘negativo’? Grosso modo e

didaticamente podemos dizer que o ‘negativo’ é aquilo que nos permite

enxergar os limites de todo discurso ‘identitário’ ou, por assim dizer,

‘positivo’ da tradição filosófica, para então abrir uma nova perspectiva a

partir da qual os problemas essenciais da filosofia podem ser recolocados. O

4 “Die phänomenologische Philosophie Edmund Husserls in der gegenwärtigen Kritik”, in

Studien zur Phänomenologie 1930-1939. Martinus Nijhoff: Den Haag: 1966, pp. 79-156. 5 Sobre isso ver: Luft, Sebastian. Phänomenologie der Phänomenologie. Systematik und

Methodologie der Phänomenologie in der Auseinandersetzung zwischen Husserl und Fink. Kluwer Academic Publishers: Dordrecht, 2002, p. 143.

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negativo é aquilo que nos permite partir do pressuposto de uma identidade

que só se reconhece como tal uma vez situada entre a “identidade e a não-

identidade”. A lógica do dizer outro ao dizer do mesmo está no fundamento

da estrutura dialética do pensamento que Fink incorporou ao núcleo

fundamental do método fenomenológico.

Já na Introdução à obra Presentificação e Imagem de 1929 –

doutorado escrito sob a orientação de Husserl e de Heidegger – Fink enfatiza

a importância da tarefa propedêutica da análise fenomenológica de

“elucidação de um equívoco filosófico” que determina a forma específica do

questionar fenomenológico. No entanto, essa tarefa não pode ser realizada 1)

nem estabelecendo um ponto de partida apodítico da reflexão filosófica, ou

seja, encontrando um fundamento seguro e rigoroso do conhecimento, e

tampouco 2) pela criação de novos termos, como se os conceitos que

perpassaram a tradição filosófica e se tornaram ‘viciados’ por desvios

metafísicos quaisquer pudessem ser simplesmente passados a limpo. Aí, mais

do que uma crítica ao cartesianismo de Husserl por um lado, e ao

‘heidegerianês’ de Heidegger, por outro, revela-se a necessidade de usar o

pensamento e os próprios conceitos filosóficos contra si mesmos, de instituir

o discurso filosófico como um “discurso de protesto” que tem diante de si o

desafio de dizer o que não pode ser dito. O negativo é essa tendência do

pensamento de romper o limiar do que é oposto e inconciliável e confundir as

fronteiras. O dizer do mesmo ao dizer do outro, o dizer aquilo que não pode

ser dito, os conceitos ‘de protesto’ ou ‘meônticos’ – vamos voltar a isso – são

algumas das manifestações possíveis dessa estrutura central que articula todo

o pensamento de Fink.

2. Distância e ausência:

Fink inicia as considerações metodológicas de Presentificação e Imagem com

uma alusão evidente a Ser e Tempo ao afirmar que todo perguntar filosófico

está já e necessariamente inserido na dimensão mais imediata da ‘pré-

compreensão’ do mundo e tem seu ponto de partida justamente aí, nesse ‘estar

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no mundo’ do qual não pode absolutamente abdicar ou ‘despir-se’ para

encontrar a região do pensamento puro. A primeira relação que temos com o

mundo é anterior a toda teorização e se caracteriza pela habitualidade das

reações espontâneas e diretas às demandas mais imediatas do mundo prático.

Aprendemos a reagir às eventualidades do mundo prático a partir de padrões

de comportamentos que aprendemos vendo como as outras pessoas se

comportam, antes mesmo que sejamos capazes de refletir teoricamente sobre

essa dimensão imediata do existir no mundo. Isso significa que nossa relação

com o mundo é tal que não nos deparamos primeiramente com algo para só

em seguida lhe atribuir um sentido, mas que esse sentido é dado de modo

irrefletido e imediato justamente porque estamos já incluídos num complexo

de sentidos e valores, formados por redes de interações linguísticas e culturais

que constituem o ‘lugar’ deste nosso ‘estar no mundo’. O mundo, para aquele

que dele faz experiência, é sempre já dado, já constituído. Nesse contexto, a

passagem a uma ‘orientação transcendental’ não é feita por meio de uma

decisão de exilar o pensamento em uma dimensão purificada de tudo o que é

mundano para fundar uma ciência rigorosa mas – e aqui Heidegger

novamente se sobressai – o pensamento inaugura a dimensão da orientação

natural quando sente a necessidade de romper com a imediaticidade da

relação imediata e irrefletida com o mundo para se colocar questões mais

fundamentais. Segundo Fink, portanto, a passagem da orientação natural à

transcendental, marcada pela redução fenomenológica, não implica uma

mudança na estrutura ôntica que suspende a tese geral do mundo para voltar-

se ao seu aspecto noemático. A orientação transcendental tampouco exclui

toda referência à orientação natural como se se tratasse de uma ‘superação’

que a ‘invalidasse’ como objeto da análise fenomenológica mas, ao contrário,

elas estão necessariamente vinculadas uma à outra na medida que a orientação

natural é o resultado constitutivo que só se apresenta enquanto tal – ou seja,

enquanto resultado de uma constituição – se vista do ponto de vista de uma

orientação transcendental, i.e., a partir da perspectiva que rompe com a

imediaticidade prática para perguntar-se pela ‘origem’ do mundo. A redução

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fenomenológica, portanto, representa essa ruptura com a dimensão do

irrefletido para perguntar-se pela origem daquilo que experimentamos como

já constituído. É nesse sentido que – como testemunham tanto Merleau-Ponty

quanto Lyortad – há uma definição possível de redução fenomenológica

como uma espécie de thaumázein, como uma admiração ou espanto diante do

mundo, como a disposição daquele que vê o mundo como problema e não

apenas como o lugar habitual do viver cotidiano e prático. O mundo, de

campo imediato do viver e do agir, se torna a mediação que permite ao

fenomenólogo colocar a pergunta fundamental pela origem e pelo sentido

tanto deste mundo quanto do existir-aí, do ‘estar no mundo’ que é condição

da pergunta. Esta mediação significa, em última instância, a tomada de

distância da própria situação mundana para que o fenomenólogo faça dela seu

objeto de análise.

A radicalidade desta ideia de distanciamento fica evidente na figura

do ‘espectador transcendental’ que Fink apresenta em sua VI. Meditação

Cartesiana. Também chamado “Eu fenomenologizante”, este ‘espectador’

representa o termo intermediário entre o Eu mundano e o Eu transcendental

ou, para dizer de outro modo, é o que permite a passagem de um a outro e,

nesse sentido, atua como o ‘índice’ da cisão que marca a atividade do sujeito

que filosofa de estar em meio ao mundo ao mesmo tempo em que faz dele seu

objeto de análise. A toda redução fenomenológica, portanto, corresponde

tanto 1) uma situação, que é o horizonte do mundo no qual se insere o sujeito

– e aí ele é o ‘eu mundano’ – quanto 2) uma abertura ao transcendental que é

feita pelo questionamento da origem e do sentido desta mesma situação – e

temos aí o ‘eu transcendental’. Em suma, a toda redução fenomenológica

corresponde tanto uma orientação natural quanto uma transcendental, mas

estas correspondências são descobertas por aquele ‘eu’ que está entre elas,

que as observa a partir de uma distância que é tanto da imediaticidade do

mundo quanto da dimensão puramente transcendental, e que, portanto,

observa a relação de constituição entre eu mundano e transcendental sem, no

entanto, participar dela. Essa distância que explicita a diferença entre o ser

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constituinte (tema do espectador) e o ser agente (tematizador, eu mundano)

no interior do espectador transcendental não é uma diferença como outra

qualquer, mas representa uma cisão na própria vida transcendental, uma

‚identidade na diferença‘ que é a condição de possibilidade do voltar-a-si-

mesmo da subjetividade transcendental.

Vale a pena interromper o argumento neste ponto para fazer uma

breve observação terminológica: Por se tratar de um projeto comum no qual

as 5 primeiras Meditações de Husserl seriam revisadas e às quais seria

acrescentada uma 6ª, de sua autoria, Fink evidentemente se abstém de

empregar conceitos e termos próprios que foram criticados e rejeitados por

Husserl ao longo do trabalho. Muito habilmente, no entanto, Fink buscou

alternativas para substituir seus próprios conceitos, rechaçados por Husserl,

por termos correspondentes que ficavam como que ‘escondidos’ em meio à

terminologia husserliana. Só recentemente, com a publicação das notas de

trabalho privadas, podemos reconstruir o contexto mais amplo no qual os

termos próprios e os por assim dizer ‘escondidos’ se revelam como

correspondentes. O exemplo mais notório desse procedimento acontece com

o conceito de meôntico, expoente máximo do pensamento do ‘jovem Fink’,

mas que não aparece de modo explícito em nenhum dos textos publicados à

época em que foi assistente de Husserl. Toda a radicalidade do conceito de

me-on – daqui a pouco explico o que isso significa – é camuflado aí por

termos como ‘pré-ser’, ‘pré-existente’, ‘ainda não-ente’, etc. 6 Mas isso

também acontece com o conceito de subjetividade transcendental aqui. Em

suas notas privadas, a subjetividade ou ainda o ‘eu’ transcendental, aparece

como subjetividade absoluta ou simplesmente como absoluto. Longe de ter o

sentido de uma ‘universalidade abstrata’, o absoluto representa a dimensão

constitutiva do sentido do mundo e da própria existência que se atualiza a

cada interação de mundo e consciência. O absoluto é a universalidade

concreta que atua como o sentido de totalidade que possibilita o sentido da

6 Cf. Bruzina, Ronald. “Translator's Introduction” to Sixth Cartesian Meditation,

Indianapolis: Indiana University Press, 1995.

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existência humana no mundo que é o seu. Isso fica mais claro se voltamos à

argumentação que Fink desenvolve na 6ª Meditação Cartesiana: o que o

espectador transcendental observa da distância que o define é justamente a

interação entre a experiência intuitiva do mundo própria ao eu mundano e a

rede simbólica e linguística que lhe antecede e que, no entanto, possibilita

esse estar no mundo imediato e anterior a toda reflexão. Mesmo antes de se

colocar questões fundamentais, o eu mundano se constitui já em meio ao

mundo e a todo um complexo de práticas e costumes que lhe permitem antes

de tudo ter uma vida significativa anterior a qualquer reflexão filosófica. É a

partir deste contexto mundano pré-doado que o eu mundano pode então atuar

como constituidor de sentido da própria existência e influenciar e transformar

essa mesma rede de significados na qual ele primeiramente se constituiu.

Desta forma, o sentido da ideia que só muito rapidamente aparece no texto da

VI. Meditação (o que já foi suficiente para suscitar duras críticas de Husserl),

mas que se esclarece nas notas de estudo do mesmo período, qual seja, a ideia

de que, em certo sentido, o eu mundano coincide (ou incide junto, acontece

ao mesmo tempo) com a subjetividade transcendental ou com o absoluto, está

no fundamento da designação do humano como aquele que “ocupa-o-lugar”

do absoluto no mundo – e a palavra alemã é Platzhalter ou, literalmente, o

lugar-tenente, lieutenent, aquele que detém ou ocupa uma posição no lugar de

outro. E o eu mundano “representa” o absoluto em dois sentidos específicos:

ele é, por um lado, o ponto de incidência do absoluto no mundo, a

manifestação mundana do absoluto, a sua ‘Ontificação’; por outro lado, é pelo

filosofar humano que o absoluto, uma vez ‘mundanizado’ ou ‘ontificado’,

torna a si mesmo: reconhece-se como absoluto – processo que Fink nomeia

‘Absolução’.7 Para dizer de outro modo: o espectador transcendental é a

mediação através da qual a subjetividade transcendental e constituinte do

sentido da existência humana pode se reconhecer, mediante a reflexão

7 Fink, Phänomenologische Werkstatt 1 / 2. BRUZINA, R. (Hg). Eugen Fink

Gesamtausgabe. Hans Rainer Sepp und Cathrin Nielsen (Hgs.) Verlag Karl Alber: Freiburg/ München. (2006 / 2008). Doravante citados como PW/1 e PW/2, seguidos do número de página. Para esta passagem ver PW/2, p. 306.

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filosófica que se pergunta pelo sentido do mundo e da existência, enquanto

manifestação do transcendental, como transcendental. Pela reflexão

filosófica, o absoluto constituinte se torna consciente do processo de

constituição, ou seja, o transcendental reconhece o mundano como o

resultado da constituição que é, ela mesma, transcendental – porque estamos

ainda sempre numa dimensão do ‘sentido’.

O espectador transcendental é o índice da cisão entre Eu mundano e

transcendental na medida que, uma vez ciente da relação de constituição que

se estabelece entre eles, reconhece o transcendental ontificado no Eu

mundano, e este como ‘representante’ ou ‘aquele que ocupa o lugar’ do Eu

transcendental no mundo. Esta identidade na diferença, que Fink formula

como a “oposição do permanecer igual a si mesmo”8, é a condição de

possibilidade do ‘voltar a si mesmo’ da subjetividade transcendental. Para

citar um trecho da VI. Meditação, Fink afirma aí que “Através da produção

do espectador transcendental alcançamos um novo e colossal campo

temático: a esfera da subjetividade transcendental, encoberta e latente na

orientação natural.”9 A redução fenomenológica, enquanto tomada de

consciência da cisão inerente ao Eu através da ‘produção’ do espectador

transcendental, é o passo que a vida transcendental dá para fora de si mesma,

é a distância que ela toma de si para reconhecer-se como aquilo que de fato

é.

Esse Fürsichwerden, esse “tornar-se um ‘para si’” – e esta expressão

é retomada textualmente por Fink – do transcendental que tem na distância

representada pelo espectador sua condição de possibilidade, é a primeira

figura do negativo que se instaura no interior da identidade consigo mesmo,

e que pudemos apresentar aqui só brevemente. Mas Fink concebe ainda uma

segunda tarefa mediante a qual o espectador transcendental vai além de sua

atuação como ‘mero espectador’ para se tornar ‘Eu fenomenologizante’ no

8 Fink (1988) VI. Cartesianische Meditation: Teil I. Die Idee einer transzendentalen

Methodenlehre. Husserliana Dokumente II/1. Kluwer Academic Publishers, 1988, pp. 25 e 26. Doravante citado como VI. CM.

9 VI. CM, p. 46

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sentido de uma atuação fenomenológica, qual seja, a ‘produção de sentido’.

Essa evolução que acontece no interior da estrutura do espectador

transcendental, ou melhor, do termo intermediário entre o mundano e o

transcendental, é o fundamento da diferença que Fink estabeleceu entre uma

‘Fenomenologia Regressiva’ e uma ‘Fenomenologia Construtiva’.

A Fenomenologia Regressiva é a análise fenomenológica do processo

de constituição que se estabelece entre os Eus mundano e transcendental. O

fenomenologizar tem aí uma função de espectador distanciado que refaz o

caminho da constituição e se reconhece como constituído ao mesmo tempo

que constituinte. Objeto de análise da Fenomenologia Regressiva é, portanto,

tudo aquilo que é ‘já constituído’, e seu domínio é o da Endkonstituiertheit,

ou seja, da constituição realizada. É o processo, realizado – como vimos –

pela observação distanciada do espectador transcendental, pelo qual o mundo

e as coisas das quais temos experiência intuitiva e imediata são reconhecidos

como o resultado de um processo de constituição. Mas esta análise, por

profunda que ela possa se revelar ao se colocar a pergunta pelo vir-a-ser de

algo no interior do fluxo temporal da consciência, não é radical o suficiente

para se colocar a pergunta pela origem mesma da temporalidade e da

consciência. Se a Fenomenologia Regressiva se pergunta pela origem daquilo

que é constituído, a Fenomenologia Construtiva, ao contrário, pergunta-se por

aquilo que não foi constituído mas que é constituinte, ou seja, se o escopo da

Fenomenologia Regressiva é o do ôntico, do que existe, o da Fenomenologia

Construtiva recai sobre o que é anterior a esta mesma existência ôntica, ao

que é não-dado, ao que é me-ôntico.

Em duas notas escritas entre 1929 e 1930 – provavelmente após o

trabalho de redação da tese Presentificação e Imagem – o meon é definido

como aquilo que está “além do sentido de ser” e, desta forma, a negação

indicada pela partícula grega me se distingue da negação da partícula ouk, que

indicaria a negação da realidade da coisa. A partícula ‘me’ da construção

conceitual me-ôntico nega, portanto, a apreensibilidade de algo sem afirmar

absolutamente nada em relação à sua existência real ou efetiva – como seria

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o caso da partícula ouk. O objeto da pergunta meôntica da Fenomenologia

Construtiva, portanto, é a ausência de toda doação possível: é o não-dado por

excelência: o nascimento e a morte são, por exemplo, problemas de

‘fronteiras’, apontam para ‘abismos’ do pensamento em relação aos quais a

consciência deve proceder não mais intuitivamente, mas agora

construtivamente, de modo a projetar-se para além do que é dado de modo

intuitivo. Isso nada mais é, segundo um exemplo do próprio Fink, que a

“projeção matemático-geográfica de uma espacialidade pura como

explicação prévia a priori da natureza na física”.10

Assim, se o espectador transcendental era um mero espectador

distanciado que observava a constituição ôntica sem participar dela na

Fenomenologia Regressiva, na Fenomenologia Construtiva ele é impelido à

tarefa de construir o sentido daquilo que está ausente enquanto doação, é

incumbido de colocar-se a pergunta fundamental pelo ‚início não-dado‘11 da

consciência no mundo, ou mesmo pelo que acontece à consciência quando o

eu mundano morre. Na formulação que Fink propõe em sua Sexta Meditação,

o Eu que fenomenologiza toma como objeto seu objeto de análise não mais o

mundo constituído de sua experiência imediata, mas a si mesmo. Isso pode

parecer paradoxal num primeiro momento, mas é, na verdade, a ‘deixa’ que

nos permite voltar à determinação do humano como ‘lugar-tenente’ do

absoluto no mundo: o índice da ontificação mundana do absoluto que, através

do filosofar humano, volta a si como consciência de si mesmo enquanto

Absoluto, ou seja, enquanto absolução. Nesse sentido, o proceder construtivo

da fenomenologia insere o espectador transcendental no domínio do

meôntico, instiga-o a uma experiência diferente – à qual ele se refere como

‘fenomenologizante’ – e que corresponde à constituição de sentido daquilo

que está ausente de todo campo de ‘experiência teórica’. Cito aqui uma

passagem esclarecedora da Sexta Meditação de Fink: “Da mesma forma como

a experiência teórica é, de modo geral, relativa ao ente, a experiência

10 VI. CM, p. 8. 11 VI. CM p. 68.

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fenomenologizante é analogamente relativa à constituição de mundo ‘em si’

não existente, mas tampouco não inexistente. Se todo ente – de acordo com a

intuição transcendental da fenomenologia – nada mais é que um tornar-se

constitutivo, então o tornar-se do ente na constituição não é ele próprio já um

ente”.12

Para dizer de outro modo: O espectador transcendental objetifica os

processos constituintes ao retirá-los do seu estado de pré-existência, de sua

condição ‘meôntica’, ao tematizá-los, ao transformá-los em tema da

fenomenologia. E nesse sentido é que sua atividade se transforma da

observação à produção. Para o eu fenomenologizante, o sujeito da experiência

que transforma em sentido aquilo que estava ‘para além de todo sentido’, o

seu domínio de atuação – o meôntico – é refratário a toda apropriação

conceitual e referência ôntica, i.e., não se pode atribuir um sentido definitivo

ao que é anterior a todo sentido, não se pode ontificar permanentemente o que

é por excelência não-ôntico. E aqui ressurge a força do negativo enquanto

configuração essencial do discurso filosófico: se toda linguagem, como todo

conceito, é referido a um sentido e, portanto, à existência de algo que é

apreensível, à presença ôntica disso a que nos referimos, então o desafio do

discurso filosófico próprio à experiência fenomenologizante, que é

experiência do meôntico, do anterior ao sentido, é a de descobrir um modo de

presentificar o que é por definição ausente e, assim, de expressar a

impossibilidade de expressão, de dizer o que não pode ser dito. É aí – e

voltamos à inquietação de Fink diante de um ‘equívoco filosófico’

fundamental – que se revela o grande desafio do meôntico e, do mesmo modo,

do absoluto: manifestar-se no mundo, assumir, portanto, uma forma ôntica.

Se o absoluto se manifesta no mundo através da reflexão filosófica humana,

o meôntico só pode se mundanizar, ou seja, dar-se no mundo como

aparência, como uma auto-manifestação protestante, como um aparecer que

se dá apenas enquanto um ‘protesto’ pela impossibilidade mesma de aparecer.

12 VI. CM p. 82.

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É uma aparência que remete, portanto à ausência daquilo que não pode

aparecer, é uma manifestação que aponta para aquilo que não pode ser

manifesto – é um símbolo enquanto presença de uma ausência. O discurso

filosófico só é capaz de escapar ao equívoco que ameaça toda dimensão

conceitual se lograr se manifestar como ausência, se cumprir sua função de

apontar para o que não pode se manifestar naquilo que de fato se manifesta.

3. Considerações finais:

É nesse contexto – totalmente estranho à fenomenologia husserliana – de uma

centralidade do elemento estruturante do negativo, portanto, que Fink dá nova

vida à caracterização da fenomenologia como um sistema aberto. Por um

lado, compreender a fenomenologia como um método sistematicamente

aberto implica reconhecer a impossibilidade de alcançar um ponto

determinado a partir do qual se filosofa, de alcançar um terreno resguardado

no qual o pensamento está assegurado e protegido em uma dimensão

transcendental. A abertura sistemática do método fenomenológico, ao

contrário, “impossibilita que um nível determinado ou um conceito

determinado de fenomenologia seja tornado absoluto.”13 A ideia fundamental

é de que o fazer filosofia consiste na execução, a cada vez (jeweilig), do seu

método próprio – a redução – e não na conquista de um lugar supremo e

seguro do filosofar. A redução parte sempre e de novo da sua situação

mundana que se dá a cada vez ao eu que fenomenologiza para que este possa

projetar aí uma espécie de ‘complexo’, de enquadramento dentro do qual a

subjetividade constituinte da consciência torna-se consciente de si mesma, de

sua coincidência com o eu mundano, e da interação entre eles que faz do

sentido transcendental de ‘mundo e consciência’ algo sempre em movimento,

que deve ser sempre atualizada a cada execução da redução fenomenológica

que então persiste nesse movimento circular entre o mundano e o

transcendental.

13 VI. CM p. 8.

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Por outro lado, e esse é o ponto é determinante na medida que

estabelece a estrutura fundamental da ‘filosofia cosmológica’ que Fink

desenvolve nos anos posteriores à morte de Husserl e ao fim da 2ª Guerra

Mundial, Fink compreende sob a ideia de ‘abertura’ aquilo que chama

também de ‘sistemática’ da filosofia. Na esteira de Hegel, Fink considera

como sistema toda consideração de uma perspectiva projetiva sobre algo, ou

seja, a perspectiva de algo como se fosse uma totalidade, um sistema em

relação ao qual é possível atribuir às ‘partes’ um sentido que as considere em

relação a este todo. A antecipação de um sistema, ou seja, a situação projetiva

de um enquadramento que possa conferir significado a um determinado

objeto – por exemplo, o mundo, ou a constituição do mundo e da consciência

– é a saída ‘especulativa’ que Fink encontra para lidar com os objetos próprios

de sua ‘fenomenologia construtiva’ que, ao contrário dos objetos da

‘fenomenologia regressiva’, não são dados de antemão. Mas deixo esse

aspecto para uma discussão futura.

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O DESPERTAR DO INFINITO NA FINITUDE: UMA ANÁLISE DO

JOGO NA OBRA “JOGO COMO SÍMBOLO DO MUNDO” DE

EUGEN FINK

Camila Ferreira de Oliveira

Introdução

O nosso intuito, aqui, é realizar uma análise do problema do jogo na obra

“Jogo Como Símbolo do Mundo”1, do filósofo alemão Eugen Fink2. Apesar

de sua significativa contribuição para o pensamento filosófico do século XX

e início do século XXI, a filosofia de Fink ainda permanece sendo pouco

estudada sob o ponto de vista de sua singularidade. O autor é comumente

abordado a partir da perspectiva de suas contribuições a filósofos como

Husserl e Heidegger, que, apesar de serem importantes interlocutores de Fink,

não significam todo o horizonte do seu fazer filosófico3.

Propomo-nos nesta análise a colocar a filosofia de Fink como

protagonista a partir do recorte temático do jogo. Tal tema, que já havia sido

trabalhado pelo autor em “Fenômenos Fundamentais da Existência Humana”

(2011)4, ganha contornos mais específicos em “Jogo como Símbolo do

Mundo”, texto que será a referência principal deste artigo. Para o

desenvolvimento da análise, usaremos a tradução inglesa desse texto,

realizada por Alexander Moore e Chistopher Turner, que, originalmente,

encontra-se em alemão.5

1 FINK, Eugen. Play as Symbol of the World. Tradução de: Alexander Moore e Chistopher

Turner. Bloomington (EUA): Indiana University Press, 2016. Todas as traduções desse texto de Fink, salvo indicação contrária, são de minha própria autoria.

2 1905-1975 (Alemanha) 3 Uma breve exposição da vida de Fink é feita na introdução do livro Play as Symbol of The

World and Other Writings, escrita pelos tradutores Alexander Moore e Chistopher Turner.

4 FINK, Eugen. Fenómenos Fundamentales de la Existencia Humana (extrato). Tradução de Cristóbal Holzapfel. Em: Revista Observaciones Filosóficas, maio. 2011. Tradução de: Grundphänomene des menschlichen Daseins.

5 O texto original é de 1960.

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No primeiro capítulo de “Jogo como Símbolo do Mundo”, além de

justificar a possibilidade de se compreender o jogo a partir de uma perspectiva

filosófica, Fink expressa a intenção de sua pesquisa: “Entender a posição

humana no mundo sob a orientação de uma compreensão específica do

jogo.”6.

No segundo capítulo, o autor apresenta uma abordagem do jogo sob a

perspectiva da metafísica ocidental, principalmente a partir da influência da

teoria platônica, segundo a qual o “Jogo é explicado fundamentalmente como

reprodução e imitação, é determinado enquanto mimesis”.7 Esse conceito de

mimesis, para Fink, significa “o verdadeiro desencanto do jogo”, pois o

concebe apenas enquanto “mera reprodução da ‘realidade’”8.

Contrapondo-se à noção platônica, no terceiro capítulo, Fink

apresenta outro caminho interpretativo para o jogo a partir de sua dimensão

presente nos cultos ritualísticos. Segundo o autor, “[...] o jogo-do-culto

constitui o centro do mundo da vida primitiva, o ato fundamental da sua

autocompreensão e autointerpretação”.9

No quarto e último capítulo, Fink (2016) apresenta uma terceira

interpretação do jogo, que o compreende como uma relação que a existência

humana estabelece com o mundo, uma “relação-mundo”. Tal interpretação

construída por Fink concebe o “jogo humano de uma forma especialmente

distinta na qual a existência se relaciona com entendimento ao todo do qual

faz parte, e deixa que o todo ressoe através dela”.10 Tanto a crítica de Fink à

interpretação metafísica do jogo, por meio da filosofia platônica, quanto a

interpretação do jogo no mito, apresentada pelo autor através de um olhar à

vida primitiva e à sua dimensão cúltica-ritualística serão retomadas ao longo

deste artigo a fim de que se compreenda como Fink chega à interpretação do

jogo como símbolo do mundo. Esta interpretação é estruturada pelo autor a

6 FINK, 2016, p. 54. 7 Ibid., p. 107. 8 Ibid., p. 125. 9 Ibid., p. 160. 10 Ibid., p. 206

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partir de três noções fundamentais, a saber: totalidade, medialidade e símbolo.

Tais noções serão aprofundadas ao longo de nosso texto cuja estrutura seguirá

em diálogo com o caminho argumentativo traçado por Fink em “Jogo como

Símbolo do Mundo”.

1. As interpretações do jogo na metafísica e no mito

1.1 A interpretação do jogo na metafísica

Fink interpreta que é na filosofia de Platão que se constrói sistematicamente

a base da metafísica ocidental, pois o pensamento platônico “opera por meio

da distinção entre a realidade arquetípica e a reprodução de imagens

primordiais, a fim de realizar separações ontológicas fundamentais”.11 O fato

é que, ao estabelecer as noções de mundo inteligível e mundo sensível, Platão

precisou explicar a relação entre ambos, e é exatamente esse ponto da teoria

platônica que interessa na interpretação do fenômeno do jogo para Fink; “a

noção de que cada coisa finita e transitória refere-se à ideia e é testemunha

dela, manifestando-se como uma reprodução imperfeita e imagens

primordiais”.12

Como algo finito e transitório pode se assemelhar a algo não-

transitório, à ideia? A resposta platônica aponta para as noções de “sombra”,

“reprodução” e “espelhamento”13. Segundo Fink (2016), Platão usa esses

fenômenos particulares, que pertencem ao domínio das coisas sensíveis,

como “modelos operativos de pensamento”, por meio dos quais busca

explicar essa complexa relação que se estabelece entre a realidade e a não-

realidade; entre o mundo inteligível e o mundo sensível.

Na perspectiva platônica, “o pintor e o poeta não produzem nada real;

eles criam apenas imagens [...] imagens-espelho da realidade ordinária das

coisas evidentes aos sentidos”.14 Portanto, o artista apenas reproduz aquilo

que já é uma reprodução de algo mais elevado; dito de outro modo, ele produz

11 Ibid., loc. cit. 12 FINK, 2016, p. 93. 13 Ibid., p. 94. 14 Ibid., p. 103.

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imagens-espelho a partir do mundo sensível, que, por sua vez, é uma

reprodução imperfeita do mundo das ideias. Mas, questiona Fink, “é

realmente o caráter imitativo do jogo sua característica fundamental, a

substância de sua essência?”15

Segundo Fink, compreender o mundo-do-jogo e a “não-realidade” por

meio da qual ele opera como uma “reprodução residual” de uma realidade

mais válida, por assim dizer, é interpretar o fenômeno do jogo a partir de uma

perspectiva negativa. E se mudarmos essa maneira de interpretar a “não-

realidade”? E se pensarmos que, talvez, ela não seja menos, mas mais do que

a simples realidade das coisas? E se essa “aparência” que se instaura com o

fenômeno do jogo for algo além de mera semelhança?16 E se interpretarmos

isso como um símbolo? Mas, o que vem a ser um símbolo? Tomemos fôlego

para continuar esta jornada!

1.2 A interpretação do jogo no mito

Fink abre o terceiro capítulo de “Jogo como Símbolo do Mundo” (2016) com

o desejo de remover as “lentes do desencanto”, com as quais a metafísica

tradicional nos fez enxergar o jogo como mera reprodução da realidade e, para

além disso, estabelecer um “novo horizonte” a partir do qual poderia ser

possível interpretarmos o jogo sob a perspectiva do encantamento. Esse

“novo horizonte” diz respeito à dimensão cúltica da vida, predominantemente

presente no Período Arcaico, no qual, segundo Fink, “a ‘não-realidade’ do

mundo do jogo possuía um caráter ontológico elevado, acima das coisas

ordinárias do cotidiano”.17

Segundo Fink, “o culto é uma tentativa de restabelecer a primordial

luz do mundo para todos os indivíduos, coisas finitas”.18, é, portanto, um

15 Ibid., p. 108. 16 Ibid., p. 119, grifo do autor. 17 FINK, 2016, p. 206. 18 Ibid., p. 129.

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desses momentos por meio dos quais “os seres finitos se tornam verdadeiros

símbolos e experienciam uma completude mundana primordial”.19

Sobre isso, Fink nos traz o exemplo do culto aos mortos, que, embora

se dê de formas variadas em diferentes culturas e períodos históricos, é

bastante simbólico na vida dos seres humanos em um âmbito geral, pois é um

momento no qual experienciamos o poder do todo do mundo, que, em seu

curso constante, dá-nos a vida e nos tira dela.

[...] quando nós enterramos os mortos, devolvemos eles aos elementos, essa atividade também torna-se um símbolo para nós: no caso do ser humano que partiu, o qual nós devolvemos à terra, o retorno de todas as coisas aparentes ao inominável e inefável chão acolhedor pode se tornar claro e significante para nós.20

Portanto, é por meio do culto que nós buscamos preservar e reter essa

profunda ligação com o mundo, que não se faz latente em nós em momentos

cotidianos. Nesse sentido, é por isso que Fink encontra, nos cultos arcaicos e

em suas narrativas mitológicas, um caráter ontológico mais elevado da não-

realidade instaurada pelo jogo, pois era por meio dela que os seres humanos

primitivos se relacionavam com o poder do mundo.

O ser humano arcaico ainda não tinha à sua disposição a infinidade de

conceitos e esquemas científicos rigorosos para interpretar o desconhecido;

ele fazia uso das narrativas mitológicas para explicar o inexplicável;

acreditava em demônios para justificar as forças superiores que agiam sobre

sua vida; “[...] eles contemplavam através das imagens aquilo que, genuína e

essencialmente, era a sua tarefa na terra, a sua fé e o seu propósito”.21

Essas imagens, segundo Fink, não eram reproduções de algo que já

existia no mundo do ser humano primitivo, elas tinham a função de expressar

um sentido. Para o ser humano mítico, “[...] a contemplação da imagem é um

ato criativo visionário de entendimento do sentido da vida. E esse ato

19 Ibid., loc. cit. 20 Ibid., p. 128-129. 21 FINK, 2016, p. 137.

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produtivo de contemplação é encenado originalmente em uma comunicação

coletiva”.22 Neste momento, começamos a compreender porque é possível

construirmos, como mostra Fink, uma interpretação do jogo que se contrapõe

à platônica: o jogo na vida do ser humano arcaico, que se dá por meio da

encenação imagética dos mitos nos cultos, não é uma cópia da realidade, mas

a tentativa de se voltar a algo mais primordial da relação do humano com o

mundo.

No culto, “o ‘não-real’ se torna o lugar do hiper-real”.23 Segundo o

autor, é uma tarefa importante nos questionarmos a respeito da relação entre

o culto e o jogo,

[...] porque, no culto, talvez, a forma mais primordial do jogo humano apareça, e porque o aspecto da ‘não-realidade’ que pertence a cada tipo de jogo significa aqui (no culto) uma intensificação e elevação para além das coisas habitualmente reais.24

O ser humano primitivo associava a manifestação do poder divino aos

poderes demoníacos e era por meio do culto, por meio da narração dos mitos,

que tais poderes se tornavam visíveis. Os demônios representam, para o ser

humano primitivo, um poder superior, o qual interfere no curso da vida e

contra o qual ele não consegue lutar.

Os demônios estão sempre mascarados, eles nunca aparecem para os humanos como realmente são na sua verdadeira forma; eles têm um poder mágico; estão em constante transformação, transição, metamorfose. Enquanto isso, os seres humanos são sempre a mesma coisa.25

22 Ibid., loc. cit. 23 Ibid., p. 162. 24 Ibid., p. 143. 25 FINK, 2016, p. 141-142.

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Os seres humanos são sempre a mesma coisa. De fato, não conseguimos nos

transformar em outros, não temos poderes mágicos que nos possibilitam

mudar a nossa forma única forjada pela natureza. Somos sempre os mesmos.

Mas, o que nos quer dizer Téspis26, quando, no meio de um culto ao deus

Dionísio, destaca-se do coro, veste uma máscara e grita em alto e bom som:

“Eu sou Dionísio!”? Téspis, assim como tantos outros seres humanos ao

longo da história, parece querer nos mostrar que, apesar da nossa condição

humana, que nos impõe sermos sempre os mesmos, há um momento em que

podemos ser outros.

Sendo assim, há um momento em que podemos ser exatamente aquilo

que quisermos ser, e esse momento só é possível porque nós jogamos!

Segundo Fink, “[...] o jogo se torna a única possibilidade de o ser humano

contrariar o poder mágico dos demônios ou desviar a sua maldade do entorno.

A máscara do jogador torna-se uma força mágica”.27

A máscara, então, é uma característica essencial do jogo do culto, que,

em seu nível mais fundamental, é definido por Fink como o “encantamento

das máscaras”28. O jogo humano, que se desenvolve primordialmente na

esfera do culto, é experienciado a partir do momento em que o ser humano se

vê capaz de confrontar os demônios, pois encontra na máscara a possibilidade

de ter uma aparência ambígua e polissêmica. Fink não quer dizer, no entanto,

que a máscara seja capaz de transformar o ser humano em um demônio no

âmbito da realidade. O que há de peculiar e fantástico é que, ao se mascarar

para confrontar os demônios ou se colocar em relação aos deuses, o ser

humano abre o espaço da “não-realidade”; inaugura, por assim dizer, o espaço

do jogo.

26 Téspis foi um dramaturgo grego do século IV a.C. e é considerado o primeiro ator do

Ocidente por promover uma inovação na estrutura de uma Grande Dionisíaca, que eram cultos oferecidos ao deus Dionísio. Em um desses cultos, que se davam por meio da estrutura do coro, Téspis se colocou à parte desse coro como solista, inaugurando o papel que, mais tarde, ficaria conhecido como ator. Para uma análise detalhada da história do teatro no Ocidente e também no Oriente, ver História Mundial do Teatro, de Margot Berthold.

27 FINK, 2016, p. 133. 28 Ibid., p. 151.

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O vestir de uma máscara é uma forma elementar de encantamento. O objetivo básico da máscara humana não é enganar os outros humanos para que eles acreditem em algo, para parecer ser algo para os outros que de fato não se é. Aquele que veste uma máscara quer parecer diverso para si mesmo; quer, com a máscara, entrar no feitiço mágico do demoníaco [...] a máscara não supõe enganar; supõe encantar.29

Com as encenações, os espetáculos e as festas ofertadas aos deuses, o jogo do

culto se torna uma “epifania do poder divino e um paradigma do sofrimento

humano”30, pois evidencia a completa exposição do ser humano, enquanto

ente finito, à esfera divina. Dito de outro modo, o jogo do culto presentifica o

jogo dos deuses.

Contudo, o que Fink entende por “jogo dos deuses” é bastante distinto

do jogo do culto, ou seja, do jogo humano. Embora os deuses joguem com os

seres humanos como se estes fossem os seus brinquedos, esse jogo não possui

um caráter criativo como o jogo humano. “O jogo dos deuses não tem o

caráter de representação imaginária. Ele não precisa abrir um espaço para a

manifestação simbólica da onipotência, ou seja, um ‘mundo não-real do

jogo’”.31 Enquanto o jogo dos deuses expressa apenas os caprichos aos quais

os mortais são submetidos, o jogo do culto representa, para o ser humano

primitivo, uma profunda necessidade de se relacionar com o mundo em seu

aspecto mais primordial. Como já expusemos anteriormente, essa tentativa de

restabelecer uma ligação mais profunda com o mundo no jogo do culto é

ocultada pela presença dos deuses.

Por isso, Fink defende a ideia de que “a verdade do jogo dos deuses é

o jogo do mundo”.32 E “o mundo em si mesmo não é sagrado como Deus e

29 Ibid., loc. cit. 30 Ibid., p. 160. 31 FINK, 2016, p. 176. 32 Ibid., p. 169.

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nem profano como os sacrilégios do ser humano”33. E, sendo o jogo uma

forma extasiada do ser humano de se colocar “para além de si e interpretar o

papel do mundo de uma maneira repleta de significado”34, ou seja, sendo o

jogo uma abertura para o mundo, faz sentido continuarmos nos questionando

sobre ele.

2. O jogo como símbolo do mundo

No final do segundo capítulo de “Jogo Como Símbolo do Mundo”, Fink nos

dá uma definição de símbolo: “Symbolon vem de symballein, ‘coincidente’, e

significa a coincidência da parte com aquilo que a completa.”35. Para o autor,

somos seres finitos e intramundanos; seres que dizem respeito a um tempo e

a um espaço específicos; seres que possuem uma duração limitada; seres que

aparecem e desaparecem no mundo. E o mundo não é apenas um lugar, mas

o espaço de todos os espaços, pois é no todo-do-mundo que esse “aparecer”

e “desaparecer” de todas as coisas finitas acontece.

Conforme coloca Fink, “O todo-do-mundo é o primeiro e o último

todo, que está à frente de todas as coisas individuais finitas e encontra-se

sobre e além de todas elas.”36 Portanto, somos seres fragmentados que dizem

respeito à totalidade do mundo e nos relacionamos profundamente com essa

totalidade da qual fazemos parte, mesmo enquanto seres finitos. Ele afirma:

“Ao se tornar profundamente-mundo, uma coisa se torna um símbolo; o

symballein do ser e do universo toma lugar. E isso é o mais primordial

encantamento: o inominável poder da totalidade aparece entre as coisas

frágeis”.37 É importante termos essa compreensão de Fink sobre o símbolo

em nosso horizonte, a fim de que se assimile como o autor articula a sua

interpretação sobre o jogo enquanto símbolo do mundo, que será exposta

neste momento.

33 Ibid., p. 187. 34 Ibid., p. 46. 35 FINK, 2016, p. 120. 36 Ibid., p. 120. 37 Ibid., p. 121.

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Segundo Fink, “O jogo humano é fundamentalmente um processo

intramundano”38 e isso não nos parece uma afirmação complexa, pois

sabemos que o jogo humano acontece no mundo por ser uma atividade de um

ser intramundano. No entanto, há algo que distingue o jogo das outras

atividades cotidianas do ser humano, que é justamente o caráter de abertura

para a totalidade do mundo.

O autor compreende o ser humano enquanto um ente que possui

abertura para o mundo e que tal abertura se dá de modos e níveis distintos em

cada atividade humana. A abertura do ser humano para o mundo possui,

portanto, um caráter múltiplo e social, pois se dá de diversas formas e por

meio das relações que construímos com os outros.

Mas, por que devemos tomar o caráter de abertura para o mundo, que

se dá no jogo, como um aspecto que o distingue das outras atividades

humanas, se essa abertura também se dá em outras esferas da vida? O que

Fink mostra é que, no jogo, essa característica essencial do ser humano, ou

seja, “estar aberto ao mundo” acontece de uma forma completamente distinta

das outras atividades, pois permite que o mundo em sua totalidade e em sua

complexidade “brilhe” no ser humano, permite a manifestação do infinito na

finitude.

No jogo, o ser humano transcende a si mesmo, supera as determinações pelas quais ele se cercou e por meio das quais ele se compreendeu enquanto real, torna as irrevogáveis decisões revogáveis por conta da sua liberdade, liberta-se de si mesmo e mergulha, de cada fixa situação, para as possibilidades que singram no nível mais primordial de sua vida – ele sempre pode começar de novo e se livrar da carga da história de sua vida.39

Fink reconhece que essa liberdade experimentada pelo ser humano no

domínio do jogo é limitada, pois acontece no âmbito da não-realidade e,

38 Ibid., p. 201. 39 FINK, 2016, p. 206-207.

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portanto, não nos “livra” daquilo que somos e não nos isenta das

responsabilidades que temos. No entanto, é na esfera da não-realidade que o

ser humano se coloca em relação ao mundo de uma forma particularmente

especial; é na esfera da não-realidade do mundo do jogo que o mundo em sua

totalidade se manifesta, aparece em um ser finito.

O que leva Fink a pensar no jogo humano para além dos aspectos da

sua mundaneidade e compreendê-lo enquanto símbolo do mundo? Responder

essa questão não é uma tarefa fácil, pois nessa pergunta está contido todo o

caminho traçado por Fink em sua obra: a tentativa de transpor os limites das

compreensões do jogo apenas enquanto uma atividade humana de

divertimento, como uma mera reprodução imperfeita da realidade e como

meio de invocar os demônios e se colocar em relação aos deuses.

O jogo humano não é mundano no mesmo sentido que o mundo, pois

nenhuma coisa intramundana pode equivaler à totalidade do mundo. Mas

como seria possível, então, compreendermos o jogo como uma metáfora

cósmica, se não há uma relação de equivalência entre “mundo” e “coisa”?

O todo do mundo, como o todo que está acima de todas as finitudes, não pode se voltar a uma coisa intramundana, nem aparecer nela como uma miniatura. Mas o todo predominante pode “brilhar de volta” no ser intramundano [...] O mundo brilha de volta no humano como em um ser que é distinguido por um entendimento de abertura para o mundo.40

Apesar de “mundo” e “coisa” serem incomensuráveis, sabemos que o mundo

envolve todas as coisas, não como “[...] uma estrutura externa em volta das

coisas, nem como um depósito no qual as coisas estão”41, o mundo não é

separado do intramundano, o mundo é a totalidade abrangente que envolve

todas as coisas que existem e que pertencem ao mundo. “A

intramundaneidade é um aspecto essencial do mundo.”42

40 FINK, 2016, p. 211. 41 Ibid., p. 196. 42 Ibid., loc. cit.

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Por isso, é possível que o todo-do-mundo brilhe no ser humano e,

principalmente, no jogo, que constitui uma forma peculiar de uma profunda

abertura humana para a totalidade, para o mundo. Lembremos, pois, que, “ao

se tornar profundamente-mundo, uma coisa se torna um símbolo”43 e, assim,

o jogo pode ser compreendido como símbolo do mundo.

No jogo, o ser humano entrelaça a realidade com a não-realidade e

experiência uma liberdade que se constitui como uma abertura para o

inesperado, para as diversas possibilidades que irrompem no mundo do jogo.

Essa peculiar relação tecida entre as esferas do real e do não-real, que

caracteriza o jogo, não se faz presente em outros âmbitos da vida humana.

Nós costumamos “dividir o que é real da mera aparência, o que é concreto do

que é meramente imaginado, o que é certo e seguro do que é questionável e

meramente suposto”.44 E é totalmente compreensível e necessário que o

façamos para garantirmos a nossa sobrevivência no mundo.

No jogo, no entanto, tais distinções “caem por terra”, e isso permite

que o ser humano se coloque em relação a si, aos outros e ao mundo de uma

forma completamente distinta, em uma espécie de êxtase profundo. Esse

êxtase do ser humano em direção ao mundo – que acontece no jogo – e o

brilho do todo do mundo – o qual se volta ao símbolo intramundano – dizem

respeito ao mesmo movimento e, por isso, segundo Fink, “o jogo humano não

pode ser tratado em uma perspectiva antropológica fechada, não deve ser

meramente descrito de uma forma ‘comportamental’”.45

No decorrer de “Jogo como Símbolo do Mundo”, Fink reforça

diversas vezes a noção de mundo como o todo circundante que envolve todas

as coisas finitas e permite que elas existam em suas individualidades na

multiplicidade. O mundo ou “a fábrica da realidade persiste enquanto as

coisas que são temporariamente reais vêm e vão, emergem e desaparecem,

florescem e murcham”.46 É no mundo que cada coisa intramundana existe de

43 Ibid., p. 121. 44 FINK, 2016, p. 208. 45 Ibid., loc. cit. 46 Ibid., p. 211.

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acordo com os contornos que a delimitam em sua individualidade: suas

características, seu espaço, sua duração e assim por diante. Nós, humanos,

fazemos do mundo a nossa morada, o chão no qual nascemos, crescemos,

trabalhamos, lutamos, amamos e morremos. No chão, “cada ser humano é um

projeto vital; cada um acrescenta um tom único à imemorável e eterna

melodia da existência”.47

Assim sendo, dizer que cada um de nós é um “projeto vital” significa

dizer que nós planejamos a nossa vida, estabelecemos objetivos e trilhamos o

nosso caminho em relação a eles. Nós estabelecemos diversos “fins”, em

direção aos quais caminhamos em nosso viver para alcançarmos um “fim

maior”: a felicidade! Mas, e o mundo? Teria ele também um objetivo? Teria

o mundo um fim em direção ao qual ele se move? Para Fink, o mundo é

infundado e “em si mesmo não possui objetivos e também não tem valor e

permanece fora de qualquer análise moral, está ‘além do bem e do mal’”.48

O mundo é [...] sem fundamento e sem finalidade, sem sentido e sem objetivo, sem valor e sem plano – mas contém em si as bases que fundamentam os seres intramundanos. Abrange, em sua universalidade sem rumo, todas as trajetórias nas quais se batalha pela conquista de objetivos. Abarca até mesmo, sem juízo de valor, os seres diversamente ordenados, conforme os níveis de força ontológica.49

Mais uma vez, o autor esclarece a distinção que deve ser feita entre o mundo

e as coisas e, nesse sentido, ressalta que “essa falta de fundamento do mundo

não pode ser pensada nos moldes de uma coisa sem valor em um sentido

intramundano”.50 Lembremos: o todo-do-mundo não possui equivalência

com as coisas intramundanas, mas brilha em algumas delas em determinados

contextos. “A predominância mundana do onipotente acontece sem

47 FINK, 2016, p. 85. 48 Ibid., p. 212. 49 Ibid., loc. cit. 50 Ibid., loc. cit.

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fundamento e sem objetivo, sem rumo e sem sentido, sem valor e sem plano.

Essas são as características do mundo que brilham de volta no jogo

humano.”51

Portanto, nós, que fazemos da nossa vida um projeto (alguns mais e

outros menos); que vivemos o nosso cotidiano distinguindo o real do

imaginário; que agimos dentro de um campo previamente determinado de

possibilidades; que nos habituamos a nos compreendermos a partir de uma

unidade, de uma sólida armadura a qual chamamos “eu”, somos capazes de

abrir um espaço em que os limites que demarcam tais fronteiras desaparecem

e dão lugar a um êxtase profundo, no qual o brilho do mundo se faz presente.

O jogo humano é como um símbolo do mundo. As características de ser infundado, sem sentido e sem rumo, que emergem no entendimento humano, desembarcam na leveza onírica e despreocupada que pertence à encenação do jogo. E é porque nós estamos abertos para o mundo e porque, nessa abertura, a existência humana caminha de mãos dadas com um conhecimento acerca da falta de fundamento do todo do mundo – é por conta disso que nós jogamos. O ser humano é essencialmente jogador porque ele é “mundano”.52

Considerações finais

Constatamos, ao longo deste trabalho, como Fink buscou esclarecer

filosoficamente o problema do jogo para além de uma abordagem

antropológica, notamos a importância da discussão acerca da relação humana

com o mundo no desenvolvimento desta pesquisa. Nessa caminhada, Fink se

referiu diversas vezes a uma ideia que, segundo ele, “pertence aos mitos

antigos e também ao início do pensamento filosófico, a saber: que o mundo

em si mesmo é um tipo de jogo”.53 Nas últimas páginas de “Jogo como

Símbolo do Mundo”, o autor retoma essa ideia questionando se seria possível

51 Ibid., loc. cit. 52 FINK, 2016, p. 213. 53 Ibid., loc. cit.

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pensarmos um “jogo do mundo” com base na investigação feita ao longo do

livro: “Nós podemos pensar a predominância do onipotente por meio da

metáfora de um jogo jogado por um jogador?”54

Se nos lembrarmos da distinção entre “mundo” e “coisa

intramundana”, exposta diversas vezes por Fink, a qual apresentamos em

diferentes momentos neste trabalho, concluiremos, em concordância com o

autor, que o mundo não pode ser pensado como um jogador à luz da estrutura

do jogo humano.

Apenas de um modo distorcido e como uma “comparação” fragmentada nós podemos falar de um jogo do mundo. O jogo do mundo não é o jogo de alguém que joga, porque somente no mundo há pessoas, seres humanos e deuses. E o mundo do jogo do jogo do mundo não é uma “aparência”, mas um vir à aparência.55

Esse “vir à aparência” é o processo de surgimento de todos os seres, de todas

as coisas e de todos os eventos em uma esfera de presença comum. De outro

modo, é o processo de individuação, que permite que cada ser exista em sua

individualidade na presença de outros seres, portanto, na multiplicidade. Cada

ser tem o seu momento de vir à luz e de desaparecer na escuridão, e a

constância desse movimento é o curso do mundo. Por isso, propõe Fink: “O

jogo do mundo, se isso puder ser pensado, deve ser concebido como a relação

do mundo da noite com o mundo do dia.”56

Ao estabelecer um contexto que opera através de suas próprias regras

no qual o ser humano explora a sua capacidade de constituir sentido, o jogo é

ele mesmo “sentido de totalidade”, pois indica o modo como os seres

humanos se comportam em relação ao mundo e também o modo como opera

o próprio jogo do mundo. O contexto estabelecido pelo jogo, ou seja, o mundo

do jogo, funda uma realidade intermediária entre o real e o não-real pois

54 Ibid., p. 213-214. 55 Ibid., p. 215, grifo do autor. 56 FINK, 2016, p. 215.

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promove a abertura do irreal na realidade, estabelece, portanto, uma

“realidade medial”. O jogo é símbolo do mundo pois a partir de sua própria

dinâmica permite que o ser humano experiencie a dinâmica do todo do

mundo, ou seja, por meio da experiência do jogo mundano o ser humano se

reconhece como parte do jogo do mundo. Neste sentido, Fink compreende o

jogo como uma abertura extasiante para o mundo, como manifestação do

infinito do mundo no ser humano finito. O ser humano joga, portanto, quando

por meio da liberdade e da desmesura da irrealidade do mundo do jogo,

experimenta, mesmo que por um breve instante, o “poder do todo do mundo”.

O autor chega ao “final” de sua abordagem filosófica com uma

questão em aberto, a saber: a possibilidade de pensarmos o curso do mundo

como um jogo sem jogador e em que medida pode-se dizer que o ser humano

vive em conformidade com o jogo do mundo. Segundo ele, “fazer o jogo do

mundo um tema do pensamento especulativo é uma tarefa que ainda precisa

ser concluída [...]”57, e isso só será completamente possível quando nos

livrarmos da “tradição metafísica que oculta o jogo e é hostil a esse tema”.58

Fink conclui “Jogo como Símbolo do Mundo” permitindo que as últimas

palavras sejam ditas – ou talvez cantadas – por Zaratustra, e nós também o

faremos, pois qualquer palavra escrita após este canto soará irrelevante.

Se alguma vez descobri céus tranqüilos sobre mim voando com as minhas próprias asas no meu próprio céu; se nadei, brincando, em profundos lagos de luz; se a alada sabedoria da minha liberdade me veio dizer: "Olha! Nem para cima, nem para baixo! Lança−te à roda, para diante, para trás, leve como és! Canta! Não fales mais!59

Referências

FINK, Eugen. Play as Symbol of the World. Tradução de: Alexander Moore

e Chistopher Turner. Bloomington (EUA): Indiana University Press, 2016.

57 Ibid., p. 214. 58 Ibid., loc. cit. 59 NIETZSCHE, Friedrich, 1954, p. 343 apud FINK, Eugen, 2016, p. 215.

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FINK, Eugen. Fenómenos Fundamentales de la Existencia Humana (extrato).

Tradução de Cristóbal Holzapfel. Em: Revista Observaciones Filosóficas,

maio. 2011. Tradução de: Grundphänomene des menschlichen Daseins.

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CERIMÔNIA OBLÍQUA: NOSTALGIA

Cláudio Luiz Garcia

A proposta consiste em uma projeção de sete minutos do filme Nostalgia de

Andrei Tarlovski, escolhido porque nos ofereceu elementos visuais e textuais

para uma conversa sobre fenomenologia, na Cerimônia Oblíqua. Diante de

um problema insolúvel, o enfretamento acontecerá no caminho oblíquo, é no

atalho que o mistério aparece. Assim, a Cerimônia não visa a demonstração,

nem solução, mas a aproximar as dúvidas que temos relativo ao papel da arte

na universidade. O trecho do filme, trata-se da cena em que a protagonista

entra numa capela onde Piero Della Francesca (1416 - 1402) pintou o afresco

Madonna del Parto (1455). No diálogo entre ela e o padre percebe-se uma luta

entre o ceticismo e a fé, entre o desejo e a negação, entre a vida mundana e a

religiosa, entre a melancolia e a simplicidade, entre a arte e a religião. A seguir

resumimos alguns diálogos.

"Veio rezar para ter um bebê também? Ou para não tê-lo?" / "Só estou

olhando". / "Se houver algum estranho só olhando, a súplica não acontecerá."

/ "O que deve acontecer?" / "O que quiser, o que precisar muito." / "Mas tem

que ficar de joelhos."

Hesitada diante da ordem do padre, a personagem tenta se ajoelhar,

mas não consegue. Nesse momento, entra um corso com uma Santa diante da

qual, ao ser depositada no chão, uma mulher se ajoelha.

O diálogo prossegue: "Não posso. Elas fazem desse jeito. Elas estão

acostumadas". / "Elas têm fé." / "Devem ter".

A personagem aproxima-se do padre: "Posso perguntar uma coisa?"

"Segundo você, por que só as mulheres rezam tanto?" / "Pergunta isso para

mim?"/ "Você vê muitas mulheres aqui, deveria saber o porquê." / "Sou

somente um sacristão." / "Mas por que as mulheres são mais devotas que os

homens?" / "Você deveria saber mais do que eu."/ "Porque sou mulher? Mas

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isto eu nunca entendi."/ "Sou um homem simples, mas penso que a mulher

serve para ter filhos, criá-los com paciência e sacrifício."/ "E não serve mais

para nada?"/ "Eu não sei."/ Entendi, obrigada. Foi de grande ajuda." /

"Perguntou-me o que penso. Você quer ser feliz, mas existem coisas mais

importantes. Espere!"

O foco da câmera muda para as mulheres rezando diante da Madonna,

tanto da fantasia sobre o andor quanto do afresco de Piero Della Francesca.

Finda a reza, a mulher de fé que deseja um filho, abre o manto e sai de dentro

da santa vários pássaros. O ambiente é iluminado por uma claraboia e por

velas.

Assim, a proposta consta de trazer alguns elementos do trecho do

filme para a sala, para a realidade onde a conversa sobre fenomenologia irá

acontecer de um modo oblíquo. Amém.

Uma cena em si

Cansado de ver o que vejo, de conceitos mal compreendidos e de reuniões

onde escuto vozes alheias a mim, fui ao evento Fenomenologia em Debate

para buscar interlocutores.

Mexi no ambiente, afastei cadeiras, reloquei as pessoas, fiz com que

eles olhassem para trás porque até aquele instante, olhavam para a frente onde

a mesa dos palestrantes estava posta. Fiz com que assistissem, com velas

acesas nas mãos, uma projeção de quinze minutos do filme Nostalgia de

Andrei Tarkovski. Depois falei de improviso pensado. Quando comecei a

falar, não sabia quando e onde terminaria. Mas conforme eu olhava para o

público sentado como se estivesse numa missa de uma igreja barroca, fui

apenas descascando a cebola. Eu ia me despindo, fenomenologicamente, de

cada capa protetora para aquela plateia de atores como se ela fosse uma fonte

profícua do meu discurso. Pretendia ficar calado. Falar muito pouco. No

entanto, achei que devia me expor do mesmo modo que eu os expus naquela

cena religiosa e laica. Optei, assim, pela cumplicidade.

Sem medo de julgamentos, comecei por expor as minhas dúvidas e as

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minhas impressões intelectuais de professor, artista e pesquisador. Entre mim

e o público havia um limite sutil.

Antes de começar o evento, tinha esticado um tecido transparente em

um dos quatro cantos da sala. Nesse canto, em uma das paredes, havia um

ventilador fixado no alto. Liguei um outro no chão fazendo com que dois

focos de "ventos" mexessem a tela transparente. No escuro, eu via o filme se

dividindo em duas paredes. O filme foi visto em três planos, a saber, o

primeiro era o da tela transparente e os outros dois cada qual nas paredes que

formavam o canto. Estava ali criado um ambiente de ficção. O livro de Jorge

Luis Borges, Ficções, apareceu imediatamente em minha cabeça. Lembrei do

conto O Jardim de Caminhos que se bifurcam.

"... sugeriu-me a imagem da bifurcação no tempo, não no espaço. A

releitura geral da obra confirmou essa teoria. Em todas as ficções, cada vez

que um home se defronta com diversas alternativas, opta por uma e elimina

as outras;"(...) eu optei "por todas. Cria, assim, diversos futuros, diversos

tempos, que também proliferam e se bifurcam. Daí as contradições do

romance. Fang, digamos, tem um segredo; um desconhecido chama à sua

porta; Fang decide matá-lo. Naturalmente, há vários desenlaces possíveis:

Fang pode matar o intruso, o intruso pode matar Fang, ambos podem salvar-

se, ambos podem morrer, etc. Na obra de Ts'ui Pen, todos os desfechos

ocorrem; cada um é o ponto de partida de outras bifurcações. Às vezes, os

caminhos desse labirinto convergem: por exemplo, o senhor chega a esta casa,

mas num dos passados possíveis o senhor é meu inimigo, em outro meu

amigo. Se o senhor se resinar à minha pronúncia incurável, leremos algumas

páginas." (1976, p. 79-80)

No instante em que a projeção terminou, impedi que as luzes fossem

acesas e comecei a falar no escuro iluminado apenas pela luz bruxuleante.

Logo, me lembrei de uma missa que assisti, nos anos noventa, no mosteiro de

São Bento, no Rio de Janeiro. Lá eu estive com a consciência alterada por

experiências múltiplas e participei da missa até o momento em que as luzes

foram acesas. Desse modo, houve na missa uma quebra de envolvimento.

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Essa ruptura, eu não quis repetir na noite do evento Fenomenologia em

Debate. Impedi que as luzes fossem acesas por não estar de consciência

alterada. No dia 17 de maio de 2018, no CCH-UEL, eu estava lúcido e

consciente do que falava. Apenas eu não imaginava que iria falar o que falei.

Depois, como sempre, ficou a sensação de que falei mais do que precisava,

no entanto, achei melhor falar e ser sincero do que usar de técnicas de

apresentações acadêmicas. Por dois motivos, ou mais: primeiro porque eu não

domino tais técnicas, depois porque admiro mais a sinceridade, pelo menos

em algum ambiente entre profissionais amigos, depois porque a técnica, no

sentido de que é um meio para se chegar um determinado fim, parece-me por

demais científica.

Fico sempre na dúvida, como se estivesse num labirinto de caminhos

que se bifurcam. Agora me lembrei de um outro trecho do conto acima citado:

Uma lâmpada aclarava a plataforma, mas os rostos dos meninos

ficavam na zona da sombra. Um me perguntou: O senhor vai à casa do Dr.

Stephen Albert? Sem aguardar resposta, outro disse: A casa fica longe daqui,

mas o senhor não perderá se tomar esse caminho à esquerda e se em cada

encruzilhada do caminho dobrar à esquerda e se em cada encruzilhada do

caminho dobrar à esquerda. Atirei-lhe uma moeda ( a última ), desci uns

degraus de pedra e entrei no solitário caminho. Este, lentamente, descia. Era

de terra elementar, confundiam-se no alto os ramos, a lua baixa e circular

parecia acompanhar-me." (1973, p. 75 )

E segui, pelo meu lado esquerdo onde estavam os professores com os

quais eu havia mantido relações estreitas de pesquisa e leitura de textos de

Heidegger, Husserl e Fink. Do meu lado direito, os professores da Geografia

estavam em busca de metodologias novas para levar a fenomenologia para as

suas pesquisas. Apoiei-me pelo lado esquerdo da sala e segui com minha fala.

Ousei, porque estava seguro pelo lado esquerdo. "O conselho de

sempre dobrar à esquerda lembrou-me que tal era o procedimento comum

para descobrir o pátio central de certos labirintos." Percebi logo que havia

montado um labirinto dentro do qual eu estava, sem saber se chegaria ao pátio.

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Outro motivo que dava segurança era que, além de Jorge Luis Borges,

o cineasta Andrei Tarkovski também me dava suporte. Naquele instante eu

era um ser portátil a transportar dois grandes artistas, no sentido mais amplo

da palavra. No seu diário, Tarkovski escreveu:

"Hoje, tive um pensamento lúcido: na verdade, a mim, agora, não

importa mais nada: agora, em toda parte, é a mesma coisa - tanto aqui como

em Moscou. Aqui, por causa de Nostalgia, lá, porque não usei a liberdade,

possibilidade de mudar o destino. E por ter sido assim, devo empreender um

passo decisivo: viver de uma nova maneira." (2012, p. 518)

Na verdade, eu não estava seguro até o instante em que a cena

começou. Assisti as apresentações anteriores e percebi que o ambiente não

era fenomenológico, mas sobre Fenomenologia. E que a minha proposta

poderia ser um engodo. Mas não foi. Não quero dizer que estou seguro da

bem-sucedida apresentação Cerimônia Oblíqua: Nostalgia, mas pronto e mais

seguro para uma outra.

Encerro com Tarkovski: "E agora eu escrevo isso, e penso que tudo o

que foi realizado o foi corretamente. Não se pode voltar atrás, mesmo que

seja mais fácil. E agora é muito difícil, e temos que suportar." ( 2012, p. 519)

Referências

BORGES, Jorge Luis, Ficções. Porto Alegre: Globo, 1976.

TARKOVSKI, Andrei, Diários: 1970-1986. São Paulo: É Realizações, 2012.

______ , Nostalgia, produção ítalo soviética, 1983.

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EXERCITIUM, EXPERIMENTAÇÃO, PERFORMANCE.

A TRANSFORMAÇÃO FENOMENOLÓGICA DO PENSAMENTO

EM MARTIN HEIDEGGER

Giovanni Jan Giubilato

Introdução

Com as considerações que se seguem quero apresentar uma parte das

pesquisas atuais que venho desenvolvendo junto ao Departamento de

Filosofia da UEL durante o estágio pós-doutoral, e que fazem parte de um

projeto mais amplo, dedicado a uma interpretação da fenomenologia (pelo

menos da assim chamada “fenomenologia friburguense”) como “filosofia da

liberdade” [Freiheitsphilosophie]. Em geral, a seguinte apresentação da

“dimensão performativa da filosofia de Heidegger” a partir de uma elucidação

da sua peculiar reinterpretação e re-apropriação de alguns conceitos (ou

ferramentas teóricas) próprios da fenomenologia de Husserl, insere-se no

contexto mais amplo da confrontação com certa crítica a Heidegger que o

considera como o ponto mais evidente de um ideal antidiscursivo, contrário à

argumentação racional e à sua determinação ética, e defensor de um

intuicionismo esotérico e extralinguístico.1 Apesar do incontestável caráter

anticonceitual, antiteoreticista, monológico, exclusivo e até mesmo

autoritário do seu filosofar, a inclusão inapelável de Heidegger no processo

contemporâneo da “estetização da teoria” denunciado por Habermas, tem a

carência, a meu ver, de não deixar nenhum espaço para uma reflexão positiva

acerca desta nova “estética” e sobre esta tão incômoda mudança de

perspectiva. O propósito, então, é de ao menos indicar uma direção a respeito

da qual se pode pensar positivamente sobre a estreita relação entre estética e

teoria na obra de Heidegger, e sobretudo de sugerir uma possibilidade

interpretativa que considere, séria e filosoficamente, a sua práxis filosófica

1 Cf. os textos de Habermas “Wittgenstein como contemporâneo” e “Martin Heidegger –

Obra e visão do mundo”.

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experimental, constantemente dirigida à renovação e à transformação das

formas do discurso filosófico – incluindo todos aqueles âmbitos

extrafilosóficos, anticlássicos e experimentais, que se confrontam com as

práticas artísticas como, por exemplo, a performance e a instalação.

Resumindo, a minha tentativa é a de abrir um espaço hermenêutico

para pensar as coordenadas gerais da “mudança de registro” filosófico que

acontece no pensamento de Heidegger. Ao mesmo tempo, tentarei

interromper as rotinas clássicas da hermenêutica heideggeriana, levando em

conta os numerosos elementos do seu corpus que demonstram claramente

uma atenção muito particular (e seguramente consciente) à dimensão

performativa do discurso filosófico, a vontade de renová-lo e de repensá-lo

na época da dominação planetária da técnica, através de uma autêntica

experimentação com as formas e com o medium do dizer filosófico.

1. Num primeiro momento, inicio expondo as origens

fenomenológicas da crítica heideggeriana à filosofia tradicional e à

concepção da filosofia enquanto θεωρία; para fazer isso, será necessário

abordar o conceito de Vollzugssinn, ou “sentido da execução”.

2. Em seguida, vou apelar à figura hermenêutica de uma “virada antes

da virada” (Gadamer) no pensamento de Heidegger para mostrar como ele

denuncia, bem antes do famoso “esquecimento do ser”, o esquecimento da

questão acerca do “como” da filosofia, ou seja: acerca do seu “sentido de

realização e execução” originário. A ideia aqui é de que a problematização

fenomenológica do “sentido da execução” da filosofia e a consequente

denúncia heideggeriana do esquecimento da pergunta pelo “como” da

filosofia, mumificada e canonizada nas formas – mortas, segundo Heidegger

– da tradição ocidental, representa uma das linhas de continuidades mais

persistentes e fortes, que perpassa as diferentes fases e experimentações do

pensamento heideggeriano.

3. De fato, a crítica à filosofia tradicional e a filosofia enquanto

“theorein” – que aparece com toda força já nos primeiros anos 20 – é a

primeira fonte daquela tentativa de Heidegger de realizar, a partir dos anos

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30, a preparação de um “outro pensar” que não seja mais filosofia e que,

embora seja “muito mais simples que ela na sua própria coisa”, revela-se

“muito mais difícil em [sua] execução”.

4. Posteriormente, vou aprofundar nos vários elementos constitutivos

que caracterizam a experimentação heideggeriana relativa a este “outro

pensar”, mostrando como o pensamento depois do fim da filosofia vem a

coincidir, enfim, com o seu exercício, com a sua prática executiva e com a

sua encenação performativa.

1. As origens fenomenológicas da crítica heideggeriana à filosofia

tradicional e à concepção da filosofia enquanto θεωρία.

Notoriamente, a fenomenologia trata (como diz o próprio nome) dos

fenômenos, isto é: encarrega-se de desenvolver uma ciência dos fenômenos,

daquilo que aparece e que se mostra, direta e imediatamente, à nossa

consciência. Ela nomeia as aparências, ou os fenômenos, portanto, como “as

coisas mesmas” para indicar provocativamente que, se realmente queremos

ter um saber filosófico rigorosamente fundado e científico, temos que buscar

esta “cientificidade” não na “objetividade” mas na “subjetividade” e, então,

regressar humildemente à analise de como as coisas se mostram à nossa

consciência, de como elas nos aparecem – em suma, trata-se de desenvolver

um saber das aparências sem nos perguntar se “atrás delas” existe um

noúmeno, uma coisa em si, e de nos ocupar seriamente delas como sendo as

“coisas mesmas”, como os “mesmos objetos” do nosso conhecer e da nossa

relação com o mundo, pois as “coisas mesmas”, as coisas verdadeiras, são

unicamente as que aparecem e se mostram à nossa consciência. Este é um

ponto importante porque, para Husserl, o conceito de “fenômeno”, “daquilo

que se mostra” remete sempre, e inevitavelmente, a uma consciência através

da qual as coisas se mostram e que as percebe, que as apreende enquanto

aparências. A fenômeno–logia, a ciência dos fenômenos é, na verdade, uma

ciência da correlação originária, direta, imediata e intuitiva da consciência

com as coisas que se mostram a ela, aparecem para ela.

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Mas a fenomenologia, diferentemente da psicologia, não estuda a

relação da consciência com os fenômenos de um ponto de vista empírico. A

fenomenologia estuda a essência da consciência e da correlação entre

consciência e fenômeno, estuda as estruturas universais e essenciais (que

Husserl chama “eidéticas”) da consciência em geral, da consciência na sua

forma “pura” e universal, independentemente de quais possam ser os

fenômenos que lhe aparecem. Por exemplo, a fenomenologia estuda a

essência (o εἶδος) da correlação perceptiva entre a consciência e um objeto da

percepção em geral, sem considerar se ele é uma maçã, uma casa ou uma

mesa. Ela estuda, por exemplo, a essência da rememoração, as estruturas

essenciais e universais de qualquer rememoração, da rememoração “em

geral”, independentemente de seu conteúdo concreto (isto é:

independentemente do fato concreto rememorado, se eu estou me lembrando

de uma cidade, de um jantar ou de um objeto). É por esta razão que a

fenomenologia se considera como “filosofia primeira”, porque estuda a

consciência pura ou transcendental enquanto “fonte essencial”, ou “primeira

causa” – uma espécie de primum movens – de todas as diferentes formas da

nossa experiência e do nosso conhecimento do mundo.

Entretanto, para fazer isso, a fenomenologia distingue nitidamente

entre “o que”, o conteúdo [das Was] e “o como”, a “modalidade” [das Wie]

de um fenômeno. A fenomenologia, enquanto ciência da consciência pura,

abstrai2 do conteúdo concreto dos fenômenos, do “que coisa”, para estudar e

analisar o “como” deles: como eles se mostram, “as modalidades” nas quais

aparecem. Isto significa estudar as formas essenciais (eidéticas) e as

estruturas fundamentais da correlação entre os fenômenos e a consciência que

os apreende. No mesmo sentido da abstração de todo o conteúdo semântico e

concreto, Heidegger nos diz em Ser e Tempo que a análise da existência

humana (a Daseinsanalyse) é uma “indicação formal”, ou seja, que ela se

2 Seria mais apropriado falar aqui do procedimento da “variação eidética”. Em função dos

evidentes limites de tempo e espaço, limitar-nos-emos à referência ao estudo de D. Lohmar, Die phänomenologische Methode der Wesensschau und ihre Präzisierung als eidetische Variation, in: Phänomenologische Forschungen (2005), pp. 65-91.

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refere às estruturas ontológicas (formais) fundamentais da existência, sem

considerar seus diversos conteúdos possíveis.

Desta forma, se por um lado, na análise fenomenológica de uma

vivência, Husserl distingue entre o conteúdo [Gehalt] fenomenal que aparece

à consciência e as modalidades formais com as quais ela pode se referir

[Bezug] a este conteúdo e aprendê-lo – distinguindo, por exemplo, se a

referência ao conteúdo “casa” é realizada como uma percepção, ou uma

fantasia, ou uma lembrança, ou um ato predicativo (quando afirmo “a casa é

bela”), etc., Heidegger, por sua vez, já nos primeiros cursos em Freiburg

(1920-1932)3 transforma e elabora esta distinção husserliana, afirmando que

os elementos que compõem a análise do fenômeno são na realidade três:

1. Primeiramente, “o que” do fenômeno, o conteúdo da experiência [Gehalt];

2. Analisando “o como”, é necessário distinguir entre a referência [Bezug] a

este conteúdo, ou seja “como” a consciência se refere a ele, mas também a

própria realização [Vollzug] desta referência, ou seja “como” a referência é

executada, como é realizada a correlação entre consciência e objeto de

consciência.

O conceito de “sentido de realização” [Vollzugssinn] que deriva desta

tripartição é muito importante para Heidegger porque lhe permite questionar

a concepção de Husserl (e de uma longa tradição filosófica) da

intencionalidade. Segundo Husserl, de fato, a correlação entre conteúdo e

referência da consciência a ele é realizada na correspondência originária de

noesis (ato de consciência) e noema (conteúdo intencionado pelo ato da

consciência). Em contrapartida, Heidegger pensa que esta correlação não seja

eminentemente teórica nem intencional, que não ocorra no nível da

“consciência intencional”, mas que aconteça primeiramente (“de início e na

maior parte das vezes”) na prática, numa relação prática e manipulativa com

o mundo. O Vollzugssinn originário da nossa relação com o mundo, aquilo

3 Cf. os cursos sobre a “Fenomenologia da vida religiosa” (WS 18/19, 20/21, SS 21), os

“Problemas fundamentais da fenomenologia” (1919/20) e as “Interpretações fenomenológicas de Aristóteles” (1921/22).

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que Heidegger chama de “trato com o mundo”, realiza-se principalmente ao

nível do “cuidado” (Sorge), num comportamento “prático” que é sempre um

“ocupar-se de algo”. A partir do parágrafo 15 de Ser e Tempo podemos

encontrar uma formidável análise (formal) do trato com o mundo típico da

existência humana, no que se refere às suas estruturas fundamentais. E como

podemos ler já no curso de 1919/20 sobre os Problemas fundamentais da

fenomenologia, o sentido de realização de um fenômeno e, assim, a realização

da referência ao seu conteúdo “surge da espontaneidade do si mesmo”;

portanto, este “sentido fundamental da realização do si mesmo na sua vida dá

ao sentido da existência o seu significado primordial”.4 Recapitulando:

segundo Heidegger, para cada experiência [Erfahrung] é possível perguntar

1. pelo “que coisa” originário que é objeto da experiência

2. pelo “como” originário, no qual ele [o “que coisa”] é experienciado

3. pelo “como” originário, no qual a relação entre 1 e 2 é

executada/realizada.

A característica fundamental de tais distinções entre Gehalt, Bezug e

Vollzug é que elas dizem respeito a toda experiência concreta da vida humana

– porque são justamente, como já dissemos anteriormente, elementos

estruturais, formais e fundamentais da existência humana que não dependem

dos infinitos conteúdos concretos possíveis dela. Isso significa, porém, que,

para Heidegger, esta tripartição fenomenológica fundamental diz respeito

também à ciência, mas sobretudo à filosofia.5 A pergunta que

conseguintemente Heidegger faz é a seguinte: Qual é o sentido originário de

realização da filosofia? Qual é “o como” originário no qual se realiza a

referência da filosofia com os seus objetos e seus conteúdos? Qual é o sentido

da execução do filosofar?

A distinção fenomenológica entre os vários elementos de uma

vivência se refere à filosofia, segundo Heidegger, “de uma maneira muito

4 M. Heidegger, Grundprobleme der Phänomenologie (GA 58), Klostermann, Frankfurt

1993, p. 260, 261. 5 M. Heidegger, Phänomenologie der Anschauung und des Ausdrucks (GA 59),

Klostermann, Frankfurt 1993, p. 37.

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particular”. No semestre de verão de 1919 (sobre a Determinação da

filosofia), Heidegger nos deixa uma pista para entender a sua problematização

– ainda subterrânea – do sentido de realização da filosofia. Ela é aí definida

como “o correlato subjetivo” que “corresponde a uma constituição espiritual

particular” e a uma “referência à vida especial e particular”; o fenômeno (da

filosofia), no entanto, pode ser estudado e compreendido “somente a partir da

realização vital das motivações que ela reivindica”.6 No curso sobre os

Problemas fundamentais da fenomenologia ele afirma ademais que

“unicamente a realização autêntica e concreta, unicamente a atuação e a

realização das tendências que operam na filosofia” podem nos conduzir à

própria filosofia.7 Esta realização reside na “atuação verdadeira e pura” de

um “radicalismo absoluto” com respeito ao perguntar e à crítica, porque o

“sentido da atuação” da compreensão se evidencia originariamente apenas

através da “destruição crítica”.8

Os textos do jovem Heidegger mostram claramente o atribulado

nascimento de uma concepção da filosofia disposta de modo contrário aos

padrões tradicionais e contra o establishment acadêmico da universidade, uma

concepção da filosofia “não como correlato de uma reflexão pronta e

determinada” de fora, mas como “um obter da filosofia na própria existência,

através da sua execução”.9 O radicalismo das posições do jovem Heidegger é

testemunhado também por uma carta de 1923 escrita ao amigo Karl Jaspers,

quando estava prestes a se transferir a Marburg, onde assumiria uma cátedra.

Nela, Heidegger conta da felicidade com a qual vivenciava a nova experiência

e da importância de ter uma chance como professor e de poder finalmente

realizar a “transformação dando o (através do) exemplo, realizar a

transformação por meio da demonstração”, o que não é a mesma coisa, e nem

6 M. Heidegger, Zur Bestimmung der Philosophie (GA 56/7), Klostermann, Frankfurt

1987, p. 23. 7 M. Heidegger, Grundprobleme der Phänomenologie (GA 58), op. cit., p. 2. 8 Ibid., p. 5, 257. 9 M. Heidegger, Phänomenologie der Anschauung und des Ausdrucks (GA 59), op. cit., p.

7.

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109

mesmo tão cômodo quanto “escrever um livro atrás do outro”. 10 A formula

que Heidegger utiliza é “Wandel schaffen durch Vormachen”, “realizar a

transformação ao dar o exemplo”.

Aquilo que vemos aqui, então, é uma concepção da filosofia que, a

partir de uma apropriação de conceitos husserlianos, luta pela renovação das

velhas dinâmicas “podres” da filosofia, como se ela fosse um corpo morto no

museu da academia que perdeu sua vitalidade e o seu “sentido de atuação”

autêntico.

2. O esquecimento da questão do “como” originário da filosofia, do seu

sentido de realização, e a figura da “virada antes da virada”.

Todo o discurso ainda fenomenológico sobre o sentido de atuação da filosofia

é intensificado radicalmente por Heidegger – o que, de certa forma, é

característico do seu modo de proceder – através de uma suspeita geral contra

a tradição filosófica ocidental na sua totalidade, chegando mesmo a formular

a acusação de uma “cegueira constitutiva da filosofia” para a questão do seu

“sentido de realização”.11 Heidegger afirma que “o problema da

autocompreensão da filosofia sempre foi tomado de modo demasiado ligeiro.

Se se compreende este problema radicalmente, então se entende que a

filosofia nasce na experiência fática da vida [faktische Lebenserfahrung]. E é

na própria experiência fática da vida que a filosofia logo recai de volta”.12 Isto

significa que, paradoxalmente, “chegamos à autocompreensão da filosofia

[...] somente através da própria filosofia”.13

Parece-me que, nesse ponto – na verdade meio escondido entre os

textos das primeiras aulas de Heidegger –, ele se refira a uma de suas

“descobertas” mais pessoais e características: ele nos fala aqui daquilo que

poderíamos chamar um “a priori prático/operativo” da filosofia: a verdadeira

10 Cf. M. Heidegger; K. Jaspers, Briefwechsel 1920 – 1963, Klostermann, Frankfurt, 1990. 11 M. Heidegger, Phänomenologie des religiösen Lebens (GA 60), Klostermann, Frankfurt

1995, p. 18. 12 Ibid., p. 8. 13 Id.

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filosofia, ou o verdadeiro filosofar, exige a absoluta presença do filósofo, uma

vez que a filosofia, em sentido autêntico, só acontece e se realiza na própria

realização performativa. A filosofia (autêntica) exige sua própria execução

concreta. Assim, “fazer filosofia” significa, para Heidegger, o “filosofar”

entendido como “verbo intransitivo”: não pensar “sobre alguma coisa” mas

ser, encarnar, realizar este pensamento mesmo.14 Portanto, a tarefa do

professor de filosofia não era a de “ensinar” filosofia, ensinar algo sobre a

filosofia, ou sobre a história da filosofia, mas, ao contrário, a de apresentar e

mostrar, através de um exemplo, através de uma realização concreta, aquilo

que a filosofia é na sua prática. A demonstração concreta daquilo que a

filosofia é acontece, frequentemente, através de uma “encenação

performativa” do pensamento filosófico.

A esta concepção “prática” da filosofia, ou da filosofia como prática

radical, conecta-se, nos mesmos cursos dos anos 20, uma crítica à filosofia

enquanto θεωρία (enquanto “observação destacada”). O discurso sobre o

“esquecimento” da questão acerca do autêntico sentido de realização da

filosofia implica, contemporaneamente, uma subversão da filosofia

tradicional e das suas conformações conceituais estabelecidas. De fato,

mediante o regresso à “experiência da vida fática” realizado por Heidegger –

pensemos, por exemplo, à famosa lição de 1923 sobre a Hermenêutica da

facticidade – “não será possível evitar que a revelação das conexões

fenomenais […] coloque medidas fundamentais para a destruição […] da

filosofia ocidental”.15

Nesse ponto é possível utilizar uma figura interpretativa particular

para se aproximar do pensamento de Heidegger, batizada por Hans Georg

Gadamer de “virada antes da virada” [Kehre vor der Kehre], para sublinhar o

desenvolvimento unitário do pensamento heideggeriano.16 Há uns trechos

14 Ibid., p. 60. 15 Ibid., p. 135. 16 Cf. H. G. Gadamer, Der eine Weg Martin Heideggers: Gedenkworte zum 10. Todestag

Martin Heideggers, Martin-Heidegger-Gesellschaft, Messkirch 1986.

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significativo a esse respeito, em particular a parte conclusiva do texto,

conhecida como Fenomenologia da vida religiosa:

O ponto de partida do caminho à filosofia é a experiência fática

da vida. Mas parece que a filosofia, por sua vez, conduz além e

para fora da experiência fática da vida. Efetivamente, este

caminho conduz, em certa medida, somente ao anterior da

filosofia, não ao seu interior. A filosofia mesma pode ser

alcançada apenas mediante uma “virada” [Umwendung] daquele

caminho, mas não mediante uma virada usual, com a qual o

reconhecer [Erkennen] seria simplesmente dirigido a outros

objetos; mas, mais radicalmente, através de uma virada

autêntica”.17

Esta “virada autêntica”, pressentida e prefigurada por Heidegger como o

caminho que pode conduzir “ao interior” da filosofia, da intimidade do

pensamento, é aquela virada da qual ele nos fala na Carta sobre o Humanismo

e que inaugura publicamente o pensamento heideggeriano do Ereignis, do

“acontecimento apropriativo” – que começou secretamente já nos primeiros

anos 30 e que representaria portanto, no seu núcleo, um retorno às intuições

originárias dos seus primeiros anos em Freiburg (1919-1924). Dito de outra

forma: a primeira “virada em direção à vida fática” seria o pressuposto, ou a

prefiguração, da segunda “virada” que acontece no pensamento de Heidegger,

no começo dos anos 30, em direção a um pensamento que abandona a

subjetividade e a metafísica.18 De fato, já nos primeiros anos 30, Heidegger

chega à identificação da “filosofia” com a “metafísica”. Os dois termos

chegam a coincidir e a ser considerados sinônimos; com respeito à tarefa

17 M. Heidegger, Phänomenologie des religiösen Lebens (GA 60), op.cit. p. 10. 18 M. Heidegger, Carta sobre o Humanismo, trad. R. E. Frias, Centauro, São Paulo 2010, p.

30. Á correspondência entre uma “primeira” e uma “segunda” virada – que regressa antes da primeira, que “vira” mais radicalmente dela e que, porém, não poderia dar-se sem ela – corresponde, o complexo “jogo” de referências e superações que se instaura entre um “primeiro” e um “outro” inicio. A figura do quiasmo que resulta da tentativa de pôr em relação as duas “viradas” e os dois “inicios” será o objeto de um próximo estudo. Será este o sentido do estratagema de escrever “Seer cruzado”?

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crítica de realizar uma “virada autêntica” e radical, Heidegger fala claramente

da tarefa de preparar o “completamente outro”, algo completamente diferente

em relação à metafísica e à filosofia – uma e “mesma coisa”.19

Aqui se abre a grande temática do “fim da filosofia”, do qual

Heidegger fala, por exemplo, no curso de verão de 1932, afirmando que o

objetivo dos seus esforços consistia na “decomposição [Abbruch] da filosofia,

[…] a partir de um questionar originário do sentido (da verdade) do Ser”.20

Nas Reflexões II, o primeiro caderno a ser publicado sob a série que ficou

conhecida como Cadernos Negros e que remonta aos anos 1931-1938, ele

afirma que “afinal, devemos romper hoje com o filosofar” e, ainda, que é

necessário “sair da filosofia” com as forças de um pensamento diferente: “o

fim da »filosofia«. Devemos realizar sua consumação e, com isso, preparar o

inteiramente outro”.21 Ainda na famosa entrevista com a revista alemã Der

Spiegel do ano 1966 (publicada postumamente em 1976) lemos que: “a

filosofia tem chegado a seu fim”. O seu lugar é tomado agora por um “outro

pensamento”, que não é mais filosofia e que “é inicialmente

realizável/executável por poucos homens”. Este pensamento “futuro não é

mais Filosofia porque pensa mais originariamente do que a “Metafísica”,

nome que diz o mesmo”.22

3. O “outro pensar”.

Este “outro pensamento” é chamado pelo Heidegger de “pensamento do

Ereignis”, pensamento do “acontecimento apropriativo”. Para que esta

tentativa experimental de “preparar o completamente outro” possa se

transformar em um verdadeiro impulso concreto, Heidegger diz que,

primeiramente, “o espantoso do perguntar precisa ser experimentado em meio

19 Cf. M. Heidegger, Überlegungen II-VI (Schwarze Hefte 1931-938) (GA 94),

Klostermann, Frankfurt, 2014. 20 Heidegger, Der Anfang der abendländischen Philosophie. Auslegung des Anaximander

und Parmenides (GA 35), Klostermann, Frankfurt 2012, p. 1 21 M. Heidegger, Überlegungen II-VI (Schwarze Hefte 1931-938) (GA 94), op. cit., p. 115 22 Cf. M. Heidegger, Carta sobre o humanismo, op. cit., p. 85.

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à sua realização, e se tornar efetivo”,23 e que “a execução precisa ser

originária”.24 Resulta evidente, já a partir destas primeiras palavras, a

importância da dimensão performativa deste outro pensar, que não consiste

mais em “tratar ‘de’ algo e apresentar algo objetivo”, mas em “ser

apropriado”, o que “equivale a uma transformação essencial do homem”.25 O

“outro pensar” seria essencialmente um exercitium, “um exercício

preparatório: deve buscar aquele ‘dizer pensante’ que advêm de um outro

início”. Esse “dizer nem descreve nem explica, nem anuncia nem instrui; não

se tem aqui o dizer diante do que tem para ser dito, mas o dizer é ele mesmo”26

aquilo que diz. “O dizer é ele mesmo aquilo que diz”: esta citação de

Heidegger é, de fato, uma definição da “performance”.27 Uma linguagem que

significa aquilo que ela faz, ou melhor: que faz aquilo que significa.

Não é casual, então, que as maiores e mais evidentes experimentações

heideggerianas relativas à tentativa de desenvolver um “outro pensar” foram

realizadas, primeiramente, com a linguagem, com as formas e os conceitos

do dizer filosófico. A razão disso é reafirmada uma vez mais por Heidegger

numa entrevista televisiva do ano 1975 (um ano antes de sua morte): o

pensamento do Ereignis “é, em si mesmo (no seu assunto), muito mais

simples que a filosofia, mas na execução/realização muito mais difícil, e exige

uma nova atenção cuidadosa pela linguagem”.28

A tentativa de desenvolver uma linguagem “virgem”, que não seja

contaminada pela tradição metafísica ocidental, mostra-se na particularíssima

23 M. Heidegger, Contribuições à filosofia. Do acontecimento apropriador, trad. M. A.

Casanova, Via Vérita Rio de janeiro 22014, p. 13. 24 Ibid., p. 14 25 Ibid., p. 7 26 Ibid., p. 8. 27 Cf. as aulas lendárias em Harvard entre 1955-1960 do filósofo da linguagem americano

John Austin, tituladas “como fazer coisas com as palavras”. Ele chamou a atenção para o fato de que os enunciados não servem somente para descrever ou afirmar “estados de coisas”, mas que com eles e neles são realizados também atos.

28 M. Heidegger, Im Denken unterwegs, Video-Interwiew mit Walter Rüdel (1975), in: Id., Reden und andere Zeugnisse eines Lebensweges 1910-1976 (GA 16), Klostermann, Frankfurt 2000, p. 709

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terminologia desenvolvida pelo Heidegger em Ser e tempo (1927) e ainda

mais nas Contribuições à filosofia. Do acontecimento apropriador (1926/38).

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4. Outros registros da experimentação.

A compreensão tradicional da filosofia a concebe como uma “teoria” que

precisa ser “demonstrada” em tratados ou obras. Desde o ponto de vista de

Heidegger, toda demonstração, todo “theorein”, pressupõe que aquele que

compreende – o filósofo – permaneça inalteradamente o mesmo, indiferente,

distanciado e contraposto em relação ao objeto (ao Gegen-stand, ao contra-

posto) da teoria e da respectiva demonstração. Diversamente – como vimos –

no “outro pensar originário” que não é mais filosofia, acontece uma

transposição para “o outro início”,29 “inserção violenta em algo

resguardado”,30 uma “transformação” do homem mesmo, do pensador,

daquele que está pensando… É por esta razão que “tal pensamento jamais

pode ser transformado em uma doutrina”, em uma theoria. Ele é uma “forma

de vida”, coincide com o seu “exercício”.

Mas já que Heidegger rechaça a lógica da teoria, da argumentação lógica –

famosa é a formulação segundo a qual “o pensamento mora nas proposições

enunciativas”31 – será necessário buscar outras formas expressivas, outros

modos e modalidades do discurso filosófico, além das experimentações

linguísticas e conceituais, que possam “dar voz” e ser adequadas ao

pensamento do Ereignis. Segue então uma apresentação dos vários registros

da experimentação e da dimensão performativa no pensamento

heideggeriano, motivados pela revogação da lógica enunciativa, da lógica da

referência e da representação, em favor de uma práxis gestual que se realiza

sumamente no ato de encenação e de apresentação de si mesmo do pensar.

Efetivamente, o medium privilegiado desta execução e realização cênica do

pensamento é o “gesto” – aquilo que foi chamado também de “enacted and

embodied thinking”, um “pensamento atuado e incorporado”. Este é um

pensamento que vira carne, vira corpo, prática, vira performance para “dar o

29 M. Heidegger, Contribuições à filosofia. Do acontecimento apropriador, op. cit., p. 12. 30 Ibid., p. 10. 31 M. Heidegger, Wegmarken (GA 9), Klostermann, Frankfurt 1976, p. 410

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exemplo”. Vamos então a alguns dos exemplos mais concretos das formas do

pensar in actu.

4.1 Testemunhas.

Em primeiro lugar temos um elemento “indireto” ou estranho ao opus

heideggeriano, mas ainda assim muito importante para iniciar esta

aproximação àquele “experimentar de um modo fundamental” que nos

permitiria “a extensão para o interior do que ainda não foi pensado e precisa

ser ponderado”.32 As testemunhas dos alunos dos cursos universitários de

Heidegger falam de uma atuação/realização do “pensar” que ganha

repentinamente vida e que se transforma em um live-act imperdível, o que

exemplifica muito bem o contexto performativo no qual estamos entrando.

Sobre o fato de que Heidegger possuía um extraordinário talento filosófico,

todos aqueles que tiveram o privilégio de seguir seus cursos universitários

concordam: ouvi-lo enquanto ele pensava e divagava sobre a filosofia em

classe era como assistir a um espetáculo da natureza. O depoimento de Leo

Strauss é eloquente a este respeito. Inicialmente fascinado pela figura de Max

Weber, depois de ouvir o jovem Heidegger em Friburgo, confessou ao seu

amigo Franz Rosenzweig: “Weber, em comparação com Heidegger, parece-

me um órfão em termos de precisão, profundidade e competência”. E quanto

à capacidade de penetrar os textos da filosofia tradicional, o julgamento foi

ainda mais nítido:

Eu escutei a interpretação que Heidegger dava de algumas

passagens de Aristóteles e, algum tempo depois, ouvi Werner

Jäger em Berlim interpretar os mesmos textos: a caridade quer

que eu limite minha comparação com a observação de que não há

comparação.33

32 M. Heidegger, Contribuições à filosofia. Do acontecimento apropriador, op. cit., p. 13. 33 Cf. a edição alemã de L. Strauss, Introdução ao existencialismo de Heidegger.

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Também Karl Löwith fala sobre a amizade com Heidegger (e,

sucessivamente, sobre a ruptura das relações motivadas pela adesão deste

último ao Nacional-Socialismo):

Entre nós, Heidegger foi apelidado de ‘pequeno mago de

Messkirch’. [...] Ele era um pequeno grande homem misterioso,

um feiticeiro sábio, capaz de fazer desaparecer diante dos

espectadores aquilo que acabava de nos mostrar. Sua técnica

expositiva consistia em construir um edifício conceitual que logo

ele mesmo demolia, para colocar o ouvinte ansioso diante de um

enigma e deixá-lo suspenso no vácuo. [...] Em suas preleções, ele

falava sem gesticulação e sem efeitos retóricos, concentrando seu

olhar nas folhas de manuscritos à sua frente. O único expediente

retórico era uma sobriedade sagaz e uma frieza expositiva, e a

tensão calculada que dava à rigorosa construção de suas teses”.34

4.2 Trechos internos à obra.

A atitude explícita ou implicitamente performativa do “pensamento” é

testemunhada por vários trechos e partes dos textos que compõem o opus

heideggeriano. Por exemplo, no início da conferência Tempo e Ser de 1962,

proferida em janeiro de 1962, aos 72 anos de idade, e que é exemplar no

tocante a todo possível “para-além-de” [Darüber-hinaus] da lógica

enunciativa, os espectadores que enchiam o auditório são imediatamente

avisados pelo próprio Heidegger de que não se tratava de uma “palestra”

usual: “Não se trata de escutar simplesmente uma série de proposições

enunciativas, mas de seguir ativamente o caminho e de participar do

movimento daquilo que se vai indicando”.35 O dizer do filósofo requer a

participação do seu público, que é convidado então não a esperar

passivamente a “comunicação” mas, antes, a participar e seguir ativamente a

34 Cf. a edição alemã de L. Löwith, Minha vida na Alemanha antes e depois 1933. Um

testemunho. 35 M. Heidegger, Zeit und Sein, in: Id., Zur Sache des Denkens, Niemeyer, Tübingen 1969.

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viva execução do pensar. Outro bom exemplo é a conferência transmitida em

rádio em 1933 e intitulada Paisagem criadora: porque permanecemos na

província, na qual Heidegger explica metafisicamente a recusa de uma

cátedra em Berlim e a decisão de ficar em Freiburg e de se retirar no seu

refúgio privado: uma cabana entre as montanhas. “Quando, na profunda noite

de inverno, uma tormenta furiosa de neve brada sacudindo-se ao redor da

cabana e a tudo escurece e oculta, então esta é a hora propícia à filosofia”.

Como numa peça de teatro, as razões da recusa são encenadas enquanto

“íntima filiação ou pertença” à paisagem da Floresta Negra e enquanto

“centenário arraigado ao solo, à terra que nada pode substituir”. 36

4.3 As palavras-guia.

A multiplicidade de palavras-guia do léxico heideggeriano tem um carácter

evidentemente dramático ou teatral. Elas testemunham, uma vez mais, a

intenção anti-argumentativa da prática filosófica de Heidegger, orientada na

direção da narração e da dramatização do discurso filosófico. Pensemos, por

exemplo, em termos como “ser-para-a-morte”, “antecipação-da-morte”,

“suspensão no nada, “salto”, “degradação” e “decisão”. A esta constelação

linguística se segue, nos anos tardios, um registro mais contemplativo, que

substitui o “heroísmo da decisão” típico dos anos 20 e 30. Encontramos então

a “abertura para o mistério”, a “espera”, o “abandono”, o “campo livre”, a

“serenidade” da “madrugada” e da “alba”, “o sagrado” e a “salvação”. Resulta

evidente, parece-me, a tendência em resolver os nexos argumentativos e

conceptuais em cenas com valor narrativo o coreográfico, até chegar ao ápice

da teatralização no tríptico dramático de “mundo - finitude - solidão”, no qual

as perguntas fundamentais da metafísica se dissolvem no “mesmo nada”, no

tédio, no aborrecimento profundo que “se move de um lado a outro nos

abismos da existência como uma névoa silenciosa”.

36 In M. Heidegger, Aus der Erfahrung des Denkens 1910-1976 (GA 15), Klostermann,

Frankfurt 1983, p. 9-14.

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4.4 As Obras Completas.

Um elemento ulterior e muito importante da “encenação coreografia” do

pensamento de Heidegger é certamente a planificação e a disposição geral de

suas Obras Completas (Gesamtausgabe), cuja análise histórica mereceria

uma discussão à parte, detalhada e específica.37 Podemos dizer que elas

contêm uma grande riqueza de provocações e experimentos com as formas

filosóficas ao nível textual e extratextual: o standard monolítico da tradição,

representado pelas dissertações e tratados filosóficos, enriquece-se com

sequências tomadas da teologia e da poesia (Hölderlin, Rilke, Celan), com

collages de ditos e expressões do budismo, haicais, hieroglíficos, estranhas

formas gráficas como espirais e raios, relâmpagos, composições de letras e

palavras que formam figuras, experimentos gráficos, e montagens de

sequências tomadas de dialetos alemães – porque, no fim das contas, “no

dialeto fala cada vez a paisagem, ou seja, a terra”.38 Assistimos também a uma

retomada da forma do diálogo p. ex. no texto Diálogos do caminho do

campo,39 no qual discorrem um cientista, um erudito e um sábio, e que

apresenta o “diálogo crepuscular em um campo de prisioneiros de guerra

russo entre em jovem e um ancião”. Em seguida, apresentamos alguns

exemplos das experimentações gráficas de Heidegger, provenientes do

Vol.73 da Gesamtausgabe, junto com umas obras afins de Paul Klee – o

“pintor do Ereignis” segundo Heidegger.

37 A este respeito cf. B. Babich, Die Beiträge als Heideggers Wille zur Macht. Nietzsche –

Technik – Machenshaft, in: Id., Eines Gottes Glück, voller Macht und Liebe, Bauhaus-Universitätsverlag, Weimar 2009, pp. 178-208.

38 M. Heidegger, Unterwegs zur Sprache (GA 12), Klostermann, Frankfurt 1985, p. 194 39 M. Heidegger, Feldweg-Gespräche (GA 77), Klostermann, Frankfurt 1995.

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4.5 Experimentações com áudio, vídeo e arte.

A confirmação da vontade de Heidegger de romper com o horizonte

tradicional da filosofia e com seu medium clássico, o livro impresso, podemos

trazer à mente as várias experimentações de Heidegger com outros media para

veicular o discurso e a fala filosófica. Entre elas, destacam-se por importância

a gravação da conferência “Identidade e diferença” de 1958, a fala

experimental sobre o palco do teatro de Viena sobre “pensar e poetizar” e os

desdobramentos da técnica realizados com o medium da televisão: entre eles

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a famosa entrevista pela emissora alemã ZDF intitulada “Só um deus pode

ainda nos salvar” e a interessante discussão – evidentemente encenada – com

um monge budista de 1958. Nela, o elemento mais interessante é que

Heidegger insiste muito em falar, em apresentar o seu pensamento como uma

“experiência” um “fazer uma experiência fundamental” – die entscheidende

Erfahrung meines Denkens. O que vemos aí é como se ele quisesse, uma vez

mais, reafirmar a distância entre “o pensamento essencial”, que é experiência

e práxis radical da filosofia, e a “filosofia” ela mesma, isolada no âmbito da

teoria.

Na última fase de sua carreira, Heidegger se dirige também à

escultura, mais regularmente a partir dos anos 60, quando colabora

diretamente com artistas e escultores. Umas das colaborações de maior

sucesso foram aquelas com os escultores Bernhard Heiliger e Eduardo

Chillida. Com este último, Heidegger participou em alguns eventos

organizados pela galeria de arte suíça Erker com performances caligráficas:

o texto “A arte e o espaço” foi primeiramente escrito sobre uma pedra pelo

próprio Heidegger e depois publicado com as imagens das obras feitas por

Chillida para acompanhar o texto, tudo isso junto a uma gravação da leitura

do texto de Heidegger.40

40 Cf. A. J. Mitchell, Heidegger among the sculptors, Stanford University Press, Stanford

2010.

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4.6 Fotografias como instalações conceituais.

Um dos melhores e mais inovadores estudos sobre Heidegger destes últimos

anos é, para mim, um pequeno texto escrito por Cai Werntgen,41 professor na

Alemanha, cujo mérito é sem dúvida o de ter chamado a atenção para a

dimensão performativa e gestual do pensamento heideggeriano e de ter

formulado a proposta de considerar o material fotográfico como “tratados

cênicos” de filosofia, ou “instalações conceituais”. Desta forma, é possível

41 Cf. C. Werntgen, Heidegger after Duschamp. Skizze für eine Philosophie der Geste,

Matthes & Seitz, Berlin 2016.

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falar de “performance” filosófica – ou do pensamento em ação – estudando

como as fotografias (algumas delas, pelo menos) apresentam verdadeiras

“encenações” estudadas de um pensamento que não é mais teoria, mas práxis

e gesto de si mesmo. Tais performances do pensador depois do fim da

filosofia foram capturadas durante os fotoshootings organizados pelo próprio

Heidegger em 1966 e 1968 com a fotógrafa Digne Meller Marcowicz. Antes

de concluir, vou apresentar em seguida algumas das análises hermenêuticas

mais interessantes acerca das “instalações fotográficas” de Heidegger.

Fotoshooting 1968 © Digne Meller Marcowicz

Nesta primeira foto encontramos uma interessante composição de elementos

e citações, todas instaladas na imagem enquanto figuras chaves do

pensamento de Heidegger. Entre elas, em particular vemos uma encenação da

relação entre fogão e ser, da qual fala Heidegger nas suas lições dos anos 40

sobre Hölderlin, Der Ister: “a lareira”, que é “a pátria daquilo que é pátrio, é

o ser mesmo”. 42 Além disso, “a lareira” constitui o palco trágico de dois

cortes fundamentais da história da filosofia, segundo Heidegger:

42 M. Heidegger, Hölderlins Hymne “Der Ister” (GA 53), Klostermann, Frankfurt 1993, p.

143.

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1. O primeiro se refere certamente a Descartes, objetivo polêmico de

Heidegger, cujo Discurso do método foi notoriamente escrito no inverno de

1619, longe da confusão da guerra, na solidão meditativa de uma lareira e à

luz de velas. Com Descartes, a lareira vira um objeto de contemplação, um

objeto da teoria, separação entre res extensa e res cogitans.

2. O segundo é Heráclito (ao qual Heidegger dedica o seu último curso

universitário em Freiburg, no verão de 1944). Há uma famosa anedota que

conta como ele convidou alguns estrangeiros para entrar em sua casa e sentar-

se com ele perto do fogo, já que “aqui os deuses também estão”. Aqui, quer

dizer, na dimensão mais cotidiana, mais simples, perto da “lareira”, do fogão.

Assim, esta fotografia poderia figurar como uma revisão e uma crítica

da tradição cartesiana, oferecendo um “outro cenário”, como uma utopia de

um “outro início”, de uma alternativa ao pensamento.

Fotoshooting 1968 © Digne Meller Marcowicz

O mesmo poder-se-ia dizer com a figura da “fonte”, que assume um

significado particular e central para a concepção heideggeriana da linguagem

– que é “a casa do ser”. “As palavras são fontes… sem o caminho sempre

renovado à fonte, os baldes e os recipientes ficam vazios” afirma Heidegger

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nas lições de 1951/52 sobre a questão Que significa pensar? (Was heisst

Denken?); 43 mas podemos pensar também à reflexão de Heidegger sobre a

poesia de Rainer Maria Rilke, que começa com a citação “quando vamos à

fonte atravessamos a palavra ‘fonte’...”.44

Fotoshooting 1968 © Digne Meller Marcowicz

Nesta última fotografia apresenta-se a própria performance, realização prática

da dimensão ética do “esperar”, do Warten. O pensamento do Ereignis não é

mais reflexão, não é mais observação destacada dos objetos, mas é “esperar a

palavra do ser”. Em um dos já citados Diálogos do caminho do campo

(1944/45), o cientista absolutamente não consegue entender o que seria este

“pensamento que não é reflexão” mas que tampouco é teoria e que não segue

mais a lógica da representação. O sábio tenta explicar-lhe afirmando que “não

devemos fazer absolutamente nada, mas esperar”.

43 Cf. M. Heidegger, Was heisst Denken? (GA 8), Koostermann, Frankfurt2002. 44 M. Heidegger, Holzwege (GA 5), Kolostermann, Frankfurt 2002, p. 310 et. Seq.

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Conclusão.

Mostrei até aqui as grandes linhas da experimentação heideggeriana e da

transformação da filosofia, após a sua suposta morte, num “outro”

pensamento que coincide com o seu exercício, com a sua prática

experimental e com a sua encenação performativa. A constelação que estes

três elementos formam (execrcitium, experimentação e performance) surge a

partir de um transfundo fenomenológico e de uma apropriação inovadora da

conceitualidade que Husserl tinha desenvolvido para analisar a vida

intencional da consciência.

Indicar o resultado de todos os esforços, de todas as tentativas para

pensar o ser, e dizer se a crítica corrosiva à tradição filosófica ocidental

desemboca numa brutal “introdução do nazismo na filosofia” (Faye), se

termina num “naufrágio no mar do ser” (Volpi) ou numa “fuga na errância”

(Trawny), se ela propõe uma “crítica hermenêutica da modernidade e da

sociedade tecnocrática” (Vattimo) ou uma fantasiosa “saga, uma narração da

mitologia do ser” (Iorio) e, finalmente, se ela pode oferecer ferramentas

conceituais ainda válidas para pensar o presente, é a tarefa que cabe a cada

um de nós, quando empreendemos uma confrontação e uma interpretação

deste pensamento tão controverso.

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Londrina, em junho 2017.