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EM BUSCA DA BELEZA: UM ESTUDO DO VOCABULÁRIO VEGETAL DA PERSONAGEM CELESTINA Cleuza Andrea Garcia Muniz 1 Raysa Luana da Silva 2 Resumo: Considerada uma obra de transição entre dois períodos culturais, a Idade Média e o Renascimento, La Celestina, escrita por Fernando de Rojas, é um claro exemplo da evolução literária e ideológica que diferencia os dois períodos, e que retrata uma Espanha em fase de transição. Em estilo dramático, La Celestina pode ser considerada também como uma das maiores produções da literatura espanhola, pois oferece um plano duplo que corresponde às tendências popular e culta, marca da prosa do final do século XV. O presente artigo tem por objetivo realizar, tomando como base estudos desenvolvidos na área da botânica, um breve inventário do vocabulário vegetal referenciado no primeiro ato da obra, analisando-o como recurso para a manipulação e elaboração de produtos de beleza por Celestina que, em razão de seus vários ofícios, possuía profundo conhecimento sobre os elementos da fauna e da flora. Palavras-chave: La Celestina; plantas; estética. Abstract: La Celestina, written by Fernando de Rojas and regarded as a work of transition between two cultural periods, the Middle Age and the Renaissance, is a clear instance of literary and ideological evolution that differentiates both periods and portraits Spain in a transition moment. Thus, because of its style, a dramatic structure, La Celestina might be considered one of the biggest spanish literary productions, since it offers a double plan that matches the popular and erudite tendencies, which is the hallmark of late 15 th century prose. Based on works developed in Botany, the present study aims to make a brief inventory of botanic vocabulary, which was mentioned in the 1 Professora de Língua e Literatura Espanhola do Curso de Letras da Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) - CEP: 79.070-900 - Campo Grande – MS - [email protected] 2 Professora de Língua e Literatura do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso do Sul (IFMS), Campus Campo Grande - CEP 79.005-000 - Campo Grande – MS - [email protected]

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EM BUSCA DA BELEZA: UM ESTUDO DO VOCABULÁRIO VEGETAL DA

PERSONAGEM CELESTINA

Cleuza Andrea Garcia Muniz1

Raysa Luana da Silva2

Resumo: Considerada uma obra de transição entre dois períodos culturais, a Idade

Média e o Renascimento, La Celestina, escrita por Fernando de Rojas, é um claro

exemplo da evolução literária e ideológica que diferencia os dois períodos, e que retrata

uma Espanha em fase de transição. Em estilo dramático, La Celestina pode ser

considerada também como uma das maiores produções da literatura espanhola, pois

oferece um plano duplo que corresponde às tendências popular e culta, marca da prosa

do final do século XV. O presente artigo tem por objetivo realizar, tomando como base

estudos desenvolvidos na área da botânica, um breve inventário do vocabulário vegetal

referenciado no primeiro ato da obra, analisando-o como recurso para a manipulação e

elaboração de produtos de beleza por Celestina que, em razão de seus vários ofícios,

possuía profundo conhecimento sobre os elementos da fauna e da flora.

Palavras-chave: La Celestina; plantas; estética.

Abstract: La Celestina, written by Fernando de Rojas and regarded as a work of

transition between two cultural periods, the Middle Age and the Renaissance, is a clear

instance of literary and ideological evolution that differentiates both periods and

portraits Spain in a transition moment. Thus, because of its style, a dramatic structure,

La Celestina might be considered one of the biggest spanish literary productions, since

it offers a double plan that matches the popular and erudite tendencies, which is the

hallmark of late 15th

century prose. Based on works developed in Botany, the present

study aims to make a brief inventory of botanic vocabulary, which was mentioned in the

1Professora de Língua e Literatura Espanhola do Curso de Letras da Fundação

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) - CEP: 79.070-900 - Campo

Grande – MS - [email protected] 2Professora de Língua e Literatura do Instituto Federal de Educação, Ciência e

Tecnologia de Mato Grosso do Sul (IFMS), Campus Campo Grande - CEP 79.005-000 -

Campo Grande – MS - [email protected]

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first act of the work, by analysing it as a resource for handling and elaboration of

beauty products by Celestina, that because of her many occupations had profound

knowledge about the elements of fauna and flora.

Key-words: La Celestina; plants; esthetics.

Historicamente, as mulheres sempre se preocuparam com a beleza. Assim, a

mulher associada à beleza é tema recorrente na Literatura, e desde os tempos mais

remotos, poetas cantaram e exaltaram o belo. Por outro lado, para alcançar o padrão de

beleza exigido ao longo dos séculos, sobretudo para aquelas desafortunadas ou

desprovidas pela natureza, a tarefa não era das mais fáceis; era preciso recorrer aos mais

diversos métodos de embelezamento na tentativa de alcançar esse padrão, com a

finalidade de obter a perfeição pretendida e idealizada.

Segundo Alicia Crespo (1993), o problema da beleza do corpo e do espírito foi

um assunto muito discutido durante todo o século XVI. Mesmo que não existam muitos

estudos escritos sobre as descrições físicas na literatura do período medieval, sempre

existiu, na literatura, a valorização da beleza como qualidade essencial para as

mulheres. Ainda segundo a autora, o ideal de beleza feminino na literatura medieval

europeia, sempre vagamente descrito, apresentava os seguintes atributos à mulher:

deveria ter os cabelos loiros, sobrancelhas finas e bem separadas, magra e ter a pele

clara e macia.

Entretanto, se na realidade poucas mulheres apresentavam esse estereótipo de

beleza apreciada pelos homens, aquelas que não o possuíam lançavam mão de produtos

cosméticos, de uso regular e contínuo. Desde a Idade Média existiram mulheres que se

dedicavam a preparar esses produtos, como por exemplo, a velha Celestina, personagem

da obra homônima de Fernando de Rojas (1502).

La Celestina, intitulada primeiramente Tragicomedia de Calisto y Melibea, teve

em 1502 sua versão definitiva. A obra de Rojas marca no campo literário, a transição da

Idade Média para o Renascimento espanhol. Por sua importância e complexidade, já

existem muitos trabalhos sobre a obra, dos mais diversos temas e campos do

conhecimento.

Para entender seu processo de criação é importante contextualizar alguns

aspectos da época. A unificação de todos os territórios da Península Ibérica, exceto

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Portugal, em um único reino e única religião - a cristã - acontece nessa época. Assim,

como um cristiano viejo - designação dada a quem sempre seguiu a religião católica -

tinha muito mais prestígio socialmente, acredita-se que muitos conversos (cristãos que

antes eram judeus ou tinham antepassados dessa religião) ocultaram sua real condição.

Muitos membros dessa religião foram expulsos do reino e a Inquisição perseguiu,

inclusive até a morte, os suspeitos de participarem de outras religiões. A família de

Rojas sofreu processos inquisitoriais por esconder suas origens e a prática do judaísmo,

com o próprio Rojas aparecendo em documentos oficiais como acusado pelo Santo

Inquérito.

Na obra, os temas principais são o amor, a morte e a ambição. O amor é o eixo

central da obra e determina o comportamento de todas as personagens. Assim, se pode

deduzir que uma das intenções do autor foi atacar o louco amor ou a ambição pelo

material (amor carnal e amor ao ouro) e a corrupção que transtorna a ordem social

humana e divina. Já as personagens, por sua vez, aparecem diante do leitor dotadas de

vida, de individualidade e realismo, ou seja, caracteres complexos e ricos, que marcam

uma ruptura com o pensamento medieval existente na literatura da época.

La Celestina é constituída por 21 atos e narra a história de Calisto e Melibea.

Calisto, um jovem nobre, encontra Melibea em um jardim e imediatamente apaixona-se

por ela, mas é rapidamente rejeitado. Desencantado, busca apoio em seu criado

Sempronio, e este, por sua vez, o aconselha a recorrer aos serviços de uma velha

alcoviteira chamada Celestina, a fim de conquistar Melibea. Pármeno, também criado de

Calisto, tenta demovê-lo de tal ideia. Porém, a paixão é mais forte e Calisto decide

encontrar-se com a alcoviteira. Com sua habilidade de convencimento e conhecimento

de diversos assuntos, Celestina consegue atingir seu objetivo, despertando-lhe o amor

em Melibea.

Sempronio e Pármeno, já dominados pela ambição, decidem explorar seu amo e

acabam por matar a Celestina porque esta se negou a dar-lhes parte de uma corrente de

ouro que recebera de Calisto pelos serviços prestados ao jovem. Os criados são presos e

decapitados. Certa noite, ao visitar Melibea no jardim, o apaixonado Calisto sobe por

uma escada, mas acidentalmente tropeça, cai e morre. Melibea, desesperada pela morte

do seu amado, encerra-se em uma torre e se suicida, atirando-se do alto, na presença dos

pais.

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Pelo enredo da obra é possível reafirmar o que foi dito anteriormente: o amor

movimenta toda a história. No entanto, trata-se de um amor trágico e o contraste amor-

morte perpassa a narrativa. É importante salientar que, ainda que Calisto e Melibea

apareçam como protagonistas, é Celestina quem ocupa o centro da tragicomédia, por

sua facilidade de palavra e seus ofícios, que lhe permitiam aproximar-se das pessoas,

importantes ou não, para corrompê-las e atingir seus interesses materiais. Tal fato

justifica, posteriormente, a troca do título da obra.

Celestina utiliza-se de todas as armas para conseguir o que mais lhe atrai:

riquezas. Seus conhecimentos da natureza humana, a cobiça e sua experiência com as

plantas medicinais, considerada bruxaria e feitiçaria na época, são postos a serviço de

seus interesses pessoais. É inclusive pelos seus trabalhos “suspeitos”, que Celestina

chega até Calisto e a Melibea, o que fica evidente através de sua apresentação feita por

Sempronio:

Yo te lo diré. Días ha grandes que conozco en fin de esta vecindad una

vieja barbuda, que se dice Celestina, hechicera, astuta, sagaz en

cuantas maldades hay; entiendo que pasan de cinco mil virgos los que

han hecho y deshecho por su autoridad en esta ciudad. A las duras

penas promoverá y provocará a lujuria, si quiere. (ROJAS, 1994, p.

37).

Ressaltamos que, como Celestina deseja riquezas, ela realiza todos seus ofícios

com muito profissionalismo e seriedade; é Pármeno quem nos fala dos seis ofícios que

Celestina possui. O que une seus ofícios são a natureza e a utilização de substâncias de

origem vegetal e animal para realizar o que necessita: “Ella tenía seis oficios, conviene

[a] saber: labrandera, perfumera, maestra de hacer afeites y de hacer virgos, alcahueta y

un poquito hechicera. Era el primer oficio cobertura de los otros […]” (ROJAS, 1994, p.

42)

Segundo os ideais de beleza da época medieval, a chamada beleza natural era

muito valorizada. Entende-se por beleza natural, o estereótipo já mencionado

anteriormente, que dispensava o uso de adornos e cosméticos. A utilização de

cosméticos era considerada algo quase demoníaco, pois a visão teocêntrica da época

considerava que a verdadeira beleza era a interior e que o corpo feminino era a

representação do pecado. Segundo essa visão, se a mulher utilizava adornos ou

cosméticos em seu corpo, tinha nesse ato, uma intenção pecaminosa ou demoníaca.

Entretanto, a partir das pesquisas realizadas, percebe-se que as mulheres que

mais utilizavam os cosméticos eram as mais importantes socialmente, já que deveriam

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manter uma boa imagem diante da sociedade. A tirania da beleza mostra que é

necessário ser jovem o maior tempo possível, pois a velhice deforma esse ideal. E para

que uma pessoa permaneça jovem, tudo é permitido. Assim, as mulheres que sabiam

manipular elementos de origem vegetal e animal para a elaboração desses produtos,

como Celestina, eram sempre solicitadas para seu fornecimento.

Na obra é possível afirmar que Melibea utilizava produtos para alcançar esse

ideal de beleza ou para sua manutenção, considerando-se a descrição feita por seu

amado Calisto, na qual a jovem apresenta-se como a perfeição entre as mulheres:

Los ojos verdes, rasgados; las pestanas luengas; las cejas delgadas y

alzadas; la nariz mediana; la boca pequeña; los dientes menudos y

blancos; los labios colorados y grosezuelos; el torno del rostro poco

más luengo que redondo; el pecho alto; la redondeza y forma de las

pequeñas tetas, ¿quién te la podría figurar? Que se despreza el hombre

cuando las mira. La tez lisa, lustrosa; el cuero suyo escurece la nieve;

la color mesclada, cual ella la escogió para sí. [...] Las manos

pequeñas en mediana manera, de dulce carne acompañadas; los dedos

luengos; las uñas en ellos largas y coloradas, que parecen rubíes entre

perlas […]. (ROJAS, 1994, p. 36)

Para elaborar os cosméticos e todos os recursos para o tratamento de beleza, era

costume entre as mulheres recorrer aos manuais ou receituários que continham toda

sorte de receitas medicinais e cosméticas, fórmulas e elaboração de variados produtos,

dos mais distintos usos. Assim, desde sabonetes até loções para clarear o cabelo, o uso

desses produtos tinha uma finalidade muito clara, que era imitar ou atingir o ideal de

beleza feminino da época. Ainda segundo Crespo (1993), em seu estudo sobre os

adornos e cosméticos utilizados no século XI, observamos que os referidos manuais

eram destinados às mulheres de classes privilegiadas, logo letradas e que necessitavam

educar-se de maneira livresca, já que estavam muito mais distantes das práticas caseiras,

ao contrário das mulheres de classes populares que, através da tradição oral, transmitida

de geração em geração, elaboravam as receitas de produtos recolhidos nos referidos

manuais.

En efecto, vemos como la mujer desempeñó un papel fundamental en

la medicina doméstica y no sólo como partera, labor tradicionalmente

asignada al universo femenino, sino como conocedora de remedios

para resolver los problemas de salud más comunes en el espacio

doméstico. Tarea que compaginaba con la de perfumista y

cosmetóloga, encargada de la limpieza y ornato del cuerpo a través de

la actuación sobre la piel, la higiene bucal y el cabello. Conocimientos

diversos cuyas recetas y formulas no solo se transmitían de forma oral

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sino que se compilaban en recetarios que iban pasando de madres a

hijas como verdaderos tesoros de saber cotidiano. (SANTAYANA &

GARCÍA-VILLARICO, BUENO, MORALES, 2011, p. 252-253).

Celestina recebe de sua companheira Claudina, mãe de Pármeno, todo o

conhecimento necessário para o preparo e confecção de vários cosméticos. Além disso,

a mestre Claudina ensinou-lhe as propriedades ocultas das plantas, que iam desde a cura

até a morte, dependendo da forma como as utilizavam. Nas palavras da própria

personagem:

(…) su madre y yo, uña y carne. De ella aprendí todo lo mejor que sé

de mi oficio. Juntas comíamos, juntas dormíamos, juntas habíamos

nuestros solaces, nuestros placeres, nuestros consejos y conciertos. En

casa y fuera, como dos hermanas. (ROJAS, 1994, p. 79).

A base de elaboração dos cosméticos preparados por Celestina partia de

elementos da natureza, os ingredientes mais comuns utilizados em sua preparação eram

ervas, plantas, derivados animais e inclusive alguns minerais. Em uma antológica

descrição da velha alcoviteira, Pármeno oferece-nos no Ato I uma extensa lista de

elementos vegetais e animais utilizados no preparo de vários produtos; amostra muito

completa da flora medicinal da época de Rojas. Esta fabulosa descrição permite-nos

conhecer o famoso laboratório de Celestina, centro de interesse de teóricos e objeto de

análise de vários estudos críticos. Em seu laboratório existiam muitos instrumentos de

destilação e Celestina detinha esse saber, ou seja, o exercício da prática destilativa,

entendida como uma arte de separação por meio do calor.

Se ha notado además que Celestina, amén de poseer los ingredientes,

también dispone de los instrumentos adecuados para destilar y

conservar: su colección de botes de farmacia ya sea de barro ya sea de

vidrio, consta, por ejemplo, de numerosos alambiques, redomillas, y

barrilejos, entre otros.3 (BOTTA, 1994, p. 45).

Passemos agora à descrição dos vegetais referenciados no Ato I, já que nesse ato

encontramos referências a 56 espécies vegetais, de um total de 86, segundo estudos de

Santayana et al (2011). O presente estudo baseou-se em um inventário da referida

pesquisa, na qual os autores recolheram e analisaram todas as menções às plantas,

animais e aos nomes relacionados com estes ou aos produtos vegetais e animais.

Igualmente, realizamos um recorte das plantas utilizadas especificamente para a

elaboração dos cosméticos. Essa divisão deve-se ao fato de que essas espécies estão

3 Grifo nosso.

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relacionadas diretamente ao âmbito da estética facial e ao tratamento do cabelo, ao

contrário das outras, que se destinam, por exemplo, à perfumaria.

Assim, mencionamos a denominação vulgar da planta em língua espanhola

seguida de seu nome científico e seu corresponde em português (caso exista a espécie

no Brasil), e também, uma breve descrição e definição retirada do dicionário

Covarrubias (1611) e em outras fontes investigadas4.

Entre as muitas plantas utilizadas pela personagem para a elaboração dos

cosméticos, destacam-se as lejías para enrubiar (utilizadas para tingir o cabelo).

Cabelos compridos e loiros representavam um dos padrões de beleza estabelecidos na

época, mulheres que não se encaixavam nesse padrão, recorriam ao uso de produtos

para tingi-los. No primeiro ato são registradas cinco espécies que Celestina utilizava na

elaboração dos produtos: sarmientos, carrasca, centeno, marrubios e milifolia.

Sacaba agua[s] para oler, de rosas, de azahar, de jazmín, de trébol, de

madreselva; y clavenillas, mosquetadas y almizcladas, polvorizadas,

con vino; hacía lejías para enrubiar, de sarmientos, de carrasca, de

centeno, de marrubios, con salitre, con alumbre y milifolia y otras

diversas cosas.5 (ROJAS, 1994, p. 44)

Isso posto, passemos à análise de cada elemento vegetal seguindo a ordem em

que aparece na citação do fragmento da obra.

O sarmiento (Vitis vinifera – Videira, no Brasil), uma espécie trepadora, é a

planta dos problemas circulatórios, pois a cor vermelha sangue de suas folhas indica sua

riqueza em taninos. É conhecido que, além do mosto (suco da uva exprimida e sem

fermentar), se obtém também dessa uva um suco fermentado. Estes princípios exercem

uma importante atividade vitamínica que também faz diminuir a permeabilidade dos

capilares e aumenta sua resistência.

A carrasca (Quercus ilex – Azinheiro, no Brasil) é obtida nas colinas, bosques e

campos da região mediterrânea. É uma espécie de encima pequena, de matéria muito

forte. A casca conta com uma grande quantidade de taninos, por isso é muito apreciada

nas tinturarias para curtir o couro e para fazer produtos para tingimento.

O centeno (Secale cereale – Centeio, no Brasil) tem vários usos, e um dos

principais é o whisky de centeno. Como medicina alternativa em sua forma líquida é

4 As descrições e definições também foram consultadas nos estudos de Santayana et al.

5 Grifo nosso.

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conhecida como "extrato de centeno”, um líquido obtido da planta e semelhante ao

extrato de trigo.

O marrubio (Marrubium vulgare – Marroio branco ou Hortelã do Maranhão, no

Brasil) é usado tradicionalmente em infusões como remédio para todo tipo de doenças

derivadas, em geral, do frio. É expectorante e fluidificante, útil tanto para as vias

respiratórias superiores, como bronquite, tosse ou asma. Assim, o marrubio é a planta do

bem-estar respiratório.

A milifolia (Achillea millefolium – Milfolhas, no Brasil) por sua vez, foi uma

das ervas mais apreciadas pelas feiticeiras e boticárias na época medieval. Suas

substâncias ativas têm utilidades hemostáticas e digestivas, e seu extrato é utilizado na

fabricação de produtos cosméticos dos mais diversos, entre eles tinturas para o cabelo e

produtos de limpeza de pele.

Celestina também preparava muitos aceites para el rostro (produtos para

limpeza do rosto).

Los aceites que sacaba para el rostro no es cosa de creer: de estoraque

y de jazmín, de limón, de pepitas, de violetas, de menjuí, de

afócigos, de piñones, de granillo, de azofeifas, de neguilla, de

altramuces, de arvejas y de carillas y de hierba pajarera; y un

poquillo de bálsamo tenía ella en una redomilla, que guardaba para

aquel racuño que tiene por las narices.6 (ROJAS, 1994, p. 44)

Do tronco de estoraque (Styrax officinalis – Estoraque, no Brasil) extrai-se um

licor, que é um líquido resinoso que se comercializa como incenso aromático chamado

benjuí. Obtêm-se o estoraque líquido a partir do cozimento do licor. É expectorante,

desinfectante e antisséptico.

Do jazmín (Jasminum officinale – Jasmim, no Brasil), as flores são utilizadas na

perfumaria por seu aroma. É utilizado também como aromatizante de infusões, como

calmante e como sedante.

O limón (Citrus limon – Limão, no Brasil) é utilizado para limpar e eliminar

manchas e imperfeições do rosto. Tem infinitas propriedades medicinais. O ácido

ascórbico e o limoneno conferem-no propriedades depurativas. O suco de limón,

combinado com a água e os sais, é uma boa alternativa para hidratar o organismo e

recuperar os minerais perdidos.

6 Grifo nosso.

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As pepitas (Lagenaria siceraria – Cabaça, no Brasil) produzem um azeite

utilizado no rosto. A polpa fibrosa que se encontra junto às sementes possui efeitos

laxantes e eméticos, enquanto que na pele atua como diurética.

A violeta (Viola odorata – Violeta, no Brasil) é uma flor comum e muito

conhecida, utilizada na perfumaria e na fabricação de licores. Além disso, possui

propriedade adstringente, emoliente, expectorante e laxante.

O menjuí (Styrax benzoin – sem correspondente brasileiro) é um licor parecido

ao benjuí e alguns estudos mostram que pertence a mesma família. Possui propriedades

adstringentes, desinfetantes, expectorantes e antissépticas, além de ser utilizada para

tratar os furúnculos da pele.

O alfócigo (Pistacia vera – Amêndoa-pistácio ou Pistache, no Brasil) é muito

mais conhecido como pistacho (do italiano pistaccio). Seu fruto é semelhante ao piñón,

tem propriedades adstringentes e também é um dos sabores clássicos para os sorvetes.

O piñón (Pinus pinea – Pinheiro, no Brasil) é a fruta do pino, árvore conhecida e

muito viril, de onde se retira a matéria-prima para muitos instrumentos de corda. Dessa

fruta preparava-se um azeite para utilização na limpeza de pele.

As azofeifas (Ziziphus jujuba – Jujuba, no Brasil) são utilizadas para limpeza de

pele. Seu fruto é rico em açúcar e amido e as raízes são empregadas contra a febre.

O granillo (Scorpiurus muricatus – sem correspondente no Brasil) é uma

semente semelhante à cevada e ao centeio. De sua semente é retirada um extrato de

matéria verde que possui efeitos alopáticos.

A neguilla (Nigella sativa – Cominho negro, no Brasil) é utilizada para retirar

manchas da pele e para limpá-la. De semente escura, os romanos utilizavam-na como

substituto da pimenta. Ela aumenta a eliminação de ácido úrico e era utilizada na

antiguidade contra a icterícia.

As altramuces (Lupinus Albus – Tremoço, no Brasil) são utilizadas para limpar

a pele. Planta conhecida por seus grãos duros, grandes, vermelhos e amargos. Dos seus

grãos preparam-se farinhas e granulados para a elaboração de comprimidos, dos quais

têm especial indicação nos casos de elevada concentração de ácido úrico no sangue.

A arveja (Vicia sativa – sem correspondente no Brasil) é uma planta herbácea,

ereta e trepadora, de vida curta, e que possui, às vezes, pelinhos em suas extremidades.

Suas sementes são utilizadas para abrandar furúnculos, para limpar a pele e como

forragem para animais.

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A carilla (Vigna unguiculata – Feijão fradinho, no Brasil) é uma variedade de

judia, um tipo de vagem, menor que a normal, chegando apenas a alguns centímetros.

Sua cor é branca ou branca amarelada e tem uma mancha escura na lateral. Suas

sementes possuem propriedades adstringentes.

A hierba pajarera (Stellaria media – Morugem branca ou Morugem verdadeira,

no Brasil) é encontrada abundantemente nos lugares úmidos e com muita sombra, como

próximos de muros. Antigamente, utilizavam-na como expectorante e fortalecedor das

vias respiratórias e dos pulmões. É também remineralizante e utilizada para o

tratamento de úlceras e feridas.

Os produtos para adelgazar los cueros (afinar e deixar a pele macia) também

eram procurados pelas mulheres: “Adelgazaba los cueros con zumos de limones, con

turbino, con tuétano de corzo y de garza, y otras confacciones.7” (ROJAS, 1994, p. 44)

O turbino (Ipomoea turpethum – sem correspondente no Brasil) é laxante e

vermífugo. Existe uma variedade branca usada como catártico e laxante, e uma

variedade negra semelhante ao heléboro negro.

Já nas aguas para el rostro (aguas com propriedades adstringentes) são

referenciadas seis espécies no primeiro ato da obra.

[…] hacía solimán, afeite cocido, argentadas, bujelladas, cerillas,

llanillas, unturillas, lustres, lucentores, clarimientes, albalinos, y otras

aguas de rostro, de resuras de gamones, de cortezas de espantalobos,

de taraguncia, de hieles, de agraz, de mosto, destilados y

azucarados. (ROJAS, 1994, p. 43-44)

Os gamones (Asphodelus albus – sem correspondente no Brasil), conhecidas por

suas propriedades medicinais, são utilizados no tratamento de inúmeras doenças e seus

galhos são utilizados no tratamento do rosto.

A bujellada (Buxus sempervirens – Buxo ou Buxinho, no Brasil) tem suas

folhas e frutos não comestíveis e altamente tóxicos. Entretanto, são atribuídas a ela

propriedades medicinais contra a malária e às infecções intestinais.

As folhas dos espantalobos (Colutea arborescens – sem correspondente no

Brasil), usadas em grande quantidade, possuem propriedades purgantes e depurativas.

Para a teraguncia (Dracunculus vulgaris – sem correspondente brasileiro), um

médico grego, Dioscórides, resumiu em seus escritos o conhecimento humano do uso

das plantas medicinais; anotou, por exemplo, que o dracunculus (dragontea), uma

7 Grifo nosso.

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planta com caule "retorcido como o ventre de uma serpente", controla o câncer, é

abortiva, cura a gangrena e é boa para a visão.

O azúcar (Saccharum officinarum – açúcar, no Brasil) tem propriedades

adstringentes e é uma importante fonte de calorias na dieta moderna. Entretanto, é

frequentemente associado às calorias vazias, devido à completa ausência de vitaminas e

minerais.

O agraz e o mosto (Vitis vinífera – Vinho, no Brasil), já mencionados como

“lejías para enrubiar”, são sumos da uva exprimida e sem fermentação. Além disso, é do

conhecimento de todos que as propriedades do vinho são inúmeras.

Diante do exposto, podemos observar através do breve inventário do vocabulário

vegetal, aqui analisado, que La Celestina foi uma obra que impulsionou muitos estudos

de temáticas e abordagens distintas, e de opiniões positivas e negativas sobre a

utilização das plantas medicinais na época medieval.

Ressaltamos que o mundo da botânica ocupa um lugar privilegiado nas

pesquisas que serviram para desmistificar, pelo menos em boa medida, a imagem da

mulher como bruxa e feiticeira na Idade Média, e colocá-la como uma grande

conhecedora dos princípios da medicina natural. A natureza foi e continua sendo uma

fonte inesgotável para tratar e curar enfermidades, para aliviar os males, para prover a

alimentação, para abrigar-se, vestir-se e, conforme analisamos em nosso recorte, para a

busca e manutenção da beleza, seja em qualquer época ou sociedade.

Referências Bibliográficas

BOTTA, P. La magia en La Celestina. DICIENDA: Cuadernos de Filología

Hispánica, Madrid, n. 12, p. 37-67. Ed. Complutense, 1994. Disponível em:

<http://www.ucm.es/BUCM/revistas/fll/02122952/articulos/DICE9494110037A.PDF>

Acesso em: 25 jun. 2011.

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