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II Colóquio da Pós-Graduação em Letras UNESP – Campus de Assis ISSN: 2178-3683 www.assis.unesp.br/coloquioletras [email protected] 1066 ELIXIRES: RECEITAS DE FELICIDADE NAS URBES DOS SONHOS Tatiane Milene Torres (Doutoranda – USP – CAPES) RESUMO: O presente artigo tem por objetivo analisar a simbologia de alguns medicamentos ofertados aos leitores/agentes dos almanaques Hachette e Brasileiro Garnier como panaceias universais. Em consonância com o universo místico de tais livros populares, examinamos o papel da cura por meio de remédios sagrados que garantem simbolicamente a conquista da longevidade e da erradicação dos males da vida. Tais fórmulas de joie de vivre fazem parte da atmosfera quimérica das cidades ideais, Paris e Rio de Janeiro, erigidas com as tintas da utopia pelo messager boiteux incumbido de trazer boas novas. PALAVRAS-CHAVE: Utopia; cidade; elixir; almanaque; cura. Como sustentabilidade das cidades ideais, Paris e Rio de Janeiro, construídas a partir das diversas telas dos almanaques Hachette e Brasileiro Garnier, observamos a existência de inúmeros elixires, medicamentos e informações de teor medicinal que corroboram a atmosfera utópica de tais livros populares, promovendo tratamento e cura para todos os males, criando simbolicamente leitores resguardados das enfermidades do mundo externo. Observamos que os diversos medicamentos e orientações que aparecem nos almanaques têm poder de criar um cosmo livre das moléstias existentes no mundo, construindo um mensageiro/curandeiro/doutor – le messager boiteux – capaz de orientar todos os outros que se apresentam por meio de seus laboratórios e da prestação de seus serviços médicos. Sendo assim, a atmosfera construída em tais livros é sustentada por uma crença coletiva, a dos leitores que acreditam na eficácia muitas vezes, miraculosa, de tais medicamentos e orientações: A eficácia da magia na cura de distúrbios psicossomáticos se funda na sua capacidade de atribuir significados às desordens fisiológicas.O mito que o xamã ou o feiticeiro produz torna coerentes as dores e sintomas. O doente, tendo compreendido o sentido daqueles sinais, fica bom.O mito lhe dá, pois uma linguagem a partir da qual estados de dor, ansiedade, confusão possam ser formulados.(MONTERO, 1986, p. 63)

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II Colóquio da Pós-Graduação em Letras

UNESP – Campus de Assis

ISSN: 2178-3683

www.assis.unesp.br/coloquioletras

[email protected]

1066

EELLIIXXIIRREESS:: RREECCEEIITTAASS DDEE FFEELLIICCIIDDAADDEE NNAASS UURRBBEESS DDOOSS SSOONNHHOOSS

Tatiane Milene Torres

(Doutoranda – USP – CAPES)

RREESSUUMMOO:: O presente artigo tem por objetivo analisar a simbologia de alguns medicamentos ofertados aos leitores/agentes dos almanaques Hachette e Brasileiro Garnier como panaceias universais. Em consonância com o universo místico de tais livros populares, examinamos o papel da cura por meio de remédios sagrados que garantem simbolicamente a conquista da longevidade e da erradicação dos males da vida. Tais fórmulas de joie de vivre fazem parte da atmosfera quimérica das cidades ideais, Paris e Rio de Janeiro, erigidas com as tintas da utopia pelo messager boiteux incumbido de trazer boas novas. PPAALLAAVVRRAASS--CCHHAAVVEE:: Utopia; cidade; elixir; almanaque; cura.

Como sustentabilidade das cidades ideais, Paris e Rio de Janeiro,

construídas a partir das diversas telas dos almanaques Hachette e Brasileiro Garnier,

observamos a existência de inúmeros elixires, medicamentos e informações de teor

medicinal que corroboram a atmosfera utópica de tais livros populares, promovendo

tratamento e cura para todos os males, criando simbolicamente leitores resguardados

das enfermidades do mundo externo.

Observamos que os diversos medicamentos e orientações que aparecem nos

almanaques têm poder de criar um cosmo livre das moléstias existentes no mundo,

construindo um mensageiro/curandeiro/doutor – le messager boiteux – capaz de

orientar todos os outros que se apresentam por meio de seus laboratórios e da

prestação de seus serviços médicos. Sendo assim, a atmosfera construída em tais

livros é sustentada por uma crença coletiva, a dos leitores que acreditam na eficácia

muitas vezes, miraculosa, de tais medicamentos e orientações:

A eficácia da magia na cura de distúrbios psicossomáticos se funda na sua capacidade de atribuir significados às desordens fisiológicas.O mito que o xamã ou o feiticeiro produz torna coerentes as dores e sintomas. O doente, tendo compreendido o sentido daqueles sinais, fica bom.O mito lhe dá, pois uma linguagem a partir da qual estados de dor, ansiedade, confusão possam ser formulados.(MONTERO, 1986, p. 63)

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É importante salientar, que malgrado o teor científico de tais medicamentos e

orientações, não podemos deixar de notar a simbologia que apresentam, dada a

relação que possuem com o universo místico dos almanaques, ora pelos dias dos

santos, ora pela astrologia e seus signos, e ainda pelos diversos homens dotados de

poderes sobrenaturais que receitam verdadeiras fórmulas de felicidade e saúde. O

caráter forçosamente científico nos almanaques, ainda que observemos marcas que

não o sustentam em hipótese alguma, segue toda uma ideologia de interesses,

políticos e econômicos, específicos da classe dominante, seja pela busca de um saber

pautado na ciência e não mais em manifestações de cunho popular, seja pela

preocupação em manter a ordem e a saúde da burguesia, mas dando a entender que

o povo está incluído em tal processo.

A medicina alicerçada na ciência sustenta e dá credibilidade aos almanaques,

estimulando a sua venda e buscando eliminar práticas baseadas em crendices

populares, ainda que as tenhamos em tais livros populares. A ênfase na medicina

erudita x medicina popular, presente nos almanaques, nos remonta à época em que

as doenças tinham relações diretas com manifestações de magia, bruxaria e feitiçaria,

estando ligadas ao mundo sobrenatural, tendo sua cura em rituais e poções que

buscavam eliminar qualquer moléstia de origem espiritual. Ainda que os almanaques

queiram eliminar resquícios desse passado calcado na magia – o contexto da

chamada Belle Époque tanto no Brasil quanto na França apresenta modelos de

higienização, de civilidade, de normatização e de comportamento, que traduzem o tão

sonhado mito dos anos d’âge d’or ou de uma época próspera – não podemos deixar

de destacar o ranço que permanece de tais práticas, posto que tais elixires e

orientações estão sustentados pela leitura astrológica e pela proteção das efemérides

com seus diversos santos.

Logo, podemos inferir na existência de um jogo ideológico presente em tal

literatura popular, posto que o leitor é levado a acreditar na seriedade do material que

está lendo, mas que apresenta uma linguagem que alimenta, muitas vezes, os seus

devaneios e pensamentos utópicos, não perdendo desta maneira, nenhum

leitor/cliente, seja do público erudito, seja do público não letrado. Sendo assim, a

prática médica que se vê nos almanaques é herdeira da política medicinal do século

XIX, na qual o controle das doenças é intensificado, além da regulamentação,

normatização e higienização da sociedade. Neste processo, é nítida a preocupação

com as classes abastadas, importando para o Brasil praticas médicas que visam

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proteger parte da sociedade das moléstias, muitas vezes as da pobreza, considerada

a causadora de muitas pestes humanas:

Essa é a prática médica importada para o Brasil. Aqui também se fazia o controle social através da norma, da lei, que regulava, disciplinava e isolava as pessoas, prendi-as e higienizava as cidades, os portos, etc., momento em que nasce a saúde pública. Essa medicina reparava na superfície os problemas urbanos, ainda que a distribuição da riqueza socialmente produzida se mantivesse inalterada. Os ricos desfrutando da sua riqueza, e expropriando os pobres através do seu trabalho. O controle social das doenças talvez fosse feito mais para proteger a classe dominante, representada pelo branco, o latifundiário e o burguês, do que apresentar uma real preocupação com os pobres. (OLIVEIRA, 1985, p.23-24)

É neste sentido, que observamos o papel do messager boiteux nos

almanaques, ora prognosticador, com suas ofertas de controle do destino, ora

mercador, possibilitando o acesso a mercadorias que corroboram a “ideologia de

consumo”, saciando a tantas veleidades que os leitores/agentes procuram em tal

literatura. A atmosfera utópica dos almanaques, imune tanto às enfermidades quanto

ao decurso do tempo, é explicitada no anúncio do “Elixir antiflegmatic” do Dr. Guillé,

que assegura uma vida longa e agradável, no Almanaque Brasileiro Garnier para o

ano de 1914. Tal promessa caminha ao encontro da própria essência dos elixires na

história, os quais prometiam a imortalidade, além de serem considerados uma

panaceia universal buscada pelos alquimistas que tinha o poder para curar todas as

moléstias e prolongar a vida de forma interminável. É nessa perspectiva simbólica que

analisamos o “Elixir antiflegmatic”, em consonância com o universo místico/consolador

do almanaque oferecido pelo profeta às avessas, sendo o antídoto capaz de combater

as doenças causadas pelos fleumas ou excesso de biles. O elixir, então, é usado para

combater as doenças causadas, como menciona o anúncio, pelo: “Clima, hygiene,

privações, excessos de trabalho ou de nutrição”.

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O texto certifica os leitores de que o sintoma da presença de fleumas no

organismo é o mal funcionamento dos órgãos digestivos, como o estômago, os

intestinos e o fígado. Tal certificado nos direciona para o vocábulo fleuma, que

segundo Aurélio (1988, p.300), significa “S. f. 1. Um dos quatro humores corporais,

segundo a teoria hipocrática e a galênica (ver galenismo). 2. Fig. Frieza de ânimo;

serenidade, impassibilidade. 3. Fig. Falta de interesse, diligência ou pressa; lentidão,

pachorra”. Considerando tal definição, podemos inferir que o elixir representa

simbolicamente a solução para toda falta de ânimo e de iniciativa dos leitores/agentes

do Garnier, além de incidir diretamente na biles, um dos quatro humores corporais.

Diante disso, não podemos deixar de discorrer sobre a teoria dos quatro humores que

Carneiro aponta como o sangue, a fleugma, a bilis negra e a bilis amarela,

correspondentes aos temperamentos sanguíneos, fleugmáticos, coléricos e

melancólicos e aos quatro elementos da natureza, o fogo, a terra, a água e o ar, além

de relacionar às quatro qualidades de secura/umidade e temperatura. Também o

autor menciona a questão deste sistema galênico, inspirado em Empédocles, ter sido

materializado numa terapia fundamentada no conceito de cura como limpeza catártica,

cujas sangrias eram a principal técnica1.

É o que observamos no almanaque, pois ao versarmos sobre a teoria dos

quatro humores, notamos semelhanças com o texto em questão, visto que o “Elixir

1 Henrique Carneiro. Filtros Mezinhas e Triacas. (São Paulo: Xamã, 1994), p.74.

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antiflegmatic” age como “purgante lento”, seguindo o princípio do tornar puro, purificar,

limpar o organismo. Ele é misturado a um pouco de água e tomado pela manhã, uma

ou duas colheres de sopa, “não debilitando, como todos os outros remédios desta

natureza, pois é tônico e refrigerante, assim como não obriga a reduzir as refeições,

podendo também ser ministrado a crianças e pessoas de idade avançada”. Diante de

tal semelhança, é importante salientar o teor científico que o anúncio garante, posto

que menciona o fato de o tratamento “mais racional” ser aquele que atua sobre a

doença, ou seja, ignora qualquer tipo de tratamento obsoleto ou de cunho místico,

ainda que sua origem reflita o contrário, o que atesta a imensa reputação, de que goza

há mais de cem anos, o “Elixir antiflegmatic” do Dr. Gillé, bem como os serviços

prestados todos os dias a médicos e a doentes em casos desesperados. Então, “quer

se trate de congestão, de doenças de fígado, de Coração, de gotta ou de

rheumatismo, em uma palavra, de todas as affecções produsidas pelas flegmas ou

excesso de biles, o emprego do Elixir Anti Flegmatic do Dr. Guillé, é maravilhoso.”

Considerando a garantia de cura para todas as doenças causadas pela

presença dos fleumas ou pelo excesso de biles no organismo, devemos ressaltar o

fato de que tal eficácia é assegurada também por meio do combate às falsificações do

elixir, “recusando, implacavelmente, toda garrafa não trasendo por extenso as palavras

Elixir Tonico Anti-Flegmatic do Dr. Guillé, com a assignatura de Paul Gage”. Também

o texto informa o valor exato da panacéia, a ½ garrafa vendida na França no valor de

3fr e 50 e a grande por 6 francos em todas as farmácias. Também para aqueles que

preferem remédios de mínimo volume, buscando praticidade, no lugar da “garrafada”,

tem-se a oferta das Pílulas de Extracto do “Elixir tonico antiflegmatic” do Dr. Guillé,

com as mesmas propriedades do Elixir. Quanto ao emprego das pílulas, não há

necessidade de nenhum preparo especial, apenas uma no jantar, como lanche ou de 2

a 4, em jejum, como purgante. O preço do frasco também é informado, ½ frasco 2

francos e o grande 3 fr 50, igualmente em todas as farmácias da França, o laboratório

correspondente situado em Paris, 32, rue de Grenelle, Saint-Germain. O mais curioso

em tal anúncio, é que este se direciona a brasileiros, tendo a garantia das

propriedades tônicas tanto do elixir quanto das pílulas assegurada apenas no

endereço francês, ou seja, as amarguras e as enfermidades da vida tem preço e

logradouro parisiense. Em se tratando da chamada Belle Époque carioca, tal situação

é prosaica, o que não significava a aquisição dos tantos elixires e medicamentos

franceses pelos leitores do almanaque brasileiro.

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Isso posto, verificamos que o “Elixir antiflegmatic” do Dr. Guillé, funciona

simbolicamente, na atmosfera feérica do Almanaque Garnier, como uma espécie de

bálsamo para todos os males, desde um problema de fígado, até estados de

melancolia causados pelos humores negros, ou melhor, pelo excesso de biles negra

geradora das consternações nos indivíduos, além de ser o invento capaz de prolongar

a vida de forma ilimitada, de acordo com os desígnios dos elixires na história, bem

como de tornar a vida aprazível e imune a tantos desprazeres.

O mesmo princípio de longevidade e de vigor encontramos no “Élixir Henry

Flach”, no Alamanch Hachette para o ano de 1905. Assim, o anúncio do elixir

assegura a Guérrison de L’anémie – Cura da Anemia –, dos estados agudos de

fraqueza e das más digestões. Considerando a finalidade dos elixires no decorrer da

história, observamos o mesmo atributo no “Elixir Henry Flach”, uma espécie de

panaceia para todos os males, um Reconstituant Général, um regenerador para todos

os tipos de moléstias, prolongando, dessa forma, a vida.

O que observamos simbolicamente no “Élixir Flach”, é o fato de ser

manipulado com o intuito de amenizar as intempéries diárias dos leitores/agentes, o

que lhes garante energia para cumprir seus afazeres cotidianos e combater as

enfermidades, ainda que o medicamento se restrinja ao microcosmo criado pelo

messager boiteux, o almanach, muitas vezes sendo restaurador apenas pela leitura de

seu anúncio, como uma espécie de antídoto mágico. É o que podemos considerar

quando Carneiro aponta o fato da alquimia ter tido nos elixires de cura e revelação um

de seus principais objetivos lendários, pois estes como a “pedra filosofal” ou o

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“dissolvedor universal”, a busca pelas quintessências e pelos filtros, levaram muitos

alquimistas a pagarem o preço cobrado pela inquisição, devido a manipulação do

poder das plantas (Ibidem, p. 32). Sendo assim, observamos que o “Élixir Flach”

corrobora a atmosfera mística do almanaque francês aqui analisado, sendo um

medicamento que apresenta toda uma simbologia da cura, ora de cunho médico-

cientifica, ora advinda das raízes da alquimia.

O Élixir Flach ainda garante que é o melhor dos tônicos estomacais “Le

meilleur des toniques-stomachiques”, bem como fortificante do sangue, do estômago e

do peito “Fortifiant Énergique du sang, de l’estomac et de la poitrine”. Também é

importante ressaltar a composição do elixir, combinada de autêntico vinho málaga

envelhecido proveniente de Málaga (Espanha) e à base de ferro, de magnésio, de

quinquina, arbusto ou pequena árvore da família das Rubiáceas, cuja cortiça contém

alcaloides, dos quais o quinino tem propriedades medicinais reconhecidas, tônicas e

que combatem a febre. Ainda, destacamos em sua constituição a cola, Aurélio (1988,

p.159) “S. f. Árvore da família das esterculiáceas (Cola acuminata), cuja semente

contém alcaloides tônicos e aperitivos. [Sin.: órobo, (BA) obi.]”. Considerando sua

composição, devemos salientar o caráter simbólico do elixir, o que nos direciona para

o uso das plantas como patrimônio da cultura popular, sendo importante destacar o

seu uso na antiguidade latina, como destaca Carneiro ao relatar que a utilização das

ervas, as “artes de Emônia”, era peculiar às feiticeiras, saber iniciático considerado

feminino, característico não só do “menadismo báquico, das artes do transe, da

possessão, como do curandeirismo mágico, da manipulação dos sortilégios”. O autor

ainda destaca, a questão de Ovídio citar as mulheres que, como Medéia, possuiam o

conhecimento das plantas utilizadas para fins afrodisíacos. Também o fato das plantas

na Idade Média, ter proporcionado uma prática de uso popular e de saber erudito

proveniente de estudos alquímicos. O que foi chamado de filosofia natural, espagiria,

arte de Hermes, nigromancia, magia ou, meramente, alquimia, conhecimento que

buscava nas tradições antigas o poder das plantas, e que sofreu severas perseguições

(Ibidem, p. 17).

Temos ainda no anúncio, a ênfase na eficácia do elixir, quando este

menciona o fato de substituir vantajosamente qualquer outro vinho de quinquina, de

kola, de coca e os ferruginosos. Este também, classificado como delicioso, dá forças,

enriquece o sangue, facilita a digestão, estimula o apetite e cura as Pâles Couleurs –

palidez, a Débilité – extenuação, o Amaigrissement – emagrecimento, a Consomption

– enfraquecimento, e as Affections d’Estomac – infecções estomacais. Garante, além

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disso, não aquecer o corpo e não causar constipações. Devemos salientar o fato de

que na composição do medicamento, temos substâncias, que de certa forma, ajudam

o homem a suportar os dissabores diários, como o teor alcoólico advindo do vinho

malaga misturado às ervas cola e quinquina, cujos alcaloides amenizam os suplícios

físicos e espirituais, construindo uma espécie de mundo onírico, onde o vigor, o prazer

e a longevidade são adquiridos por uma certa “embriaguez simbólica”. Para maiores

esclarecimentos, o anúncio informa que os leitores podem ler o encarte do Dr. J.

Duvay, enviado gratuitamente. Temos ainda o preço de tal panaceia – o segredo para

a ventura de uma longa vida e para a cura de todas as moléstias – informado, o flacon

1 fr. 60; o litro 5 francos e os 7 litros 30 francos.

Diante disso, o “Élixir Henry Flach” simboliza toda uma atmosfera mágica em

consonância com o universo feérico criado no almanaque francês, sendo o messager

boiteux o manipulador da poção que cura mazelas de qualquer ordem e nutre os

leitores/agentes com a fórmula tônica – a da longevidade – das plantas que têm suas

raízes no poder simbólico da alquimia.

Essa temática da longevidade é recorrente nos almanaques, o que nos leva a

considerar mais um exemplo do Almanch Hachette para o ano de 1906, a Tisane du

Chevrier. A angústia pela passagem inexorável do tempo é confirmada em um outro

anúncio da mesma bebida à base de plantas do ano de 1908, em que se coloca a

questão da longevidade como algo que mais aflige a existência humana.

Considerando toda a simbologia intrínseca a tal bebida, observamos que esta

corrobora a atmosfera utópica do Almanach, visto que o segredo para prolonger la vie

et ne jamais être malade, prolongar a vida e jamais adoecer é descoberto com a

composição da “infusão mágica”, permitindo aos leitores/agentes a fórmula da saúde e

da vida eternas, garantindo-lhes imunidade diante de qualquer moléstia. Considerando

a composição do

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Considerando a composição do chá, devemos salientar o papel da

farmacopeia popular representada pelas plantas tanto da tisane du chevrier quanto

dos outros elixires. Malgrado o teor científico de tais medicamentos, manipulados por

doutores em laboratórios, a farmacopeia assume relevância na vida social dos leitores

dos almanaques, fazendo deles fiéis na crença da cura pelo poder da medicina

popular, mesmo porque a medicina, segundo Carneiro (1994, p.75) “foi um dos últimos

terrenos que o espírito científico conquistou”.

Baseado nesse princípio que analisamos a imagem do chevrier – pastor, uma

espécie de homem do campo dotado de sabedoria sobre os poderes da natureza,

tendo ele, de forma inata, faculdades sagradas para tratar mazelas físicas e

espirituais. Por isso, no anúncio do mesmo chá, La tisane du chevrier, do Almanach

Hachette para o ano de 1906, temos mais uma vez o relato da manipulação, pelo

pastor, de plantas, no dépuratif exclusivement végétal, sendo “O mais agradável, o

mais potente, o mais eficaz de todos os depurativos conhecidos”. Logo, a medicina

popular praticada pelo chevrier – pastor pode ser apreendida na imagem de seu

habitat natural, de onde retira os segredos para todos os males, vestido de uma capa

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que denuncia seu estado de sacralidade, pois a vestimenta inserida em seu contexto

simbólico é utilizada por muitos sacerdotes em cerimônias eclesiásticas, bem como de

inúmeras figuras sagradas.

Sendo assim, devemos considerar o valor simbólico de tal personagem, que

segundo Chevalier & Gheerbrant em uma civilização de criadores nômades a imagem

do pastor é carregada de simbolismo religioso. Também este comporta toda uma

simbologia no que diz respeito a uma sabedoria que possui de forma intuitiva e

experimental. Simboliza ainda a vigília, uma espécie de vigilante em constante

atividade, “ele está desperto e vê”. Por esta razão “é comparado ao sol, que tudo vê, e

ao rei”. Também, ao simbolizar o nômade, não apresenta raízes em um determinado

lugar, “representa a alma que, no mundo, jamais é sedentária – está sempre de

passagem”. Quanto ao seu rebanho, “o pastor exerce uma proteção ligada a um

conhecimento”, julga o alimento que lhe pode ser fornecido, além de ser um

“observador do céu, do Sol, da Lua, das estrelas”, o que o faz capaz de prever o

tempo. Diante disso, pode distinguir “os ruídos, escuta a chegada dos lobos ou o

balido da ovelha desgarrada”. Considerando todas as suas atividades, o pastor é

considerado um sábio, “cuja ação deriva da contemplação e da visão interior”.2

Simbologia esta, que consideramos para análise da figura do chevrier –

pastor, visto que este aparece no anúncio como um sábio que cuida de seu rebanho –

leitores do Almanch Hachette, para que nenhuma ovelha – leitor, saia da proteção de

seu cajado e nem pereça com os males da vida. Possui o segredo para curar as

enfermidades, a poção que aparece fervilhando em uma espécie de caldeirão de barro

sobre uma fogueira, no meio de montanhas, em um lugar longínquo e desocupado,

apenas com um casebre à mostra. Este é apresentado com um dos braços

levantados, segurando o chá que aparece, simbolicamente, como sendo a descoberta

para a erradicação das problemáticas humanas. Sua sabedoria, então, é extraída da

natureza, das plantas e dos tantos segredos que o conhecimento do céu pode

fornecer, além da intuição que possui, figura que até mesmo o tempo pode prever

segundo a informação vista acima.

Baseado nas faculdades do pastor, observamos que há toda uma simbologia

no anúncio da Tisane du chevrier, no qual o chá é composto tanto pelas plantas

quanto pela sabedoria experimental e intuitiva do guardador de ovelhas – leitores, o

que nos leva ao tratamento que este proporciona para a purificação do sangue,

2 Chevalier & Gheerbrant. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, números. (São Paulo: José Olympio, 1906), p.691 – 692.

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limpando-o de toda impureza. Considerando tal purificação sanguínea, devemos

retomar o fato de o chá estar inserido, de certa forma, na medicina popular, o que nos

remete para a cultura da purgação que, segundo Rocha, faz parte da observação e da

demanda diária, muito mais que a simples utilização de plantas medicinais, pois

constitui a base caracterizadora de tal medicina, o que pode ser traduzido por meio

das expressões “sangue sujo, sangue grosso, podre por dentro, febre interna”, que

podem refletir um maior trabalho orgânico para expelir a morbosidade, a reima dos

alimentos geradora da enfermidade, cujos efeitos reportam a uma alimentação

indevida, ou seja, a purgação. Também menciona que é no meio popular onde se

observa a utilização do laxante para facilitar a purgação em casos de diarréia,

proporcionando, dessa forma, o procedimento capaz de recuperar o equilíbrio perdido

por meio da eliminação da reima. É o que se aplica a certas doenças da pele, quando

determinadas raízes são empregadas e suscitam justamente a excitação dos

sintomas, conduzindo assim à cura pela eliminação da moléstia, do material

enfermiço.3 Seguindo tal princípio da medicina popular, observamos que a Tisane du

chevrier age como um depurativo sanguíneo à base de plantas, souveraine, soberana

no que diz respeito ao poder de curar, pelo método da purgação, doenças do

estômago e do fígado, ausência de apetite e digestões difíceis. É nesta crença coletiva

que o chá garante guérison assurée, cura garantida dos vícios do sangue, da artrite

em todas as suas formas e das doenças da pele.

É, pois, baseado no princípio da medicina popular, de limpeza do sangue, que

o chá age nos leitores do almanaque, bem como por meio de toda carga simbólica que

este, junto ao chevrier, representa, mas que também assegura o caráter médico-

científico do medicamento, visto que se trata do novo método de depuração sanguínea

do Doutor Mouly, la nouvelle méthode du Docteur Mouly. Diante disso, devemos

mencionar a questão da medicina popular se amalgamar à medicina erudita, posto que

malgrado a composição do chá ser à base de quatro grupos de plantas, temos a

certificação de que sua manipulação é realizada por um médico, e não apenas com os

poderes intuitivos do chevrier – pastor, o que nos remete ao fato de que nos

almanaques o saber empírico se mistura ao científico, alimentando tanto o universo

quimérico de tais livros populares quanto seu caráter científico.

O que nos chama atenção em tal mistura, do popular com o erudito, é que

tais saberes caminham sem nenhum tipo de conflito nos almanaques em questão,

direcionando-nos à análise do poder ideológico, ou simbólico como bem nomeou

3 Jorge Moreira Rocha. Como se faz medicina popular (Petrópolis: Editora Vozes, 1985), p.54 - 55.

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Bourdieu contido em tal junção. É admirável que nesta miscelânea não haja disputa,

visto que no decorrer da história a medicina erudita sempre se sobrepôs à medicina

popular, como legítima e baseada apenas no conhecimento científico, o que, muitas

vezes, caracterizou a segunda como saber baseado em crendices e advindo de

pessoas sem instrução. Então, a medicina popular é classificada como baseada na

experiência, sem base científica, o que já de antemão apresenta a querela constante

entre as duas, o que não é percebido em momento algum nos almanaques, havendo

um concílio ideológico em tal situação. Esta harmonia pode ser delatada ao

mencionarmos o que Oliveira aponta quando aborda a questão da identidade da

medicina popular, relatando o fato de esta ser constituída e delimitada

ideologicamente pelo mundo erudito: a religião erudita, a lei, a imprensa, a medicina

erudita e os profissionais legítimos. Quem noticia ou classifica a medicina popular

como tal é a medicina erudita. O responsável pela afirmação da política de quem

pratica ou produz a medicina popular é o médico, “homem da lei, de estudo de

escritura”. Este dotado de conhecimento acadêmico, fala em nome da ciência

apresentada e tratada como única, com autoridade e com reconhecimento que

adquiriu na sociedade. [...] Diante disso, quando não encontramos conflitos entre os

profissionais da medicina erudita e da medicina popular, este está presente de forma

dissimulada. O embate de classe pode estar oculto de outras formas “(por exemplo, na

relação autoritária do médico com outras pessoas de classes subalternas)”. Essa

peleja pode estar ocultada até mesmo pelo fato de alguns médicos reconhecerem que

existe uma desigualdade concreta entre eles e os raizeiros, as benzedeiras e os

ervateiros, mas sugerem uma igualdade formal. Esta igualdade apresentada parte dos

valores que representam tais profissionais: parte da medicina, da ciência e do poder,

nunca da cultura popular.4 É o que observamos no anúncio, pois ainda que não haja

um conflito declarado, entre a medicina popular representada pelos quatro grupos de

plantas e pela simbologia do chevrier – pastor e a medicina erudita traduzida pela

figura do doutor Mouly, este existe, mas é suplantado pelo interesse da venda da

infusão. Assim, o chá é comercializado em garrafas de um ou meio litro, cujo depósito

principal é a pharmacie nouvelle, situado às ruas Druot e Provence, em Paris.

Diante disso, podemos discorrer sobre o poder simbólico presente em tal

harmonia, pois ao notarmos a miscelânea da medicina popular com a medicina

erudita, temos a questão da produção/consumo que visa o lucro pela venda da

infusão, fato que proporciona a preservação de diferentes classes de leitores para o

4 Elda Rizzo de Oliveira. O que é medicina popular? (São Paulo: Brasiliense, 1985), p.63 - 64.

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almanaque, o que nos remete para a garantia do saber científico caracterizado pelas

classes letradas e também do popular representativo das classes iletradas, ou seja,

temos conhecimento para nutrir todos os tipos de leitores. É o que Bourdieu aponta

como sendo:

O campo de produção simbólica um microcosmos da luta simbólica entre as classes, pois ao servirem seus interesses na luta interna do campo de produção (e só nesta medida) que os produtores servem os interesses dos grupos exteriores ao campo de produção (BOURDIEU, 1930, p.12)

É o que observamos no anúncio, pois a luta simbólica de classes é ocultada

pelo interesse maior da comercialização do chá, ficando em segundo plano a

hierarquização dos poderes da medicina popular e da medicina erudita, cujos

representantes, o pastor – representante dos profissionais de cura – que seleciona

simbolicamente as plantas com o auxílio de sua infinita sabedoria e o doutor Mouly

que compõe verdadeiramente e assina tal infusão, convivem harmoniosamente.

A miscelânea composta pela medicina popular com a medicina erudita nos

almanaques brasileiros e franceses corrobora a nossa tese de que em tais livros o

erudito e o popular caminham lado a lado, tanto no que concerne aos princípios

medicamentosos como na presença da literatura erudita vir mesclada a todo um

arsenal popular. Então, por meio de tal miscelânea, a atmosfera ideal do Almach

Hachette é reforçada, proporcionando cura para todas as enfermidades, visto que os

males que não podem ser tratados pela medicina pautada na ciência, como a

passagem inexorável do tempo, consequentemente o envelhecimento e a morte, são

assegurados pela depuração que livra o sangue das reimas, que por sua vez impedem

o desígnio de tais medicamentos, a garantia da longevidade.

É, pois, nesse microcosmo ideal construído pelo messager boiteux, que

observamos a conquista da cura e a garantia da longevidade, considerando

simbolicamente os almanaques Hachette e Brasileiro Garnier como livros sagrados

com poder – em consonância com os remédios milagrosos das cidades utópicas, Paris

e Rio de Janeiro – para erradicar os males da vida.

RReeffeerrêênncciiaass bbiibblliiooggrrááffiiccaass

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

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CARNEIRO, Henrique. Filtros mezinhas e triacas – as drogas no mundo moderno. São Paulo: Editora Xamã, 1994.

CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, números. São Paulo: José Olympio, 1906.

FERREIRA, Aurelio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1988.

OLIVEIRA, Elda Rizzo de. O que é medicina popular?. São Paulo: Brasiliense, 1985.

ROCHA, Jorge Moreira. Como se faz medicina popular. Petrópolis: Editora Vozes, 1985.