em busca de simplicidade: uma análise sobre o ethos
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Em busca de simplicidade:
Uma análise sobre o ethos discursivo da revista Vida Simples1
SILVA, Marina Santos2 (Mestranda em Estudos de Linguagens)
Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais/ MG
Resumo: Este artigo é uma ramificação de um projeto de mestrado, em desenvolvimento, que tem por
objetivo principal fazer uma análise retórica do discurso midiático de autoajuda, tomando por objeto a
Vida Simples, uma revista especializada sobre qualidade de vida na contemporaneidade. É possível
discriminar Vida Simples como representante de um discurso do bem-estar nos tempos modernos, ela
apresenta um propósito de aconselhamento, orientando o leitor a um viver melhor, a um viver “simples”.
Nesse contexto, investigo o modo como a “simplicidade” orienta o tratamento editorial (textual, visual,
gráfico) da publicação. Enquanto embasamento teórico, o artigo apresenta um breve apanhado sobre as
diferentes acepções de ethos, aplicando o conceito à luz da Análise do Discurso e o entrelaçando a uma
abordagem multimodal do texto. Dentro do escopo deste trabalho, optei por estudar apenas um exemplar,
a edição comemorativa de 12 anos da revista.
Palavras-chave: Revista. Ethos. Discurso. Autoajuda. Vida Simples.
Considerações iniciais: objeto e recorte
Vida Simples surgiu em agosto de 2002 como um suplemento da revista
Superinteressante, da Editora Abril, tendo por slogan “para quem quer viver mais e
melhor”. Oito meses depois, passou a circular nas bancas com uma publicação mensal e
independente. Desde novembro de 2014, tornou-se produto da Editora Caras. Como o
próprio nome já indica, esta é uma revista especializada, que se propõe a arregimentar
um discurso sobre qualidade de vida na contemporaneidade.
Esse breve histórico ajuda a situar o objeto em análise, além de servir para
justificar o recorte proposto neste artigo. O presente texto faz parte de um projeto de
mestrado, ainda em desenvolvimento, que estudará a retórica do discurso midiático de
autoajuda, por meio de Vida Simples, com enfoque sobre as estratégias discursivas
1Trabalho apresentado no GT de História da Mídia Impressa, integrante do 10º Encontro Nacional de
História da Mídia, 2015.
2 Jornalista formada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atualmente é mestranda pelo
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Estudos de Linguagens do Centro Federal de Educação
Tecnológica de Minas Gerais (POSLING – CEFET-MG), na linha de Discurso, Mídia e Tecnologia.
E-mail: [email protected]
capazes de despertar emoções nos leitores, assim, seduzindo-os para o consumo da
publicação. Neste trabalho, analisarei apenas a edição de número 151. Seleciono esse
exemplar, pois nele se comemoram os 12 anos de Vida Simples. Por ser um marco
histórico, essa edição ganha destaque na trajetória da publicação e possibilita um duplo
movimento de reforço e renovação de traços identitários da revista, enfatizando,
descartando ou acrescentando características que dizem sobre seu tratamento editorial.
É importante também frisar que a edição 151, de outubro de 2014, foi o último
exemplar da revista antes da mudança da Editora Abril para a Caras. Desse modo, essa
análise poderá servir como ponto de apoio para um contraste entre as diretrizes
editoriais das duas empresas de comunicação, o que, porém, não é objetivo deste artigo.
Ainda é cedo para identificar os impactos dessa troca, assim como são desconhecidas às
razões que a motivou. Mas deixo aqui a indagação, para análise futura, sobre como isso
afetará a proposta e o modo como a revista se apresenta aos seus leitores.
Vida Simples: discurso do bem-estar na contemporaneidade
É possível discriminar Vida Simples enquanto representante de um discurso do
bem-estar nos tempos modernos. Ela apresenta um propósito de aconselhamento, uma
espécie de “terapia não medicamentosa”, apontando uma ligação entre “viver bem” e
“simplicidade”. E ao construir sua imagem enquanto instância de enunciação, a revista
cria, junto e inevitavelmente, a imagem de seu interlocutor (MAINGUENEAU, 2005).
Se a revista se propõe a missão de instruir modos para simplificar ou descomplicar a
vida é porque esta identifica, em oposição, uma rotina acelerada e estressante,
frequentemente associada à ambiência dos grandes centros urbanos3. Cabe às grandes
editoras, mapear esse contexto, entender o surgimento de determinadas demandas, para,
então, lançar produtos capazes de bem dialogar sobre certo tema para certo público.
Segundo aponta Frederico Tavares (2011a), um discurso de tom prescritivo ou
profilático tem sido incorporado pela mídia desde meados da segunda metade do século
XX. Esse movimento histórico teria culminado em um tipo de jornalismo que mescla
3 Até o momento em que a revista era responsabilidade da Editora Abril, sua sede estava localizada em
São Paulo, capital. Após a passagem da publicação para a Caras, a revista começou a ter duas redações,
uma em São Paulo, em novo endereço, e outra também na cidade do Rio de Janeiro.
uma abordagem dos serviços e do comportamento. Ao conjunto desse discurso
midiático que versa sobre bem-estar nos dias atuais e que se manifesta sobre a forma de
um texto jornalístico especificamente publicado em revistas impressas, Geraldo Condé
nomeou de imprensa conselheira. Esta seria responsável por “oferecer explicitamente e
em diferentes estilos conselhos, orientações, fórmulas e modelos para a condução de
múltiplos aspectos da vida cotidiana” (CONDÉ, 2010, p.48).
Vale, de antemão, algumas considerações. Entende-se que o jornalismo possui
sempre e em alguma medida um caráter instrutivo, orientando nossa conduta em
sociedade. Afinal, ao narrar os acontecimentos do mundo, dando-lhes forma e
significado, o trabalho desempenhado pelos jornalistas ajuda na construção de valores
compartilhados, servindo à troca e ao ordenamento da experiência social. Entretanto, ao
designar uma imprensa conselheira, da qual faz parte a revista Vida Simples, destaco a
especificidade deste tipo de publicação impressa, que escapa à lógica factual e se propõe
a dar conta de uma dimensão mais subjetiva e afetiva da realidade, aproximando o
sensível a lógica e as estratégias jornalísticas (TAVARES, 2011b).
Posto isto, cabe então indagar sobre este lugar do qual nos fala Vida Simples: que
discurso de bem-estar é esse e como ele é posto em funcionamento? Estaria o visível em
consonância com o dizível? O que pode ser dito sobre a identidade editorial da
publicação? Provoco uma reflexão acerca da construção de um ethos que orienta o
conceito da revista e o modo pelo qual essa discursivização é manifesta.
Ethos (pré) discursivo e multimodalidade
O conceito de ethos suscita diferentes significados e interpretações. Muito usual
nas ciências humanas, aparece como referência em diferentes estudos e disciplinas,
variando de acordo com a abordagem e a finalidade analítica.
Na antropologia, o conceito está intimamente relacionado ao de cultura.
Segundo Clifford Geertz (1989), ethos corresponde ao tom, caráter e qualidade de vida
de um povo, abarcando suas condições morais e estéticas. Nesse sentido, está associado
a costumes e valores, uma maneira de ser e estar no mundo.
Partindo de um viés etimológico, Muniz Sodré (2002) esclarece que ethos é uma
palavra grega cujo significado remete ao sentido de habitar. Por designar uma espécie de
“morada”, o termo abarca condições, normas e práticas executadas pelos indivíduos
rotineiramente ao se abrigarem em um espaço. A ideia de habitação, desse modo, se
aproxima à noção de hábito. Segundo Sodré, o conceito de ethos propõe uma espécie de
guia da experiência no mundo, um modo coletivo de viver e uma ambiência que
integraliza um grupo.
De modo geral, ethos é a consciência atuante e objetivada de um grupo social
– onde se manifesta a compreensão histórica do sentido da experiência, onde
tem lugar as interpretações simbólicas do mundo – e, portanto, a instância de
regulamentação das identidades individuais e coletivas (SODRÉ, 2002, p.45.
Grifo do autor).
Na retórica clássica, a palavra aparece atrelada a outras duas, logos e pathos,
sendo uma temática e ferramenta metodológica importante para a análise de textos.
Segundo Aristóteles, existem três espécies de provas técnicas ou artísticas de persuasão:
“umas residem no carácter moral do orador”; “outras, no modo como se dispõe o
ouvinte”, ou seja, nas emoções que o discurso o leva a experimentar; “e outras, no
próprio discurso, pelo que este demonstra ou parece demonstrar” (ARISTÓTELES,
1998, p. 49). Respectivamente, ethos, pathos e logos.
Já para os fins deste trabalho, a concepção moderna de ethos proposta por
Dominique Maingueneau (2006) parece mais interessante. Para o analista do discurso,
os “modos de dizer” carregam em si traços importantes daquele que diz.
Todo discurso, oral ou escrito, supõe um ethos: implica uma certa
representação do corpo do seu responsável, do enunciador que se
responsabiliza por ele. Sua fala participa de um comportamento global (uma
maneira de se mover, de se vestir, de entrar em relação com o outro...).
Atribuímos a ele, dessa forma, um caráter, um conjunto de traços
psicológicos (jovial, severo, simpático...) e uma corporalidade (um conjunto
de traços físicos e indumentários). “Caráter” e “corporalidade” são
inseparáveis, apoiam-se em estereótipos valorizados ou desvalorizados na
coletividade, em que se produz a enunciação (MAINGUENEAU, 2006, p.60.
Grifos meus).
Nessa passagem, chama atenção a relação estabelecida por Maingueneau entre
“caráter” e “corporalidade”. Segundo o autor, na constituição de seu dizer, aquele que
diz assume certa cenografia, sendo o ethos parte constituinte dessa cena de enunciação
(2006). Pode-se entender que a noção de ethos discursivo, assim como é apresentada
pelo autor, promove um reforço da abordagem da multimodalidade, segundo a qual, há
uma ligação inextricável entre o texto e suas condições materiais. Para que um discurso
ganhe vida, ele precisa ser presentificado por meio de palavras, imagens, sons, gestos.
Sobre isso, e valendo-se das teorias de Kress e Van Leeuwen (1998), além de Chartier
(2001), Ana Elisa Ribeiro aponta:
Todo texto carrega em si um projeto de inscrição, isto é, ele é planejado em
diversas camadas modais (palavra, imagem, diagramação, etc) e sua
materialidade ajuda a compô-lo, instaurando uma existência, desde a origem,
multimodal. Um texto é o resultado de seleções, decisões e edições, não
apenas de conteúdos, mas de formas de dizer. Há neles a costura de
intenções, sentidos, linguagens e propiciamentos tecnológicos (RIBEIRO,
2013, p. 21).
Assim, pensar a revista Vida Simples em seu aspecto multimodal implica
considerá-la no encontro entre texto, fotografia, ilustração, diagramação e design,
buscando entender como conteúdo e forma estão articulados na publicação.
Ainda sobre a noção de ethos discursivo, Frederico Tavares (2013) avança mais
um passo em direção à análise empreendida por este estudo. Através de uma reflexão
acerca das complexidades e especificidades que marcam a “forma de ser” das revistas, o
autor assegura que há sempre um conceito, uma espécie de chave de leitura, que se
apresenta como elemento fundante de cada publicação, devendo estar presente em todos
os aspectos que concernem ao seu tratamento gráfico e verbal.
No caso de Vida Simples, pode-se dizer que essa chave de leitura recai sobre a
ideia de simplicidade. Mas, que simplicidade é essa? Como ela se faz presente no
discurso (verbal e não verbal) da revista? Tavares nos leva a crer na existência de certos
“fios invisíveis” que constituem a processualidade e a organicidade da publicação.
Segundo o autor, existe uma autorreferencialidade no e do processo produtivo
textual, princípio que também é chamado por ele de ethos pré-discursivo. Dito de outro
modo, a revista constantemente fala sobre ela mesma, deixando assim, pistas sobre sua
identidade editorial. Isto fica claro quando nos deparamos com os chamados editoriais
ou cartas ao leitor, espaço onde está legitimado um discurso de autorrepresentação.
Mas a revista explica a si própria em diversos outros momentos, menos
evidentes. A autorreferencialidade estaria nas seleções temáticas e, especialmente, no
tratamento dado a elas. A revista expõe traços de suas características marcantes pela
maneira como se reporta ao leitor, por meio de seu projeto gráfico ou até mesmo pela
sua peridiocidade distinta, que marca sua relação temporal com o contemporâneo.
Veremos, a seguir, alguns traços ou indícios que revelam a maneira como a
revista Vida Simples constrói uma imagem de si, seu ethos e sua cenografia.
Menos é mais: design clean para reforçar um propósito de simplicidade
A imagem abaixo (Fig. 1) corresponde à capa da edição comemorativa de 12
anos de Vida Simples. Ainda que seja um pequeno fragmento quando comparado ao
todo, é esperado que os mesmo princípios gráficos aqui evidenciados estejam diluídos
ao longo das páginas da revista.
Fig. 1: Reprodução da capa da revista Vida Simples, ed. 151, de outubro de 2014
Por meio de uma breve análise da capa, é possível destacar alguns elementos.
Observa-se uma única figura (ademais da logomarca da Editora Abril), localizada no
centro da página: um quindim. Pela natureza dessa imagem, já é possível inferir que não
se trata de uma matéria factual. A sobremesa serve como metáfora, corroborada pela
frase “Seja mais doce”. A composição entre texto e imagem interpela o leitor a um estilo
de vida com mais alegria e gentileza, instrui a revista: “Quando você distribui pequenas
doses de afeto no seu dia a dia, sua vida ganha paz e felicidade”.
Chamadas secundárias apresentam-se ao final da página (“Mitologia: O que ela
nos ensina sobre nossos limites”; “Aceita um café? As histórias em torno da bebida” e
“Frustração: podemos aprender muito com esse sentimento”). Como já dito, predomina
um discurso de aconselhamento e bem-estar, que procura apaziguar problemas que
afligem o indivíduo em seu cotidiano, o que seria possível através do autoconhecimento
e pelo “dar valor às pequenas coisas”, como um bom bate papo na hora do café.
Sobre o layout da página, observa-se um amarelo semelhante ao do quindim
espalhado por toda a capa, cor vibrante, alegre, que combina com o enfoque positivo da
matéria. O contraste é dado pelo cinza, quase preto, presente na linguagem verbal, o que
assegura a legibilidade do material. Visualizam-se muitas áreas de respiro e pouco texto.
Foi selecionada uma única tipografia, sem serifa, simples e moderna, que é a mesma do
logotipo que intitula a publicação. Há apenas variação em termos do tamanho das letras
para ajudar a hierarquizar as informações. As chamadas secundárias são separadas por
um discreto traçado pontilhado. Em termos de material, o papel é um offset, fosco e de
alta lisura, muito diferente dos papéis laminados e brilhantes que costumamos encontrar
em revistas comerciais.
Posto isto, de modo geral, é possível afirmar que Vida Simples aposta em um
projeto gráfico clean, o que ajuda a reforçar o conceito de simplicidade sugerido, já de
antimão, em seu nome. Porém, a materialização discursiva dessa simplicidade não é
antagônica a certa imagem de sofisticação. Ao tratar do que seria ordinário, o cotidiano,
mas com certa elegância e refinamento, a revista transforma-o em extraordinário. A
vida, em Vida Simples, seria altamente “estilizada”, assinalam as linguistas Luciana
Salgado e Denise Perfeito (2015).
Por meio de análise de peças publicitárias da seção Achados, as pesquisadoras
apontam para um paradoxo entre o discurso de bem-estar construído pela revista e certa
orientação ao consumo: “ao mesmo tempo que se propõe ajudar o sujeito
contemporâneo na busca por uma vida melhor porque descomplicada, por meio da
proposta de uma certa “vida simples”, empurra o sujeito para o aprofundamento daquilo
que é fonte maior de sofrimento na contemporaneidade – o consumo insaciável”
(SALGADO; PERFEITO, 2015, p. 9).
Tendo a concordar com as autoras nesse ponto. Não apenas porque os anúncios
presentes na revista, e que projetam um estilo de vida fácil e feliz, acabam por persuadir
a aquisição de alguns produtos caros, como aparatos tecnológicos, peças de design ou
artefatos de produção restrita, mas também pelo fato da publicação ter um custo mais
elevado quando comparada a outras, inclusive da mesma editora (R$ 15, 00)4. Para
refletirmos sobre o público-alvo da revista, as linguistas apontam: “O discurso da
autoajuda se põe como um aconselhamento para todos; o discurso do bem-estar, em
Vida Simples, deriva dele sem pôr em relevo essa massiva missão (embora seja uma
revista que precisa ser vendida)” (SALGADO; PERFEITO, 2015, p. 8).
Carta ao leitor: a revista sobre ela mesma
Como dito anteriormente, os editoriais ou cartas ao leitor são espaços dentro de
jornais e revistas destinados a apresentação do conteúdo daquela edição, usados para
oferecer alguma explicação ou comentário sobre o processo de fabricação daquele
produto, estabelecendo uma relação mais direta com o público e revelando, assim,
aspectos interessantes sobre a processualidade e a identidade do veículo. No exemplar
comemorativo de 12 anos de Vida Simples, temos a seguinte carta ao leitor (Fig. 2).
Como esperado, o aniversário da revista é o eixo central sobre o qual o texto é
construído. Mas o marco dos 12 anos é apresentado, a princípio, sob o ponto de vista
pessoal da editora Ana Holanda, que relembra suas agruras e sonhos quando estava
nessa idade, uma fase de transformação, que é a passagem da infância para a
adolescência: “eu não sabia se queria brincar ou paquerar”. Embora os anos já apontem
certa maturidade, é um período de angústias, reforçado pela constatação “não tinha
menor ideia do que ser ‘quando crescer’”.
É impossível dissociar esse relato sobre mudança e incerteza, encarnado por Ana
Holanda, da situação que atravessava a revista, com a troca da Editora Abril para Caras.
Embora haja manifestações saudosas ou nostálgicas (“Passaram por essas páginas
pessoas tão diversas”), não há indícios de despedida, mas de fechamento de um ciclo.
Ao fazer um paralelo entre sua trajetória de vida até os 12 anos e “o tempo de
4 A título de comparação, a revista Cláudia, da Editora Abril, possui um volume de páginas cerca de três
vezes o de Vida Simples, mas pelo preço de R$ 13,00. Após a transição para a Editora Caras e até o
momento de escrita deste artigo, a revista manteve-se ao valor de R$ 15,00.
estrada” de Vida Simples, Ana Holanda convoca a todos nós a uma imersão em nossas
recordações e até certa autoanálise de quem éramos quando deixávamos de ser crianças.
Esse relato biográfico nos sugere que gostamos mais de pessoas que contam suas
próprias histórias do que de narradores que contam aventuras de terceiros. Afinal, este é
um recurso que confere autenticidade ao que está sendo dito e possibilita a quem assina
o texto dar vazão a emoções, sob uma ótica bastante individual e afetiva.
Fig. 2: Reprodução da Carta ao Leitor, ed. 151 de Vida Simples, de outubro de 2014
A carta ao leitor se transforma, assim, em depoimento, no qual a autora aponta
para seu amadurecimento pessoal e emocional, que teria acompanhado a evolução da
publicação: “Eu mesma cresci com a revista. Me emocionei, li um montão de coisas que
me apontaram uma direção”. Está aqui evidenciado o tom prescritivo ou profilático da
revista, característica da imprensa conselheira (CONDÉ, 2010). Esse discurso de
aconselhamento é reforçado também em outros momentos, como na frase “Vamos jogar
luz nos medos, ajudar a lidar com os desafios”, sobre a nova série Mitos e Jornadas.
É interessante perceber a relação próxima que Vida Simples estabelece com seu
leitor, algo semelhante a um diálogo: “Foram tantas conversas e ideias cultivadas por
aqui”. Temos também uma atestação do potencial patêmico da revista quando a autora
afirma ter se emocionado ao longo desses 12 anos ou quando agradece à jornalista Liane
Alves, colaboradora antiga, por “abrir tantos corações”.
Por fim, merece destaque o fato de que a assinatura de Ana Holanda,
reproduzida a próprio punho – o que resguarda certa autenticidade e, principalmente,
singularidade de um “gesto analógico” –, vem acompanhada por uma ilustração de seu
rosto. O mesmo recurso gráfico se repete nas páginas amarelas ao final da revista,
espaço destinado aos colunistas. Essa apresentação ajuda a criar certa familiarização ou
empatia dos leitores com os profissionais que assinam esses textos, espaços nos quais a
exposição de histórias pregressas e opiniões estaria legitimada. Chama atenção, porém,
a opção da revista por romper com certa “dureza” técnica das fotografias, geralmente
usadas nessas situações, para dar espaço a uma imagem mais poética, alcançada por
meio do desenho desses retratos. Se as fotografias podem ser pensadas enquanto
estratégias discursivas que permitem descrever o mundo e explicá-lo segundo o
princípio da verossimilhança, predominando sua função de registro, de atestação da
realidade “tal qual é” (o logos), por outro lado, as ilustrações transmitem maior fluidez e
leveza, produzem um efeito de dramatização e são, portanto, uma maneira de tocar o
afeto do outro para seduzi-lo por meio da emoção (o pathos) (CHARAUDEAU, 2010).
Personalização da equipe: vozes plurais para um propósito comum
Diferente de outras revistas, inclusive do mesmo segmento, Vida Simples
preocupa-se com uma apresentação especial de sua equipe (característica esta já
evidenciada no item anterior). No início ou ao final de cada matéria, a assinatura dos
profissionais envolvidos, como jornalistas, fotógrafos, ilustradores e designers, é
acompanhada de um breve texto, no qual se contextualiza a atuação daquele indivíduo
ou sua relação com a publicação, chama-se atenção para aspectos de sua personalidade e
se explica técnicas que foram usadas na produção do material. Vejamos os seguintes
exemplos, todos retirados da edição 151, que circulou em outubro de 2014:
(1) Vanessa Kinoshita é designer da Vida Simples há dois anos. E ela garante que se
divertiu e comeu muito fazendo as fotos que ilustram estas páginas.
(2) As páginas dessa matéria foram ilustradas por Guto Lacaz, um importante designer e
artista plástico da atualidade. Ele fez uma interpretação do texto a partir do olhar que
tem em relação às diferentes maneiras de trabalhar e misturou técnicas feitas à mão com
as digitais.
(3) Dirceu Villa é poeta e tradutor, autor de Icterofagia (2008) e Transformador (2014).
Vive e trabalha em São Paulo.
(4) Fellipe Abreu é fotojornalista e um curioso por natureza. Adora viajar por aí
conhecendo pessoas, culturas e ouvindo e registrando boas histórias.
No primeiro excerto, vemos um reforço da ideia de vínculo entre a designer e a
publicação, manifesto por um dêitico temporal (a profissional presta serviços à revista
há 2 anos). Porém, essa não parece ser uma relação meramente contratual. Há um
envolvimento quase afetivo: Vanessa Kinoshita se divertiu e até comeu muito enquanto
realizava o seu trabalho, o que promove uma quebra no aspecto formal esperado para
esse tipo de situação. É esclarecedora a informação de que a designer atuou em uma
matéria de nome “Por uma vida mais doce” (matéria de capa), que trazia como proposta
ensinar ao leitor a “espalhar pequenas doses de açúcar no seu dia a dia e, assim,
transformá-lo em algo mais leve, tranquilo e feliz”. O texto é acompanhado por fotos
que mesclavam objetos do cotidiano, tais como sapatos, travesseiro e telefone, com
chocolates, morangos, granulados e outros ingredientes de confeitaria.
Já no segundo texto, há um reforço sobre a competência profissional de Guto
Lacaz, qualificado enquanto um designer e artista plástico “importante na atualidade”,
Explica-se, então, o processo criativo das imagens que ilustraram a matéria: ele
interpretou o texto “a partir do olhar que tem sobre as diferentes maneiras de trabalhar”
– o que pode ser um indicativo de sensibilidade e experiência, pois ele se apoiou no
próprio repertório artístico que, pelo que o texto aponta, é diverso –, e chegou a uma
combinação entre “técnicas feitas à mão com digitais”, um esclarecimento sobre a
feitura do material.
No terceiro fragmento em análise, temos algo mais próximo de um relato
biográfico, como aqueles presentes nas orelhas de livros, para contar um pouco sobre o
autor da obra. Ao referenciar trabalhos antigos, o texto reconstrói parte da atuação
profissional de Dirceu Villa, o que pode ajudar o leitor em sua identificação com o estilo
de escrita e a temática desenvolvida pelo poeta e tradutor. A isso, é acrescida outra
informação, destoante em relação aos demais trechos em análise: “vive e trabalha em
São Paulo”. Existem diferentes possibilidades para interpretar esse dado. Não me escapa
o fato de que, nesse caso, o profissional atuou na seção Perfil, sobre personalidades
públicas, que têm expostos, de certo modo, aspectos de suas vidas privadas. A meu ver,
a explicitação desse referencial geográfico pode ser vista como uma espécie de
provocação ao leitor ou até confirmação daquilo que é proposto pela revista: Vida
Simples encarrega-se de assuntos relacionados à qualidade de vida e espera-se ou
pressupõe-se que, por extensão, sua equipe seja capaz de transmitir determinados
valores, costumes ou perspectivas compatíveis com essa proposta. E não deve ser
negligenciado o fato de que São Paulo é o eixo econômico do país, além da maior
metrópole na América Latina. Tendo isto em consideração, haveria uma mensagem
implícita ou um subentendido5 (DUCROT, 1987): é possível ter qualidade de vida em
5 De acordo com o linguista, pressupostos e subentendidos estariam no nível implícito de um enunciado.
O pressuposto seria uma mensagem adicional, pertencente plenamente ao sentido literal, sendo de
domínio comum das duas personagens do diálogo. Desse modo, se relaciona a conhecimentos prévios e
compartilhados por um “nós”, sem os quais a compreensão da mensagem fica comprometida. Já o
subentendido, previsto por um componente retórico, que leva em conta as circunstâncias de enunciação,
São Paulo. O curioso e até certo ponto contraditório é que a matéria, de nome “A poesia
encontra a natureza”, trata do poeta brasileiro Leonardo Froés, que “abandonou uma
vida agitada no Rio de Janeiro para ficar perto da natureza, cuidando de plantas e
animais no interior”.
Por fim, o último trecho busca traçar um perfil do profissional Fellipe Abreu,
listando alguns de seus hobbies: “Adora viajar por aí conhecendo pessoas, culturas e
ouvindo e registrando boas histórias”. A ideia de registro vai de encontro à sua
profissão, um fotojornalista.
Por meio da análise dos excertos acima, é possível afirmar que a apresentação
dos atores envolvidos na produção da revista procura não apenas creditar o trabalho
desenvolvido, mas evoca uma identificação do leitor com esses profissionais ou com o
conteúdo tratado. Quando jornalistas, designers, ilustradores e fotógrafos partilham
experiências de vida, pontos de vista ou hábitos, há uma proposta intimista de diálogo
com o interlocutor, que se dá por meio de uma linguagem simples e informal.
No entanto, essa multiplicidade de vozes, por meio da personalização da equipe
de Vida Simples, não coloca em risco a unidade editorial da revista. Ainda que se
ressalvem qualidades ou preferências que dizem sobre particularidades dos profissionais
ali envolvidos, existe um filtro para pincelar tais atributos, sem prejudicar a “co-
enunciação” da publicação, como diria Patrick Charaudeau (2006).
Ao discutir sobre a identidade das instâncias de informação, o analista do
discurso destaca o caráter coletivo do regime de produção informativo. São vários os
agentes que atuam, de forma conjunta, para que um produto final e com identidade
própria seja alcançado. Em suas palavras:
Todos contribuem para fabricar uma enunciação aparentemente unitária e
homogênea do discurso midiático, uma co-enunciação, cuja intencionalidade
significante corresponde a um projeto comum a esses atores e do qual se
pode dizer que, por ser assumida por esses atores, representa a ideologia do
organismo de informação. (CHARAUDEAU, 2006, p.73)
Desse modo, ainda que a revista seja uma somatória de práticas individuais,
reinvindica a possibilidade de estar ausente do enunciado, aparecendo somente em momento posterior por
meio de um “tu”: é aquilo que permito ao leitor concluir. O subentendido acrescenta alguma coisa “sem
dizê-la”. É interessante pontuar que a compreensão de pressupostos e subentendidos demanda uma leitura
contextual, para além do que está posto, o que, em nosso caso, diz sobre o lugar de enunciação da revista
Vida Simples.
formada por uma rede de gêneros jornalísticos heterogêneos, cada qual resguardando
certa autonomia frente aos demais, é necessário que todos se relacionem, unidos por um
fio condutor que seria “a ideologia do organismo de informação”. Aparece aqui até
mesmo um questionamento acerca de autoria, afinal, como explica Charaudeau, é difícil
responsabilizar alguém por uma informação dentro da cadeia midiática. “No que
concerne às mídias, nunca se sabe realmente quem pode responder por uma determinada
informação, mesmo quando é assinada por um determinado jornalista.” Isso porque “os
efeitos da instância midiática de produção transformam as intenções da instância de
enunciação discursiva tomada isoladamente” (CHARAUDEAU, p.74, 2006).
Considerações finais
Enquanto formação discursiva moderna, as revistas são instrumentos simbólicos
que nos ajudam na compreensão de um tempo, criam modos de fazer e de dizer sobre o
mundo. Nesse sentido, Vida Simples joga luz sobre a concepção de sujeito
contemporâneo e seus problemas cotidianos, servindo de exemplo para uma reflexão
sobre como o discurso de autoajuda tem ganhado espaço no repertório midiático.
A análise empreendida por este artigo mostra que Vida Simples constrói uma
imagem de si enquanto instância de enunciação capaz de instruir os indivíduos na
tomada de atitudes e soluções que lhe proporcionarão mais felicidade. É interessante
observar que esse ethos de aconselhamento, lugar do qual fala a publicação, se dá muito
mais por meio do apelo às emoções do que pela razão, por uma lógica argumentativa.
Assim, é possível também dizer que o “bem-estar” proposto por Vida Simples
deve-se fazer sentir já no momento da leitura, por meio de diferentes estratégias que
recaem sobre o conceito de simplicidade: estaria na estilização da capa, no diálogo
próximo e intimista que se estabelece com o leitor, por meio da exposição de histórias
de vida e opiniões dos profissionais, transformados, assim, em personagens.
De modo geral, é importante destacar que Vida Simples confronta certa “dureza”
comum ao campo jornalístico, inserindo um aspecto sensível da realidade na cobertura
cotidiana do mundo (Tavares, 2011b). Sensível e – por que não – sensório, visto que o
conceito de simplicidade e o discurso de bem-estar se presentificam em suas páginas.
Referências
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