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ELITA DE MEDEIROS IMAGINARIOS EM DIÁLOGO: A LENDA DO LOBISOMEM EM UMA PERSPECTIVA BAKHTINIANA COMO RESGATE DE NARRATIVAS FOLCLÓRICAS TUBARÃO, 2006

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ELITA DE MEDEIROS

IMAGINARIOS EM DIÁLOGO:

A LENDA DO LOBISOMEM EM UMA PERSPECTIVA BAKHTINIANA COMO

RESGATE DE NARRATIVAS FOLCLÓRICAS

TUBARÃO, 2006

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“... aos que me contaram estórias e histórias; aos que me

acolheram com o valor cultural do calor humano; aos que

me hostilizaram, a todos, enfim, o meu obrigado”.

Franklin Cascaes

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APRESENTAÇÃO

Este trabalho foi desenvolvido como monografia de graduação para o curso de Le-

tras com habilitação em Língua Portuguesa e Inglesa e suas respectivas literaturas na Univer-

sidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL. A abordagem passa pela necessidade de resgatar

e compilar os contos e lendas orais de nossa região que, por falta de registro, estão ameaçados

de total esquecimento. Um dos objetivos buscados foi promover o diálogo entre as faces do

imaginário através da investigação de contos orais que sobreviveram ao tempo e às condições

adversas que estão expostos, privilegiando a figura do lobisomem. Acreditamos que, para que

essa cultura folclórica não se perca, é necessário resgatar, compilar e, porque não, recontar

essas narrativas antes que caiam no esquecimento. Através das obras de Câmara Cascudo e de

Franklin Cascaes e à luz dos teóricos constantes da bibliografia, procuramos resgatar parte

dos contos orais compilando alguns deles e, emprestando nova roupagem através do cotejo

com elementos do imaginário em que o lobisomem figura, recontar uma das narrativas reco-

lhidas. Nesse contexto, percebemos a importância da dialogia e da polifonia presentes nas

narrativas, pois são textos que se tocam e emprestam novas vozes ao discurso. Acredita-se na

relevância da realização dessa pesquisa, visto que, além da análise presente, procura-se, de

certa forma, promover a preservação de aspectos folclóricos através das narrativas trabalhadas

como tentativa de sua perpetuação para as gerações futuras.

A autora

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Luís da Câmara Cascudo pela lente de Carlos Lyra. .............................................. 25

Figura 2 – Memorial Câmara Cascudo. .................................................................................... 26

Figura 3 – Museu Câmara Cascudo. ......................................................................................... 26

Figura 4 – Câmara Cascudo na nota de cinqüenta mil cruzeiros, lançada no início dos anos 90

e já recolhida pelo Tesouro Nacional. .............................................................................. 27

Figura 5 – Franklin Cascaes. .................................................................................................... 27

Figura 6 – À esquerda, Franklin Cascaes; à direita, ilustração do artista sobre O Fantástico. 28

Figura 7 – Boto. ........................................................................................................................ 32

Figura 8 – Caipora. ................................................................................................................... 32

Figura 9 – Boitatá. .................................................................................................................... 33

Figura 10 – Iara, a mãe d‘água. ................................................................................................ 34

Figura 11 – A Gralha Azul. ...................................................................................................... 34

Figura 12 – Saci Pererê. ............................................................................................................ 35

Figura 13 – Negrinho do Pastoreio. .......................................................................................... 36

Figura 14 – Mula-sem-cabeça. ................................................................................................. 36

Figura 15 – Lobisomem. ........................................................................................................... 38

Figura 16 – Lobisomem. ........................................................................................................... 38

Figura 17 – Homem com hipertricose. ..................................................................................... 39

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................................... 6 1 REVISÃO DE LITERATURA ........................................................................................................................ 10

1.1 CULTURA .............................................................................................................................................. 10 1.2 LITERATURA: ALGUMAS CONSIDERAÇOES ........................................................................................... 11

1.2.1 Ficção e Verossimilhança.............................................................................................................. 11 1.2.2 As formas e o gênero literário ....................................................................................................... 12

1.2.2.1 O gênero narrativo ..................................................................................................................................... 13 1.2.3 Elementos literários ....................................................................................................................... 13

1.2.3.1 Enredo ....................................................................................................................................................... 14 1.2.3.2 Espaço ....................................................................................................................................................... 15 1.2.3.3 Tempo ....................................................................................................................................................... 15 1.2.3.4 Personagens ............................................................................................................................................... 15

1.3 FOLCLORE ............................................................................................................................................ 16 1.3.1 Mito e lenda, qual a diferença? ..................................................................................................... 17

1.3.1.2 A narrativa maravilhosa ............................................................................................................................ 18 1.3.1.3 A narrativa fantástica ................................................................................................................................. 19

1.4 O DISCURSO .............................................................................................................................................. 20 1.4.1 Intertextualidade ............................................................................................................................ 20 1.4.2 Dialogia e polifonia: vozes, faces e interfaces textuais ................................................................. 21 1.4.3 Cotejo ............................................................................................................................................ 22

2 GRANDES FOLCLORISTAS BRASILEIROS ...................................................................................... 24 2.1 LUÍS DA CÂMARA CASCUDO ..................................................................................................................... 24 2.2 FRANKLIN JOAQUIM CASCAES .................................................................................................................. 27 2.3 BREVE OLHAR SOBRE OBRAS DE CÂMARA CASCUDO E FRANKLIN CASCAES .................................... 28

2.3.1 A obra do Mestre do Folclore ....................................................................................................... 29 2.3.2 O Perpetuador do Folclore Ilhéu .................................................................................................. 30

3 DIALOGOS E VOZES: ALGUMAS FIGURAS FOLCLÓRICAS BRASILEIRAS .......................... 32 4 VOZES E DIALOGOS DAS FACES DO LOBISOMEM...................................................................... 38 5 J.K. ROWLING, J.R.R. TOLKIEN, C.S. LEWIS E O IMAGINÁRIO COM NOVA ROUPAGEM:

DIALOGOS POSSIVEIS ENTRE VOZES DISTANTES ............................................................................... 42 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................................... 45 ANEXO A – COMPILAÇÃO DE ALGUNS CONTOS RECOLHIDOS ....................................................... 50 ANEXO B – CÓPIAS DE TRABALHOS DE ALGUNS ALUNOS ................................................................ 54 ANEXO C – BIBLIOGRAFIA DE LUÍS DA CÂMARA CASCUDO ............................................................ 62 APÊNDICE A – UMA HISTÓRIA RECONTADA ......................................................................................... 67 BIBLIOGRAFIA AUXILIAR .......................................................................................................................... 148

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INTRODUÇÃO

Com a imensa quantidade de informações às quais estão expostas atualmente,

muitas crianças, adolescentes e mesmo os adultos, acabaram perdendo o jeito de contar e o

interesse por ouvir histórias. Em um passado não muito remoto, avós eram verdadeiras contis-

tas quando, à beira da cama dos netos, transmitiam-lhes, de maneira oral, contos que aprende-

ram de seus antepassados. Desta maneira, muito da cultura popular foi preservada.

A origem dos contos remonta às raízes da formação dos povos, pois são encontra-

dos em todas as culturas, no mundo inteiro. Muitos dos contos de nossa região vieram com os

colonizadores europeus, outros são do folclore indígena e, posteriormente, foram incorpora-

dos à nossa cultura, que também foi enriquecida pelos negros, que trouxeram consigo histó-

rias do continente africano.

O objetivo deste trabalho é promover o diálogo entre as faces do imaginário, atra-

vés da investigação de contos orais que sobreviveram ao tempo e às condições adversas às

quais estão expostos, privilegiando a figura do lobisomem e, num segundo momento, recon-

tando uma das lendas, emprestando-lhe nova roupagem.

A mídia, a ânsia pelo novo e pelo tecnológico têm sido muito mais sedutoras que

histórias à beira da cama. Acreditamos que, para que esta cultura folclórica não se perca, res-

ta-nos resgatar e compilar o que ainda podemos, pois certamente muito já caiu no esqueci-

mento, desaparecendo para sempre. Para tanto, desenvolvemos reflexões a partir das conside-

rações do folclorista Câmara Cascudo1, considerado o papa do folclore brasileiro. Segundo

esse autor, essas histórias merecem ser compiladas para a posteridade. A obra desse folcloris-

ta, porém, não contempla o nosso Estado. Da Região Sul são citados, em Antologia do Folclo-

re Brasileiro2, o Negrinho do Pastoreio, conto primeiramente compilado por Simões Lopes

Neto na obra Contos gauchescos e lendas do Sul3, figurando nas páginas 86 a 92.

Também são importantes os apontamentos de Franklin Cascaes4. Como compila-

dor do folclore em nosso estado, contempla o folclore ilhéu na obra O fantástico na ilha de

Santa Catarina. Entretanto, a obra de Cascaes não atinge nossas paragens, limitando-se à Ilha

de Santa Catarina.

Procura-se recontar uma das histórias catalogadas na tentativa de apresentá-la co-

mo importante instrumento da promoção do imaginário como legado às gerações atuais, a

exemplo do que fizeram outros escritores. A figura do lobisomem foi eleita entre os contos

1 Escritor e folclorista nasceu em Natal, Rio Grande do Norte, em 1898 e faleceu na mesma cidade, em 1986. É

2 Obra de Câmara Cascudo que busca resgatar a literatura oral.

3 Obra onde constam lendas e contos da tradição oral do Rio Grande do Sul, publicado pela Editora Globo. A

edição utilizada neste trabalho é de 1965. 4 Franklin Joaquim Cascaes, artista plástico, escritor e folclorista catarinense.

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recolhidos não apenas por figurar em maior número, também por estar presente no imaginário

de diversas partes do mundo, possibilitando uma análise de suas várias faces, por seu caráter

dialógico e polifônico, entre outros.

A memória folclórica dos povos serve, até a atualidade, de base para a criação e

recriação literária, filmográfica e musicográfica, sem mencionar a própria propaganda que,

muitas vezes, recorre a elementos folclóricos. Dele desenvolveram-se inúmeras idéias, algu-

mas preservando, outras relendo e, ainda outras, criando novidades.

Podemos citar como exemplo a obra de Joanne Katerinne Rowling, autora do fe-

nômeno Harry Potter. Professora de Literatura, a autora utiliza-se de inúmeros elementos do

imaginário inglês, muitos deles aparecem de maneira idêntica na obra de outro grande escritor

conterrâneo de Rowling, John Ronald Reuel Tolkien, cuja obra inclui O Senhor dos Anéis,

recentemente transposto para as telas do cinema com enorme sucesso. Mas não apenas a obra

de Tolkien possui elementos mostrados na saga de Harry Potter. As Crônicas de Nárnia, do

irlandês Clive Staples Lewis possivelmente também serviram de inspiração para Rowling,

pois nomes e personalidades d‘As Crônicas são recorrentes na obra da autora, como veremos

no capítulo cinco.

As obras brasileira e inglesa citadas são diferentes. A primeira existe em forma de

compilação, onde as histórias eram descritas de maneira muito semelhante ao modo como

eram contadas. Câmara Cascudo e Franklin Cascaes não acrescentaram elementos, nem nar-

rador. Apenas transportam aquilo que se ouvia, da maneira como se ouvia, para a escrita. A

obra inglesa é um resgate da oralidade em forma de romance, recontada, com elementos con-

temporâneos à época da produção.

Pouco se têm registrado os contos orais em nossa região e tal fato justifica ainda

mais a pesquisa que nos propusemos a desenvolver. Romancear um dos contos para sugerir a

perpetuação da memória cultural, buscando, de forma atraente, oferecer leitura contemporâ-

nea, culmina com o fechamento deste trabalho.

Acredita-se, então, ser relevante resgatar a memória folclórica da região de Tuba-

rão buscando coletar informações com estudantes, visando conhecer os contos que compõem

o folclore oral. As informações foram analisadas à luz dos teóricos que figuram nas referên-

cias bibliográficas, constituindo-se, portanto, em pesquisa bibliográfica e de campo. Elege-

ram-se para a amostra da pesquisa os alunos de ensino fundamental e médio de algumas esco-

las da rede pública de ensino das cidades de Tubarão e Jaguaruna, os quais entrevistaram pes-

soas idosas de suas famílias, ou mesmo amigos, para relatarem contos folclóricos que conhe-

ciam. Estes foram entregues na aula seguinte em forma de redação, primando pela máxima

fidelidade possível ao relato oral.

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A produção textual dos alunos foi recolhida, compilada e digitada, evitando a re-

petição das histórias. A compilação de alguns contos constitui o anexo A. As cópias de alguns

contos, o anexo B.

No primeiro capítulo desenvolvemos a revisão de literatura, base para a compre-

ensão desse trabalho.

O segundo capítulo discorre sobre aqueles que procuraram resgatar o folclore de

nosso país através de suas obras.

No terceiro capítulo busca-se mostrar algumas das figuras folclóricas mais conhe-

cidas em nosso país, privilegiando-se as que aparecem em nossa região.

Embora seja grande a variedade de histórias e personagens, optou-se pela figura

do lobisomem, personagem central da trama recontada, que configura o apêndice A. A análise

com base nas referências bibliográficas contempla as considerações finais.

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―Um texto só existe se houver um leitor para lhe dar um significado.‖

CHARTIER

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1 REVISÃO DE LITERATURA

Ao iniciar este trabalho, faz-se necessário compreender alguns conceitos para me-

lhor apreensão do objeto em investigação. Esses são analisados primeiro como palavras isola-

das, buscando no léxico suas significações. Posteriormente, busca-se a luz de autores consa-

grados que versam acerca do tema.

Nessa proposta, passamos desde as concepções mostradas em alguns dicionários

até obras de caráter filosófico, procurando as que traduzissem a compreensão não só dos pró-

prios termos, mas a razão da existência e a origem dos contos transcritos.

1.1 CULTURA

Conceituar o termo cultura é bastante difícil. O léxico traz diferentes opiniões. Em

Larousse (2001, p. 262), encontramos o termo como:

1. Acervo intelectual e espiritual. 2. Conjunto de conhecimentos adquiridos, instru-

ção, saber. 3. Conhecimentos em um domínio particular. 4. Conjunto de estruturas

sociais, religiosas, etc., de manifestações intelectuais, artísticas, etc., que caracteri-

zam uma sociedade.

Podemos concluir que o conjunto de saberes de uma determinada região é parte de

sua cultura. LUFT (2001, p. 209) conceitua, no âmbito antropológico, como ―conjunto de

experiências humanas (conhecimentos, costumes, instituições, etc.) adquiridas pelo contato

social e acumuladas pelos povos através dos tempos‖.

Ora, o contato social vem se perdendo, modificando-se. Já não acontece mais da

maneira como conhecíamos. As avós dos dias de hoje são trabalhadoras dessa sociedade ace-

lerada. Os netos já não as visitam com a frequência que fazíamos em nossa infância e as histó-

rias, na maioria das famílias, já não mais é contada à beira da cama, antes de dormir.

Para FERREIRA (2001, p. 212), cultura é ―o conjunto de características humanas

que não são inatas, e que se criam e preservam ou aprimoram através da comunicação e coo-

peração entre os indivíduos em sociedade‖. Logo, podemos concluir que é imprescindível que

a comunicação perpetue estes conhecimentos, os quais, sem ela, podem perder-se. Resta-nos

oferecer essa cultura de outra maneira, como se um objeto antigo fosse restaurado e embru-

lhado para presente.

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1.2 LITERATURA: ALGUMAS CONSIDERAÇOES

A literatura tem origem nas narrativas que fazem parte da cultura dos povos. Pri-

meiramente difundindo a cultura de forma oral, passando pela fase em que os monges eram

encarregados de copiar os livros, foi concretizada a partir do advento da imprensa. CEREJA E

MAGALHÃES (2003, p. 31) afirmam que ―literatura é a arte da palavra‖ e, sendo esta última

o instrumento de comunicação das sociedades, ―cumpre também o papel de transmitir os co-

nhecimentos e a cultura de uma comunidade‖ (idem). Podemos, ainda, afirmar que ―a litera-

tura (...) é uma transfiguração do real, é a realidade recriada através do espírito do artista5 e

retransmitida através da língua para as formas, que são os gêneros, e com os quais ela toma

corpo e nova realidade‖ (NICOLA et al, 2002, p. 291).

É, então, a literatura, a transcrição quase radiográfica de épocas vividas por uma

sociedade, pois mesmo sendo obra da imaginação do escritor, sua ambientação reflete deter-

minado período, por vezes o vivido por aquele que escreve. Mas, em se tratando de narrativas

das quais as origens se perdem no tempo e na história, sendo impregnadas pela superstição,

como as lendas, e das quais se desconhece o autor, caracterizamo-la como parte do folclore,

ou como mitos, segundo a idéia que expressam.

Além das características que diferenciam mito e lenda, existem outras, capazes de

dividir a literatura. É pertinente, portanto, verificar as características que conceituam certos

tipos de escritos, a partir dos quais compreenderemos de maneira mais clara as histórias estu-

dadas.

1.2.1 Ficção e Verossimilhança

A obra de ficção é uma recriação, mostrando como fatos poderiam ser, e não re-

almente o que são. Ela diferencia-se da obra histórica porque não se mantém fiel aos aconte-

cimentos.

A narrativa verossímil é a que mais se assemelha com a realidade, ―se o evento

parecer verdadeiro ou provável, a narrativa será verossímil‖ (idem, p. 288). Logo, a narrativa

que não se assemelha à realidade é inverossímil, ou inacreditável.

5 Entendamos como artista aquele que escreve a obra literária, o autor, pois a literatura é, também, uma forma de

arte.

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Portanto, as narrativas maravilhosas ou fantásticas têm o caráter inverossímil,

muito embora vários povos ainda conservem determinadas crenças que coincidam com ele-

mentos que, para efeitos literários, são meras obras da imaginação.

1.2.2 As formas e o gênero literário

Quanto à forma, as obras literárias podem apresentar-se em verso ou prosa. Para

LARROUSSE (2001, p. 1024), o primeiro significa ―cada uma das linhas de um poema, (...)

qualquer composição poética‖, levando-nos a concluir que as obras escritas em verso possu-

em, essencialmente, característica poética. E XIMENES (2001, p. 763) conceitua prosa como

―o modo natural de falar (por oposição a verso)‖. Concluímos, portanto, que a forma literária

em prosa não se atém ao caráter poético, mas à narração em si, ainda que impregnada pela

poesia.

De acordo com SARMENTO E TUFANO (2004, pp. 15-20), quanto ao conteúdo,

podemos afirmar que as obras literárias são agrupadas em três gêneros:

a) Lírico: não apresenta ações encadeadas no tempo, ou mesmo uma história, mas ―nele

predomina a expressão do eu. (...) que fala no texto e projeta (...) seus sentimentos, de-

sejos e emoções‖ (idem, p. 17). Pode apresentar-se em prosa ou verso;

b) Dramático: por essência é o gênero utilizado no teatro, pois os atores tomam a palavra

e interpretam personagens, fazendo a evolução da história. Dentre o gênero dramático,

podemos citar a tragédia, cujas ações despertam terror ou piedade; a comédia, que ob-

jetiva criticar a sociedade através do ridículo, provocando o riso, o qual busca a refle-

xão da platéia; a farsa, que é breve, com poucas personagens e busca o riso de situa-

ções cotidianas, de forma caricaturizada ou exagerada; o auto, geralmente breve, de

conteúdo simbólico e cujo caráter é moral; e o drama que, através da seriedade ou so-

lenidade, opõe-se à comédia;

c) Narrativo: o narrador apresenta fatos ligados no tempo e o espaço pela movimentação

das personagens, onde o enredo é formado pelo encadeamento dos fatos. Há, ainda, os

gêneros narrativos, os quais serão contemplados a seguir.

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1.2.2.1 O gênero narrativo

Este pode ser dividido, de acordo com NICOLA et al (2002, pp.304 e 305), em:

a) Romance: narra um fato imaginário, mas verossímil, representando a vida familiar ou

social de uma época. Podemos citar como exemplo os romances históricos ou de cava-

laria;

b) Novela: apresenta um corte menos amplo que o romance, retratando a passagem do

tempo de forma mais rápida. A novela valoriza principalmente um evento, ou a postu-

ra diferente do narrador;

c) Fábula: possui caráter didático, objetivando transmitir uma lição de moral. Normal-

mente apresenta animais como personagens. Quando apresenta personagens inanima-

dos, como os objetos, é chamada de apólogo;

d) Crônica: relatos de viagens, ou mesmo de fatos históricos segundo sua ordem cronoló-

gica, como as crônicas de Fernão de Magalhães. De caráter contemporâneo, relata

acontecimentos cotidianos. A palavra deriva do radical grego cronos, que significa

tempo;

e) Conto: narrativa mais breve que a novela, centra-se em determinado episódio da vida,

como um flagrante, um momento singular e representativo.

Todas essas narrativas apresentam-se em prosa.

Para SARMENTO e TUFANO, a epopéia ―é uma longa narrativa em verso acerca

de um assunto grandioso e na qual sobressaem personagens heróicas, quase sempre represen-

tantes de uma coletividade‖ (2004, p. 16), como Os Lusíadas, de Luís de Camões. A enciclo-

pédia Universal Multimédia (sic) On-Line6 corrobora com a definição de que epopéia é um

―Poema narrativo ou ciclo de poemas cujo tema é um grande feito — frequentemente a funda-

ção de uma nação ou a construção da unidade nacional — apresentando muitas vezes linhas

temáticas religiosas e cosmológicas‖, citando como exemplos a Ilíada e a Odisséia, atribuídas

a Homero.

1.2.3 Elementos literários

Como importantes elementos literários, podemos citar os componentes indispen-

sáveis de uma narrativa. Esses formam o verdadeiro tecido da trama, deles dependendo a

compreensão da história, pois prestam informações.

6 Disponível em <http://www.universal.pt/scripts/hlp/hlp.exe/artigo?cod=6_61> Acesso em 21.04.2006.

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Alguns elementos estão presentes em todas as narrativas. Não importa a qual gê-

nero pertença, todas terão enredo e personagens. Podemos afirmar que7,

Basicamente narrar é contar uma história, e para tanto teremos personagens, cená-

rios, conflitos, cenas. O estudo da narrativa e destes elementos é chamado de narra-

tologia (...). Roland Barthes, mestre no estudo da narrativa, afirma que "a narrativa

está presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades, co-

meça com a própria história da humanidade; é fruto do gênio do narrador ou possui

em comum com outras narrativas uma estrutura acessível à análise.

Cabe salientar que o fato de confundir-se com a própria história da humanidade

faz com que os elementos narrativos sejam velhos conhecidos, mesmo não tendo sido con-

templado nesse estudo acadêmico.

1.2.3.1 Enredo

É a trama da narrativa, mostrando o que acontece e por que, configurando o con-

junto de acontecimentos que ocorrem durante determinado tempo. Inicia com uma situação

em que apresenta fatos, personagens, idéia de tempo e espaço. Essa situação desenrola-se para

um conflito, também chamado de complicação. A sucessão de acontecimentos busca a resolu-

ção do conflito, configurando-se no desenvolvimento da narrativa. O ponto máximo do confli-

to é chamado de clímax, seguido do desfecho ou situação final, onde pode ou não ocorrer a

resolução do conflito, normalmente apresentados nessa sequência.

Para BUENO, (1996, p. 245), enredo é o ―desenvolvimento de uma peça, escrito

literário ou motivo musical‖, e podemos, ainda, tomar o verbo enredar, que significa ―emara-

nhar, comprometer‖ para percebermos que o emaranhado de acontecimentos, o comprometi-

mento das personagens é que determinam o enredo da narrativa. ―No conto, o que mais deve

atrair é o enredo, pois o fundo sobreleva-se de certo modo à forma e justifica, basicamente, a

arte do contador de histórias (hakawati), quer na transmissão oral, quer na escrita8‖, onde cada

um destes elementos e o envolvimento, o comprometimento que apresentam entre si são in-

dispensáveis para tornar a narrativa atraente para quem lê, ouve ou assiste.

7 Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Narra%C3%A7%C3%A3o> Acesso em 17.04.2006.

8 Disponível em <http://www.hottopos.com/collatio/literatura_e_educacao.htm> acesso em 17.04.2006

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1.2.3.2 Espaço

O espaço é o lugar onde ocorre a história, caracterizando o espaço físico em que

as personagens interagem e as ações se desenvolvem. As atitudes das personagens estão inti-

mamente ligadas aos lugares onde acontece o fato narrado, influenciando ações e sentimentos,

os quais diferem pelo espaço – se aberto, como no campo; ou fechado, como numa casa. Es-

paço e tempo emprestam características importantes, pois interferem até mesmo em artefatos

utilizados pelas personagens, ou mesmo na indumentária: as roupas usadas devem condizer

com a época que se desenvolve a narrativa9.

1.2.3.3 Tempo

O tempo representa o momento em que a história aconteceu, dependendo da habi-

lidade do narrador para caracterizá-lo a contento. Pode apresentar-se de duas formas:

a) Tempo cronológico – a ordem de acontecimentos contados é a natural dos fatos, sendo

chamado de enredo linear;

b) Tempo psicológico – não é medido pela sucessão de fatos, mas pela percepção que

uma personagem tem do tempo. O enredo é não-linear, podendo apresentar lembran-

ças das personagens, chamadas de flasback, ou adiantar fatos que acontecerão no futu-

ro, chamados de flashforward10

.

1.2.3.4 Personagens

As personagens são elementos vivos na narrativa, podendo ser uma pessoa, um a-

nimal, um boneco ou mesmo um objeto, no caso do apólogo. Estão ligados à imaginação do

criador. Vemos que ―Existem personagens tanto em obras ficcionais como não-ficcionais,

assim como o termo se aplica não apenas à literatura, como também ao cinema, teatro,

dança, história em quadrinhos, etc.11

‖ Estes conceitos auxiliam na compreensão da necessi-

dade da a presença de personagens. Sem elas não há enredo, nem história.

9 Disponível em <http://www.hottopos.com/collatio/literatura_e_educacao.htm> acesso em 17.04.2006

10 Idem.

11 Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Personagem> Acesso em 17.04.2006.

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16

São os agentes, ou atores da história narrada. Em algumas narrativas, seres inani-

mados ganham características humanas, como nos contos fantásticos. Essas personagens pra-

ticam ações próprias de seres humanos, mostrando, inclusive, sentimentos. As personagens

podem apresentar características físicas e psicológicas, as quais fazem parte de sua composi-

ção.

Para RODELLA et all (2005, p.240), ―num texto, um personagem é construído

com palavras. Para conhecê-lo, precisamos ler as descrições que o narrador faz, prestar aten-

ção ao seu comportamento e às suas ações na narrativa‖. As personagens têm, então, diferen-

tes papéis nas histórias:

a) Protagonista – personagem principal, podendo ser herói12

ou anti-herói13

;

b) Antagonista – é o vilão. Aquele que se opõe ao herói, atrapalhando suas ações;

c) Personagens secundários - têm participação menor, mas também são importantes no

desenvolvimento dos fatos.

1.3 FOLCLORE

A origem da palavra folclore vem de dois antigos vocábulos saxônicos: ―folk, em

inglês, significa povo. E lore, conhecimento. Assim, folk + lore (folklore) quer dizer conhe-

cimento popular‖ 14

. Foi usada pela primeira vez por William John Thomas, pesquisador da

cultura européia que publicou, em 22 de agosto de 1846, um artigo intitulado Folk-lore. Não

por acaso, 22 de agosto é o dia do folclore.

Ora, se a palavra tem esse significado, pode-se afirmar que o folclore confunde-se

com a cultura, pois essa, para XIMENES (2001, p.272), é o ―conjunto de experiências e reali-

zações humanas (costumes, crenças, instituições, produções artísticas e intelectuais) que ca-

racterizam uma sociedade‖, e esses, pode-se dizer, caracterizam conhecimento. O mesmo au-

tor (idem, p. 444) define folclore como ―conjunto de tradições, conhecimentos e crenças de

um povo, expressas em seus usos, lendas, canções, provérbios, etc.‖ Logo, podemos usar co-

mo definição para o folclore cultura popular, visto que ambas as definições de XIMENES são

bastante semelhantes.

A preservação do folclórico, então, necessita da comunicação para que se perpe-

tue, sob pena de cair no esquecimento. A cultura dos povos transmitiu-se ao longo dos séculos

principalmente de maneira oral, visto que a massificação da alfabetização é um fenômeno

12

Possui características especiais, como superpoderes, grande força, inteligência ou sensibilidade. 13

Pessoa comum ou atrapalhada, mas que está na posição de herói. 14

Disponível em <http://educaterra.terra.com.br/almanaque/datas/folclore.htm.> Acesso em 11.04.2006

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17

relativamente recente. E se as crenças fazem parte do folclore, da cultura de um povo, pode-

mos inserir entre elas os mitos e as lendas, nos quais o povo crê, mesmo não havendo com-

provação científica e, muitas vezes, contradizendo a própria razão. Afirma João Alfredo de

Freitas, na Antologia do folclore brasileiro, organizada por Câmara Cascudo (1965, pp.

52,53) que

Quem estudar a natureza humana verá, necessariamente, que quanto menor é o grau

de adiantamento de povo tanto maior é o poder impressionista e ilusório que o do-

mina. (...) A ilusão exerce um poderio tão enérgico sobre a imaginação do homem

inculto, que o faz conceber um terror invencível por certos fatos que o impressio-

nam. (...) A impressão, como a ilusão, influi diretamente sobre o poder imaginativo,

e daí as concepções obstinadas que abatem o espírito humano, e daí a constante

transfiguração dos fatos. (...) o espírito humano é muito suscetível à impressões que,

nele calando, se tornam firmes, imbatíveis como inscrições nas campas.

Pode-se, a partir das afirmações de João Alfredo de Freitas encontrar fonte para expli-

car muitas das superstições existentes no folclore, na cultura popular. Os contos não têm fun-

damento científico e, quando históricos, procuram explicar, com a pouca ciência do homem

antigo, fatos que não podem ser entendidos. Dessa forma surgem os mitos e as lendas, os

quais fazem parte da cultura de todos os povos.

1.3.1 Mito e lenda, qual a diferença?

Marilena Chauí, em sua obra Filosofia (2001, p. 23), afirma que ―mito é uma nar-

rativa sobre a origem de alguma coisa (origem dos astros, da Terra, dos homens, (...) do bem e

do mal, (...) das guerras, do poder‖. A palavra mito tem origem grega, derivando dos verbos

mytheyo, que significa contar, narrar, e mytheo, significando nomear, designar. O mito, para

os gregos, é um discurso aceito pelos ouvintes como verdadeiro, pois o narrador é alguém

público, digno de confiança. Confiança essa que vem do fato de o narrador ter testemunhado a

narrativa, ou de tê-la recebido de quem testemunhou. A exemplo de narrativa mítica, temos a

origem do amor, no nascimento do deus Eros15

.

Para definir lenda, recorremos, mais uma vez, ao léxico. FERREIRA (2001, p.

453) afirma que a lenda faz parte da tradição popular, sendo ―narração de caráter maravilhoso,

em que os fatos históricos são deformados pela imaginação do povo ou poeta, (...) ficção, fá-

bula‖, e LUFT (2001, p.420) complementa com ―história fabulosa ou mentirosa, (...) menti-

ra‖.

15

Também conhecido como cupido, nasceu da relação sexual entre a deusa Penúria, sempre miserável e faminta,

com o deus Poros, sempre astuto e engenhoso, onde, ao final de uma festa para a qual não foi convidada, ela

come os restos da ceia e dorme com o deus.

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Podemos afirmar, portanto, que algumas características do mito e da lenda se con-

fundem, sendo ambas narrativas, porém, o primeiro procura explicar algo para o qual o ho-

mem não encontrava, na época de seu surgimento, conceitos que trouxessem entendimento; a

segunda, que para compreendê-la buscamos a já citada idéia de João Alfredo de Freitas, em

que este atribui ao pouco conhecimento científico do povo a distorção de fatos, a grande in-

fluência das superstições e, conclui-se, ao surgimento das lendas. Elas, talvez, não busquem a

explicação do surgimento de algo, mas procurem contar o que foi ouvido ou visto, sendo in-

fluenciado pela mente fantasiosa ou pelo medo.

Essas narrativas encontram-se impregnadas de elementos que as distinguem entre

si. Através de tais elementos, atribui-se o caráter maravilhoso ou fantástico.

1.3.1.2 A narrativa maravilhosa

A narrativa maravilhosa pertence a um mundo além da imaginação, onde ―domi-

nam as leis do sobrenatural16

, não existem distâncias e os personagens podem deslocar-se

com grande facilidade da terra para o céu e deste para o mar‖ (MACHADO, 1994, p. 42).

Com esse conceito, a autora mostra que tempo, espaço e distância são elementos extrema

mente flexíveis. Nas narrativas dos irmãos Grimm, por exemplo, o clássico início Era uma

vez, ou¸ num reino muito distante destacam que a localização geográfica e temporal são ele-

mentos pouco marcados, ficando ao cargo do leitor/ouvinte imaginar o local onde os aconte-

cimentos narrados passaram. Estas histórias já foram adaptadas um sem número de vezes, por

uma quantidade semelhante de escritores, mas essas características e alguns elementos per-

manecem inalterados. Devemos, entretanto, levar em conta o fato de que, a medida do tempo

como a conhecemos e vivenciamos, é algo relativamente novo. Até pouco mais de um século,

o relógio mais utilizado era a luz do sol.

Nesse ambiente onde predominam as leis do sobrenatural, os elementos que carac-

terizam o maravilhoso são os seres que pertencem a esse mundo: bruxas, dragões, fadas,

anões, magos, gênios, gnomos, duendes e outros seres, todos com poderes mágicos ou sobre-

naturais. O encantamento, a bruxaria, o embate do bem contra o mal serão sempre elementos

característicos da narrativa maravilhosa.

16

Grifo do autor

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1.3.1.3 A narrativa fantástica

Diferentemente da narrativa maravilhosa, os elementos do fantástico caracteri-

zam-se pelo que ―existe apenas na fantasia; imaginário, (...) extraordinário, incrível, fabuloso,

(...) que só existe na imaginação” (LUFT, 2001, p.320). Não estão presentes, portanto, os

seres elencados acima, ou mesmo os elementos mágicos do maravilhoso, embora o tempo e o

espaço constituam-se com a mesma flexibilidade.

Atualmente podemos ver, nos desenhos animados de William Hanna e Joseph

Barbera, personagens como o Pica-pau que, sem qualquer instrumento mágico, consegue des-

vencilhar-se de inúmeros problemas, como o fato de estar preso em um barril e serrá-lo de

dentro para fora sem que apresentasse, previamente, qualquer lugar por onde fosse possível

começar a serrar, ou sequer a posse do serrote, já que esse aparece como mágica. Essas carac-

terísticas dão-se apenas no âmbito fantástico, conforme o parágrafo acima.

Não se pode deixar de observar, entretanto, que há certa permeabilidade de senti-

dos, no que se refere ao fantástico e ao que é maravilhoso. Em comentário na contracapa da

edição de 2005 de Crônicas de Nárnia, Lloyd Alexander afirma que ―nos nossos tempos, todo

o reino da fantasia deve ser avaliado em comparação com Nárnia‖. Podemos perceber, então,

que o termo fantástico está ligado à fantasia, ou seja, à imaginação. A editora Videotexto17

,

por sua vez, disponibiliza para os internautas uma análise bastante interessante acerca da con-

fusão entre esses termos e, citando renomados escritores, afirma que,

...embora se costume incluir os mitos, as lendas e fábulas como modalidades da lite-

ratura fantástica, as análises mais acuradas sobre o assunto estabelecem uma distin-

ção entre o especificamente fantástico e o âmbito mais geral do maravilhoso que re-

cobre aqueles gêneros citados.

Podemos, então, a despeito de certa confusão existente entre o que é fantástico e o

que é maravilhoso, concordar com as opiniões do mesmo texto, as quais afirmam que elemen-

tos como a atmosfera do caos e a impossibilidade de explicar fatos com as leis da natureza e

da ciência conhecidas pelos homens deixa o leitor/ouvinte intrigado pelo mistério sobrenatural

presentes nesses contos, exercendo fascínio. Justamente pelo clima, por esses elementos, a

cultura folclórica mostra-se com tanta importância, sendo fascinante e, infelizmente, pouco

explorada em se tratando do país em que vivemos.

17

Disponível em <http://www.videotexto.tv/fantastica_literatura_cinema.html> acesso em 21.04.2006

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20

1.4 O DISCURSO

Partindo da maneira como a narrativa é contada, podemos caracterizá-la segundo

os tipos de discurso:

a) Discurso direto – é contado a partir das falas das personagens, que são marcadas por

indicativos destas falas, como o travessão. O narrador conta os acontecimentos, que

são intercalados pelas falas das personagens;

b) Discurso indireto – o narrador reconta os acontecimentos com suas palavras, sem ce-

der a voz ao personagem. Essa modalidade de discurso determina mudanças nos tem-

pos verbais e a citação das falas das personagens, geralmente, é iniciada com o pro-

nome relativo que;

c) Discurso indireto livre – Essa possibilidade pode ser considerada quanto à sua estrutu-

ra idêntica ao discurso indireto, com a omissão, porém, do verbo de elocução.18

1.4.1 Intertextualidade

É importante, ainda, salientar a intertextualidade devida à pertinência desta no que

se refere ao objeto de estudo deste trabalho. Em princípio, no estudo da cultura e por questões

históricas, percebemos que muitas das lendas e mitos que encontramos em nossa cultura são

heranças de nossos colonizadores. Entretanto, novos elementos foram acrescentados, visto

que os primeiros habitantes das terras colonizadas também tinham suas lendas e mitos.

A intertextualidade pode ocorrer quando o narrador utiliza outro texto conhecido como

ponto de partida. É uma conversa entre textos. Muitas vezes, o entendimento do significado

de um texto pressupõe o conhecimento de outro, mas a intertextualidade pode apresentar-se

em níveis diferentes. O narrador pode lançar mão de recursos diversos, como as epígrafes,

citações, paráfrases, ou mesmo paródias. Ainda, em outros níveis, ―trazem, como referência,

elementos capturados uns dos outros ou resgatados de uma tradição do passado‖ (RODELLA

et all, 2005, p. 42), perpetuando a cultura, como no caso das personagens ou narrativas folcló-

ricas recontadas ou mesmo romanceadas, objeto principal deste estudo.

18

Disponível em

http://www.profabeatriz.hpg.ig.com.br/gramatica/discurso.htm#DISCURSO%20INDIRETO%20LIVRE –

Acesso em 01.12.2006.

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1.4.2 Dialogia e polifonia: vozes, faces e interfaces textuais

No âmbito das reflexões teóricas, faz-se significativa a leitura das narrativas como

aporte para o olhar que se lança sobre elas. Para tanto, evidenciam-se as apreensões do pensa-

dor russo M. M. Bakhtin, em especial a dialogia e a polifonia.

O pensador comenta a possibilidade de diálogos, onde uma obra está sempre aber-

ta à interação, sem nunca ser acabada. É a partir desse momento que o indivíduo opta por va-

lores-referência construindo seu eu a partir do ―nós‖ por meio de interações entre interlocuto-

res (Bakhtin, 1986).

Entretanto, as idéias de Bakhtin não se resumem à dialogia. É preciso refletir acer-

ca desse conceito. Segundo Todorov (apud CUNHA 1997, p. 71-96), a respeito da dialogia,

afirma que:

A vida é dialógica por natureza. Viver significa participar de um diálogo, interrogar,

escutar, responder, concordar, etc. Toda comunicação verbal, toda interação verbal

se realiza em forma de uma troca de enunciados (grifos do autor), em forma de diá-

logo. Duas obras verbais, dois enunciados justapostos um ao outro, entram numa es-

pécie particular de relações semânticas que chamamos dialógicas. As relações dialó-

gicas são relações (semânticas) entre todos os enunciados no seio da comunicação

verbal.

Então, podemos concluir que a própria vida é permeada por vários diálogos que se

tocam promovendo novas interpretações, novas visões de um mesmo assunto, pois os valores-

referência do indivíduo implicarão em suas idéias e conceitos. Assim,

O enunciado nunca é simples reflexo ou expressão de algo que lhe preexistisse, fora

dele, dado e pronto. O enunciado sempre cria algo que, antes dele, nunca existira,

algo novo e irreproduzível, algo que está sempre relacionado com um valor. [...]

qualquer coisa se cria sempre a partir de uma coisa que é dada [...]. O dado se trans-

figura no criado (BAKHTIN, 1992, p. 348).

O conceito de obra, então, não pode ser de ordem hermética, mas como o eco de várias vozes

e, segundo Bakhtin seria a polifonia que ainda pode incorporar muitas outras.

Segundo Ingo Voese, Bakhtin ―privilegia duas noções fundamentais para o estudo

do discurso: a de dialogia e polifonia. Os conceitos falam da multiplicidade de vozes presen-

tes no discurso e das relações que entre elas se estabelecem obrigatoriamente [...], cada voz

corresponde a um universo polifônico de vozes sociais‖ (VOESE, 2005, p. 358/ 360).

Voese ressalta que

A dimensão dialógica e o caráter polifônico do discurso que se efetivam na interação

permitem entender que, como resultado da diversidade, o produto da atividade hu-

mana pode ter diferentes finalidades, ou seja, as coisas produzidas pelo homem po-

dem estar comprometidas com diferentes valores e ocupar diferentes lugares nas hie-

rarquizações (2005, p. 385).

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Os processos dialógicos e polifônicos são formados por um conteúdo de conheci-

mento sobre o mundo e as relações humanas.

Então, a partir da apreensão desse olhar que são desenvolvidas e anunciadas as

narrativas nessa pesquisa.

Podemos falar, também, sobre os diversos contos que dialogam entre si, de várias

origens, perpetuando-se através do tempo e espaço como um exemplo intertextual.

1.4.3 Cotejo

Como visto anteriormente, o pensamento de Bakhtin não se resume à dialogia e à

polifonia. Através do cotejo podemos analisar o conceito de obra, que não pode ser hermética,

mas como o eco de várias vozes que ainda podem incorporar muitas outras, pois

Não existe nem a primeira nem a última palavra, e não existem fronteiras para um

contexto dialógico. (...) Em qualquer momento do diálogo existem as massas enor-

mes e ilimitadas de sentidos esquecidos que serão recordados e reviverão em um

contexto e num aspecto novo‖ (Bakhtin, 1985).

Logo, essas fronteiras perpassam o que vem a ser o entendimento, pois "A com-

preensão é o cotejo de um texto com os outros textos", como nos diz Bakhtin. (...) O texto só

vive em contato com outro texto (contexto)" (1992, p. 404).

Então, dialogia, polifonia e cotejo são conceitos intrínsecos, pois dizem respeito

aos aspectos do que se deseja comunicar, ou perpetuar, visto serem relevantes ao que dispo-

mos nesse trabalho.

Podemos afirmar, então, que o cotejo toma emprestadas características, aspectos e

informações que promovem a compreensão entre os textos, privilegiando os pontos em que se

tocam.

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“A Natureza não conhece a extinção; tudo o que conhece é transformação.”

Thomas Pynchon

Gravity‘s Rainbow

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2 GRANDES FOLCLORISTAS BRASILEIROS

O Brasil tem grandes folcloristas que pesquisaram sobre a cultura popular de suas

regiões. Na obra Antologia do Folclore Brasileiro19

figura nomes de vários estados, como

Ermano de Stradelli, italiano que versa sobre as entidades indígenas; João Alfredo de Freitas,

que narra as ―legendas e superstições do Norte do Brasil‖ (p.53); Simões Lopes Neto, gaúcho,

com o Negrinho do Pastoreio (p.86), entre tantos outros. Mas falta a menção do Estado de

Santa Catarina nessa obra, o qual será estudado posteriormente através do trabalho do não

menos importante Franklin Cascaes.

Em outra obra de Câmara Cascudo, Lendas Brasileiras, são contempladas as regi-

ões, da seguinte forma, com seus respectivos contos:

I. Norte: A lenda da Iara; Cobra Norato; Sapucaia-oróca; Barba-Ruiva;

II. Nordeste: A cidade encantada de Jaricoacoara; Carro caído (sic); Senhor do corpo san-

to; Mangas Jasmim de Itamaracá; Morte de Zumbi;

III. Este: O frade e a freira; A serpente emplumada da Lapa; O sonho de Paraguassu;

IV. Centro: Tatús brancos; A missa dos mortos; Chico Rei; Romãozinho;

V. Sul: Negrinho do Pastoreio; A lenda da gralha azul; Fonte dos Amores; A Virgem

Aparecida; A lenda de Itararé.

Mesmo com um capítulo dedicado ao Sul, inclui-se aí, de Santa Catarina, a lenda

da gralha azul, a qual pertence à região serrana. De acordo com o próprio autor, as 21 lendas

que compõem a obra ―figuram como os documentos mais importantes do folclore e da poesia

do Brasil20

‖.

2.1 LUÍS DA CÂMARA CASCUDO

Folclorista, historiador, antropólogo, jornalista e advogado, Câmara Cascudo de-

dicou a vida ao estudo da cultura. Foi professor pela Universidade do Rio Grande do Norte,

cujo instituto de antropologia leva seu nome. Foi um incansável pesquisador das manifesta-

ções culturais de nosso país, deixando extensa obra, que consta do anexo B deste trabalho.

19

Obra que conta com nomes de vários autores de diversos estados e até mesmo estrangeiros que estudaram a

cultura brasileira, organizadas Luís da Câmara Cascudo. 20

Memória viva de Câmara Cascudo. Disponível em <http//:www.Memória Viva de Câmara Cascudo1.htm>

Acesso em 06.04.2006.

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Figura 1 – Luís da Câmara Cascudo pela lente de Carlos Lyra.

A página eletrônica da Revista Ciência Hoje21

das Crianças traz uma pequena bi-

ografia de Luís da Câmara Cascudo, onde se pode ver a homenagem póstuma que recebeu ao

ter seu rosto na nota de cinquenta mil cruzeiros. A pequena reportagem sobre o folclorista que

sempre quis ser chamado de professor traz dados curiosos, como o fato de ter sido filho único,

de família rica e de serem seus padrinhos de batismo o governador e a primeira dama da pro-

víncia. Nascido em Natal, capital do Rio Grande do Norte em 30 de dezembro de 1898, Câ-

mara Cascudo formou-se em Direito pela Universidade de Recife em 1928. Trabalhou como

jornalista, tendo iniciado sua carreira no jornal A Imprensa, de propriedade de seu pai, o coro-

nel Francisco Cascudo. Posteriormente, colaborou em todos os jornais de Natal.

O autor ainda viajou à Europa, à África e ao Uruguai. Casou-se com Dahlia Freire

Cascudo, com quem teve dois filhos, Fernando Luís e Ana Maria.

Entre outras distinções, foi Grande Oficial da Ordem do Mérito Naval, Comenda-

dor da Ordem do Mérito Militar (Brasil), Ordem do Mérito Militar de Cristo (Portugal), Or-

dem do Cisneiros (Espanha), Ordem de São Gregório (Santa Fé), Ordem da Coroa (Itália),

além de várias Ordens particulares e honoríficas. Faleceu na cidade em que sempre morou, no

lugar em que nasceu a 30 de julho de 1986.

Escreveu sobre vários assuntos, mas destaca-se de seu trabalho uma obra compos-

ta por mais de cento e cinquenta livros, sua especialização no folclore e sua predileção pela

história, geografia e biografia.

De humor singular, suas frases são conhecidas por mostrar não só seu conheci-

mento, mas seu temperamento ímpar.

Faço questão de ser tratado por esse vocábulo que tanto amei: professor. Os jornais,

na melhor ou na pior das intenções, me chamam folclorista. Folclorista é a puta que

21

Disponível em <http://ich.unito.com.br/view/2926> Acesso em 21.04.2006.

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os pariu. Eu sou um professor. Até hoje minha casa é cheia de rapazes me pergun-

tando, me consultando.22

Câmara Cascudo tem sido homenageado de várias formas, não apenas com sua

imagem numa nota durante os anos noventa, já fora de circulação. Seu nome está ligado à

instituições voltadas à cultura, nada menos que merecido, visto que sua obra procurou não

apenas preservar, como também divulgar a cultura de nosso país, sempre pautado pelo conhe-

cimento e busca científicos.

Podemos ver, nas páginas seguintes, imagens de algumas dessas instituições e,

ainda, a homenagem recebida no início da década de 90, quando figurou numa das notas de

maior valor da moeda brasileira.

Local onde se encontram objetos

pessoais de Cascudo e pode consultar os livros

da biblioteca pessoal do mestre.

Figura 2 – Memorial Câmara Cascudo.

Museu mantido pela Universidade

Federal do Rio Grande do Norte.

Figura 3 – Museu Câmara Cascudo.

22

Memória Viva de Câmara Cascudo. Disponível em

<http://www.memoriaviva.digi.com.br/cascudo/index2.htm> Acesso em 21.04.2006.

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Figura 4 – Câmara Cascudo na nota de cinquenta mil cruzeiros lançada no início dos anos 90

e já recolhida pelo Tesouro Nacional.

2.2 FRANKLIN JOAQUIM CASCAES

Figura 5 – Franklin Cascaes.

Historiador, pesquisador, ecólogo, artista plástico e folclorista, Franklin Joaquim

Cascaes dedicou parte de sua vida ao registro das tradições, usos e costumes do povo ilhéu.

Nasceu em 16 de outubro de 1908 no município de São José, na então Itaguaçu. Embora tenha

entrado pela primeira vez numa escola com mais de 20 anos, pois ―Seu pai achava que estudar

era ―algo delicado demais e que o homem de verdade tinha que trabalhar na roça‖23

, Cascaes

tornou-se professor no mesmo lugar onde iniciou seus estudos, a antiga Escola Industrial,

após superar a resistência do pai.

De família numerosa, seu Francolino, como os pescadores o chamavam, cres-

ceu ouvindo histórias fantásticas: fosse dos escravos ou dos trabalhadores de seus avós, foi

ouvindo histórias e gostando. Na década de 40, realizou um trabalho quase solitário de ―reco-

lher as histórias, rabiscar a mitologia, desenhar as formas, moldar as figuras, mostrando do-

23

Disponível em http://www.pmf.sc.gov.br/franklincascaes/index.php?link=institucional&sublink=sobre Aces-

so em 07.04.06 - fundação Franklin cascaes

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mínio de várias artes. Só não foi condenado ao insucesso pela persistência teimosa de que

sentia que lidava com o seu próprio passado e com uma tradição que amava24

‖.

Foi um verdadeiro artista que expressou a cultura do ilhéu, predominantemente a

açoriana em diversas formas: ilustrou seus escritos, rabiscou suas formas como eram descritas

pelos contadores, esculpiu e, ainda, colecionou diversos objetos. Viveu no sentido contrário

aos ventos de seu tempo: quando todos buscavam a novidade, Franklin Cascaes garantiu que a

cultura de sua terra não caísse no esquecimento. Sua primeira obra artística e cultural foi

apresentada em 1931, sempre enfatizando o folclore açoriano.

Felizmente, o trabalho do artista é reconhecido, sendo mantida pela Prefeitura de

Florianópolis a Fundação Franklin Cascaes, que busca incentivar a cultura e preservar a me-

mória folclórica catarinense, entre seus objetivos.

Figura 6 – À esquerda, Franklin Cascaes; à direita, ilustração do artista sobre O Fantástico.

2.3 BREVE OLHAR SOBRE OBRAS DE CÂMARA CASCUDO E FRANKLIN

CASCAES

Seria demasiado pretensioso analisar as obras destes dois folcloristas nesse traba-

lho, dadas a importância, extensão e valor de ambas. Uma análise, por mais simplista que fos-

se, necessitaria enorme tempo a empenhar, o que inviabilizaria a conclusão desse estudo em

função dos prazos a serem cumpridos. A extensa lista das obras disponível na página eletrôni-

ca Memória viva de Câmara Cascudo, que compreende o A, vem corroborar a justificativa

acima.

A obra de Franklin Cascaes não se limita apenas às publicações: sua coleção de

objetos, ilustrações criadas por ele, a própria Fundação Franklin Cascaes seriam material sufi-

ciente para uma análise profunda, mas que acarretaria em informações que fugiriam do tema

desse estudo, oferecendo, inclusive, suficiente material para nova pesquisa.

24

Idem.

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Optamos, então, por lançar um breve olhar sobre as obras, discorrendo apenas no

que é pertinente ao objeto dessa monografia.

2.3.1 A obra do Mestre do Folclore

Luís da Câmara Cascudo é considerado o mais fiel historiador da cidade de Natal.

A obra do mestre, entretanto, não se limita a essa cidade, mas é fundamental para estudos et-

nográficos e antropológicos no Brasil. Sua particular dedicação foi ao folclore, disciplina da

qual afirmava dever ser estudada em todas as manifestações tradicionais na vida coletiva.

Sua obra foi levantada criticamente por Zila Mamede em Luís da Câmara Cascu-

do: 50 anos de vida intelectual: 1918-1968, publicada em 197025

.

Segundo Cláudio Costa, em edição eletrônica do Jornal da USP, ―Câmara Cascu-

do não gostava de ser chamado de folclorista, mas de professor. Um professor que escreveu

sobre muitas áreas do saber, tendo como foco principal a cultura popular brasileira26

‖. Era um

professor da literatura oral. Cascudo escreveu sobre vários gêneros, entre ensaios, poesias,

romances, reportagens e passeou por diversos temas, como história, geografia, política e reli-

gião, mas partiu da cultura popular brasileira para os outros temas.

Foi a partir da temática regional popular que abordou questões mitológicas dos

diversos povos da Europa. Embora o autor não parecesse tencionar registrar os elementos

folclóricos como o fez para preservá-los, mas para difundi-los, sua preocupação com a orali-

dade vem das histórias que ouviu do pai e mostra-nos, em sua obra, a importância da memória

oral.

Sua obra é um retrato do Brasil em suas entranhas, pois difunde os causos27

con-

tados entre amigos, entre a família; e mostra a mesa em História da alimentação no Brasil,

mas foi o Dicionário do Folclore Brasileiro (1956) sua obra mais divulgada e conhecida, a

qual pode ser considerada verdadeira síntese de seu trabalho, onde figuram o que ele mesmo

afirmou serem suas curiosidades, o segredo e a alegria de sua preferência28

.

Mas a obra de Câmara Cascudo é rara. D e acordo com o Jornal da USP, um

exemplar de Fabulário do Brasil só é encontrado no Real Gabinete Português de Literatura no

25 Disponível em <http://www.terrabrasileira.net/folclore/biografo/cascudo.html> acesso em 22.06.2006.

26 Disponível em <http://www.usp.br/jorusp/arquivo/2003/jusp659/pag17.htm> acesso em 22.06.2006.

27 Corruptela de casos

28 Disponível em http://www.usp.br/jorusp/arquivo/2003/jusp659/pag17.htm acesso em 22.06.2006.

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30

Rio de Janeiro. A colaboradora do autor, Laura Della Monica, relançou o Dicionário do Fol-

clore Brasileiro em 2000, em edição revista, ilustrada e atualizada até a morte do autor, em

1987.

Entretanto, a raridade da obra do mestre pode ser encarada como um desafio, pois

seu estudo implicaria na análise de precioso material não apenas para a produção de conheci-

mento, mas para a preservação da memória folclórica do país.

2.3.2 O Perpetuador do Folclore Ilhéu

Franklin Cascaes realizou, durante toda sua vida, estudos sobre a cultura açoriana

na Ilha de Santa Catarina, contemplando os aspectos folclóricos, culturais, lendas e supersti-

ções. Sua obra começou a ser divulgada a partir de 1974.

Vivendo até a adolescência entre pescadores, o autor colecionou artigos produzi-

dos pela gente simples da ilha durante toda a vida e, quando morreu, aos 75 anos, em 15 de

março de 1983, deixou imenso acervo de obras e sendo tema constante de estudos em vários

pontos do Brasil, além de imensa coleção de objetos.

Parte do que o próprio Cascaes produzia foi jogada fora durante a Segunda Guer-

ra, pois a oficina de arte foi transformada em Oficina de Guerra, razão de grande tristeza para

o artista. Mas foi persistente: seus presépios de folhas de piteira montados sob a lendária fi-

gueira da Praça XV iniciaram uma tradição que perdura até os dias atuais.

O nome da Fundação Franklin Cascaes, mantida pela prefeitura da capital, é uma

homenagem mais que justa àquele que dedicou sua vida ao registro da tradição popular, dos

usos e costumes do povo ilhéu. Seu trabalho garantiu que se perpetuasse essa cultura cada

vez mais ameaçada pelo ostracismo.

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“Bailam corujas e pirilampos entre os sacis e as fadas.

E lá no fundo azul na noite da floresta.

A lua iluminou a dança, a roda, a festa.”

Secos e Molhados

O Vira

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3 DIALOGOS E VOZES: ALGUMAS FIGURAS FOLCLÓRICAS BRASILEIRAS

São muitas as lendas brasileiras, mas entre as mais conhecidas estão algumas que

aparecem no folclore de quase todas as regiões.

Figura 7 – Boto.

Algumas fazem parte do folclore regional, não aparecendo em outras regiões, co-

mo o boto, pertencente à mitologia da Amazônia e do Pará, onde o cetáceo transforma-se num

lindo homem que seduz as mulheres e, no desconhecimento da paternidade das crianças, atri-

bui-se à personagem folclórica.

Figura 8 – Caipora.

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Como ele, a versão feminina para o caipora também aparece apenas na região

Norte. O caipora ou curupira é o espírito das florestas, que protege a fauna e a flora contra a

destruição promovida pelo homem. Em nossa região, o caipora ou curupira apresenta-se ape-

nas no sexo masculino. Ambos, entretanto, possuem características idênticas: são da estatura

de um menino, de cabelos de fogo e calcanhares virados para frente. Engana os caçadores e

pode enlouquecer a quem encontrar-se com a (o) caipora ou curupira.

O Bicho Papão é uma figura fictícia em quase todas as sociedades, representando

uma forma de amedrontar as crianças. Recebe muitas designações, como O homem do sa-

co,ou o monstro do armário. ―Já na altura das Cruzadas, os muçulmanos da Terra Santa per-

sonificavam o bicho papão no rei Ricardo, Coração de Leão, dizendo aos filhos: ‗porta-te bem

senão o melek-ric vem buscar-te29

‟”, o que mostra que a lenda foi trazida pelos europeus du-

rante a colonização do Brasil. Conhecido em diversas partes do mundo, recebe um nome dife-

rente em cada lugar. Bogart na Inglaterra, Père Fouettard na França, Krampus na Baviera e

Áustria, Ruprecht ou Knechtruprecht em outras regiões da Alemanha.

Curiosamente, sua forma física parece nunca ser descrita e o uso do termo homem

do saco seria só um homem comum que rouba criancinhas.

Figura 9 – Boitatá.

O boitatá, nome indígena que significa Cobra de fogo é um gênio que protege

campinas e castiga quem ateia fogo ao mato. Quase sempre é descrito como uma cobra gigan-

tesca, com olhos enormes, mas também é descrito como um boi enorme e brilhante.

29

Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Pap%C3%A3o> Avesso em 22.04.2006.

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Figura 10 – Iara, a mãe d‘água.

Iara, a mãe d‘água, provavelmente uma aculturação européia com raízes nas serei-

as, é uma figura mitológica difundida entre os indígenas e caboclos após o século XVII. Des-

crita como uma mulher muito bonita, ela atrai os pescadores ou quem quer que se aproxime

do rio ou da praia à noite, levando a afogar-se na busca por diversão. Meio peixe e meio mu-

lher, apresenta-se penteando os cabelos ou cantando, atrai quem a observa pelo efeito hipnóti-

co de sua imagem ou canto, fazendo com que, na ânsia de alcançá-la, o observador mergulhe

nas profundezas das águas, morrendo afogado. Em algumas comunidades, tem a reputação de

protetora das águas e da pesca.

Figura 11 – A Gralha Azul.

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Ave das regiões serranas, à gralha azul atribui-se a expansão das florestas de arau-

cária, a qual, semeada pelo pássaro, estendeu-se por boa parte da região sul. O pássaro planta

o pinhão depois de tirar-lhe a cabeça, pois ela apodrece o fruto, e planta-o com a parte mais

fina para cima, facilitando a brotação.

A lenda da gralha azul conta sobre um caçador que, após matar uma destas aves,

desmaia quando o estilhaço da pólvora volta para seu rosto e tem um sonho ou visão em que a

gralha aparece, contando o que faz e fazendo-o pensar que, pela lei, o caçador é impedido de

matar seu semelhante, mas a gralha azul, que cuida da propagação da floresta de pinheiros, é

morta sem qualquer piedade.

Figura 12 – Saci Pererê.

Idealizado pelos indígenas, o Saci Pererê é uma espécie de duende guardião das

florestas. Primeiramente, era um curumim30

perneta, de cabelos avermelhados. O contato com

os africanos lhe acrescentou a carapuça e o cachimbo e já era visto como o negro de uma per-

na só. Em algumas regiões, tem reputação de pequeno demônio que faz travessuras e gosta de

enganar as pessoas. Na região de fronteira com o Paraguai, rouba crianças para deixá-las em

locais de difícil acesso. Sincretizado como demônio, tem medo de rosários e imagens de san-

tos. Aparece e desaparece num redemoinho de vento.

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Criança indígena.

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Figura 13 – Negrinho do Pastoreio.

A lenda do Negrinho do Pastoreio fala de um escravo de uma fazendo do Rio

Grande do Sul que, deixando fugir alguns cavalos de seu dono, foi açoitado no tronco até que

se lhe abrissem feridas. Depois, foi amarrado em cima de um formigueiro para ser mordido,

pois perdera os cavalos mais valiosos do dono da fazenda. O menino morre pelas picadas das

formigas e, afilhado de Nossa Senhora, seu espírito volta trazendo os cavalos do fazendeiro.

Até hoje é invocado para encontrar objetos perdidos.

Figura 14 – Mula-sem-cabeça.

A Lenda da Mula-sem-Cabeça conta que a mulher que namora padres é amaldiço-

ada, procurando, todas as noites de quinta para sexta-feira, uma encruzilhada para transfor-

mar-se em uma mula-sem-cabeça. Então, ela sai a percorrer sete povoados e, se encontrar

alguém, chupa-lhe os olhos. É difícil de imaginar como a besta faz isso, pois não tem cabeça,

mas há outra versão em que se apresenta como uma mula que solta fogo pelas ventas. Para

quebrar o encanto, é preciso tirar os arreios da mula.

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“Impérios de um lobisomem

Que fosse um homem

De uma menina tão desgarrada

Desamparada se apaixonou”

Zé Ramalho

Mistérios da Meia-noite

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4 VOZES E DIALOGOS DAS FACES DO LOBISOMEM

Figura 15 – Lobisomem.

A lenda do lobisomem é européia e conta que, da mulher que tiver sete filhas, o

sétimo, se for menino, virá com a maldição da lua cheia, quando ele se transforma num ani-

mal semelhante a um grande lobo, mas que caminha nas patas traseiras e corre como um cão,

tendo o corpo peludo. Quando ataca uma vítima, caso essa não morra, passa a transformar-se,

também, em lobisomem. Volta ao normal ao cantar do galo, com as roupas rasgadas, o corpo

cansado e gosto de sangue na boca.

Figura 16 – Lobisomem.

Existe, no folclore, o termo licantropia, que designa a maldição que recai sobre

um homem quando ele se transforma em lobisomem, visto que a metamorfose não pode ser

controlada. Porém, uma doença mental em que o paciente acredita que se transforma em ani-

mal é chamada de licantropia clínica para diferenciar-se da forma folclórica.

No Brasil, a lenda varia de acordo com a região e, certamente, chegou até nós

através dos imigrantes europeus. Em algumas versões é idêntica à versão européia, em outras,

acredita-se que a sucessão de filhos deve ser do mesmo sexo para que a maldição recaia sobre

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o sétimo filho. Há a versão em que diz que casais com mais de seis filhos, o sétimo, se do

sexo masculino, será lobisomem, se do sexo feminino, será bruxa. Outra diz que apenas o

sétimo filho varão de um sétimo filho varão carrega a maldição. Quanto à transformação,

também varia, sendo que umas dizem que a fera se transforma numa encruzilhada, outras que

acontecem quando vê a lua cheia, e que deve procurar um cemitério antes do raiar do sol para

voltar ao normal. Em algumas regiões, afirma-se que lobisomem tem preferência por atacar

crianças não batizadas, daí a pressa dos pais pelo batismo.

Entre os contos compilados que compreendem o anexo B aparecem todas as

versões acima numa variação geográfica bastante limitada: foram recolhidas entre moradores

que vivem desde o bairro Congonhas em Tubarão, passando pelos residentes nas praias de

Jaguaruna até os bairros Olho D‘água e limites com o município de Sangão.

Em resumo, a lenda fala de uma voz social masculina que se transforma tempo-

rariamente em lobo, porém maior e mais forte que esse animal, ficando ávido por carne hu-

mana.

Ainda é pertinente analisar o aspecto biológico através da hipertricose,uma do-

ença rara que ocasiona o aumento e crescimento desordenado dos pelos do corpo, que é bas-

tante rara, mas pode ser associadaaos testemunhos de pessoas que avistaram a fera na idade

média.

Figura 17 – Homem com hipertricose.

Além desses aspectos, o lobisomem é figura recorrente em diversos contos folcló-

ricos. Como lenda européia cercada de superstição, constitui-se como personagem de obras

literárias. Sua figura aparece na obra de J. K. Rowling na saga de Harry Potter, mas não apre-

senta os aspectos comumente conhecidos: a figura do lobisomem personifica o mal no folclo-

re e no conhecimento comum; entretanto, encarna a figura de um homem que luta pelo bem,

mesmo marginalizado e sendo objeto do medo da maioria das pessoas.

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A autora trouxe a figura do lobisomem com uma voz diferenciada: acredita-se que

pertença ao mal, mas sua postura é a inversa, o que nos faz lembrar Bakhtin quando esse

afirma que

Não existe nem a primeira nem a última palavra, e não existem fronteiras para um

contexto dialógico. (...) Em qualquer momento do diálogo existem as massas enor-

mes e ilimitadas de sentidos esquecidos que serão recordados e reviverão em um

contexto e num aspecto novo‖ (Bakhtin, 1985).

A lenda européia que ganhou nova voz na obra de J.K. Rowling e que aparece

em nossa região como forte aspecto folclórico pode dialogar com nossa lendas locais, ultra-

passando fronteiras não apenas do diálogo, mas geográficas, revivendo novos aspectos e con-

textos no apêndice A desse trabalho.

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“Criei um Mundo Secundário que sua mente possa entrar. Dentro

dele, tudo o que ele relatar é „verdade‟, de acordo com as leis da-

quele mundo. Assim que acreditar, você estará nele, dentro dele.”

J. R. R. Tolkien

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5 J.K. ROWLING, J.R.R. TOLKIEN, C.S. LEWIS E O IMAGINÁRIO COM NOVA

ROUPAGEM: DIALOGOS POSSIVEIS ENTRE VOZES DISTANTES

Os autores Joanne Kathleen Rowling e John Ronald Reuel Tolkien são britânicos

e suas obras abordam o imaginário popular conhecido onde viviam. Clivert Staples Lewis,

extremamente religioso como Tolkien, mostra, através das Crônicas de Nárnia, uma metáfora

sobre Jesus. Embora católicos, os dois autores emprestaram uma nova roupagem ao imaginá-

rio inglês, apresentando valores essenciais para a formação do caráter das pessoas. Rowling,

com a saga de Harry Potter, ilustra as dúvidas, medos e problemas de uma criança que, na

medida em que os livros vêm sendo publicados, cresce e desenvolve-se junto com seus leito-

res.

A despeito de suas convicções religiosas, os autores não permitiram que elemen-

tos e figuras folclóricas de sua cultura se perdessem, mas trouxeram uma proposta de perpetu-

ação desses elementos através de novas histórias.

O fenômeno Harry Potter, pela vendagem e sucesso, mostra a importância e o in-

teresse que ainda existem por esses elementos. As facilidades tecnológicas só ajudaram a

obra, pois os jogos eletrônicos podem facilmente simular o vôo de uma vassoura, de modo

que até qualquer criança consegue jogar quadribol31

.

Podemos falar da criatividade dos autores com base nas teorias bakhtinianas: eles

discorrem por temas que dialogam entre si, trazem elementos pré-existentes de sua cultura e

ainda permeiam as obras uns dos outros. Nesse contexto, podemos afirmar que essas obras

são polifônicas e dialógicas.

Lewis e Tolkien eram contemporâneos e amigos. Seus temas versam, de certa

forma, sobre a religiosidade e a fé, sobre o bem e o mal, tão presentes na arte escrita. A obra

de Rowling utiliza inúmeros elementos do imaginário inglês, muitos deles aparecem de ma-

neira idêntica na obra de outro grande escritor conterrâneo de J.K. Rowling, John Ronald

Reuel Tolkien, cuja obra inclui O Senhor dos Anéis, recentemente transposto para as telas do

cinema com enorme sucesso. Mas não apenas a obra de Tolkien possui elementos mostrados

na saga de Harry Potter. As Crônicas de Nárnia, do irlandês Clive Staples Lewis possivel-

mente também serviram de inspiração para Rowling, pois nomes e personalidades d‘As Crô-

nicas são recorrentes na obra da autora.

A obra de Tolkien foi um resgate do imaginário pautada por extensa pesquisa das

raízes linguísticas. A história do anel, na íntegra, é contada em cinco livros: O Silmarillion,

que descreve a criação do mundo vista pelos antigos povos do norte europeu; O Hobbit, onde

31

Esporte dos bruxos jogado com quatro bolas: dois balaços – bolas arremessadas com massas para impedir o

avanço do adversário - e um pomo de ouro que deve ser capturado pelo apanhador, jogador encarregado ape-

nas dessa função, que determina o final da partida.

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o anel aparece pela primeira vez; O Senhor dos Anéis – A sociedade do anel, que narra a luta

para destruir o anel e com ele o mal; As duas torres - segundo livro da trilogia que aponta os

infortúnios e dificuldades para a destruição do anel e o ganho de forças que o mal tem durante

tanto tempo; O retorno do Rei, livro que conclui a história, conta, como o título sugere, o re-

torno de Aragorn, legítimo herdeiro do trono, ao governo de seu povo e suas terras.

Na trilogia descrita acima, encontramos a lula gigante no lago, a presença do cará-

ter maravilhoso, a própria figura de Gandalf, todos se confundem com personagens da saga de

Harry Potter. Os elementos são recorrentes e as figuras dos magos Gandalf e Dumbledore

apresentam não apenas semelhanças físicas, mas psicológicas.

O mesmo ocorre com a obra de Lewis. Composta por sete contos, entre os quais O

Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa32

é o mais conhecido, também guardam semelhanças

com a obra da escritora de Harry Potter. Tomando-se o primeiro conto como exemplo, o per-

sonagem Digory de O sobrinho do Mago também é encontrado em vários livros da saga de

Potter, sendo assassinado em O cálice de fogo. A menina, Polly, tem um nome e uma sonori-

dade muito semelhante ao nome de batismo da Sra. Weasley, Molly. E, principalmente, as

características psicológicas destas personagens, onde a moral, a bondade e o empenho pelo

bem estão profundamente presentes.

32

Lançado recentemente no cinema, com enorme sucesso.

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“Lá e de volta outra vez.”

J. R. R. Tolkien

O Hobbit

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse estudo pretendeu-se apresentar e, com isso, promover um resgate de contos

orais da região, preservando o folclore local, buscando apoio na obra do teórico Bakhtin.

Através de seus conceitos de dialogia, polifonia e cotejo, procurou-se promover uma concreti-

zação de suas ideias. As primeiras vozes foram buscadas nos contos recolhidos, que configu-

ram os anexos A e B e no apêndice A desse trabalho. Ao promovermos uma análise desses

contos, pudemos perceber que a mesma narrativa ganha novas versões, acréscimo ou supres-

são de elementos, de acordo com quem conta. Dessa forma, podemos afirmar que

Não existe nem a primeira nem a última palavra, e não existem fronteiras para um

contexto dialógico. (...) Em qualquer momento do diálogo existem as massas enor-

mes e ilimitadas de sentidos esquecidos que serão recordados e reviverão em um

contexto e num aspecto novo‖ (Bakhtin, 1985).

Tomando-se a história recontada no apêndice A, pode-se perceber que, se nin-

guém mais teve notícias do casal e eles eram extremamente reservados, não haveria possibili-

dade de que a história se propagasse, principalmente com os detalhes que apresenta. Para re-

contar a história, foi necessária extensa pesquisa bibliográfica, cujas fontes constam do final

da narrativa, e serviu para fundamentar os rituais, baseados nas Tradições Wiccanas, cujas

obras são facilmente encontradas em livrarias.

A fonte das histórias nunca é conhecida, mas a credibilidade do contador faz com

que os ouvintes creiam nelas, embora tenham características inverossímeis.

Mas não é esse aspecto dos contos folclóricos que está em questão: as lendas ur-

banas, portadoras das mesmas características, também levam inúmeras pessoas à crença de

que sejam reais. Uma delas figura no anexo B, contando a história da Maria Sangrenta. Uma

pesquisa mais profunda mostra que é uma versão brasileira para o norte-americano Candy-

man, cujas diferenças da versão contada no Brasil são o fato de ser homem e ter o nome dife-

rente, tendo sido, inclusive, personagem de filmes. Entretanto, essa discussão não faz parte do

objetivo desse trabalho.

É possível que a economia norte-americana possibilite uma gama variada de pro-

duções, mas a realidade mostra que tais filmes preservam a cultura daquele povo, diferente do

que acontece em nosso país. A Inglaterra teve suas obras preservadas por vários autores, três

deles citados nesse trabalho.

O que se pode perceber é que esses contos viajaram com os imigrantes, incorpo-

rando elementos indígenas e africanos e, possivelmente, podem ganhar nova roupagem com

as lendas urbanas. Porém, mesmo que o hábito de contar histórias para as crianças esteja en-

fraquecido, o incentivo à leitura é fundamental para a formação do estudante, o que pode ser

feito através de novas versões para as histórias de nosso folclore.

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Nesse trabalho, buscamos realizar o cotejo, mencionando elementos diversos na

narrativa que empresta uma nova roupagem à história recolhida.

Acreditamos que, embora esse trabalho não proporcione a publicação da história

que culminou com seu fechamento, outras foram recontadas durante a pesquisa, o projeto de

desenvolvimento das atividades proporcionou a propagação e, talvez, o interesse dos alunos

por esse aspecto cultural do nosso folclore.

Por meio da narrativa que figura no Apêndice A discordamos da afirmação de

Câmara Cascudo, que acredita que

Quem estudar a natureza humana verá, necessariamente, que quanto menor é o grau

de adiantamento de povo tanto maior é o poder impressionista e ilusório que o do-

mina. (...) A ilusão exerce um poderio tão enérgico sobre a imaginação do homem

inculto, que o faz conceber um terror invencível por certos fatos que o impressio-

nam. (...) A impressão, como a ilusão, influi diretamente sobre o poder imaginativo,

e daí as concepções obstinadas que abatem o espírito humano, e daí a constante

transfiguração dos fatos. (...) o espírito humano é muito suscetível à impressões que,

nele calando, se tornam firmes, imbatíveis como inscrições nas campas (1965, pp.

52,53).

Não é a crença que está em questão nos dias atuais, mas a perpetuação da fantasia,

da magia e do imaginário popular. O homem contemporâneo, em especial o que tem acesso

aos livros, não está sujeito às influências diretas sugeridas pelo autor. O que se propõe, com

esse trabalho, é mostrar um pouco do nosso folclore, em nenhum momento afirmando que se

deve ou não crer em tais histórias, muito embora alguns creiam nelas, como citado anterior-

mente.

Tomando por base as ideias de Todorov (apud CUNHA, 1997, pp. 71-96), pode-

mos afirmar que a dialogia é natural, pois

A vida é dialógica por natureza. Viver significa participar de um diálogo, interrogar,

escutar, responder, concordar, etc. Toda comunicação verbal, toda interação verbal

se realiza em forma de uma troca de enunciados (grifos do autor), em forma de diá-

logo. Duas obras verbais, dois enunciados justapostos um ao outro, entram numa es-

pécie particular de relações semânticas que chamamos dialógicas. As relações dialó-

gicas são relações (semânticas) entre todos os enunciados no seio da comunicação

verbal.

E se dialogamos, interrogamos, escutamos, respondemos e concordamos, estaremos refletindo

sobre o que é comunicado, logo, podemos discordar do que chega até nós, pois, "A compreen-

são é o cotejo de um texto com os outros textos", como nos diz Bakhtin. (...) O texto só vive

em contato com outro texto (contexto)" (1992, p. 404).

Essa reflexão, então, traz novas interpretações, como a que aparece no apêndice A

desse trabalho, pois

O enunciado nunca é simples reflexo ou expressão de algo que lhe preexistisse, fora

dele, dado e pronto. O enunciado sempre cria algo que, antes dele, nunca existira,

algo novo e irreproduzível, algo que está sempre relacionado com um valor. [...]

qualquer coisa se cria sempre a partir de uma coisa que é dada [...]. O dado se trans-

figura no criado (BAKHTIN, 1992, p. 348).

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Então, através do cotejo, verificou-se que dialogia e polifonia estão presentes em

nosso viver literário, resgantando antigas vozes, dialogando com aspectos novos e criando a

partir do que é dado. Voese nos ensina que

A dimensão dialógica e o caráter polifônico do discurso que se efetivam na interação

permitem entender que, como resultado da diversidade, o produto da atividade hu-

mana pode ter diferentes finalidades, ou seja, as coisas produzidas pelo homem po-

dem estar comprometidas com diferentes valores e ocupar diferentes lugares nas hie-

rarquizações (2005, p. 385).

Nesse contexto, verificamos que essa diversidade se apresenta no caráter social da

figura do lobisomem: marginalizada, personificação do mal, ganha nova voz com a obra de

Rowling, que apresenta o embate interno entre o bem e o mal e a luta que a personagem de

sua obra, personificada em Remo Lupin, trava contra a fera que vive adormecida dentro dele,

despertada pela lua cheia, da mesma forma como é apresentada no apêndice A, onde a nature-

za humana prevalece sobre a fera.

Ora, se para LUFT (2001, p. 209) a cultura é o ―conjunto de experiências humanas

(conhecimentos, costumes, instituições, etc.) adquiridas pelo contato social e acumuladas pe-

los povos através dos tempos‖, é pertinente resgatar os contos para preservar a cultura, pois

para XIMENES (2001, p. 444), o folclore é o ―conjunto de tradições, conhecimentos e cren-

ças de um povo, expressas em seus usos, lendas, canções, provérbios, etc.‖ Assim, essa cultu-

ra popular precisa ser resgatada, pois o avanço das sociedades esquece tradições, transforma

conhecimentos e adota outras crenças ou abandona as antigas. Portanto, faz-se necessário o

resgate e o registro, também, através de uma nova perspectiva que adapte o folclórico e o no-

vo ou o folclórico ao novo, como o fizeram os autores citados no capítulo anterior.

Dessa forma, para atingir plenamente os objetivos desse trabalho, não são realiza-

das apenas a investigação dos contos orais, mas uma catalogação/compilação, a exemplo das

obras de Câmara Cascudo e Franklin Cascaes, que configura o apêndice A, e ainda um re-

conto da narrativa, promovendo um cotejo entre outros textos e elementos folclóricos, mos-

trando uma dialogia e polifonia possíveis para essa proposta, a exemplo das obras menciona-

das no capítulo cinco.

Sugerimos, portanto, que o assunto, longe de ter-se esgotado aqui, venha a ser ob-

jeto de outros trabalhos, onde há espaço para o estudo de autores, como Câmara Cascudo e

Franklin Cascaes, e de suas obras; ou o aparecimento das lendas urbanas, possíveis desdo-

bramentos do antigo folclore, bem como a imensa quantidade de contos orais de nossa região,

que oferecem variado e rico material de estudos.

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REFERÊNCIAS

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BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1986.

______. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981.

______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

BICHO PAPÃO - Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Pap%C3%A3o> Acesso em

22.04.2006.

CASCUDO, Luís da Câmara. Antologia do Folclore brasileiro. São Paulo: Martins, 1965.

CEREJA, William R., MAGALHÃES, Thereza C., Português: Linguagens. São Paulo: Atu-

al, 2003.

CHAUÍ, Marilena. Filosofia. São Paulo: Ática, 2001.

CIÊNCIA HOJE DAS CRIANÇAS Disponível em <http://ich.unito.com.br/view/2926>

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Cotejo – Disponível em <http://paginas.terra.com.br/arte/dubitoergosum/simp12.htm> Acesso

em 06.11.2006

CUNHA , D . A . C . Bakhtin e a Lingüística Atual : Interlocuções. In: BRAIT, B. (org).

Bakhtin, Dialogismo e Construção do Sentido. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.

Biógrafo - Disponível em <http://www.terrabrasileira.net/folclore/biografo/cascudo.html>

Acesso em 22.06.2006.

BRYANT, Robyn, A pequena sereia. São Paulo: Oriangest, 1996.

ENCICLOPÉDIA UNIVERSAL MULTIMÉDIA ON-LINE Disponível em

<http://www.universal.pt/scripts/hlp/hlp.exe/artigo?cod=6_61> Acesso em 21.04.2006.

FERREIRA, Aurélio B. de H. Mini Aurélio Escolar século XXI. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 2001.

Fundação Franklin Cascaes. Disponível em

<http://www.pmf.sc.gov.br/franklincascaes/index.php?link=institucional&sublink=sobre>

Acesso em 07.04.06

Jornal A Notícia. Disponível em <http://www.an.com.br/2002/jul/01/0ane.htm> Acesso

em 07.04.2006.

Jornal da USP ano XVIII. Disponível em

<http://www.usp.br/jorusp/arquivo/2003/jusp659/pag17.htm> Acesso em 22.06.2006

LAROUSSE, Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Ática, 2001.

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LEWIS, C. S., As Crônicas de Nárnia. Volume único. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

LUFT, Celso Pedro, Minidicionário Luft. São Paulo, Ática, 2001.

MACHADO, Irene, Literatura e Redação. São Paulo: Scipione, 1994

Memória viva de Câmara Cascudo. Disponível em

<http//:www.Memoriavivadecamaracascudo1.htm> Acesso em 06.04.2006.

Ministério da Educação. Fundação Joaquim Nabuco. Pesquisa escolar. Luís da Câmara Cas-

cudo. Disponível em <http://www.fundaj.gov.br/docs/pe/pe0020.html>. Acesso em 06 abril

2006.

NICOLA, José de, CAVALLETTE, Floriana, TERRA, Ernani, Português para o Ensino

Médio. São Paulo: Scipione, 2002.

RODELLA, Gabriela, et. all. Português, a sua língua. São Paulo: Nova Geração, 2005.

ROWLING, Joanne K.Harry Potter e a Câmara Secreta. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

ROWLING, Joanne K.Harry Potter e a Ordem da Fênix. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.

ROWLING, Joanne K.Harry Potter e a Pedra Filosofal. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

ROWLING, Joanne K.Harry Potter e o Cálice de Fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.

ROWLING, Joanne K.Harry Potter e o enigma do Príncipe. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

ROWLING, Joanne K.Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban. Rio de Janeiro: Rocco,

2000.

SARMENTO, Leila L., TUFANO, Douglas. Português. São Paulo:Moderna, 2004.

TOLKIEN, J. R. R. O Senhor dos Anéis – Trilogia completa. São Paulo: Martins Fontes,

2001.

TOLKIEN, J. R. R. O Hobbit. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

TOLKIEN, J. R. R. O Silmarillion. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

VIDEOTEXTO.TV Disponível em

<http://www.videotexto.tv/fantastica_literatura_cinema.html> Acesso em 21.04.2006

VOESE, Ingo. Vozes sociais citadas e sobrepostas: a polifonia e a dialogia. Linguagem em

(Dis)curso, Tubarão, v. 5, n. 2, p. 357-388, jan./jun. 2005.

XIMENES, Sérgio. Minidicionário Ediouro de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Ediou-

ro, 2001.

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ANEXO A – COMPILAÇÃO DE ALGUNS CONTOS RECOLHIDOS

A arca

Voltando da praia para casa, por volta da meia noite, subindo uma elevação, um ho-

mem viu árvores da floresta de eucaliptos, que ladeava a estrada, se curvarem sobre ele. As-

sustado, saiu correndo, olhou para trás e viu, saindo da floresta, uma pessoa toda vestida de

branco. De longe, parecia um homem. Ainda mais assustado, apressou-se para chegar em casa.

Alguns metros antes de chegar, dois outros homens pareciam aguardá-lo. Quando o viram,

começaram a chamá-lo. Carregavam uma arca e insistiam para que o homem tirasse o que

havia dentro dela. Nesse momento, um vendaval caiu sobre o local. O homem saiu correndo e

trancou-se em casa. Nunca mais viu aqueles homens.

Bola de fogo33

- Versão I

Há alguns anos, aparecia uma luz no sambaqui do Camacho que se movimentava,

passava por algumas casas e depois desaparecia.

Bola de fogo – Versão II

Na localidade de Morro da Cruz vivia uma família que, de geração em geração, pas-

sava à filha mais velha, quando essa completava 15 anos, um colar de pérolas. A última mu-

lher da família que herdou o colar, ao lavar roupas num açude muito fundo que ficava na pro-

priedade da família, acabou por perdê-lo nas águas. Ela, então, mergulhou para recuperá-lo,

morrendo afogada. A partir daquela data, passou a aparecer nas redondezas uma bola de fogo

que atraía as pessoas para o açude: dizem que é a moça, pedindo ajuda para recuperar seu co-

lar.

A cadela do Camacho

Conta a lenda que uma moça, ao completar 22 anos, debochou das coisas34

que as

pessoas mais velhas contavam, e disse que era tudo uma grande mentira. Acreditaria apenas se

ela se transformasse em uma cachorra. Passados sete dias, a moça sumiu. De acordo com as

33

Acredita-se que, por se tratar de um sambaqui, seja fogo fátuo, que é proveniente de um gás que se desprende

de cadáveres em decomposição. Como os sambaquis são verdadeiros cemitérios, é possível que ainda haja gás,

mesmo não havendo sepultamentos neles há muitos anos. É possível que o movimento seja parte da imaginação

local. Pode-se acrescentar que esse fenômeno está ligado à lenda do boi-tatá, pois este, à distância, dá a impres-

são de ser uma bola de fogo. 34

Essas coisas creio que sejam elementos da superstição dos moradores.

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pessoas do povoado, viveu por sete anos em forma de cachorra, errante pelas ruas. Quando

recuperou a forma humana, não se lembrava de nada, mas passou a acreditar nas lendas conta-

das pelos mais velhos.

Cabelos de fogo

Numa noite tempestuosa, aparecia um cão que ninguém vira antes. O cão da família

se encolhia e gemia de medo. O cão estranho arranha a porta e, de repente, transforma-se num

enorme homem peludo com os cabelos de fogo que diz que, se não abrirem a porta, matará o

cão. Ninguém abre a porta, com muito medo, e o cão está morto na manhã seguinte.

O ouro dos Jesuítas

Na época das missões, os jesuítas que vieram catequizar os índios da região trouxe-

ram consigo toda a sorte de tesouros. Por segurança, resolveram enterrá-los. Para marcar o

lugar, plantaram uma árvore. Como houve muitas mortes no decorrer da época em que estive-

ram aqui, inclusive em confrontos com os índios, muitos destes esconderijos ficaram intoca-

dos. Então, cada vez que alguém se aproxima de uma destas árvores, à noite, sozinho, aparece

uma vela mostrando o lugar. Acredita-se que apenas depois que o ouro for desenterrado a alma

que mostra onde está o tesouro descansará.

Luz para o pescador

Um homem tinha um filho que trabalhava no Rio Grande35

como pescador. To-

dos os anos ele retornava no dia 30 de outubro e ficava na casa dos pais até o início do ano

novo, quando retornava para o Rio Grande. Um dia ele se atrasou, chegando no dia 31, foi

assaltado e esfaqueado antes do anoitecer. A família não sabia do ocorrido e seu pai, à noite,

não conseguia dormir. Foi, então, postar-se à frente da casa para esperar pelo filho. Viu muitas

pessoas caminhando pelo descampado, todas com velas nas mãos, exceto o último da fila, em

quem ele reconheceu o próprio filho. Pensando estar tonto pelo sono, concluiu que estivesse

tendo alucinações por causa da preocupação com o filho. Na manhã seguinte, contou à mulher,

que disse ser um sinal de que o filho estava morto, precisando que se acendessem velas. O

velho escarneceu da esposa, mas no dia seguinte receberam a notícia do assassinato. O velho

foi para o descampado e acendeu muitas velas. A ‗miragem‘ do pescador nunca mais foi vista.

O alvoroço dos bichos

35

Cidade do Rio Grande do Sul, margeada pela Lagoa dos Patos, pólo pesqueiro da região.

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Em algumas noites, os animais alvoroçavam-se, os cavalos corriam, as galinhas caca-

rejavam espantadas, os cães latiam bravos para o nada. Numa dessas noites, o velho levantou

da cama, como hipnotizado, em direção à lavoura. Seu filho passou a observar e percebeu que,

nessas noites de alvoroço, o velho saía de casa. Ele decidiu segui-lo. Saindo em seu encalço,

chamou, gritou, mas não conseguia resposta. Numa noite, antes de partir para a roça, o velho

levou consigo uma corda. Apesar dos esforços do filho, não conseguia impedir o velho, que

pretendia enforcar-se. O rapaz, então, ajoelhou-se em sua frente e começou a rezar. Dali em

diante, tudo mudou: o velho voltou para casa, deixou de ser calado e alienado, e nunca mais

saiu durante a noite e tudo voltou ao normal.

A cura do Lobisomem

Conta a lenda que um rapaz, filho de uma velha senhora, moradores do bairro de Congonhas,

era lobisomem. Ele quase não saía do sítio onde morava, mas apaixonou-se por uma bela mo-

radora da região. A família não aceitava o envolvimento dos dois, mas, sob a ameaça de fugir

para morar com o rapaz depois que a mãe dele faleceu, a família concordou com o casamento,

que se realizou na casa da moça. Os moradores do bairro atribuíam a ele a transformação em

lobisomem nas noites de lua cheia, inclusive organizando expedições de busca, que nunca iam

muito longe, para caçar o bicho. Entretanto, depois do casamento, as aparições do lobisomem

não aconteceram mais, nem os animais foram atacados. Os moradores acreditam que o amor

da esposa e uma receita para curar o rapaz, que exige muita coragem, foram as responsáveis

pela resolução do problema. A receita fora ensinada por uma viúva que vivia num povoado

distante. É preciso espetar o coração do lobisomem, durante a transformação, com um espinho

de laranjeira, dentro de um cemitério. Depois de curar o marido, o casal mudou do povoado e

nunca mais se teve notícias deles.

O lobisomem na ponte

Um homem saiu à noite para ir ao boteco. Eram cerca de oito da noite e ele usava o

chapéu de palha de sua mãe. Atravessava uma ponte de uns 15 metros, quando, de repente foi

atacado por um enorme cão. Ele não conseguia se desvencilhar do animal, apenas se debater e

gritar. Um dos moradores do povoado, que estava próximo da ponte, ouvindo os gritos, veio

para socorrer quem estivesse em apuros. Mas, tão logo chegou à cabeceira da ponte, o animal

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sumiu. O vizinho não acreditava no que acabara de ver, mas quando o homem se levantou e

ele viu o estado de suas roupas, não teve dúvidas: só poderia ser o lobisomem!

Lendas sobre a origem do lobisomem

A maldição está no sétimo filho: uma mulher que tem seis filhos, tendo um sétimo, fa-

talmente esse terá a maldição da lua cheia;

Um casal que tem mais de sete filhos, o sétimo carrega a maldição: se for mulher, será

bruxa, se for homem, será lobisomem;

Ao nascer o sexto filho do casal, esse deve ser batizado como Sebastião, se for ho-

mem, e como Benta, se for mulher, quebrando a maldição da linhagem. Assim, o séti-

mo filho não carregará nenhuma maldição;

Os lobisomens transformam-se nas encruzilhadas, sempre à luz da luz cheia;

A fera deve procurar o cemitério antes de raiar o sol;

A fera foge para transforma-se longe dos olhos das pessoas, pois o espetáculo é horrí-

vel;

O lobisomem prefere atacar crianças que ainda não foram batizadas.36

36

Essa afirmação nos leva a crer que seja uma das razões da pressa em batizar os recém-nascidos.

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ANEXO B – CÓPIAS DE TRABALHOS DE ALGUNS ALUNOS

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Optou-se por omitir os nomes dos alunos para preservar suas identidades.

A lua do homem de branco e o Lobisomem

Primeira página

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Segunda página

Lobisomem

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Lobisomem

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Lobisomem

Luz estranha – Possível Versão para o Boitatá

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Primeira versão para Maria Sangrenta

Segunda versão para Maria Sangrenta

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Mula-sem-cabeça

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Fantasmas

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ANEXO C – BIBLIOGRAFIA DE LUÍS DA CÂMARA CASCUDO

Livros

001 – Alma Patrícia, crítica literária – Atelier Typ. M. Vitorino, 1921

002 – Histórias que o tempo leva – Ed. Monteiro Lobato, S. Paulo, (out. 1923), 1924.

003 – Joio – crítica e literatura – Of. Graph. d‘A Imprensa, Natal (jun), 1924

004 – Lopez do Paraguay – Typ. d‘A República, 1927

005 – Conde d‘Eu – Ed. Nacional, 1933

006 – O homem americano e seus temas – Imprensa Oficial, Natal, 1933

007 – Viajando o sertão – Imprensa Oficial, Natal, 1934

008 – Em memória de Stradelli – Livraria Clássica, Manaus, 1936

009 – O Doutor Barata – Imprensa Oficial, Bahia, 1938

010 – O Marquês de Olinda e seu Tempo – Ed. Nacional, S. Paulo, 1938

011 – Governo do Rio Grande do Norte – Liv. Cosmopolita, Natal, 1939.

012 – Vaqueiros e Cantadores – (Globo, 1939) – Ed. Itatiaia, S. Paulo, 1984.

013 – Antologia do Folclore Brasileiro – Martins Editora, S. Paulo, 1944

014 – Os melhores contos populares de Portugal – Dois Mundos, 1944

015 – Lendas brasileiras – 1945

016 – Contos tradicionais do Brasil – (Col. Joaquim Nabuco), 1946 - Ediouro

017 – Geografia dos mitos brasileiros – Ed. José Olímpio, 1947. 2ª edição, Rio, 1976.

018 – História da Cidade do Natal – Prefeitura Mun. do Natal, 1947

019 – Os holandeses no Rio Grande do Norte – Depto. Educação, Natal, 1949

020 – Anubis e outros ensaios – (Ed. O Cruzeiro, 1951), 2ª edição, Funarte/UFRN, 1983

021 – Meleagro – Ed. Agir, 1951 – 2ª edição, Rio, 1978

022 – Literatura oral no Brasil – Ed. José Olímpio, 1952 – 2ª edição, Rio, 1978

023 – Cinco livros do povo – Ed. José Olímpio, 1953 – 2ª edição, ed. Univ. UFPb, 1979.

024 – Em Sergipe del Rey – Movimento Cultural de Sergipe, 1953

025 – Dicionário do Folclore Brasileiro – INL, Rio, 1954 – 3ª edição, 1972

026 – História de um homem – (João Câmara) – Depto. de Imprensa, Natal, 1954

027 – Antologia de Pedro Velho – Depto. de Imprensa, Natal, 1954

028 – História do Rio Grande do Norte – MEC, 1955

029 – Notas e documentos para a história de Mossoró – Coleção Mossoroense, 1955

030 – Trinta ―estórias‖ brasileiras – ed. Portucalense, 1955

031 – Geografia do Brasil Holandês – Ed. José Olímpio, 1956

032 – Tradições populares da pecuária nordestina –MA-IAA n.9, Rio, 1956

033 – Jangada – MEC, 1957

034 – Jangadeiros – Serviço de Informação Agrícola, 1957

035 – Superstições e Costumes – Ed. Antunes & Cia, Rio, 1958

036 – Canto de Muro – Ed. José Olímpio, (dez. 1957), 1959

037 – Rede de dormir – MEC (1957), 1959 – 2ª edição, Funarte/UFRN, 1983

038 – Ateneu Norte-Rio-Grandense – Imp. Oficial, Natal, 1961

039 – Vida breve de Auta de Souza – Imp. Oficial, Recife, 1961

040 – Dante Alighieri e a tradição popular no Brasil – PUC, Porto Alegre, 1963 – 2ª edição

Fundação José Augusto (FJA), Natal, 1979

041 – Dois ensaios de História – (Imp Oficial Natal, 1933 e 1934) Ed. Universitária, 1965

042 – História da República do Rio Grande do Norte – Edições do Val, Rio, 1965

043 – Made in África – Ed. Civilização Brasileira, 1965

044 – Nosso amigo Castriciano – Imp. Universitária, Recife, 1965

045 – Flor dos romances trágicos – Ed. Cátedra, Rio, 1966 – 2ª ed. Cátedra/FJA, 1982

046 – Voz de Nessus – Depto. Cultural, UFPb, 1966

047 – Folclore no Brasil – Fundo de Cultura, Rio, 1967 – 2ª edição, FJA, Natal;, 1980

048 – História da alimentação no Brasil – Ed. Nacional ( 2 vol) fev. 1963), 1967, (col. Brasi-

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liana 322 e 323) – 2ª ed. Itatitaia, 1983

049 – Jerônimo Rosado (1861-1930) – ed. Pongetti, Rio, 1967

050 – Seleta, Luís da Câmara Cascudo – Ed. José Olímpio, Rio, 1967 – org. por Américo de

Oliveira Costa. – 2ª Ed. 1972.

051 – Coisas que o povo diz – Bloch, 1968

052 – Nomes da Terra – Fundação José Augusto, Natal, 1968

053 – O tempo e eu – Imp. Universitária – UFRN, 1968

054 – Prelúdio da cachaça – IAA, (maio, 1967), 1968

055 – Pequeno manual do doente aprendiz – Ed. Universitária – UFRN, 1969

056 – Gente viva – Ed. Universitária UFPe, 1970

057 – Locuções tradicionais no Brasil – UFPE, 1970 – 2ª edição, MEC, Rio, 1977

058 – Ensaios de etnografia brasileira – INL, 1971

059 – Na ronda do tempo – Ed. Universitária, UFRN, 1971 (livro biográfico)

060 – Sociologia do Açúcar – MIC – IAA, 1971. Coleção Canavieira n. 5

061 – Tradição, ciência do povo – Perspectiva, S. Paulo, 1971

062 – Ontem – (maginações) – Ed. Universitária UFRN, 1972

063 – Uma História da Assembléia Legislativa do RN – FJA, 1972

064 – Civilização e cultura (2 vol.) – MEC/Ed. José Olímpio, 1973

065 – Movimento da independência no RN – FJA, 1973

066 – O Livro das velhas figuras – (6 vol.) – 1, 1974; 2, 1976; 3, 1977; 4, 1978; 5, 1981; 6,

1989 – Inst. Histórico e Geográfico do RN

067 – Prelúdio e fuga do real – FJA, 1974

068 – Religião no povo – Imprensa Universitária, UFPb, 1974

069 – História dos nossos gestos – Ed. Melhoramentos, 1976

070 – O Príncipe Maximiliano no Brasil – Kosmos editora, 1977

071 – Antologia da alimentação no Brasil – Livros Técnicos e Científicos ed., 1977

072 – Três ensaios franceses, FJA, 1977 (do ―Motivos da Literatura Oral da França no Bra-

sil‖, Recife, 1964 – Roland, Mereio e Heptameron)

073 – Mouros e Judeus – Depto. de Cultura, Recife, 1978

074 – Superstição no Brasil – Itatiaia, S. Paulo, 1985

Plaquetes

075 – Da poesia popular narrativa no Brasil – Universidade Nacional do México, 1971

076 – Ás de Vila Diogo – Museu de Etnografia e História – Junta Distrital do Porto

077 – Assunto gago – Museu de Etnografia e História – Junta Distrital do Porto

078 – Ceca e Meca – Museu de Etnografia e História – Junta Distrital do Porto

079 – O morto no Brasil – Museu de Etnografia e História – Junta Distrital do Porto

080 – Água do Lima no Capibaribe – Museu de Etnografia e História – Junta Distrital do Por-

to

081 – Visão do Folclore Nordestino – Museu de Etnografia e História – Junta Distrital do

Porto

082 – Uma nota sobre o cachimbo inglês – Museu de Etnografia e História – Junta Distrital do

Porto

083 – Folclore nos Autos Camoneanos – Museu de Etnografia e História – Junta Distrital do

Porto

084 – Divórcio no talher – Museu de Etnografia e História – Junta Distrital do Porto

085 – A cozinha africana no Brasil – Publicações do Museu de Angola, Luanda, 1964

086 – Ancha es Castilla! – Academia de Ciências de Lisboa, 1967

087 – Três notas brasileiras – Junta Distrital de Lisboa, 1970

088 – Conferência (Tricentenário dos Guararapes) – Arquivo Público, Recife, 1949

089 – A função dos arquivos – Arquivo Público Estadual, Recife, 1956

090 – Desplantes – Revista do Arquivo Municipal – S.Paulo

091 – Paróquias do Rio Grande do Norte – Depto. Imprensa, Natal, 1955

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092 – A família do Padre Miguelinho – Coleção Mossoroense, 1960

093 – Ateneu Norte-Riograndense – Coleção ―Juvenal Lamartine‖, Natal, 1961

094 – Breve História do Palácio da Esperança – Depto. Imprensa, Natal, 1961

095 – A vaquejada nordestina e sua origem – FJA, 1976

096 – Mitos brasileiros – Cadernos de Folclore n. 6, MEC, 1976

097 – Paliçadas e gases asfixiantes entre os indígenas da América do Sul – Ed. Biblioteca do

Exército, 1961

098 – Versos (Lourival Açucena) – Typ. A República, Natal, 1927

099– A Carnaúba – in Revista Brasileira de Goegrafia, p. 159 – IBGE, 1964

100 – Alexander Von Humboldt – 1969

101 – Natal – (Revista Potyguar), 1939 – Coleção Mossoroense, 199l

102 – Caraúbas, Assu e Santa Cruz – (Revista Potiguar, 1938), Coleção Mossoroense, 1991

103 – Paróquias do Rio Grande do Norte – Depto. Imprensa, 1955 – Coleção Mossoroense,

1992

104 – Três poemas de Walt Whitman – Imprensa Oficial, Recife, 1957 – Coleção Mossoroen-

se, 1992

105 – Mossoró e Moçoró – Coleção Mossoroense, 1991 – Consultando São João – Depto.

Imprensa, Natal, 1949

Mais plaquetes e outras publicações

106 - O mais antigo marco colonial do Brasil. 1934

107 - Intencionalidade no descobrimento do Brasil. Natal, 1935

108 - O homem americano e seus temas. Natal, 1935

109 - Uma interpretação da couvade. São Paulo, 1936

110 - Conversas sobre a hipoteca. São Paulo, 1936

111 - Os índios conheciam a propriedade privada. São Paulo, 1936

112 - O brasão holandês no Rio Grande do Norte. 1936

113 - Notas para a história do Ateneu. Natal, 1937

114 - O marquês de Olinda e o seu tempo. São Paulo, 1938

115 - Peixes no idioma tupi. Rio de Janeiro, 1938

116 - Governo do Rio Grande do Norte. Natal, 1939

117 - Informação de história e etnografia. Recife, 1940

118 - O nome potiguar. Natal, 1940

119 - O povo do Rio Grande do Norte. Natal, 1940

120 - As lendas de Estremoz. Natal, 1940

121 - Fanáticos da serra de João do Vale. Natal, 1941

122 - O presidente parrudo. Natal, 1941

123 - Seis mitos gaúchos. Porto Alegre, 1942

124 - Sociedade Brasileira de Folclore. 1942

125 - Lições etnográficas das Cartas Chilenas. São Paulo, 1943

126 - Antologia do folclore brasileiro. São Paulo, 1944

127 - Os melhores contos populares de Portugal. Rio de Janeiro, 1944

128 - Simultaneidade de ciclos temáticos afro-brasileiros. Porto, 1948

129 - Tricentenário de Guararapes. Recife, 1949

130 - Gorgoncion; estudo sobre amuletos. Madri, 1949

131 - Consultando São João. Natal, 1949

132 - Ermet Mell‘Acaia e la consulta degli oracoli. Nápoles, 1949

133 - O folclore nos autos camponeanos. Natal, 1950

134 - Custódias com campainhas. Porto, 1951

135 - Conversa sobre direito internacional público. Natal, 1951

136 - Os velhos estremezes circenses. Porto, 1951

137 - Atirei um limão verde. Porto, 1951

138 - Com Dom Quixote no folclore brasileiro. Rio de Janeiro, 1952

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139 - A mais antiga igreja do Seridó. Natal, 1952

140 - O fogo de 40. Natal, 1952

141 - O poldrinho sertanejo e os filhos do vizir do Egito. Natal, 1952

142 - Tradicion de un cuento brasileño. Caracas, 1952

143 - História da imperatriz Porcina. Lisboa, 1952

144 - A origem da vaquejada do nordeste brasileiro. Porto, 1953

145 - Álguns jogos infantis no Brasil. Porto, 1953

146 - Casa dos surdos. Madri, 1953

147 - Contos de encantamento. 1954

148 - Contos exemplares. 1954

149 - No tempo em que os bichos falavam. 1954

150 - Comendo formigas. Rio de Janeiro, 1954

151 - Os velhos caminhos do Nordeste. Natal, 1954

152 - Cinco temas do Heptameron na literatura oral. Porto, 1954

153 - Pereira da Costa, folclorista. Recife, 1954.

154 - Lembrando Segundo Wanderley. Natal, 1955

155 - Notas sobre a paróquia de Nova Cruz. Natal, 1955

156 - Leges et consuetudines nos costumes nordestinos. Havana, 1955

157 - História do município de Santana do Matos. Natal, 1955

158 - Vida de Pedro Velho. Natal, 1956

159 - Comadre e compadre. Porto, 1956

160 - Tradições populares da pecuária nordestina. Rio de Janeiro, 1956

161 - Universidade e civilização. Natal, 1959

162 - A noiva de arraiolos. Madri, 1960

163 - Temas do Mireio no folclore de Portugal e Brasil. Lisboa, 1960

164 - Conceito sociológico do vizinho. Porto, 1960

165 - Etnografia e direito. Natal, 1961

166 - Grande fabulário de Portugal e Brasil. Lisboa, 1961

167 - Motivos da literatura oral da França no Brasil. Recife, 1964

168 - Prelúdio e fuga. Natal, [1966] 107.Voz de Nessus (inicial de um Dicionário brasileiro de

superstições). Paraíba, 1966

169 - Mouros, franceses e judeus; três presenças no Brasil. Rio de Janeiro, 1967

Outras traduções e anotações

170 - Açucena, Lourival. Versos reunidos. 1920

171 - Montaigne e o índio brasileiro. São Paulo, 1940. Tradução e notas do capítulo ‗Des ca-

niballes‘, dos Essais

172 - Koster, Henri. Viagens ao Brasil. São Paulo, 1942. Tradução e notas

173 – Viagens ao Nordeste do Brasil – Henry Koster (tradução comentada) Estado de Per-

nambuco, 1942 e 2ª ed. 1978

174 - Harrt, Charles Frederick. Os mitos amazônicos da tartaruga. 1952

175 - Romero, Sílvio. Contos populares do Brasil. Rio de Janeiro, 1954. Introdução e notas.

176 - Romero, Sílvio. Cantos populares do Brasil. 2

177 - Barbosa, Domingos Caldas. Poesia. 1958

178 - Nobre, Antônio. Poesia. 1959

179 - Melo Moraes Filho. Festas e tradições populares do Brasil. Belo Horizonte, 1979. Revi-

são e notas

180 - Melo Moraes Filho. Os ciganos e cancioneiro dos ciganos. Belo Horizonte, 1981. Revi-

são e notas.

Inéditos

181 - História da literatura norte-riograndense

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182 - História do município do Ceará-Mirim

183 - História do Rio Grande do Norte para as escolas

184 - História da carnaúba

185 - Nomes de ruas e praças da cidade do Natal

186 - O livro dos patronos

187 - Brazilian Folk-lore

188 - J. Poranduba Amazonense, de Barbosa Rodrigues

189 - Mitologia indígena do Amazonas, de Charles Frederick Hartt

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APÊNDICE A – UMA HISTÓRIA RECONTADA

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À GUISA DE PRÓLOGO

Nessa narrativa, optamos por aproximar a grafia da linguagem falada. Muitos des-

vios do padrão podem ser observados, mas a opção por eles deu-se na tentativa de fazer com

que os diálogos estejam registrados da forma mais fiel possível ao que ocorreriam.

Os desvios do padrão podem ser observados, principalmente, nas conjugações ver-

bais e nas colocações pronominais: deu-se preferência à próclise, como na linguagem colo-

quial, pois a forma de narrar foi observada durante histórias contadas à beira da cama, como

nos velhos tempos. Assim, a forma sincopada da preposição para foi, também, preferida, utili-

zando-se, então o termo pra em grande número de sentenças, inclusive quando a ocorrência se

dá com a contração da preposição pra com os artigos definidos, nos dois gêneros e número.

Opta-se, portanto, pela não uniformidade na escrita e prevalecem, no decorrer do texto, os

coloquialismos e as gírias, utilizando-se a preposição em ao invés de a antes de substantivos

que nomeiam lugares como casa e fonte.

As personagens são fictícias, embora tenham sido inspiradas em pessoas reais que

emprestaram suas personalidades. O termo feitiçaria é usado como sinônimo de religião e não

de forma pejorativa.

Parafraseando Marcos Bagno em seu Preconceito linguístico, o brasileiro fala dife-

rente, e não errado. Atrevo-me a afirmar que a identidade do brasileiro apresenta-se, princi-

palmente, na língua. E se o objetivo desse trabalho é resgatar o folclore, as características que

são nossas, nada mais pertinente que fazê-lo da maneira mais fiel: recontar, perceber a dialo-

gia e a polifonia através do cotejo, mas a exemplo dos modernistas, com identidade própria.

To see or not to see, that‘s the question: ver ou não ver – o que é nosso e a nós

mesmos – eis a questão!

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Os Pequenos Feiticeiros e a maldição do Lobisomem

Elita de Medeiros

- "Atenção!... Aqui e agora!"...

... "Aqui e agora é a verdade."

Aldous Huxley

A Ilha

Para os meus filhos, que foram os primeiros a ouvir essa história.

Capítulo I – Uma história mal contada

Eles eram irmãos: duas meninas e um menino, filhos de uma professora viúva e

pareciam não ter medo de nada. Eram bons na escola, mesmo não sendo muito aplicados aos

estudos. O segredo era aproveitar ao máximo o tempo em sala de aula. O tempo livre seria

uma descoberta.

Como a mãe trabalhava muito, sempre envolvida em projetos educacionais, passa-

vam as férias na casa de parentes. A mais velha tinha treze anos. Garota esperta e tremenda-

mente curiosa lia tudo o que caía em suas mãos. Seu nome era Érica, mas preferia ser chama-

da de Queca. O menino era o irmão do meio, dois anos mais jovem que Queca e um pouco

mais preguiçoso, se aproveitava do gosto da irmã pela leitura para poder ouvir, assim não pre-

cisava ler. Freqüentemente os três se reuniam num dos quartos do apartamento em que mora-

vam pra que ela lesse e os dois mais jovens a ouvissem. As meninas o chamavam de Nando,

pois seu nome era Fernando. A mais jovem, Carolina, de nove, apelidaram Carola.

Mas o que os três mais gostavam de ouvir eram as histórias que os parentes mais

velhos contavam. Para aquelas férias estavam planejando, desde muito antes de começarem, ir

para a casa da avó paterna, que ficava num povoado afastado da cidade, onde existia uma

densa floresta de eucaliptos. Eles contavam os dias para a aventura começar. É que numa das

visitas da avó, ela lhes contara uma história muito misteriosa...

- Vó, conta uma daquelas ―mentiras cabeludas‖ que a senhora diz que aconteceram

―na Congonha, nas antigas...‖ - os três estavam prontos para dormir e a avó os acompanhara

até o quarto.

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- Que linguajar feio, Fernando! O que é ―nas antigas‖?

- Ô, Vó, vais dizer que não sabes que ―nas antigas‖ é ―no tempo do guaraná de ro-

lha‖?

- Nando, não enche a Vó com esse ―palavreado de trombadinha‖. Vó, conta uma

das histórias antigas, daquelas que o vovô João contava para a senhora, quando criança...

- Ah, bom, Carola, ele queria dizer histórias antigas... É que no meu tempo não se

usava esse linguajar.

- Vocabulário, Vó. Linguajar é uma palavra que ninguém mais usa. Conta uma

bem aterrorizante, vai.

- Érica, tu não tens pesadelos à noite, depois de ouvir essas histórias?

- Claro que não! Eu sonho que sou a heroína das histórias. Como as que a Senhora

conta nunca se resolvem, eu sonho que dou um jeito em todos os mistérios. Vai, conta um

bem cabeludo.

- Cabeludo como? De lobisomem?

- É, de lobisomem, Vó! – disse Fernando, de pé sobre a cama – aí a gente sonha

que vai matar o bicho! - disse, empunhando uma agulha de tricô somo se fosse uma espada.

- Deita aí, menino! Agulha de tricô não é brinquedo! – disse, tirando-lhe o objeto

da mão e guardando numa gaveta. - Bom, se vocês querem de lobisomem, me deixem pensar

um pouco para ver se lembro de alguma.

- De preferência uma nova, uma que ainda não tenha nos contado. - falou Fernan-

do, desta vez deitando-se, a avó a lhe ajeitar os cobertores.

- Bom, deixa ver... Ah, sim! Meu pai contava que existia um homem que morava

em Congonhas que todos diziam ser um lobisomem. Mas nunca se pôde provar nada. E depois

que ele se casou, parou de se transformar...

- Isso, Vó, conta essa! - Pediu Carola.

- Isso, Vó, conta essa mentira, parece bem cabeluda...

- Que coisa mais feia, Nando! Desse jeito a Vó nem vai querer contar a história!

- Queca, não enche. E fecha a boca, senão a Vó não vai contar é nada!

- Tá bom, crianças, mas fiquem bem quietinhos e fechem os olhos.

- A senhora quer que a gente feche os olhos para dormir logo, mas isso não dá cer-

to. A gente fica imaginando as histórias e quer saber logo o final. Mas as que a senhora conta

só têm pé, porque cabeça que é bom...

- Fernando! – disseram as meninas juntas.

- Tá bom, tá bom, já fechei o depósito de besteiras! Entregas só amanhã de ma-

nhã...

- Acho bem bom! – Disse Érica, que já estava ficando irritada.

Fernando era sempre assim: não perdia uma única oportunidade de se divertir, não

importava à custa de quem fosse. Sua vítima preferida era a avó, sempre paciente com eles e,

por que não dizer, condescendente demais pelo fato de terem perdido o pai tão cedo. Ela se

fazia presente sempre que podia e ajudava a mãe deles em muitas coisas, no que fosse preciso.

Depois da morte do pai, a mãe das crianças voltou a dar aulas e mergulhou de vez nos estu-

dos: quase nove anos depois, ela não se casara de novo, nem tivera namorado. Parecia que os

anos não se passavam para ela, mas nunca mais se interessara por ninguém.

Depois de falar muito, finalmente sossegaram e Dona Ester, a avó, pôde come-

çar a história:

- Perto da divisa entre Tubarão e Jaguaruna, onde hoje é uma fazenda, há muitos

anos, não existia coisa alguma. Quase não tinha moradores por lá. O falecido papai contava

que só tinha uma casinha, muito velha, no meio do capoeirão, onde morava uma velha senho-

ra e seu filho. O rapaz, mesmo sendo muito bonito, não tinha namorada. Também não tinha

amigos e nem mesmo freqüentava o bar, o único que tinha em Congonhas naquela época. Es-

se fato se passou quando o bisavô de vocês era moço.

- Então, no ―tempo do guaraná de rolha...‖

- Não interrompe, Nando! – disse Carola.

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- É, Nando, não me interrompa. Na verdade eu nem sei se naquele tempo já se fa-

bricava a bebida do guaraná, quanto mais de rolha. Mas voltando à história, esse moço era

muito estranho para os outros moradores. Vocês sabem que em lugar pequeno todo mundo se

conhece, conversa, mas ele não era muito de ―dar os beiços‖ a falar com os outros. Papai nos

contou que, com o tempo, a mãe do rapaz, que já era bem velhinha, morreu. Depois disso

mesmo que ele quase não saiu mais de casa: só vinha na praça para comprar comida, e ainda

assim, bem pouco, porque ele plantava e colhia quase tudo o que precisava. Ninguém jamais

soube de onde vinha o dinheiro que usava para comprar o que precisava porque seu único

trabalho era cuidar do sítio e, como não tinha amigos, não vendia nada do que produzia lá.

Mas dizem que ele nunca comprou nada fiado: não devia nada a ninguém. O certo é que, co-

mo ele era muito calado, tudo o que acontecia de estranho, diziam que era ele que fazia.

Naquele tempo, as pessoas eram muito supersticiosas, e acreditavam em muita coi-

sa que hoje em dia ninguém acredita mais. Diziam que no capoeirão tinha saci, mula sem ca-

beça e, o pior de todos: o lobisomem!

Como o dito rapaz não dava conversa pra ninguém, começaram a dizer que o lobi-

somem era ele. Ninguém foi atacado, mas nas noites de lua cheia, ouviam uivos de arrepiar, e

se os animais não estivessem bem presos, coitadinhos, viravam comida de lobisomem!

Mas não existe cura para quem vira lobisomem. Se um homem for atacado e mor-

dido por um bicho destes, ele passa a se transformar no monstro todas as vezes que a lua fica

cheia. E esse rapaz, um dia, se apaixonou pela filha da Dona Noquinha.

- Quem é a Dona Noquinha? – Perguntou Érica, muito interessada.

- Ah, ela já morreu há muitos anos, minha filha. Eu não a conheci, mas ouvi dizer

que ela era tão velhinha que não tinha um único fio de cabelo preto, era tudo branquinho, pa-

recia a geada do inverno!

- Mas não tem nenhum parente dela que esteja vivo?

- Ah, tem sim, deve ter.

- Quem?

- Não sei te dizer. Mas alguém lá em Congonhas alguém deve saber. Principalmen-

te os mais velhos...

- Hummm... –Érica estava pensativa, os três se entreolharam, como se estivessem

se comunicando num código secreto que não precisasse de palavras.

- Continua, Vó. – pediu Carola. Os três, que estavam deitados e cobertos, imedia-

tamente fecharam os olhos e ela continuou:

- Bom, a filha da Dona Noquinha era uma moça muito bonita: tinha a pele bronze-

ada pelo sol da roça, os olhos negros como duas jabuticabas, e os cabelos eram lisos e negros,

parecendo uma seda valiosa...

- A senhora a conheceu? – interrompeu Érica, mais uma vez.

- Não, mas era o que o teu bisavô contava. Ele disse que a conhecera e que ela

nunca tivera namorado, até encontrar o lobisomem.

- Então ela era namorada do lobisomem? – perguntou Carola.

- Bom, o teu bisavô contava que eles se apaixonaram e começaram a namorar. Mas

me deixa contar como foi: os dois se viram pela primeira vez na festa de Páscoa, quando todo

o povo se reunia na igreja...

- Então o lobisomem entrava na igreja?

- Não, Fernando, eu não sei. – Dona Ester se atrapalhava com as perguntas dos ne-

tos - Sei que eles se viram na rua. Ele viera até a Praça para comprar alguma coisa e ela estava

a caminho da Igreja, para a missa de Páscoa. Isso foi depois que a mãe dele faleceu. Dizem

que eles ficaram parados, se olhando, na rua, como se estivessem hipnotizados!

- Uau, que fatal!

- Uau, que ―chatal‖! Fecha a matraca, Nando!

- O que é ―chatal‖, Érica?

- Nada, não, Vó! Só pra rimar com fatal. Esse abusado não se liga, mesmo!

- Se vocês não pararem de interromper eu não vou contar mais...

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- Pode deixar, Vó. Se o bobalhão do Nando começar de novo nós vamos pedir aju-

da pra caixa de primeiros socorros.

- Pra quê? – coitada da avó, não entendia quase nada do que eles diziam. Adora-

vam inventar palavras novas e sua linguagem, muitas vezes, era realmente difícil de se enten-

der.

- Pra fechar a matraca dele com esparadrapo!

- Ah, crianças!

- Vai logo, Vó! Parece que agora é que vai ficar quente!

- Quente como, Carola?

- Quer dizer, interessante...

- Tá bem! Vamos lá. Nesse primeiro encontro, Dona Noquinha teve que puxar a fi-

lha pra continuar o caminho e todos que estavam pela rua viram que ele ficou parado, olhando

pra moça, até que ela e a mãe entraram na igreja. E que ela, a cada dez passos, olhava pra trás.

- Quem contou?

- Contou o quê, Nando?

- Que cara chato! - desta vez era Carola que reclamava do irmão.

- Os passos, Vó! – disse Nando, como se explicasse o óbvio.

- Ah, é modo de dizer, meu filho. É que nem bem andava, a moça já olhava pra

trás, é isso. Mas não interrompa.

- Vó, será que a senhora pode me trazer um copo d‘água? – Pediu Carola.

- Claro, meu bem, só espere um pouquinho. – Dona Ester saiu do quarto para bus-

car a água.

- Babaca! Pára de encher o saco! Não sabe que se começar a interromper a histó-

ria, ela perde a seqüência e a gente não entende nada? – Carola ralhou com o irmão.

- Faça o seguinte – disse Queca - dá folga pro palhaço de plantão e deixa a Vó

contar do jeito dela. Amanhã a gente esquematiza como vai descobrir a verdadeira história, e

inteira! Falta menos de um mês para as férias de inverno, a gente tem pouco tempo, mas dá

pra programar.

- Difícil vai ser descobrir tudo em uma semana, que é só o que vão durar as férias

de inverno!

- Tudo bem, Carola, a gente dá um jeito, é só programar.

- É, Queca, ainda temos dois finais de semana em que podemos ir pra casa da Vó.

Assim, fica mais fácil de descobrir o caminho das pedras.

- Ou dos morros, né, Nando. A gente não sabe onde o caminho vai dar e morro é o

que não falta em Congonhas...

- Ainda...

- Ainda o quê, Nando? – era dona Ester, que voltava com a água.

- Ainda estava na cozinha, a senhora, Vó, demorando com a água! – Nando tinha

uma rapidez de raciocínio impressionante! A avó nunca conseguira pegá-lo numa mentira.

- Eu fui ver se as portas estavam bem fechadas... Eu sei que apartamento é mais

seguro, mas eu prefiro ter certeza de que está tudo trancadinho, principalmente hoje que a mãe

de vocês vai chegar bem tarde.

- Bom, Vó, dá minha água. E já que a senhora trancou tudo, termina a história.

- Ta bom, Carola, então vamos lá. Mas não interrompam mais, senão eu me perco

e esqueço da metade. Por falar nisso, onde eu parei, mesmo?

- Nos dez passos da namorada do lobisomem! – respondeu Nando, mais uma vez

com sua ironia.

- Ah, bom. Bem, esta foi a primeira vez que eles se viram, e o povo todo ficou co-

mentando. Os mais velhos ficaram com medo e chegaram a dizer que, na próxima lua cheia, o

lobisomem atacaria a casa da Dona Noquinha.

- E.... – Nando começara a falar, mas o olhar fulminante das irmãs o fez parar ime-

diatamente. – Esquece...

A avó franzira os lábios em reprovação, mas esta foi a última interrupção. Ou qua-

se. E assim, Dona Ester continuou:

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- Naquela mesma noite, os uivos do lobisomem já foram ouvidos pelas redondezas

da casa da Dona Noquinha, e não para os lados do capoeirão. Todo mundo ficou aterrorizado,

pensando que o lobisomem queria atacar a casa da moça.

- Mas o bicho não se transforma só na lua cheia?- Carola perguntou.

- É que a Páscoa é uma festa móvel, ela não cai sempre no mesmo dia do ano. Não

sei dizer como se faz as contas, só sei que é sempre na lua cheia. Por isso o Lobisomem se

transformou naquele dia, ou melhor, naquela noite. Os habitantes ficaram muito preocupados,

e resolveram se reunir para matar o bicho. Deu muita briga, muita confusão, alguns queriam

caçar o monstro, outros já estavam morrendo de medo de sair na rua à noite...

A verdade é que muito falaram e nada fizeram, pois papai contava que alguns até

combinaram de se encontrar, armados, às onze horas, debaixo do anozeiro.

- O que é isso, vó?

- Ë aquela árvore onde hoje fica a pracinha, lá pertinho da casa da Vó, onde vocês

gostam de brincar.

- Por que anozeiro?

- Porque todo mundo chama assim. Acho que a planta produz alguma noz.

- Hummmmm... – eram os três, em uníssono.

- Bom, como eu ia dizendo, combinaram, mas ninguém apareceu. A idéia era ir a

pé do anozeiro até o capoeirão. Não queriam levar animais pra precisar cuidar e também pra

não correr o risco de perder alguma criação. Como ninguém foi, o assunto acabou por virar

conversa de bar. Quase todas as noites os homens se reuniam pra discutir qual providência

seria tomada. Mas nunca chegavam à conclusão alguma.

- É, sei... eles se reuniam sob o pretexto de discutir como acabar com o lobiso-

mem, mas a razão de verdade mesmo era acabar com o estoque de birita do bar. Quer pretexto

melhor que esse para tomar umas e outras, se ―encharcar‖ com os amigos quase todas as noi-

tes?

- Nando! – eram as meninas de novo.

- Tá bom, desculpem. Continua, vó...

- Então, o tempo ia passando e, a cada lua cheia, a história se repetia. Os uivos

eram ouvidos cada vez mais perto da casa da Dona Noquinha. Mas o mais importante era que

a moça, que trabalhava com o pai na roça, sem nunca sair, sem visitar quaisquer amigas, pas-

sou a sair para passear sozinha, sempre ao cair da tarde. Muito tempo depois descobriram que

ela ia se encontrar às escondidas com o lobisomem.

- Com o lobisomem? – os três perguntaram juntos.

- Quer dizer, com o rapaz que todo mundo dizia que era o lobisomem. E isso durou

muito tempo, até que um dia ele foi à casa da Dona Noquinha e a pediu em casamento.

- E ela aceitou?

- Aceitou, Queca. – Os três se entreolharam. - Eles disseram pra Dona Noquinha

que estavam namorando escondido e queriam se casar. Ninguém queria que ela se casasse

com ele, mas ela teimou, brigou, disse que se não deixassem ela fugiria com ele. Então, mar-

caram a data do casamento e dali uns meses os dois se casaram.

- Então o lobisomem entrou na igreja?

- Não. O casamento aconteceu na casa da Dona Noquinha. Naquele tempo, o Padre

morava numa casinha nos fundos da igreja, onde hoje é o salão paroquial. A casa já não existe

mais. Os casamentos eram realizados nas casas das pessoas e o Padre sempre ficava para a

festa, não é como hoje em dia.

- E daí, vó?

- Daí que o Padre ficou meio receoso, mas acabou por realizar o casamento. O

mais importante é que, depois que eles se casaram, nunca mais se ouviu uivos de lobisomem,

nem na Vila, nem no Capoeirão. E ninguém nunca soube como foi que ele se curou.

- Mas eles viveram lá, tiveram filhos?

- Sim, por muitos anos eles viveram lá. Até que venderam as terras pras pessoas

que hoje têm a fazenda. Acho que os netos deles ainda vivem por lá. Ou bisnetos, não sei. Sei

dizer que são parentes porque todo mundo diz que eles são da família dos lobisomens.

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- E ...

- E, o quê, Nando?

- E o que aconteceu depois?

- Depois de quê?

- Tá, Vó, o lobisomem se casou, teve filhos, mas, como foi que ele se curou? Qual

foi a fórmula mágica que acabou com as transformações?

- Não sei. Ninguém sabe. Acho que ele foi o único lobisomem que se casou com

alguém, por isso se curou.

- Ah, Vó, pára com isso. Casamento não cura ninguém de nada.

- Nando, se alguma outra coisa foi feita, ninguém sabe. Se eles conheceram o se-

gredo da cura do lobisomem, guardaram a sete chaves, porque ninguém soube. Em lugares

pequenos, todo mundo sabe de tudo, todo mundo é amigo e conta tudo pros outros, vocês sa-

bem como é.

- Então acabou a história?

- Acabou, Carola.

- Vó, por que as pessoas têm tanto medo dos lobisomens?

- Porque são criaturas malignas, Queca. Dizem que eles atacam qualquer um, ho-

mem ou animal, só por desejo de sangue, por serem violentos. Por isso ninguém quer ir aos

lugares onde dizem ter lobisomem.

- Mas na cidade nunca teve, não é, vó?

- Carola, as pessoas da cidade não acreditam nessas coisas. E se as pessoas evitam

os lobisomens, fica difícil de eles conseguirem atacar alguém. Como envelhecem, também

devem morrer, por isso é natural que tenham se acabado. Eu não sei de nenhum lobisomem

que tenha tido filhos lobisomens também.

- Mas eles só surgem se forem mordidos por outros?

- Não, Nando. Mais uma razão para não existirem mais. Dizem que quando um ca-

sal tem seis filhos, todos homens, o sétimo, será lobisomem. Como hoje em dia ninguém mais

tem famílias tão grandes, com tantos filhos, é natural que não existam mais.

- Interessante...

- O que é interessante, Queca?

- E se forem sete filhas, ao invés de sete filhos?

- Ah, aí dizem que a sétima é bruxa. Dizem também que o sétimo filho, não impor-

tando o sexo dos irmãos, é sempre bruxo ou bruxa. Por isso o sexto filho é chamado de Sebas-

tião; e a sexta filha de Benta, para quebrar a maldição.

- Quer dizer que as pessoas queriam ter famílias tão grandes assim, antigamente?

- É que antigamente, Nando, não existia nenhuma maneira de ―evitar‖ ter tantos fi-

lhos. Hoje existe.

- É, eu sei. Mamãe já nos falou sobre métodos, como as pílulas e preservativos...

- Já? – perguntou Dona Éster, muito surpresa. – Preciso conversar ela sobre isso. -

Dona Ester achava as crianças muito jovens para saberem essas coisas. Mas a mãe deles jul-

gava que ―informação é sempre a melhor arma‖, e conversava sobre tudo com os filhos. Sem-

pre respondia as perguntas que eles lhes faziam, o que não era nada fácil: os três estavam

sempre pegando a mãe de surpresa. Mas ela pedia pra conversarem numa outra ocasião, que

eles nunca a deixavam esquecer. Assim ela tinha tempo para se ―preparar psicologicamente‖

para os ―interrogatórios‖ dos filhos.

Dona Ester deu um beijo de boa noite em cada um, ajeitou os cobertores e saiu pra

se deitar em outro quarto. Mal cruzou a porta já havia uma lanterna acesa nas mãos de Nando:

assim a avó não perceberia a luz, e julgaria estarem dormindo.

- Responda rápido, sem pensar: Qual o pé e a cabeça da história?

- Pára com isso, Nando. Vocês ouviram ela dizer que ainda tem parentes deles que

moram lá. Precisamos descobrir quem são.

- Disso nós já sabemos, Queca. Mas como?

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- Fácil, Carola. Nós pediremos pra passar esse final de semana na Vó. Chegando

lá, começaremos a perguntar pras pessoas mais velhas os detalhes sobre essa história. Lem-

bram? Em lugares pequenos, todo mundo sabe de tudo. Nós saberemos também.

- Tá, e depois?

- Depois, Nando, nós traçaremos outros planos. Mas precisaremos saber uma coisa

que me deixou intrigada.

- O quê? – os dois perguntaram.

- O dinheiro do lobisomem. Alguém vai ter que me responder essa pergunta: de

onde vinha o dinheiro do lobisomem.

- Eu já tinha até esquecido desse detalhe. Interessante...

- Nando, pra toda pergunta existe uma resposta. Pode ter certeza.

- É, Queca, mas acho melhor a gente dormir logo. Daqui a pouco a Vó vem ver se

as cobertas continuam no lugar e se ela pega a gente com a ―boca na botija‖ o negócio ―vai

feder‖.

- Eu não gosto desse teu jeito de falar, Nando.

- Tudo bem, eu te perdôo. Agora vá dormir!

- Esse guri é nojento! - disse Queca, deitando-se e ajeitando os cobertores.

- Queca – chamou Carola, num sussurro – será que não é perigoso mexer com essa

coisa de lobisomem?

- Se for perigoso, a gente pára. Não se preocupe. Nós nunca nos metemos em en-

crencas. Quer dizer, nada realmente sério, não é mesmo?

- Tá bom... Boa noite.

- Boa noite, Carola. Boa noite, Nando.

- Boa noite, gurias.

Mas foi uma noite curta: antes mesmo que o sol nascesse os três já estavam de pé

na cozinha, preparando chocolate quente. Quando Dona Ester levantou-se e deu de cara com

os três, levou o maior susto.

- O que vocês estão fazendo de pé tão cedo se só tem aula à tarde?

- Ah, já não tem mais sono pra gente dormir, Vó! – disse Carola.

- Vó, tudo bem se neste final de semana a gente for pra casa da senhora?

- Tudo bem, Queca. Mas será que a mãe de vocês vai deixar?

- É bom pra ela também, Vó: assim ela descansa um pouco. Todo final de semana

ela fica arrumando a casa, inventando coisas diferentes na cozinha, sabe, pratos novos, coisa e

tal. Se nós não estivermos aqui, certamente ela vai dormir até mais tarde, o que vai fazer bem

pra ela.

- É, Nando, é verdade. Mas ela também poderia ir com a gente, não é mesmo?

- Vó, ela não vai querer ir. A senhora sabe, depois que o pai morreu ela nunca mais

dormiu na sua casa. Ela deve ter lá as suas razões.

- É, Queca... ela deve ter... – Dona Ester saiu da cozinha ainda falando, com um

jeito triste. Esse assunto era delicado. Nem ela nem a nora tinham conseguido superar a morte

do pai das crianças: cada uma a seu modo fazia as coisas de maneira a não lembrar o passado.

A mãe mudara de casa e de profissão. A avó nunca mais conseguira reuni-la com os filhos em

sua casa, mas não se empenhava muito nisso.

- Bom dia, garotada!

- Bom dia, mãe! – os três responderam em uníssono.

- Mãe, hoje é sexta-feira, que tal se a gente for pra casa da Vó depois da aula? Ela

vai embora no final da tarde, não é?

- Eu creio que sim, Queca. Mas por que não ficam em casa nesse final de semana?

As férias já estão chegando e certamente ela vai querer levá-los para lá quando o recesso de

inverno começar.

- Mesmo assim... tu estás sobrecarregada de trabalho, e lá a gente se diverte bas-

tante. Nós levamos o material pra fazermos as tarefas lá. Voltamos na segunda de manhã. Que

tal?

- O que a Dona Ester acha disso?

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- Ah, mãe, ela nunca se opôs, não vai ser agora que vai começar...

- Vou pensar. Agora só vou tomar uma xícara de café e vou pra escola senão me

atraso. Na hora do almoço converso com Dona Ester. A propósito, ela já levantou?

- Já. E nós já falamos com ela. Eu vou arrumar minhas coisas.

- Que coisas, Nando?

- Coisas, mãe: roupas, uns brinquedos, talvez um livro...

- Está bem. Se ela disse que tudo bem, então tudo bem.

- Mãe, tu és a melhor mãe do mundo! – disse Nando, beijando a mãe no rosto.

- Hummm, isso me cheira a armação! O que é que vocês andam aprontando? Por

que querem tanto ir?

- Mãe, não liga pras loucuras desse cara! Tudo vira exagero nesse cérebro de doi-

do.

- Obrigado pela defesa, Carola. Mas não tenho nada de doido, ainda... – e saiu às

pressas da cozinha, levando a xícara de chocolate quente, para preparar suas coisas, depois de

fazer uma careta.

- O que ele quis dizer com isso?

- Só Deus sabe! Mãe, ―não esquenta‖, senão vais acabar te atrasando. Deixa que

até o almoço a gente descobre as loucuras dele. Beijo.- disse Queca.

- Beijo, meninas. Tchau.- mas ela saiu desconfiada. Certamente se pudesse ficaria

em casa só pra descobrir se não tinha nenhuma armação por trás da repentina vontade de ir

para a casa da avó. Geralmente as visitas eram programadas com mais antecedência.

Tão logo a mãe saiu, as meninas foram pro quarto do irmão, onde ele guardava su-

as coisas, pois freqüentemente dormia no quarto delas pra poderem conversar.

- Ótimo, seu ―Boca Aberta‖! Tinha que dar uma indireta, não é? – Queca já entrou

reclamando.

- Que indireta?

- Ela saiu toda desconfiada. Agora vamos ter que inventar alguma coisa pra ela não

ficar preocupada. O que vamos dizer?

- Diga que eu estou ―louco‖ pra ver a criação de canários do Geraldo. Ela vai acre-

ditar. Ainda mais que na segunda-feira ele ligou dizendo que uma ninhada nasceria provavel-

mente neste final de semana. Bom álibi, não, Carola? – olhava a irmã com cara de que nin-

guém poderia ter tido idéia melhor.

- É verdade. Mas por que não manteve a boca fechada?

- Vai ser melhor assim. Desse jeito ela não vai se preocupar. Só não podemos es-

quecer de observar o nascimento dos bichos, porque vai ser a primeira coisa que ela vai per-

guntar quando voltarmos. – dizia Nando, enquanto colocava roupas numa mochila que estava

sobre a cama.

- Certo! Então vamos preparar nossas coisas.

- Preciso pegar um caderno de anotações e traçar alguns planos. Carola, enquanto

arrumo minhas coisas, pergunte pra Vó sobre as pessoas mais velhas da nossa família que

ainda moram por lá. Depois eu vou fazer umas perguntas e tu arrumas as tuas coisas, tá bom?

- Tá! – disse Carola, levantando-se da cama e indo à procura da avó.

- Queca, anota no seu caderninho que eu vou começar pelo Geraldo. Enquanto vo-

cês saem à caça de informações, eu observo os pássaros e já aproveito pra perguntar o que ele

sabe. Matamos dois coelhos com um só tiro.

- Muito engraçado!

- Vai dizer que não é uma boa idéia? Quando anoitecer e a gente for deitar junta-

mos todas as informações e traçamos novos planos, que tal?

- É, tenho que reconhecer que, às vezes, mas só às vezes, o teu cérebro tem idéias

que se aproveite!

- Convencida! Pensa que só porque é a mais velha também é mais inteligente!

- Não penso: tenho certeza! Afinal, são dois anos a mais de conhecimentos. Te ve-

jo depois!

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Nando ficou olhando a irmã sair do quarto com uma cara de nojo: não tinha argu-

mentos pra continuar a discussão. Queca saiu com um ar de superioridade e foi a seu quarto

preparar a mochila. Enquanto isso, Carola já estava com a avó na sacada, onde dona Ester

molhava as plantas, fazendo um inquérito, discretamente:

- Vó, nós temos muitos parentes velhinhos?

- Temos, sim! Nossa família tem uma grande longevidade, principalmente do lado

do teu avô.

- É mesmo? E alguns deles ainda vivem lá em Congonhas?

- Sim, muitos deles. Inclusive alguns por parte do meu pai.

- E nós podemos ir visitá-los?

- Claro que sim. Eles vão gostar muito da visita de vocês!

- E eles moram longe?

- Alguns sim, mas temos dois bem perto. A tia Clarinda, que está bem velhinha e

adora crianças mora bem pertinho! Vocês vão gostar muito dela. E o Seu Domingos também.

Sem contar o teu bisavô.

- E... Vó, será que ela, a tia que mora bem pertinho, se incomodaria de nos contar

alguma coisa sobre antigamente?

- Como assim? Não entendi?

- É que a minha professora vem falando em fazer uma pesquisa sobre mudanças,

sabe? Mudança da cidade, e...

- Evolução? Progresso?

- Isso! Isso mesmo! E eu pensei que uma pessoa bem mais velha pudesse ajudar. A

gente ouve o que ela tem a dizer e depois a Queca e o Nando me ajudam a fazer a redação.

Mas eu não queria incomodar. Será que ela vai se chatear?

- Não, meu bem! Ela vai adorar! A tia Clarinda recebe tão poucas visitas, se sente

tão sozinha que vai gostar muito! Vamos combinar o seguinte: quando chegarmos, eu preparo

um bolo bem gostoso. Assim vocês levam e vão tomar um lanche com ela. Durante o lanche,

vocês aproveitam para perguntar sobre as coisas que precisam saber. Ah, ela adora relembrar

o passado! Vai fazer muito bem à velhinha!

- Puxa, Vó! A senhora é o máximo! Vou correndo contar aos outros! – Deu um

beijo estralado na avó e saiu correndo em direção ao quarto.

- Queca, legal! A Vó disse que nós temos uma parenta bem velhinha que ainda

mora lá. Ela disse que a mulher quase não recebe visitas, que adora crianças, adora relembrar

o passado e que vai fazer um bolo pra gente ir fazer um lanche com ela. Eu disse que tenho

uma pesquisa pra fazer sobre os tempos passados e ela disse que a tia... Olinda, Lucinda...

- Clarinda.

- Isso, que a tia Clarinda vai adorar... peraí! Tu conheces?

- Claro, ―Mané‖! A tia Clarinda, aquela velhinha que mora perto da igreja. De vez

em quando a Vó pede pra gente levar bolos, biscoitos, um monte de coisas que faz pra ela,

não lembra?

- É mesmo! – disse Carola com espanto.

- Eu já tinha pensado nela, mas foi a tua ―costura‖ foi ótima.

- Que costura? Eu não costurei nada!?

- Ah! Esquece! Vem e ...

- Esquece nada! Que costura?

- A conversa com a Vó! Foi como uma ―costura‖, entende? Apareceu um pedaço

novo, o teu trabalho pra fazer, e costurasse na boa. Bom, arruma as tuas coisas que a gente

não pode perder tempo. Logo depois da aula já quero ir.

- Tá, então me ajuda pra ser mais rápido. E o Nando?

- Já deve estar com as coisas prontas, e o material pra aula de hoje também.

E assim eles prepararam as roupas que usariam no final de semana na casa de Do-

na Ester, mas levaram também outras coisas: um caderninho para as anotações mais importan-

tes que descobrissem, uma lanterna para a eventualidade de precisarem sair à noite, uma bús-

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sola que seria usada se acaso tivessem que entrar na floresta de eucaliptos, ou mesmo no ca-

poeirão, pois uma parte dele ainda existia.

Depois do almoço, que foi preparado pela avó, limparam a cozinha e já conversa-

vam sobre o que fazer em Congonhas assim que chegassem. Foram pra Escola discutindo

sobre o que fariam depois da conversa com Dona Clarinda, mas resolveram combinar mais

alguma coisa depois de visitar a velhinha. A mãe não pôde vir almoçar em casa: precisara ir

ao banco.

A aula de sexta-feira transcorreu normal e, como sempre, Fernando voltava pra ca-

sa reclamando da Professora de Ciências:

- Aquela mulher pensa que encher a gente de tarefas vai nos fazer aprender alguma

coisa. Por que ela não nos dá uma experiência para fazer? Já que estamos estudando as plan-

tas, por que não procurar pelas espécies que vimos nos livros? Até que seria legal, e no capo-

eirão deve ter um bocado delas...

- Ao invés de ficar falando da mulher, por que tu não levas teu livro e procura as

espécies? Leva de presente para ela na segunda-feira.

- Queca, tu não tens noção...

- Quem não tem noção és tu. Certamente ela vai ficar contente com a tua iniciativa,

vai fazer uma amostra das plantas para os outros alunos, sem falar que isto vai te render uns

pontos extras. Viu? Vale ou não à pena?

- Deve valer, só que a gente já tem uma investigação pra fazer, esqueceu?

- Não, ―sua mula‖, mas vamos precisar de uma desculpa pra entrar no capoeirão.

Ou tu pensas que a Vó vai nos deixar andar por lá assim, sem mais nem menos? Se tivermos

uma desculpa, convincente como um trabalho de Ciências, ela vai arranjar alguém para nos

guiar por lá.

- Mas temos a bússola.

- Mas não sabemos o que tem lá. Nem onde há grotões ou cachoeiras. Com alguém

que conhece o lugar seria bem melhor. Mas, quem?

- O Geraldo. – disse Carola – ele costuma caçar no capoeirão.

- É mesmo! – disseram os outros dois.

- Então fica combinado. Quando chegarmos, já falamos pra Vó sobre o trabalho.

Quando chegaram, Dona Ester já os estava esperando. O filho mais velho dela

viria buscá-los.

- Querem tomar um café antes de sair ou preferem comer lá em casa?

- O que a Vó fez de bom pro café?

- Tem Nega Maluca e pães d´água. Passei um cafezinho novo, tem leite também,

se quiserem chocolate quente.

- Um ―refrigerantezinho‖ que é bom, nada, né? Minha mãe com essa mania de que

tudo o que é bom faz mal para saúde!

- Fernando, a tua Mãe não tem mania de que tudo o que é bom faz mal, não se-

nhor!

- Não. Só o que a gente acha mais gostoso, né, Vó?

Fernando falava enquanto ia servindo-se de leite gelado, acrescentando chocolate.

- Não, meu filho, ela se preocupa com a saúde de vocês. Eu sei que muitas coisas

que ela não deixa vocês comerem as outras mães dão pras crianças, mas ela sabe o que faz.

Vocês tiveram vários problemas de saúde quando pequenos, mas ela sempre cuidou direitinho

de vocês, e hoje, todos têm saúde de ferro. São até mais fortes que os meus outros netos. É

bem por isso que eu acho que ela tem razão.

- Ta legal, Vó, eu te perdôo.

- Onde estão as meninas? – ela não percebera a ironia do neto.

- Tirando o uniforme. – falou com a boca cheia de bolo de chocolate.

- Que coisa feia, meu filho!

- Se preocupa não, Vó, a Mãe não tá aqui pra me chatear por causa da boca cheia.

- Quer dizer que perto dela tu não falas assim?

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- Claro que não, Vó. E por que o senhor ainda não tirou o uniforme? Lavou as

mãos?

- Ta treinando pra encher o saco dos teus filhos, é, Queca? Não sou tua cobaia!

- Mal educado! Queria que a Mãe tivesse um pouco mais de tempo pra ficar com a

gente. Não entendo por que és tão diferente longe dela!

Fernando limitou-se a fungar. As meninas sentaram-se, já vestidas com jeans, ca-

miseta, tênis, e mãos lavadas para o café da tarde.

Terminada a refeição, chegou o Tio Rivaldo, que não demorou muito na visita,

apenas levou-os até Congonhas na casa da Vó Ester. Fernando acabou por sair ainda com o

uniforme da escola.

Tão logo guardaram as mochilas no quarto em que sempre ficavam, Fernando foi

na direção da porta de saída, pelos fundos.

- Aonde vai, meu filho?

- Bater um papo com o Geraldo.

- Daqui a pouco vai anoitecer...

- Esquenta não, Vó, só vou falar com ele sobre um trabalho de Ciências. Preciso ir

ao Capoeirão e acho que a Senhora não vai me deixar ir sozinho.

- E não vou mesmo! Lá é muito perigoso, ta cheio de bichos!

- Legal!

- O quê?

- Legal, Vó, indo com o Geraldo, não preciso me preocupar. Mas nem sei se ele

vai poder ir por causa dos passarinhos que nasceram.

- Ele falou mesmo que os bichos nasceriam por agora. Acho que é lua cheia...

Fernando olhou-a intrigado.

- Que foi, meu filho?

- Nada não, Vó. Só lembrei da história da noite passada. Lua Cheia lembra lobi-

somem.

- Ah, mas não te preocupes, já não tem mais disso por aqui...

Ele voltou, tomou um copo d‘água e saiu. Geraldo estava no Paiol, cuidando de

uma ninhada de Canários da Telha.

- E aí, Ge, tudo?

- Ô, ―Carinha‖! Veio ver os passarinhos?

- É. Aceitei teu convite, embora a minha mãe não goste de bicho preso. Só temos

uma gata porque ela diz que o bicho é livre pra ir e vir...

- A tua mãe gosta de gatos porque eles não fazem barulho. Mas vocês já tiveram

cachorro, também. Lembro disso, quando o teu pai era vivo. Tu não lembras?

- Não. Acho que eu era muito pequeno. Que cachorro era?

- Um Pastor Alemão. Tinha um nome em Inglês. Coisa da tua mãe. Claro. Como é

o nome da gata?

- Jezebel.

- Como?

- Jezebel.

- Que nome pra botar num gato, heim?

- É uma gata. Mas e aí, quando é que vais caçar de novo?

- Por agora, não. Tenho os filhotes pra cuidar. Talvez eu dê uma volta pelo mato

amanhã, mas não vou caçar.

- Posso ir contigo?

- Claro, Ratinho!

Fernando ficou surpreso. Não sabia por que tantas pessoas em Congonhas o cha-

mavam de Ratinho.

- Eu tenho que procurar umas plantas pra aula de ciências. Já ia te pedir pra me le-

var, mas já que pretendias ir, melhor. Assim não te atrapalho.

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- Atrapalha nada. Eu não sabia que tu gostas de mato. Se soubesse já teria te con-

vidado antes. Tem uma cachoeira lá no capoeirão onde a molecada vai tomar banho no verão.

Posso te mostrar.

- Legal mesmo seria aprender a me guiar, a andar no capoeirão sem me perder.

- Isso só te mostrando, mesmo. Mas amanhã a gente vê direitinho, lá dentro da ca-

poeira.

- Ta combinado, então. É só me chamar.

- Então, pula cedo da cama, hem?

- Pode deixar!

Fernando levantou-se, limpou a calça de elanca do uniforme e voltou para a casa

da avó, que era ao lado da casa em que Geraldo vivia. Fora nela que seus bisavós, pais de Do-

na Ester, moraram, o lugar onde a avó crescera. ―Será que algum dia o lobisomem entrou

aqui?‖ Ele pensava, olhando a casa de madeira, pintada de amarelo, com as janelas marrons.

- Que foi? Travou?

- Não, Queca. Tava pensando se o ―lobis‖ nunca entrou nesta casa. O vovô João

morava aqui, não é? E os pais dele, moravam onde?

- Não tinha pensado nisso...

- Claro que não! – dizendo isso, Fernando virou-se para entrar na casa da avó, o ar

de superioridade recuperado.

Capítulo II

O bolo da tia Clarinda

- Não vou fazer um bolo muito doce porque a Tia Clarinda já está velhinha e pode

fazer mal a ela.

- Mas tenho certeza de que vai ficar bem gostoso, Vó!

- Melhor vocês deixarem para visitá-la amanhã porque daqui a pouco já escurece e

não os quero na rua à noite. Onde estão o Fernando e a Érica?

- Tô aqui! Vó, já conversei com o Ge. Preciso que a senhora me chame cedo ama-

nhã. Ele vai pro mato e eu quero ir com ele fazer aquele trabalho.

- Acho melhor usares o despertador. Ele sai muito cedo.

- Cedo... a que horas?

- Umas cinco, cinco e meia...

-Hã? – a reação de Fernando era uma mistura de surpresa, deboche e desespero. –

Pra que tão cedo? A capoeira não vai sair do lugar!

- É melhor perguntar a ele.

- É melhor ir dormir cedo, isso sim. Vou ―beber‖ um banho.

- O quê?

- Tomar não é o mesmo que beber, Vó? Então, vou beber um banho!

- Esse menino...

- Esse moleque, né, Vó!

- Não fale assim, Carolina. Não gosto que chames teu irmão de moleque. E acho

que a tua mãe também não gosta.

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Carolina estava observando a avó preparar o bolo, e não respondeu ao seu comen-

tário.

- Vó, lembra da história que nos contou ontem? – Era Érica que entrava, voltando

da rua.

- Lembro, claro.

- De que família o lobisomem era?

- Hum... não consigo lembrar... o sobrenome deles... Vieira, Moreira, eu acho que

era alguma coisa terminada em eira... quando teu avô chegar eu pergunto a ele. Mas por quê?

- Só curiosidade. É que a senhora falou que algumas pessoas daqui são parentes

dele.

- São, sim, mas não lembro o sobrenome delas. Tem um menino que é descendente

dele que estuda com o Marquinhos.

- Com o Marquinhos da Tia Catarina?

- É, Queca. Ele é mais ou menos da idade de vocês.

As duas se entreolharam, pedindo ajuda silenciosamente uma à outra para mudar

de assunto.

- A Vó disse que vai fazer um bolo salgado, Queca.

- Não, minha filha, eu disse que vou fazer com menos açúcar!

- E não é a mesma coisa? O que não tem açúcar tem sal! - E a conversa tomou ou-

tro rumo. Fernando saiu do banho, vestiu o pijama e foi à cozinha, onde as três conversavam.

Foi direto à geladeira, preparou um sanduíche de mortadela.

- Vocês vão deitar mais tarde?

- Sim, hoje tu vais dormir com as galinhas?

- Vou, Queca, no mesmo galinheiro que tu dormes...

- Palhaço.

- Quem começou?

- Crianças... a mãe de vocês não ia gostar nada disso...

- Por falar nisso, ela não ligou, Vó?

- Ainda não, Queca. Provavelmente ligará amanhã, hoje ela trabalha até dez e

meia, não é?

- É. Mas às vezes ela liga no intervalo.

- Isso é quando a gente ta sozinho em casa. Hoje ela sabe que estamos bem acom-

panhados, né Vovuxa?

- É bem provável. Vocês deveriam morar mais perto daqui. Assim eu e ela ficarí-

amos mais tranqüilas...

- Mas ficaria mais difícil pra ela ir trabalhar, sem falar que ela gastaria bem mais

com combustível, né Vó?

- Deve ser por isso, então...

- O que?

- Deve ser por isso que vocês moram tão longe, Nando.

- Ah, pode crer!

- Hã?

- Nada não, Vó. – e, terminado o lanche, levantou-se e pôs a louça na pia. – Vou

deitar. Vocês não vêm?

- Daqui a pouco a gente vai.

- Tá, mas não demora muito.

- Por quê? – a avó achara estranho o fato dele chamar as irmãs pra dormir tão ce-

do.

- Tenho medo do escuro, Vó. – e saiu em direção ao quarto.

- Não sei por que, mas às vezes acho que teu irmão está mentindo.

- Não liga, Vó. Vai ver ele quer falar sobre o trabalho de Ciências e não quer te

chatear com isso.

- Mas eu não me chateio!

- Mas ele já é chato por natureza. Liga não.

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Não demorou muito para as meninas irem deitar. Dona Ester ainda ficou mais um

pouco, e eles tiveram que conversar muito baixo pra não despertar a atenção, pois ela poderia

passar pelo corredor e ouvir algo comprometedor. A porta do quarto, propositalmente, foi

deixada aberta, o que também não era costume dos três.

- E aí? – Queca queria saber sobre o combinado com Geraldo.

- Ele disse que vai de manhã bem cedo ao capoeirão. Pedi pra ir junto e ele deixou.

Nem precisava daquela mentira deslavada do trabalho de Ciências. Ele disse que quando eu

quiser ir junto é só avisar. Só que a Vó disse que ele sai mais ou menos umas cinco e meia,

por isso preciso dormir logo. E aí, o que descobriram?

- Que um ―lobisominho‖ estuda com o Marcos da Tia Catarina.

- Sério? – sentando-se na cama.

- É só modo de dizer. Parece que o guri é bisneto, trineto ou sei lá o que do cara.

Vamos averiguar amanhã, depois de ir até a casa da Tia Clarinda.

E assim, conversaram sobre os planos, o que cada um descobriu e logo deixaram

que Fernando dormisse. As duas, porém, ainda ficaram assistindo à TV por um bom tempo.

Antes de se deitar, por volta das onze, a avó veio ao quarto dizendo que tinha con-

versado com o marido, seu Nicolau, a respeito do sobrenome da família do lobisomem. Ele

também não lembrava. Conversou um pouco ainda com as meninas, sentada na cama, e logo

foi deitar-se.

- É melhor a gente desligar a TV e dormir também. Precisamos reunir o maior nú-

mero possível de informações. Boa noite, Carola.

- Boa noite, Queca!

Antes mesmo de romper a aurora, Fernando levantara. Sentia frio, muito mais do

que o habitual: nunca saíra da cama tão cedo. Trocou o pijama e foi à cozinha procurar algo

pra comer, mas teve uma grande surpresa: seu avô, seu Nicolau, olhava pela janela. Achou

estranho o avô levantado tão cedo, mas sentir-se enregelado pelo frio fez o pensamento sumir.

- Bom dia, Vô. – sentou-se encolhido.

- Oi. Quer um café? O Geraldo já levantou há tempo. Acho que ele está só te espe-

rando.

- Vou comer alguma coisa antes de sair, mas tô sem fome...

- Nunca levantou tão cedo, né? – O comentário lembrou-lhe de que nunca soubera

do avô também acordar tão cedo.

- Nem o Senhor, né, Vô...

- Tua avó me perguntou o nome do Lobisomem ontem, e quando eu não lembro

alguma coisa, fico agoniado. Não consegui dormir direito. Acabei sonhando com o bicho, e

isso me fez lembrar que uma neta dele mora aqui. O menino dela estuda com Marcos, mas

não sei se ele usa o sobrenome da mãe. Eles são descendentes de italianos. – Fernando olhava

com os olhos arregalados, bebendo as palavras do avô, com medo de perder alguma coisa.

- E o senhor lembrou, Vô?

O homem limitou-se a sorrir. Nando conhecia aquele sorriso como ninguém. Sor-

riu também.

- Claro que lembrei: é Luppi. A tua mãe falou alguma coisa sobre o sobrenome de-

les. Ela e o teu pai eram amigos deles. Mas disso eu não lembro grande coisa, só que eram

amigos.

Fernando ficou surpreso. Certamente a mãe saberia de alguma coisa. A curiosida-

de, eles haviam herdado dela.

- Queria saber uma coisa... pra que vocês querem saber o sobrenome deles?

- A Vó nos contou a história deles quando dormiu lá em casa e ficamos curiosos.

- Só isso?

- Só.

Mais animado que nunca, Fernando encheu uma xícara com o café novo que o avô

passara e começou a perguntar sobre o capoeirão. Geraldo entrou na cozinha e, com seu sorri-

so largo, foi logo perguntando:

- Como é, Ratinho, ainda encolhido?

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Fernando tinha esquecido do frio. A informação que recebera do avô esquentara

seu corpo como um bálsamo. Mas lembrou-se, de repente, de perguntar algo pra Geraldo:

- Por que Ratinho? – mas foi Seu Nicolau que respondeu, com ar triste:

- Era o apelido do teu pai. Rato Branco, porque ele era claro, branco como um rato

quando criança...

Fernando não gostava de ver o avô daquele jeito e logo mudou de assunto.

- É frio assim no capoeirão?

- Que nada! Isso é só porque o sol ainda não saiu. Ta vendo o tempo? Cerração

que baixa é sol que racha!

- Mas não vou tirar a blusa, só quando esquentar.

- E vai esquentar mesmo. Vamos Lá?

- Fernando terminou a xícara de café e o avô insistiu para que ele comesse algo,

mas Geraldo falou que, se a fome apertasse, poderiam comer algumas frutas das árvores do

capoeirão. E assim saíram, os dois, observados pelo avô que, de certa forma, não conseguia

ver semelhança do filho no neto, além da aparência física. O pai do menino nunca gostara de

aventurar-se pelo mato. Não caçava; como a esposa, gostava de ver os bichos livres. Mas gos-

tava do churrasco que faziam da caça. Isso o deixou ainda mais triste. Bebeu seu café e saiu.

As meninas levantaram-se logo depois e, como Fernando, foram tomar café para

começarem a agir. Mas Dona Ester também levantou cedo, e lembrou-lhes de visitar tia Cla-

rinda. Elas já tinham outro plano em mente: falar com Marquinhos, mas tiveram que mudá-lo

para não despertar suspeitas na avó. Arrumaram o bolo numa cesta com queijo, algumas fru-

tas e temperos da horta de Dona Ester e se puseram a subir o morro. A névoa se dissipara e

mostrava um dia ensolarado, um tanto quente para o inverno, que começara no início daquela

semana.

A casa de tia Clarinda era simples, como a maioria das casas do povoado, de ma-

deira, pequena, pois ela morava sozinha. Conversaram quase a manhã toda, lancharam, fize-

ram perguntas que Érica anotava e, mais que isso: a velha mulher guardava muitas fotos anti-

gas...

Fernando e Geraldo, no capoeirão, esquadrinhavam cada pedaço de terra. Nando

com o livro nas mãos, arrancando folhas da vegetação e comparando-as com as gravuras. Ge-

raldo, muitas vezes, olhava para as ilustrações e dizia o nome das ervas, o nome vulgar, como

era conhecido, e levava Fernando onde elas eram encontradas. O menino ficou feliz por Ge-

raldo ter levado uma bolsa de pano onde puderam guardar galhos e folhas, mas a maioria de-

las ele colocara dentro do próprio livro, pois não queria amassá-las. Fernando ainda riu mui-

tas vezes da corruptela de alguns nomes de ervas: cantiga de mulata virou catinga de mulata,

―êta, povinho preconceituoso!‖, dissera; Artemísia era chamada de ―artimijo‖, dessa ele deu

boas gargalhadas.

Cansados da caminhada, pararam perto de uma nascente e beberam da água e

Nando começou a compreender o que a mãe, muitas vezes, lhes dissera sobre preservar certos

lugares, sobre dar valor ao campo. Estirado no capim, olhava a luminosidade do sol por entre

as árvores e viu que isso era bom.

- Se eu soubesse que era tão legal, teria vindo antes contigo.

- De admirar! Tua mãe, quando criança, era um moleque pelas capoeiras. Os teus

tios é que contam, dizem que a ―bichinha era tinhosa‖... mas vocês nunca se interessaram.

Puxaram ao teu pai.

- O pai não era muito de mato, não. Isso a Mãe nos contou. Mas eu não sabia que a

―bichinha era tinhosa‖...

- Teus tios disseram que ela era meio curupira.

Fernando riu, mas não entendeu a comparação da mãe com o espírito protetor das

florestas.

- Como assim?

- Teus tios é que sabem... pergunta pra eles. Quando escuto essas coisas dos ou-

tros, não gosto de comentar. Tu sabes que, quem conta um conto, aumenta um ponto, e eu não

gosto disso.

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- É, só que a Vó, cada vez que conta, diminui um pedaço – disse, lembrando a his-

tória do lobisomem.

- Por quê?

Fernando, então, contou o ―Caso do lobisomem‖ muito resumidamente para Ge-

raldo, diminuindo mais ainda. Ele arregalou os olhos e disse:

- Nem brinca com isso. Tu bem sabes que não tenho medo de nada, mas respeito o

mato como ninguém. Tua mãe sabe. Mas lá pros cantos da ―Casa velha‖ eu não gosto de ir...

- Que casa velha? – Nando estava intrigado.

- Da casa que era da velha mãe do bicho... ele morou lá um bom tempo... é do ou-

tro lado da nascente...

Geraldo pareceu, pela primeira vez, assustado aos olhos de Fernando. Mas o garo-

to não desistiu:

- Então tu sabes onde fica!?

- Sei, mas não vais querer ir lá, né? Acho que nem o povo da Fazenda vai naqueles

lados...

- Que é isso, Ge? Por que o medo? Ainda mora alguém lá?

- Não. Acho que nem bicho vai lá perto... melhor a gente ir andando...

E assim dizendo pegou a bolsa do chão, lavou as mãos uma segunda vez, fez o si-

nal da cruz e saiu a caminhar. Nando, surpreso, levantou-se logo e pôs-se a segui-lo, mas não

tocou de novo no assunto. Começou a perguntar sobre os animais que caçava e onde encontrá-

los, mas Geraldo aborreceu-se.

- Vais começar a fazer o que a tua mãe fazia, é?

Fernando parou, surpreso.

- E o que ela fazia?

- Destruía as armadilhas dos caçadores. Apagava os rastros dos bichos. Por que tu

achas que teus tios a comparavam ao Curupira? Ela só não tinha esse apelido porque era mu-

lher...

Fernando ficou intrigado. Chegou à conclusão de que não conhecia direito a pró-

pria mãe. Ela sempre defendeu os animais, falava em preservação, mas nunca lhes contara

essas coisas. Perguntaria a ela, mas na oportunidade certa. Num dia em que ela não pudesse

fugir da conversa ou adiar respostas para pensar bem antes no que falaria...

Chegaram em casa bem perto do meio dia e as meninas já os esperavam ansiosas,

ajudando a avó com o almoço. Precisaram conter-se pra não falar nada na frente dela, e fica-

ram surpresos quando souberam que Seu Nicolau não almoçaria em casa. ―Uma chance a me-

nos‖ pensou Érica, pois tinha certeza que o avô sabia muitas coisas, e tinha a esperança de que

sua boa memória ajudasse com seu ―quebra-cabeças‖.

Insistiram com a avó para que ela deitasse para descansar depois do almoço, que

eles cuidariam da louça, mas enquanto não estava tudo arrumado, mesmo feito por eles, ela

não foi deitar-se. Isso os deixou ainda mais apreensivos, pois não poderiam conversar na pre-

sença dela. A tarde de sábado se consumiria e eles não poderiam fazer muita coisa, pois nada

era feito sem conversar, sem ser muito bem planejado antes.

Terminado o trabalho na cozinha, Dona Ester começou a inquirir Fernando sobre o

capoeirão e ele não teve como fugir. As meninas ouviam receosas de que ele falasse algo que

os comprometesse, e gelaram quando ele mencionou que o ―tio‖ não quisera ir para os lados

da ―casa velha‖. Sem saberem sequer o que isso significava, as meninas ficaram apreensivas,

mas a avó explicou:

- Dizem que nem bicho chega lá perto. Era a casa onde morava o Lobisomem.

As meninas se entreolharam com medo da valentia de Fernando, mas ele limitou-

se a dizer que Geraldo conhecia o capoeirão como ninguém, e se ele dissera que não era pra ir

para aqueles lados, ele não ia. A avó gostou do que ouviu.

- Parece que estás começando a criar juízo, meu filho.

- Vó, o Ge deve ter as razões dele pra dizer isso. Não pedi, nem discuti. Ele sabe

muito bem o que faz.

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E assim conversaram ainda por um bom tempo até que a mãe ligou. Dona Ester

atendeu ao telefone – e as duas ainda conversaram um bocado até ela falar com cada um dos

filhos. Nando mostrara-se diferente e ela percebeu. Mas o garoto não quis dizer nada, só falou

que estava cansado porque fora ao capoeirão com o ―tio‖.

Mas a viúva não era boba. Sabia que algo estranho estava acontecendo. Pediu para

falar de novo com Dona Ester. Desta vez, os três aproveitaram e foram para o quarto, mas

Queca lembrou que não poderiam conversar abertamente ali porque a avó ouviria. Sentiram-

se encurralados: foram jogar baralho.

Quando Dona Ester entrou no quarto e os encontrou jogando, achou estranho:

- Ué?

- Que foi, Vó? – Carola perguntara.

- Nada, não. Tua mãe vai almoçar conosco amanhã e já leva vocês de volta. Isso é

bom porque ela vem aqui, mas é mau porque vocês vão embora mais cedo...

Os três se entreolharam, mas nada disseram.

- Tô começando a achar que a mãe de vocês tem razão. Vocês parecem estar

aprontando alguma coisa...

- Por quê? – os três perguntaram.

- Porque vocês sempre reclamam de tudo e desta vez não disseram que é bom nem

que é ruim! Um sol destes e vocês jogando baralho... é muito estranho... Levantou-se da beira

da cama onde havia sentado e saiu. Os três ficaram agradecidos por não precisarem dar novas

explicações.

Parecia que tinham feito um acordo mudo, apenas se olhando, de não falar mais

sobre o assunto. Terminaram a partida e cada um resolveu tentar agir da maneira menos com-

prometedora possível. Nem à noite enquanto assistiam à TV, depois de jantar, falaram sobre o

assunto.

Capítulo III – Uma surpresa de mãe

Morgana, a mãe das crianças, chegara por volta das nove horas. Isto não era co-

mum. Normalmente ela chegaria perto das onze da manhã, apenas para almoçar, conversar

um pouco e, em seguida, levá-los embora. Na verdade eles preferiam que ela fizesse isso no

final da tarde.

As crianças estavam tomando café, e Dona Ester já começara com os preparativos

para o almoço. Ela entrou, cumprimentou Dona Ester, beijou os filhos, pegou louças para ser-

vir-se também e sentou-se, como sempre, usando a cadeira à esquerda, ao lado da cabeceira

da mesa onde Dona Ester sempre sentava. Serviu-se de café e anunciou, categoricamente:

- Precisamos conversar. – os três continuaram mudos. Os cabelos escuros, de um

castanho avermelhado e a linha perfeita das sobrancelhas da mãe, combinados à sua firmeza

na voz os amedrontavam. Ela continuou:

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- Quem vai começar a contar o que está acontecendo? – Morgana servia-se com

tranqüilidade. Mesmo sendo amiga dos filhos, condescendente até, não costumava dar muitas

chances de fuga quando queria saber alguma coisa.

- Mãe, acho que estás viajando.

- Então, Fernando, quando tiveres absoluta certeza, me comunique. Não gosto de

―achismos‖. E, para sua informação, já conversei com Geraldo antes de entrar. Não soube de

nenhum trabalho de ciências. Por que não me falou? Eu gostaria de poder ter te ajudado.

- Nem vem, mãe. Eu sugeri que ele coletasse as folhas. Sempre nos dissesses que

deveríamos estar um passo à frente nas matérias que os professores fossem ensinar.

- Érika, é mais fácil tirar dúvidas do que iniciar um conhecimento novo sem uma

prévia leitura. E o que isso tem a ver com a Casa Velha do Capoeirão?

- Ninguém falou nela.

- Carolina, o súbito interesse de vocês por virem até aqui num final de semana em

que nada tinha sido programado, a ida até o capoeirão, a visita à Tia Clarinda sem que fosse

solicitada... Muito estranho, não é?

- Quem te contou tudo isso?

- Tua avó e o Geraldo. Eu desconfiei da vontade súbita de vir pra cá, tua avó me

contou da ida à Capoeira e da visita à Tia Clarinda, e o Geraldo me contou, em detalhes, a

excursão pelo capoeirão. Simples, não é, Fernando?

- ―Elementar, meu caro Watson‖... Mãe, eu não sabia que tu eras detetive.

- Sou professora, e pressupõe-se que um professor saiba fazer interpretações... Mas

não é isso que eu quero discutir: o que há? Ainda não descobri a razão do interesse súbito

nessas coisas.

Dona Ester os observava. A viúva bebia o café e comia calmamente enquanto fazia

as perguntas. Só tratava os filhos pelo nome de batismo quando estava chateada com eles. Isso

emprestava um tom meio nervoso à conversa, embora ela parecesse estar lanchando com uma

amiga. Fernando foi o primeiro a quebrar o silêncio. Precisava desviar a atenção da mãe para

outro assunto. Contra-atacar seria a melhor estratégia.

- O Ge me contou que tu eras defensora dos animais, mas das matas, pra mim, é

novidade. Eu não ia estragar nada na capoeira. Não fiz nada além de pegar umas folhas, uns

galhos. Quanto à casa velha, eu só queria saber se tem alguma vegetação diferente naqueles

lados. Lá parece ser diferente, mais escuro, até, quando visto de longe. Mas o Geraldo não

quis nem falar no assunto.

- Ele tem suas razões para não ir até a casa velha. Eu sempre falei de preservação,

não só de animais, como das matas, embora tu não possas fazer muito estrago sozinho. Quan-

to à vegetação do outro lado da nascente, a única diferença é que é mais densa, escura e as

plantas são maiores.

- Por quê?

- Porque ninguém vai até lá. O terreno não é pisoteado, por isso é mais fofo e úmi-

do. Assim a vegetação cresce sem a intervenção do homem.

- E que história é essa de destruir as armadilhas dos caçadores?

- Nunca gostei de caçadas. Quando o homem caçava apenas para comer, não fazia

mal algum à natureza, mas quando começou a caçar para vender ou pelo prazer, passou a de-

predar. Imagine-se como um animal menor sendo caçado por outro que portasse armas. Cer-

tamente seria uma luta desleal.

- Mesmo assim, o Geraldo falou de um jeito estranho, parece que está faltando um

pedaço nessa história...

- Talvez esteja, Fernando. Talvez. Podemos fazer um acordo: primeiro vocês me

contam qual é a da vez, depois eu conto o pedaço da história que falta.

Os três se entreolharam. Não sabiam o que fazer.

- Ok. Se não querem contar, eu mesma descobrirei. – terminou o café, lavou a lou-

ça e anunciou – Vou ao capoeirão, Dona Ester.

- Fazer o que, minha filha?

- Não se preocupe. Vou descobrir o que esses três tanto escondem.

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- Mas o Geraldo saiu...

- Eu sei me guiar, pode ficar tranqüila.

- Mãe... posso ir também?

- Pode, Fernando. E se vocês duas também quiserem, vistam-se de maneira a não

atrapalhar. Nada de sandálias ou bermudas. Melhor um calçado que não escorregue. E usem

blusas com mangas: a vegetação pode fazer cortes na pele.

Os três saíram para o quarto e Dona Ester ainda insistiu:

- Morgana, é melhor não ir...

- Pode deixar, Dona Ester. Também faz um bom tempo que eu não entro numa ma-

ta. Vou ver se as coisas ainda são como quando eu era mais jovem...

No quarto, enquanto as meninas calçavam os tênis, Nando dizia:

- Podemos perguntar a um dos nossos tios sobre a história que o Geraldo contou. E

ele disse de um jeito estranho. Parece que a mãe era... hã... ele disse que ela parecia o curupi-

ra, e que só não tinha esse apelido porque é mulher, porque se fosse homem, a chamariam

assim. O que vocês acham?

- Acho que a gente pode pensar nisso depois.

- Eu concordo, Queca. Agora quero saber o que a mãe vai fazer na capoeira. Va-

mos?

- Vamos! – em uníssono e saindo do quarto, os dois acompanharam Carola para a

rua.

Lá fora, Morgana mexia no porta-malas do carro. Surpresos, os garotos percebe-

ram que a mãe pegara uma grande mochila, trocara as botas de saltos altos por botinas rústicas

e vestira uma jaqueta.

- O que é tudo isso?

- Talvez eu precise de acessórios no capoeirão.

Iniciaram a caminhada em silêncio. Quando entraram no capoeirão, os três viram

Morgana inclinar-se e murmurar algumas palavras que não entenderam.

- Que foi, mãe?

- Nada. – ela estava tranqüila. Mais do que de costume.

- Dissesse alguma coisa...

- Não falei com nenhum de vocês. – e continuaram caminhando, as meninas logo

atrás de Fernando, que seguia a mãe, formando uma fila indiana; ela sempre atenta, afastando

galhos, mas sem cortá-los, o que fez Nando reclamar.

- O Geraldo corta os galhos. Ele disse que serve para marcar o caminho de volta.

- Eu sei voltar. Não preciso marcar o caminho.

- Como? Quem cresceu aqui foi o pai...

- Quem conhece a natureza não se perde. Não se preocupe, eu também trouxe a

bússola.

Os três entreolharam-se mais uma vez. Sabiam que a mãe era um misto de tecno-

logia e tradição, mas, desta vez, tudo parecia diferente.

Quando chegaram à nascente, Morgana mais uma vez inclinou-se e balbuciou al-

gumas palavras. Desta vez foi Queca quem reclamou:

- Eu sei que as pessoas que falam outro idioma, às vezes, pensam nessa língua,

mas tu bem que poderias pensar em português quando estás conosco.

- Eu não pensei em outro idioma. Eu falei. Mas não falei com vocês.

- Então nos diga o que falou.

- Para quê?

- Pra nós não ficarmos com a sensação de que estás maluca, que tal?

- Preciso voltar aqui outro dia.

- Por quê?

- Por que vocês falam demais. Atrapalham a harmonia.

- Que harmonia? Mãe, falando a sério, se continuares assim, a gente vai bater um

papo com um psiquiatra.

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- Érica, há muitas coisas que vocês não sabem, mas como meu pai dizia, não se

pode esconder tudo para sempre. Vocês sabem o quanto eu gosto de ler, de estudar. Isso inclui

a terra, os povos e as religiões. Os mitos e lendas também. Mesmo não tendo me falado nada,

o súbito interesse pelo capoeirão e a casa velha só pode significar uma coisa: o lobisomem.

Os três empalideceram.

- Não precisam ficar com medo. Não vou brigar. Curiosidade é uma qualidade. Só

quem é curioso descobre coisas. Mas há um problema. Quem é pequeno e jovem deve conver-

sar com os mais velhos sobre suas dúvidas, suas vontades. Não se deve brincar com o que não

se conhece. Respeito é sempre o melhor caminho.

- Ainda não entendi o que viesses fazer aqui.

- Eu vim ver como estão as coisas, se não há perigo de mexer com o passado. Não

vim aqui para ver o que tu e o Ge fizeram, Nando. Vim averiguar o lugar. Se estiver tudo

bem, então vocês podem prosseguir com a curiosidade de vocês. A descoberta é sempre me-

lhor do que alguém contar o que queremos saber.

- Mãe...

- Sim.

- Estou surpresa.

- Com o que, Queca?

- Sei lá, achei que tu fosses brigar com a gente...

- Por que razão?

- Por que nós estamos tentando...

- Tentando...?

- Bom...

- Fale logo. Tu sabes que eu só proíbo o que é perigoso ou impróprio para a idade

de vocês.

- Bom... a verdade é que nós queremos descobrir o que aconteceu com o lobiso-

mem.

- Ele foi embora daqui com a mulher. Não sei se tinham filhos.

- Isso nós sabemos. Mas o que aconteceu? Por que ele parou de se transformar?

Como a mulher dele vivia, se ela tinha medo ou não, porque ela desafiou todo mundo, por que

casou com ele, de que eles...

- São muitas perguntas que convergem para um só lugar.

- Que lugar?

- Exatamente aquele em que vocês não podem mexer: o tempo.

- Como assim?

Sentados perto da nascente, acomodaram-se melhor e mais perto da mãe, pois a

conversa prometia ser longa.

- A lenda de que ele curou-se da lupinia correu, mas ninguém sabe o que o curou.

Este tipo de coisa vira segredo de família, nem mesmo os mais jovens ficam sabendo, a me-

nos que lhes seja passada a, digamos, receita.

- O que é lupinia?

- É como os antigos feiticeiros chamam o mal do lobisomem. Alguns estudiosos

chamam de licantropia. Vem do grego.

- E como vamos saber?

- Vocês não queriam explorar o lugar? Vim pra levá-los. É melhor estarem sob os

meus olhos, pois posso protegê-los e adverti-los de muitas coisas. Mas não vou ajudá-los a

desvendar o mistério, a menos que...

- A menos que?

- Esqueçam. Não vou mexer com o tempo. Se vocês conseguirem descobrir, ótimo.

Se não conseguirem, que pena. Não vou fazer o que não devo.

- Fazer o que?

- Nando, há muitas perguntas que eu não posso responder. Algumas porque não sei

a resposta. Outras porque vocês não devem saber. Pelo menos por enquanto.

- Quanto mistério! Por que não nos diz logo?

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- Por que a curiosidade faz bem. Até certo ponto, mas faz. O medo serve pra con-

trolar as atitudes, de certa forma impedindo que façam coisas perigosas. Sempre que sentirem

medo, me falem.

- Ainda não nos disse por que tanto mistério.

- Isso é algo que vocês precisam descobrir sozinhos. – e, pegando a mochila, le-

vantou-se.- Vamos, se querem olhar o lugar, esta é a melhor hora. Não podemos demorar de-

mais: o almoço nos espera.

Atravessaram o córrego pisando sobre as pedras úmidas, mas que não estavam en-

cobertas pelas águas da nascente. O lugar era lindo, com vegetação densa, nativa, e o olho

d‘água brotava da pedra como um milagre. O sol quebrava o frio do início do inverno, ilumi-

nando o caminho, filtrado pelas plantas.

A casa velha era de madeira, mas boa parte era de pau-a-pique e estava em ruínas.

Era escura e úmida, pois a sombra das árvores impedia a luz do sol de penetrar e aquecer. As

crianças mostraram-se receosas de entrar. Morgana entrou primeiro. A parte de pau-a-pique

parecia ser a cozinha, pois um fogão à lenha quase destruído ainda imperava entre escombros

e sujeira. Um velho guarda-louças num canto abrigava uns poucos utensílios deixados para

trás, uma mesa equilibrava-se sobre os três pés inteiros que restavam. Duas cadeiras quebra-

das, algumas latas e um baú completavam a mobília.

Carolina abriu o guarda-louças e a porta caiu, quase acertando-lhe o pé.

- O que é isso?

- Uma caneca.

- Isso eu sei, mãe, mas do que é feita?

- Esmalte. Não conheço o processo de fabricação, mas são bem resistentes. Anti-

gamente a maioria das panelas, bules, canecas e chaleiras eram feitos deste material.

- Que cheiro!

- É a umidade. As paredes estão caindo por causa disso. As ripas apodrecem e o

barro cai. É de admirar ainda estar de pé, pelo tempo que está abandonada...

- Se alguém morasse aqui isso não aconteceria?

- Se alguém providenciasse a poda das árvores ao redor e a retirada da vegetação

que está muito próxima das paredes. Isso é o que segura a umidade. O sol não seca o que a

chuva molha e as plantas retêm água no terreno.

Os três mexiam em tudo o que podiam: nas louças, nos pedaços caídos do fogão,

em seu interior. Morgana passara para a parte de madeira, um pouco mais conservada, mas

também precária.

Não havia sinal de pintura e a mobília, escassa pela mudança e pelos poucos recur-

sos que a época oferecera, junto com as muitas teias de aranha penduradas nos cantos e obs-

truindo as portas emprestavam um ar de macabra desolação. Cadeiras quebradas, uma namo-

radeira empoeirada, uma mesa-de-centro muito baixa e um armário fechado complementavam

o que deveria ter sido a sala; dois quartos sem mobília e um outro cômodo muito pequeno,

sem porta, com um baú perfaziam a casa velha. Carola parecia estar enojada pelo mau cheiro,

Nando explorava o que podia, Queca olhava e fazia anotações num caderninho.

- Nada de extraordinário.

- Não entendi.

- Mãe, em que essa velharia toda vai nos ajudar?

- É o começo, Queca. Vocês já sabem que eles viviam modestamente e que naque-

la época não havia muito em conforto. Agora resta analisar como viviam e o que faziam, jun-

tar com o que têm de informações e tentar matar a charada.

- Não vejo como.

- Então já podemos ir.

- É, acho que não temos mais nada para fazer aqui. Ainda queres voltar, mesmo

sem ter nada de interessante pra ver?

- Sim. Mas virei sozinha. E não diga nada à Dona Ester. Deixe que ela pense que

vocês mataram a curiosidade e tentem buscar informações em outras fontes, mas com cuida-

do. As pessoas de lugares pequenos se mostram receosas de falar sobre estes assuntos.

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- Vai nos ajudar?

- Um pouco. Mas não pensem que eu vou descobrir o mistério para vocês. Isso não

é assunto meu.

Nesse momento, Fernando abriu a cortina podre do quarto da frente e algo saiu em

revoada. Foi um tremendo susto, pois o morcego era enorme. As meninas gritaram, Fernando

abaixou-se; Morgana nem se moveu.

- Vamos. – a mãe os conduziu para fora.

- Que morcegão! – o garoto estava com os olhos vidrados. Levara um baita susto!

- Faça de conta que era o Batman, Nando. – ela divertia-se com o susto dos filhos.

Saíram pela mesma porta que entraram, a dos fundos, que estava quebrada. Havia

uma porta na parede da frente da casa, mas parecia estar trancada e, como muito tempo passa-

ra desde que os antigos moradores a deixaram assim, certamente não conseguiriam movê-la.

Os quartos tinham cortinas apodrecidas em lugar de portas e o cômodo pequeno não tinha

nada além do baú encostado à parede. Queca ainda deu uma última olhada, como para certifi-

car-se de que nada dali pudesse ajudá-los.

O caminho de volta foi divertido: falaram sobre ervas e pássaros, sobre os animais

que vivam no capoeirão; mesmo assustadas com o morcego, as crianças ainda aproveitaram o

passeio. Não tocaram no modo estranho de Morgana ―resmungar‖ para a mata e para a nas-

cente. Talvez o incidente com o morcego os tivesse feito esquecer.

- Mãe, aquele morcego ia nos morder?

- Não, Carola. Nessa região não existem morcegos vampiros, só frugívoros.

- Vampiros? – a garota arregalou os olhos e parou de andar. Parecia petrificada

com a possibilidade de haver vampiros no capoeirão. Queca, que vinha logo atrás, empurrou;

isso a fez voltar à realidade e prestar atenção ao que a mãe dizia:

- É assim que são chamados os morcegos que se alimentam de sangue, mas é mui-

to difícil atacarem humanos. Geralmente eles mordem outros animais, como o gado que fica

nos campos à noite, ou mesmo cães.

Carola ainda não parecia muito tranqüila:

- Por que não tem vampiros nessa região?

- Eu não disse vampiros, disse MORCEGOS-VAMPIROS: eles preferem as ca-

vernas, e não temos muitas por aqui. Os frugívoros escondem-se em qualquer lugar que seja

escuro durante o dia, como velhas construções, é o caso do nosso amigo ―batman‖.

- E o que é fru... fru o quê?

- Frugívoro, anta.

- Queca! – a mãe não gostava desse comportamento. Frugívoro é como são cha-

mados os animais que se alimentam de frutos, Nando. Estes morcegos também se alimentam

do néctar de algumas flores que só abrem à noite.

- Ainda bem. Eu não ia gostar de ter um ―batman‖ daqueles grudado no meu pes-

coço! Não sabia que tem flores que só abrem à noite...

O susto parecia ter passado, pois o morcegão virou piada. As perguntas iam se

multiplicando, o assunto foi se desviando e, como sempre, divertiram-se muito com o passeio.

Mas a piada do dia fora o susto, e ainda riam quando chegaram à casa da avó, que os esperava

para almoçar.

- Já estava preocupada com vocês!

- Foi muito massa, vó!

- O quê?

- Irado mesmo!

- Hã?

- Deixem pra lá! Vão tirar as roupas sujas e lavar as mãos para o almoço. Eu vou

em seguida.

- O que eles disseram?

- Disseram que foi divertido, Dona Ester. Os adolescentes têm um jeito só deles de

conversar.

- Não me diga que vocês se divertiram no meio do mato?

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- É, fomos até a nascente, vimos plantas, a casa velha...

- Credo em Cruz, minha filha! Não me diga que vocês foram lá?

- E aí, vó, o rango ta pronto?

- Vou lavar as mãos. – com uma troca de olhares, Nando e a mãe ―combinaram

mudar de assunto‖.

- To morto da fome, vó!

- Que feio, meio filho! Não diga assim. Venha, vamos sentar e esperar as meninas

pra rezar antes do almoço. – ele fez uma careta, mas esperou. A tática do ―morto de fome‖

funcionou, pois a avó desviou a atenção do passeio. As meninas sentaram-se à mesa seguidas

por Morgana que, depois da oração, elogiou a comida e falou de receitas, o que fez com que

Dona Ester esquecesse completamente o passeio no capoeirão.

O almoço transcorreu muito bem, a vó Ester fizera carne de panela, maionese de

batatas, arroz, macarrão e, para a sobremesa, pudim de leite. Fernando e a mãe conseguiram

levar a conversa para os canários de Geraldo, os animais que ele caçava, a água que vinha

diretamente da fonte do morro sem passar pelo tratamento da Companhia de Águas. Nesse

ponto, Morgana percebeu que ter citado o morro não fora bom negócio.

- Bem, é melhor tirarmos a mesa e arrumar a cozinha porque ainda preciso fazer

muitas coisas hoje.

- A gente ajuda, mãe.

- Não, podem deixar que a vó faz isso, queridos. Aproveitem um pouco mais o

tempo que ainda têm aqui.

- Podemos, mãe?

- Podem, eu ajudo a vó. Onde está o vô Lau?

- É vó, cadê o vô?

- Ele disse que tinha uns assuntos para resolver e não viria almoçar. Não sei onde

anda.

As crianças saíram logo, as duas ficaram limpando a cozinha, conversando sobre o

trabalho de Morgana, como as crianças estavam se saindo nos estudos, até que o vô Lau apa-

receu.

- Alô, aonde andava o passeador?

- Fui fazer umas voltas...

- Aproveitar o domingo?

- É. Fui bisbilhotar um pouco.

- Bisbilhotar? Tu lá tens idade para bisbilhotar?

- Hora, Dona Ester, ele deve ter se interessado por alguma coisa importante. Não é

Vô?

- Não fui eu, na verdade. Ontem de manhã, quando conversei com o Nando antes

que ele saísse com o Geraldo, pensei que eles poderiam querer saber mais sobre o lobo, então

fui bisbilhotar.

- Lobo?

- O Lobisomem, Vó. Mas o que o senhor poderia bisbilhotar? Ainda mais na cida-

de...

- Muitas coisas, Morgana. Muitas coisas. Mas vão ficar para uma outra hora. Ain-

da faltam umas informações. Bom, vou tirar uma soneca. Mais tarde a gente se fala.

- Vou pra casa, vô.

- Deixe as crianças. Ainda é domingo, amanhã eles voltam pra casa, as aulas deles

são à tarde, não é mesmo? Assim posso conversar um pouco com eles.

- Se eles quiserem, por mim, tudo bem. Venho buscá-los no intervalo do almoço,

pois eu trabalho de manhã.

- Então, se não vermos antes de saíres, até amanhã.

- Até amanhã, Vô.

- Dona Ester, quer ajuda pra mais alguma coisa?

- Não, não, aqui está tudo arrumadinho.

- Então vou dar umas voltas. Rever umas pessoas. Até mais tarde.

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- Até logo, Morgana.

As crianças saíram sem dizer aonde iam, e Morgana também não falou nada sobre

suas ―voltas‖. À tardinha, encontraram-se e despediram-se. Morgana voltou para casa e as

crianças ficaram com os avós. Seu Nicolau já saíra outra vez e a mãe dos meninos não se des-

pediu dele. Voltou para casa. Pelo menos, foi para onde ela disse que ia.

Os três saíram caminhando pela estrada e aproveitaram para discutir um pouco os

acontecimentos.

- O que vocês acham de todo esse mistério da mama?

- O que mais me intrigou foi ela ficar falando sozinha em outra língua. Ou melhor,

ela não estava falando sozinha: quando faz isso, diz que pensa alto. Lembram?

- Lembro, Queca. E pra quê aquela mochila?

- Que ela nem abriu.

- É, Carola, e o papo da harmonia?

- É. Bem estranho mesmo. Mas vamos deixar esse papo para depois. Acho melhor

decidirmos aonde vamos investigar.

- Mas não me sai da cabeça que teve um momento em que ela falou que não nos

ajudaria, a menos que alguma coisa, e não continuou.

- Ela sempre consegue desviar a nossa atenção, Nando, todo mundo sabe disso.

Mas vamos ao que interessa: onde investigar!

- Onde vamos bisbilhotar? Legal! Podem fazer os planos.

- Claro que podemos: minhas idéias são sempre melhores!

Nando ainda resmungou ―convencida‖; mas preferiu ouvir com atenção as instru-

ções de Queca.

Capítulo IV – Muitas informações, poucas pistas

Depois que Morgana saiu, os três agiram normalmente: tomaram banho, jantaram,

assistiram à TV no quarto e disseram à avó que já estavam prontos para dormir no momento

em que ela foi ficar um pouco com eles. Dona Ester reclama da programação e diz que vai

deitar-se também. Seu Nicolau fora ao Bar conversar com os amigos. As meninas começam,

então, a contar para Nando sobre a conversa com tia Clarinda, que tentou assustá-las ao má-

ximo. A velha senhora disse que ninguém deve sequer ter curiosidade por essas coisas, que

bruxos e lobisomens são maus, que já haviam vivido algumas mulheres no povoado que ti-

nham a fama de ser bruxas, e que tinham sido expulsas pelos moradores, que não querem essa

ralé por perto.

Desviando o assunto, a mulher mostrou muitas fotos antigas a elas, falou dos ve-

lhos tempos, contou que a floresta de eucaliptos já fora muito maior e que os novos donos das

terras estavam ―acabando com tudo‖. Depois começou a fazer perguntas sobre elas, sobre

Fernando, sobre Morgana e parecia, principalmente, curiosa em saber se Morgana tinha algum

namorado. As meninas, como a mãe, detestavam esse tipo de conversa que, como dizia Mor-

gana, ―só serve de combustível pra fofoca, que é a atividade preferida de quem não tem nada

pra fazer‖. As meninas disseram que a avó deveria estar preocupada com elas por causa da

demora, agradeceram e Queca disse que as informações já eram suficientes para o trabalho de

Carola. No caminho, as duas sentiram-se frustradas:

- Ainda bem que não tens trabalho nenhum, senão ele viraria um trabalho sobre

―preconceito sobrenatural‖.

- Não entendi.

- Esquece.

- Ah, que raiva! Eu odeio quando vocês dizem: ―esquece‖. Significa que não que-

rem me explicar as coisas. Eu tenho culpa de ser mais nova?

- Ta bom! – Érica resignara-se – é que ela não nos falou nada que se aproveitasse

sobre progresso, além de dizer que a Floresta de Eucaliptos era maior e que ―estão acabando

com tudo‖.

- Até aí eu entendi, mas e o preconceito sei-lá-o-que? – Queca suspirou.

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- Histórias de Lobisomem, bruxa, vampiro, tudo isso é considerado sobrenatural.

- O que é sobrenatural?

- Ah, Carola, faz o favor! – Queca já estava irritada – vê se olha no dicionário! Ha-

ja saco pra conversar contigo!

Carola ficou emburrada, mas, discretamente, procurou um dicionário na casa da

avó para descobrir o que era sobrenatural. Encontrou, mas não entendeu, ficando ainda mais

chateada.

Marquinhos também não ajudara muito: falara sobre um menino que estudara com

ele, mas que se transferira de escola porque os colegas o chamavam de lobisomem e ninguém

se aproximava dele. Não sabia onde o garoto morava, e ―mesmo que soubesse, não diria‖.

Nando conta sua ida ao capoeirão com Geraldo, fala do medo que este tem da casa

velha e eles ficam intrigados com a audácia da própria mãe.

Muitas coisas eram obscuras. Eles sabiam muitas coisas, mas nenhuma delas dava

qualquer pista sobre o lobisomem. O que fazer? Os três estavam cansados e resolveram dor-

mir. Quem sabe, na segunda de manhã, mesmo com pouco tempo, uma pista pudesse ser en-

contrada.

A manhã chegou fria e nevoenta, anunciando o inverno. Carola acordou primeiro,

foi à salinha de TV que ficava conjugada com a cozinha da casa da avó, ligou o aparelho e

ficou assistindo a uma sessão de desenho animado, deitada no sofá. Quando se dá conta, o avô

está sentado ao seu lado.

- Que susto, vô!

- Susto?

- É. Não vi o senhor entrar aqui.

- Bobagem. É que eu estou descalço.

- Ah. Deve ser por isso que eu não ouvi.

- Cadê os outros dois?

- Dormindo.

- Ainda?

- Quer que eu os chame?

- Não. Depois eu falo com vocês. Mas longe da tua avó. Fale a eles que quero con-

versar.

- Ta bom.

Seu Nicolau volta para seu quarto, veste-se e, de pé em frente à Carola, lhe diz:

- Carolina, vou conversar com um velho amigo, depois vou cuidar dos animais. Vá

com teus irmãos, depois do café, até o galinheiro. Lá nós podemos conversar sem a intromis-

são da tua avó.

- Ta bom.

Seu Nicolau sai e Carola continua assistindo à TV. Nando acorda e vem deitar-se

na sala também.

- O Vô disse que quer conversar com a gente mais tarde, lá no galinheiro.

- No galinheiro? Pra que? Não tinha um lugarzinho mais fedorento pra escolher,

não?

- Ele disse que quer falar longe da Vó. Se achas fedorento, passa o teu perfume no

galinheiro.

- Gracinha.

- Oi, povo. – era Érica que se juntava aos dois.

- O Vô quer conversar com a gente...

- No galinheiro. Olha o lugar que o velho marca uma reunião! Ele quer nos casti-

gar: cheirar estrume de galinha para aprender a não perturbar a vida deles.

- A troco de que?

- Não sei. Ele só disse que quer conversar longe da intromissão da Vó. O que será

que ele quer?

- Só indo lá pra descobrir. O que tem pro café?

- Não sei. Vim direto pro sofá.

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- Bom dia, crianças. Dormi demais, até o avô de vocês já levantou. Vou fazer um

cafezinho novo. Tem bolo de laranja. – Dona Ester acabava de sair do quarto.

- Oba! – era o preferido deles, que levantaram para pôr as louças na mesa.

Depois de tomar café os três foram ver os canários de Geraldo, que os alimentava.

- Aí, ratinhos. Soube que vocês entraram na capoeira de novo com a mãe de vocês.

O que ela queria lá? Destruir armadilhas?

- Nem falou nisso. Fomos...

- Fomos ver a nascente e a vegetação. – Érica interrompera o irmão, pois não que-

ria que soubessem que haviam entrado na casa velha. Lembrou que Nando contara sobre o

medo de Geraldo ao chegar aos arredores da casa.

- Ah. Bom, acho que não tinha armadilhas por lá, não é?

- Não vimos nenhuma.

- Nessa época quase ninguém caça. É muito frio.

Conversaram ainda sobre os canários e acharam nojenta a maneira como a mãe dos

filhotes os alimentava: dava a impressão de que ela ―vomitava no bico deles‖. Enquanto fala-

vam sobre as antigas rinhas de briga de galos, viram Seu Nicolau ir direto para o galinheiro.

- Vamos lá perturbar um pouco o Vô?

- Vamos.

- Falou, Ge.

E assim, os três saíram da velha garagem de madeira onde Geraldo abrigava os

pássaros, indo para o galinheiro da casa ao lado.

- Todos presentes. Qual é a bronca? – era Nando que já começava reclamando.

- Não tem bronca nenhuma. Só pensei que vocês quisessem saber mais sobre o lo-

bisomem... – os olhos dos três faiscaram.

- Claro que queremos. Mas como o Senhor sabe disso?

- Eu contei, Queca. Quando levantei de madrugada, o Vô me falou o sobrenome do

lobisomem. Eu esqueci de dizer a vocês.

- E qual é?

- É Luppi. Tem uns parentes deles aqui, outros na cidade. Ontem pela manhã, fui

visitar alguns, saber se alguém estava disposto a falar sobre eles.

- Então conta, Vô! – Os três ficaram excitados com a perspectiva de ter mais in-

formações.

- Calma, Érica. Visitei os daqui e os de lá. Ninguém quis falar nada. Quando se to-

ca no assunto, eles dizem que não querem falar sobre isso, que é tabu.

- O que é tabu?

- Isso é melhor vocês perguntarem para mãe de vocês. Eu acho que é algo que não

pode ser mexido, nem mesmo falado. Mas quero dizer uma coisa: eu também estou curioso. E

se vocês precisarem de mim, se tiverem de fazer algo com a ajuda de um adulto, me chamem.

Não falem pra Ester, ela tem medo. Eu não tenho. Ajudo vocês no que precisar.

- Puxa, vô, obrigada mesmo!

- É, pode crer! Se a gente precisar, a gente pede.

- E se descobrirmos algo, te contamos, tá?

- Então está combinado. Quem descobrir algo, fala para os outros. Vou continuar

tentando. E se precisarem, peçam. Quero saber como é que esse raio de lobisomem deixou de

se transformar. Se é que deixou de se transformar.

- Como assim?

- Talvez... talvez a mulher dele tenha prendido o bicho, dado alguma coisa pra ele

beber antes de se transformar... sei lá. E a tua mãe, vai ajudar?

- Não. Ela disse que não.

- Que pena. Inteligente como a danada é, é capaz de matar a charada rapidinho.

Mas ela não gosta de se meter na vida dos outros.

- É, mas o bicho já morreu, não morreu?

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- Deve ter morrido. Ele deveria ter a idade do teu bisavô João. Se estiver vivo, tem

mais de noventa, com toda a certeza, e poucas pessoas vivem tanto, ainda mais uma que se

transforma em lobisomem.

- Vô. Tenho uma curiosidade: mulheres não se transformam em lobisomem?

- Boa pergunta, Carola. Mas essa, eu acho que só a tua mãe sabe responder.

- Droga!

- Droga nada, Carola! Quando chegar em casa, vou dar um ―abraço de jibóia‖ nela.

- Quê?

- Nando, fala língua de gente, faz o favor? – Queca, mais uma vez, dava bronca no

irmão.

- Vou dar uma prensa nela, Vô. Aposto que ela vai adorar se gabar de que sabe tu-

do. Ou quase. Parece que ela também não sabe como o lobisomem se curou.

- Nem com aquele monte de livros que ela lê? Nem nos que vocês têm em casa?

Duvido. Acho que ela sabe e não quer dizer.

- Mas que tipo de livro ensinaria isso?

- Não sei. Mas ela deve saber. Aproveita o teu ―abraço, e faz a jibóia falar‖.

- Não é isso, Vô. Eu não chamei a mãe de jibóia – Nando ria – eu é que vou bancar

a jibóia e dar um aperto nela.

- Ah, bom!

- O que vocês fazem no galinheiro? – era Vó Ester que estranhava a súbita visita às

galinhas.

- Viemos aqui ver se tinha pintinhos...

- Não, Carolina, não tem.

- Carola, vó. Carola.

- E o avô de vocês não disse que não temos mais pintos?

- Nós aproveitamos pra ver se tem ovos, mas não tem. – Seu Nicolau se justifica-

va.

- Ainda é muito cedo. Colhi ovos ontem à noite. Que tal ir brincar com Marcos?

- Vou ligar pra ele.

- Vamos contigo.

- O que essas crianças têm?

- São crianças. Só isso.

Seu Nicolau também saiu do galinheiro, mas foi conversar com Geraldo. Dona Es-

ter voltou pra casa sem entender o comportamento deles.

Marcos veio para a casa da avó e trouxe o vídeo game, mas ninguém se con-

centrava nos jogos. Acabou por ganhar todos.

- O que há com vocês? Ninguém ta jogando nada, hoje!

- É que faz tempo que a gente não brinca.

- O de vocês ta quebrado, Nando?

- Não.

- Então por que vocês estão tão ruins no jogo?

- Sei lá, provas, coisas pra estudar, futebol... nunca mais tínhamos jogado, per-

demos o treino, só isso.

Ainda jogaram mais um pouco, almoçaram e, depois do almoço, não consegui-

ram conversar, pois Marcos estava sempre com eles. Antes de uma da tarde, Morgana veio

pegá-los.

- Ah, tia, que pena! Por que não deixa pra ir embora mais tarde?

- Não, Marquinhos, nós temos que ir agora. Eles têm aula a uma e meia. Não tens

aulas hoje?

- Não, tem Conselho de Classe.

Queca, Nando e Carola não disseram nada, pegaram as coisas e puseram no carro,

indo para casa. Mal chegaram, vestiram os uniformes e foram de carona com a mãe para a

escola.

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Em casa, antes de dormir, enquanto Morgana preparava as aulas para o dia seguin-

te, os três falam dos mistérios da mãe. Ninguém se interessou por livro nenhum, nem mesmo

Queca falara em ler antes de dormir.

- Alguém entendeu alguma coisa que ela disse quando a gente entrou no capoeirão

ou quando chegamos na fonte?

- Não, Nando. Nada. Eu até pedi que ela dissesse o que era, mas ela desconversou.

E na volta pra casa, ninguém tocou no assunto. Acho que ela começou a perguntar sobre os

bichos do Geraldo de propósito. E tu ainda fosses otário, né?

- Eu, Queca? Quando?

- Quando começasse a falar sobre briga de galo. Ela esgotou o caminho de volta e

a ida para a escola falando da crueldade com os bichinhos, sem falar na aula de ―morcegolo-

gia‖ e nas explicações sobre plantas, bichos, depredação... Nem falamos no lobisomem.

- Nem perguntamos onde ela andou.

- Ela vai dizer que estava em casa, mesmo que tenha saído. Ninguém ligou pra cá

pra saber. Mesmo que ela minta, nunca saberemos a verdade.

- Por falar em verdade, nada de novo sobre o nosso Lobis.

- É, nada mesmo.

- Pois eu vou dormir. Amanhã eu penso nisso. Boa noite, Queca, boa noite, Nando.

- Boa noite. – Nando e Queca entreolharam-se e nada mais disseram. Deitaram-se,

Queca apagou a luz e foram dormir.

Capítulo IV – Muitas informações, poucas pistas

Depois que Morgana saiu, os três agiram normalmente: tomaram banho, jantaram,

assistiram à TV no quarto e disseram à avó que já estavam prontos para dormir no momento

em que ela foi ficar um pouco com eles. Dona Ester reclama da programação e diz que vai

deitar-se também. Seu Nicolau fora ao Bar conversar com os amigos. As meninas começam,

então, a contar para Nando sobre a conversa com tia Clarinda, que tentou assustá-las ao má-

ximo. A velha senhora disse que ninguém deve sequer ter curiosidade por essas coisas, que

bruxos e lobisomens são maus, que já haviam vivido algumas mulheres no povoado que ti-

nham a fama de ser bruxas, e que tinham sido expulsas pelos moradores, que não querem essa

ralé por perto.

Desviando o assunto, a mulher mostrou muitas fotos antigas a elas, falou dos ve-

lhos tempos, contou que a floresta de eucaliptos já fora muito maior e que os novos donos das

terras estavam ―acabando com tudo‖. Depois começou a fazer perguntas sobre elas, sobre

Fernando, sobre Morgana e parecia, principalmente, curiosa em saber se Morgana tinha algum

namorado. As meninas, como a mãe, detestavam esse tipo de conversa que, como dizia Mor-

gana, ―só serve de combustível pra fofoca, que é a atividade preferida de quem não tem nada

pra fazer‖. As meninas disseram que a avó deveria estar preocupada com elas por causa da

demora, agradeceram e Queca disse que as informações já eram suficientes para o trabalho de

Carola. No caminho, as duas sentiram-se frustradas:

- Ainda bem que não tens trabalho nenhum, senão ele viraria um trabalho sobre

―preconceito sobrenatural‖.

- Não entendi.

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- Esquece.

- Ah, que raiva! Eu odeio quando vocês dizem: ―esquece‖. Significa que não que-

rem me explicar as coisas. Eu tenho culpa de ser mais nova?

- Ta bom! – Érica resignara-se – é que ela não nos falou nada que se aproveitasse

sobre progresso, além de dizer que a Floresta de Eucaliptos era maior e que ―estão acabando

com tudo‖.

- Até aí eu entendi, mas e o preconceito sei-lá-o-que? – Queca suspirou.

- Histórias de Lobisomem, bruxa, vampiro, tudo isso é considerado sobrenatural.

- O que é sobrenatural?

- Ah, Carola, faz o favor! – Queca já estava irritada – vê se olha no dicionário! Ha-

ja saco pra conversar contigo!

Carola ficou emburrada, mas, discretamente, procurou um dicionário na casa da

avó para descobrir o que era sobrenatural. Encontrou, mas não entendeu, ficando ainda mais

chateada.

Marquinhos também não ajudara muito: falara sobre um menino que estudara com

ele, mas que se transferira de escola porque os colegas o chamavam de lobisomem e ninguém

se aproximava dele. Não sabia onde o garoto morava, e ―mesmo que soubesse, não diria‖.

Nando conta sua ida ao capoeirão com Geraldo, fala do medo que este tem da casa

velha e eles ficam intrigados com a audácia da própria mãe.

Muitas coisas eram obscuras. Eles sabiam muitas coisas, mas nenhuma delas dava

qualquer pista sobre o lobisomem. O que fazer? Os três estavam cansados e resolveram dor-

mir. Quem sabe, na segunda de manhã, mesmo com pouco tempo, uma pista pudesse ser en-

contrada.

A manhã chegou fria e nevoenta, anunciando o inverno. Carola acordou primeiro,

foi à salinha de TV que ficava conjugada com a cozinha da casa da avó, ligou o aparelho e

ficou assistindo a uma sessão de desenho animado, deitada no sofá. Quando se dá conta, o avô

está sentado ao seu lado.

- Que susto, vô!

- Susto?

- É. Não vi o senhor entrar aqui.

- Bobagem. É que eu estou descalço.

- Ah. Deve ser por isso que eu não ouvi.

- Cadê os outros dois?

- Dormindo.

- Ainda?

- Quer que eu os chame?

- Não. Depois eu falo com vocês. Mas longe da tua avó. Fale a eles que quero con-

versar.

- Ta bom.

Seu Nicolau volta para seu quarto, veste-se e, de pé em frente à Carola, lhe diz:

- Carolina, vou conversar com um velho amigo, depois vou cuidar dos animais. Vá

com teus irmãos, depois do café, até o galinheiro. Lá nós podemos conversar sem a intromis-

são da tua avó.

- Ta bom.

Seu Nicolau sai e Carola continua assistindo à TV. Nando acorda e vem deitar-se

na sala também.

- O Vô disse que quer conversar com a gente mais tarde, lá no galinheiro.

- No galinheiro? Pra que? Não tinha um lugarzinho mais fedorento pra escolher,

não?

- Ele disse que quer falar longe da Vó. Se achas fedorento, passa o teu perfume no

galinheiro.

- Gracinha.

- Oi, povo. – era Érica que se juntava aos dois.

- O Vô quer conversar com a gente...

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- No galinheiro. Olha o lugar que o velho marca uma reunião! Ele quer nos casti-

gar: cheirar estrume de galinha para aprender a não perturbar a vida deles.

- A troco de que?

- Não sei. Ele só disse que quer conversar longe da intromissão da Vó. O que será

que ele quer?

- Só indo lá pra descobrir. O que tem pro café?

- Não sei. Vim direto pro sofá.

- Bom dia, crianças. Dormi demais, até o avô de vocês já levantou. Vou fazer um

cafezinho novo. Tem bolo de laranja. – Dona Ester acabava de sair do quarto.

- Oba! – era o preferido deles, que levantaram para pôr as louças na mesa.

Depois de tomar café os três foram ver os canários de Geraldo, que os alimentava.

- Aí, ratinhos. Soube que vocês entraram na capoeira de novo com a mãe de vocês.

O que ela queria lá? Destruir armadilhas?

- Nem falou nisso. Fomos...

- Fomos ver a nascente e a vegetação. – Érica interrompera o irmão, pois não que-

ria que soubessem que haviam entrado na casa velha. Lembrou que Nando contara sobre o

medo de Geraldo ao chegar aos arredores da casa.

- Ah. Bom, acho que não tinha armadilhas por lá, não é?

- Não vimos nenhuma.

- Nessa época quase ninguém caça. É muito frio.

Conversaram ainda sobre os canários e acharam nojenta a maneira como a mãe dos

filhotes os alimentava: dava a impressão de que ela ―vomitava no bico deles‖. Enquanto fala-

vam sobre as antigas rinhas de briga de galos, viram Seu Nicolau ir direto para o galinheiro.

- Vamos lá perturbar um pouco o Vô?

- Vamos.

- Falou, Ge.

E assim, os três saíram da velha garagem de madeira onde Geraldo abrigava os

pássaros, indo para o galinheiro da casa ao lado.

- Todos presentes. Qual é a bronca? – era Nando que já começava reclamando.

- Não tem bronca nenhuma. Só pensei que vocês quisessem saber mais sobre o lo-

bisomem... – os olhos dos três faiscaram.

- Claro que queremos. Mas como o Senhor sabe disso?

- Eu contei, Queca. Quando levantei de madrugada, o Vô me falou o sobrenome do

lobisomem. Eu esqueci de dizer a vocês.

- E qual é?

- É Luppi. Tem uns parentes deles aqui, outros na cidade. Ontem pela manhã, fui

visitar alguns, saber se alguém estava disposto a falar sobre eles.

- Então conta, Vô! – Os três ficaram excitados com a perspectiva de ter mais in-

formações.

- Calma, Érica. Visitei os daqui e os de lá. Ninguém quis falar nada. Quando se to-

ca no assunto, eles dizem que não querem falar sobre isso, que é tabu.

- O que é tabu?

- Isso é melhor vocês perguntarem para mãe de vocês. Eu acho que é algo que não

pode ser mexido, nem mesmo falado. Mas quero dizer uma coisa: eu também estou curioso. E

se vocês precisarem de mim, se tiverem de fazer algo com a ajuda de um adulto, me chamem.

Não falem pra Ester, ela tem medo. Eu não tenho. Ajudo vocês no que precisar.

- Puxa, vô, obrigada mesmo!

- É, pode crer! Se a gente precisar, a gente pede.

- E se descobrirmos algo, te contamos, tá?

- Então está combinado. Quem descobrir algo, fala para os outros. Vou continuar

tentando. E se precisarem, peçam. Quero saber como é que esse raio de lobisomem deixou de

se transformar. Se é que deixou de se transformar.

- Como assim?

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- Talvez... talvez a mulher dele tenha prendido o bicho, dado alguma coisa pra ele

beber antes de se transformar... sei lá. E a tua mãe, vai ajudar?

- Não. Ela disse que não.

- Que pena. Inteligente como a danada é, é capaz de matar a charada rapidinho.

Mas ela não gosta de se meter na vida dos outros.

- É, mas o bicho já morreu, não morreu?

- Deve ter morrido. Ele deveria ter a idade do teu bisavô João. Se estiver vivo, tem

mais de noventa, com toda a certeza, e poucas pessoas vivem tanto, ainda mais uma que se

transforma em lobisomem.

- Vô. Tenho uma curiosidade: mulheres não se transformam em lobisomem?

- Boa pergunta, Carola. Mas essa, eu acho que só a tua mãe sabe responder.

- Droga!

- Droga nada, Carola! Quando chegar em casa, vou dar um ―abraço de jibóia‖ nela.

- Quê?

- Nando, fala língua de gente, faz o favor? – Queca, mais uma vez, dava bronca no

irmão.

- Vou dar uma prensa nela, Vô. Aposto que ela vai adorar se gabar de que sabe tu-

do. Ou quase. Parece que ela também não sabe como o lobisomem se curou.

- Nem com aquele monte de livros que ela lê? Nem nos que vocês têm em casa?

Duvido. Acho que ela sabe e não quer dizer.

- Mas que tipo de livro ensinaria isso?

- Não sei. Mas ela deve saber. Aproveita o teu ―abraço, e faz a jibóia falar‖.

- Não é isso, Vô. Eu não chamei a mãe de jibóia – Nando ria – eu é que vou bancar

a jibóia e dar um aperto nela.

- Ah, bom!

- O que vocês fazem no galinheiro? – era Vó Ester que estranhava a súbita visita às

galinhas.

- Viemos aqui ver se tinha pintinhos...

- Não, Carolina, não tem.

- Carola, vó. Carola.

- E o avô de vocês não disse que não temos mais pintos?

- Nós aproveitamos pra ver se tem ovos, mas não tem. – Seu Nicolau se justifica-

va.

- Ainda é muito cedo. Colhi ovos ontem à noite. Que tal ir brincar com Marcos?

- Vou ligar pra ele.

- Vamos contigo.

- O que essas crianças têm?

- São crianças. Só isso.

Seu Nicolau também saiu do galinheiro, mas foi conversar com Geraldo. Dona Es-

ter voltou pra casa sem entender o comportamento deles.

Marcos veio para a casa da avó e trouxe o vídeo game, mas ninguém se con-

centrava nos jogos. Acabou por ganhar todos.

- O que há com vocês? Ninguém ta jogando nada, hoje!

- É que faz tempo que a gente não brinca.

- O de vocês ta quebrado, Nando?

- Não.

- Então por que vocês estão tão ruins no jogo?

- Sei lá, provas, coisas pra estudar, futebol... nunca mais tínhamos jogado, per-

demos o treino, só isso.

Ainda jogaram mais um pouco, almoçaram e, depois do almoço, não consegui-

ram conversar, pois Marcos estava sempre com eles. Antes de uma da tarde, Morgana veio

pegá-los.

- Ah, tia, que pena! Por que não deixa pra ir embora mais tarde?

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- Não, Marquinhos, nós temos que ir agora. Eles têm aula a uma e meia. Não tens

aulas hoje?

- Não, tem Conselho de Classe.

Queca, Nando e Carola não disseram nada, pegaram as coisas e puseram no carro,

indo para casa. Mal chegaram, vestiram os uniformes e foram de carona com a mãe para a

escola.

Em casa, antes de dormir, enquanto Morgana preparava as aulas para o dia seguin-

te, os três falam dos mistérios da mãe. Ninguém se interessou por livro nenhum, nem mesmo

Queca falara em ler antes de dormir.

- Alguém entendeu alguma coisa que ela disse quando a gente entrou no capoeirão

ou quando chegamos na fonte?

- Não, Nando. Nada. Eu até pedi que ela dissesse o que era, mas ela desconversou.

E na volta pra casa, ninguém tocou no assunto. Acho que ela começou a perguntar sobre os

bichos do Geraldo de propósito. E tu ainda fosses otário, né?

- Eu, Queca? Quando?

- Quando começasse a falar sobre briga de galo. Ela esgotou o caminho de volta e

a ida para a escola falando da crueldade com os bichinhos, sem falar na aula de ―morcegolo-

gia‖ e nas explicações sobre plantas, bichos, depredação... Nem falamos no lobisomem.

- Nem perguntamos onde ela andou.

- Ela vai dizer que estava em casa, mesmo que tenha saído. Ninguém ligou pra cá

pra saber. Mesmo que ela minta, nunca saberemos a verdade.

- Por falar em verdade, nada de novo sobre o nosso Lobis.

- É, nada mesmo.

- Pois eu vou dormir. Amanhã eu penso nisso. Boa noite, Queca, boa noite, Nando.

- Boa noite. – Nando e Queca entreolharam-se e nada mais disseram. Deitaram-se,

Queca apagou a luz e foram dormir.

Capítulo V – Terça-feira bem lembrada

Quando levantaram pela manhã, Morgana já tinha ido trabalhar. Deixara a me-

sa posta para o café e um bilhete:

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Filhotes Gostaria que vocês fizessem o almoço. Que tal pizza? Temos três na geladeira,

prontas para serem assadas. É só seguir as instruções da embalagem. Chego quinze para o meio dia.

Beijos, Mãe

- Que bom! Pizza. Qual será o sabor?

- Qual será o sabor? – Érica ironizava – já fez as tarefas? Ou acha que ela vai

―deixar baixo‖? Nem encostamos no material durante o final de semana, ontem ficamos a

manhã toda na vó, e tem exames quase todos os dias!

- Nem tinha pensado nisso!

- E quando é que pensas nisso, Nando?

- Bom... em escola? Durante as aulas? – e saiu rindo para a sala, ligando a TV.

- Mas é melhor a gente fizer tudo certinho, se quisermos a ajuda dela pra algu-

ma coisa. – Érica o seguia.

- Queca, não viaja. Só vamos poder fazer mais alguma investigação lá nas ―ter-

ras altas‖.

- Por que não chamas Congonhas de Congonhas?

- Porque onde tem muito morro, as terras são altas, não são?

- Gracinha!

- Cadê a Carola?

- Ta dormindo. Vamos tomar café logo e arrumar nossos quartos. O resto da

casa não ta bagunçada, assim temos tempo de fazer as tarefas e assar as pizzas.

- Que é isso? Pensa que aqui é um hotel e que tu és a gerente?

- Nando, não começa! Vamos fazer o que tem que ser feito. Afinal, só temos

menos de duas semanas de aulas. Depois vêm as férias de inverno, não podemos bobear!

- Ta, então chama a Carola e vamos logo pra escravidão.

- Palhaço!

Érica chamou Carola. Tomaram café e dividiram as tarefas da casa, que nem

eram tantas nem tão difíceis: arrumar as camas, desfazer as mochilas do final de semana, lavar

a louça do café e fazer as tarefas, preparando o material para as aulas de terça-feira. Ainda

sobrou tempo para assistir a sessão de desenhos da manhã.

Onze e quinze, Érica ligou o forno elétrico e colocou duas pizzas pré-prontas

para assar. Eram seus sabores favoritos: quatro queijos e atum, deixando a de frango na gela-

deira.

- Acho que duas são suficientes para nós. O que vocês acham?

- Duas são suficientes para mim. Não vai assar uma pra vocês?

- Engraçadinho!

- Ta bom, eu te perdôo. – Érica já nem ligava tanto para as bobagens do irmão.

Sentaram-se para assistir TV, e logo Morgana chegou.

- Hum, que cheirinho bom!

- Oi, mãe.

- Oi. Ainda não puseram a mesa?

- Não, mas pode deixar que a gente faz isso. – Érica foi para a cozinha, seguida

por Carola.

- E o senhor, não vai ajudar as meninas?

- Eu tiro a mesa.

- Elas concordam?

- Elas sempre concordam, mãe.

- Nem sempre. Vou lavar as mãos.

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Quando Morgana voltou à cozinha, a mesa estava posta e uma pizza fumegante

a esperava, ao lado de uma jarra de limonada. Sentou-se, ajudou os filhos a se servirem e logo

começou a falar:

- Então, o que descobriram ontem? – os três se entreolharam, e foi Érica quem

falou.

- Nada. Parece cada vez mais difícil.

- Como, nada? Nenhuma novidade?

- Não.

- Nem do vô Lau?

- Ah! – Carola lembrara – ele nos disse o sobrenome do lobisomem: era Luti,

Lubi...

- Luppi.

- Como sabe? – Nando espantara-se.

- Conheço umas pessoas com este sobrenome. São descendentes de italianos.

Mas não conheço nenhum Luti, ou Lubi. Interessante... – Morgana servia-se.

- O que é interessante?

- Queca, Luppi vem do latim lupus e quer dizer lobo, lupino vem de lupinus, é

adjetivo referente a lobo. Luppi é italiano, que também é uma língua vinda do latim, deve

significar a mesma coisa. Interessante que seja o sobrenome justo de alguém que sofria de

lupinia, que é...

- O mal do lobisomem. Lembro quando falasse isso lá no capoeirão. Interessan-

te mesmo, mãe.

- Nando, quando os imigrantes italianos vieram para cá, muitos foram registra-

dos no Brasil com o primeiro nome e a profissão. Por exemplo: Giuseppe Scarpatto, traduzin-

do, José sapateiro. Interessante porque lobo não é profissão.

- Talvez quando vieram para cá as pessoas tivessem medo de que o cara fosse

um lobo.

- Ou um lobisomem. E o tenham registrado assim para saber quem era.

- É, faz sentido.

- Então a maldição deve vir da linhagem familiar.

- Que?

- Esqueçam. Aliás, por falar em esquecer, por que vocês não anotam o que sa-

bem para não correrem esse risco?

- Boa idéia, mãe. Assim fica até mais fácil a gente ver o que precisa.

- É bom anotar também aquilo que vocês precisam saber. Fica melhor para

programar o que vão investigar primeiro.

- Vou fazer isso agora.

- Não, Queca, termine de almoçar. O Nando tira a mesa e eu arrumo a cozinha.

Assim, podemos dar palpites; quatro cabeças pensam melhor que uma.

- Ta bom.

Depois do almoço, enquanto Morgana lavava a louça, Queca, depois colocar o

uniforme e pegar a mochila para ir à escola, senta-se à mesa e começa a enumerar as informa-

ções que tem:

Lobisomem, sobrenome Luppi, que vem do latim e quer dizer lobo; Uma casa velha no meio do capoeirão cheia de entulhos;

- Seria interessante enumerar os entulhos. Consegue lembrar quais são?

- Não.

- Por isso é importante escrever para não esquecer.

- Como vou escrever o que já esqueci?

- Espera teus irmãos e pergunta a eles. Depois do trabalho dou uma olhada, se eu

lembrar de mais alguma coisa, completo a lista. Por que não começa a fazer outra, com as

coisas que querem descobrir?

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- Ta bom. – na outra página, Érica começou:

Qual a cura do lobisomem

Por que a mulher do lobisomem não tinha medo de ser atacada

Por que eles venderam as terras e mudaram de lugar

De onde vinha o dinheiro do lobisomem, se ele não trabalhava - Quem disse que ele não trabalhava?

- A vó falou. Acho que ele só cultivava as terras. Isso é trabalhar?

- Era o trabalho dele e ainda é o de muitas pessoas.

- Não tinha pensado nisso.

- Talvez ele fizesse como os outros lavradores: plantasse para o sustento e vendes-

se o excedente para comprar o que não produzia.

- É, mas a vó contou que a mãe dele era viúva. Onde ela arranjou dinheiro para

comprar as terras?

- Talvez fosse herança do marido falecido. Ou ela tivesse herdado algo do marido,

vendido e comprado aquelas terras; talvez ainda, ela tivesse se aposentado pela morte do ma-

rido, depois essa pensão fosse passada para o rapaz.

- Bem pensado, mãe. Mas como vamos saber?

- Não sei. Mas será preciso saber o nome completo do lobisomem, o que é bem

mais difícil, porque os poucos que são vivos e o conheceram, vão se recusar a falar, se é que

lembram.

Érica logo pensou no avô. Falaria para os irmãos mais tarde.

- Que tal se tentasses descobrir isso?

- Já disse que não vou me meter, Érica. Não é assunto meu. O que eu vou ganhar

descobrindo?

- Vai matar nossa curiosidade.

- Não sou nenhuma assassina, minha querida. – Beijou a filha e saiu da cozinha.

- Mas mãe...

- Não, Érica. No final da tarde conversamos. Querem carona?

- Claro que quero. Economizar uma pernada nunca é demais. E eu quero te per-

guntar umas coisas no caminho.

- Que coisas, Nando? – as meninas pegaram o material e todos se dirigiam para a

porta de saída.

- Coisas que eu falo quando chegar no carro. Aqui é perigoso de tentares fugir. -

Morgana levantou as sobrancelhas, mas nada disse.

Mal saíram da garagem, Fernando começou com o inquérito:

- Sabe o que o vô Lau disse?

- Se não me contares, não posso saber.

- Que tu sabes o segredo.

- Que segredo?

- Da Cura do Lobisomem.

Morgana soltou uma sonora gargalhada.

- Vocês devem estar brincando?!

- Não. Ele disse que acha que sabes, porque no meio do monte de livros que lês

deve ter algum que traga escrito.

- Teu avô disse isso? – Subitamente, Morgana ficara séria.

- Disse. – Alguns segundos de silêncio, que pareceram séculos, e Morgana respon-

deu:

- Ele está enganado. Não sei a cura para a lupinia. Se soubesse, diria.

- Tem certeza?

- Absoluta.

- Mas por que ele diria isso?

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- Talvez ele pense que eu encontro resposta para qualquer pergunta nos livros.

Nem sempre é assim.

- Mãe? – Carola perguntava – e o que é tapu, tadu...

- Queres dizer TABU?

- Isso! O vô falou essa palavra... – mas eles acabavam de chegar em frente à Esco-

la.

- Na volta eu explico. Façam lembrar. Beijo. – Os três beijaram a mãe e desceram

do carro.

- Boa memória, Pulga!

- Posso ser uma pulga no tamanho, mas minha inteligência é ―elefantal‖.

- É o que?

- ―Elefantal‖ – disse, como se fosse o óbvio – do tamanho de um elefante!

- O teu cérebro que é o de um quadrúpede, não necessariamente de um paquider-

me. Não vou mais te chamar de pulga, vou chamar de mula!

- Palhaço! – E Érica ria solto da discussão dos irmãos.

As aulas de terça-feira transcorreram bem piores que o normal: a menos de duas

semanas das férias, a maioria dos professores resolvera fazer algum trabalho ou prova, fazen-

do com que o pouco tempo livre que teriam, simplesmente desaparecesse. Nando, como sem-

pre, saíra mal humorado, dizendo que o professor de Matemática resolvera rever toda a maté-

ria do bimestre e passado várias páginas de exercícios do livro como tarefa. E o conteúdo da

sexta série era bem extenso. Carola, além das provas já marcadas, tinha ainda uma pesquisa

sobre a origem das festas juninas e da fogueira, as quais ela nem fazia idéia de onde poderia

encontrar. Érica, que também tinha as duas semanas cheias de provas, ainda tinha a paródia de

uma música para apresentar para a Professora de Português.

- Acho que vou pedir ajuda para a mãe. Ela é Professora de Português também,

deve ter boas idéias. Pena que ela não dá aulas para a sétima série. Acho que seria mais fácil.

- Ela deve ter uma pilha de provas e paródias para corrigir. Trabalhando com o

Ensino Médio deve ser bem pior, muito mais coisas que a gente. Acho que ela vai ter menos

tempo que nós nestas duas semanas.

- É verdade, Nando.

- Mas eu vou pedir a ela, pelo menos, que me diga onde encontrar o que a Do-

na Jussara pediu.

- Ah, Carola, estás na quarta série, não precisa caprichar tanto.

- Eu é que não posso vacilar, ano que vem é a minha formatura no Ensino Fun-

damental. Preciso ―aprender‖ de verdade como se faz uma boa paródia!

E assim eles tiveram que dar um tempo nas investigações. Tinham afazares su-

ficientes para encher as duas semanas que estavam por vir.

Nem sequer lembraram que o avô se oferecera para ajudar nas investigações.

Tudo ficaria para o final de semana. Ou para as férias.

Morgana não fora para casa no final da tarde: tinha, ainda, três aulas à noite,

portanto só chegaria depois das nove.

Queca e Carola discutiam as anotações, e Fernando comia biscoitos em frente à

TV. Nove e quinze, Morgana chegou.

- Oi, pessoal!

- Oi, Mãe. Pronta para o inquérito? – Fernando largara o pote de biscoitos e

correra ao encontro da mãe, tirando-lhe o material das mãos.

- Puxa, já tinha esquecido. Posso tomar banho e comer antes? – Morgana ironi-

zava.

- Ta bom, vou te dar essa chance.

Morgana tomou banho, trocou as roupas, apanhou uma maçã e veio sentar-se

com os filhos. Mal dera a primeira mordida, Fernando começou:

- Estive pensando...

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- Ah, não, pode continuar pensando! Primeiro o tatu.

- Tabu, sua mula!

- Fernando! – Morgana parecia indignada. – Se começarem assim, eu não vou

explicar coisa nenhuma!

- Ta bom, mãe, ta bom... – ele resignara-se. Pegou o pote de biscoitos outra vez

e baixou o volume da TV, que continuou olhando, sem prestar muita atenção.

- Mãe, o... como é mesmo o nome?

- Tabu, Carola.

- Ah, ta. Tabu, tabu, tabu, tabu...

- Pra que repetir tanto?

- Pra não esquecer. Cada vez que vou falar, sai uma coisa diferente... – Morga-

na riu da técnica da filha.

- Bem. Tabu é uma certa restrição, proibição de alguma coisa. Pode ser de fun-

do religioso, supersticioso, enfim. De certa forma, é algo que não deve ser feito. Sobre o que

era mesmo o tabu?

- A família do lobisomem não fala no assunto, diz que é tabu.

- Faz sentido. Geralmente o tabu está ligado a alguma punição, por isso é, ge-

ralmente, de fundo religioso ou supersticioso. Entenderam?

- Entendemos. É mais ou menos o que o vô Lau falou.

- Que bom! O vô Lau é um cara inteligente.

- Posso falar agora?

- Não. – as meninas disseram em uníssono.

- Agora é a minha vez. Deixa a palhaçada pro final. – Fernando mostrava-se

cada vez mais chateado com as irmãs, mas não se atrevia a discordar. A presença da mãe

sempre lhe servia de ―freio‖.

- Mãe, perguntasse se eu lembrava de tudo o que tinha na casa, lembra?

- Lembro. Também falei que eu poderia dar uma olhada para ver se lembro de

algo que esqueceste.

- Quando fomos na casa velha, eu estava com o meu caderninho. Já tinha feito

umas anotações, só não eram organizadas como sugerisse. Eu desenhei a casa como ela é por

dentro. – e mostrou o desenho à mãe.

- Legal. Pegue papel, régua, lápis e borracha. Vou transformar o teu desenho

numa planta baixa, assim vai ficar melhor.

- Numa o que?

- Numa planta baixa. É um desenho da casa, visto de cima, mas sem o telhado.

Carola fora ao quarto pegar o que a mãe pedira e, enquanto Morgana desenha-

va e as irmãs observavam, lembrou que Nando queria perguntar alguma coisa.

- Agora é a tua vez, Nando.

- Pensei que já tivessem esquecido que eu moro aqui.

- Eu sabia que a ladainha ia começar! Não disse que ele só queria encher o sa-

co?

- Queca, quer respeitar teu irmão, fazendo o favor? – a garota limitou-se a bu-

far e calar-se.

- Pode falar, Nando.

- Como eu ia dizendo, estive pensando: o vô Lau falou que é possível que o lo-

bisomem nunca tenha parado de se transformar.

- É mesmo, eu lembro que...

- Quer calar a boca? Eu não interrompi na tua vez!

- Crianças! – Morgana precisava intervir constantemente. Os três pareciam dis-

putar a atenção da mãe no pouco tempo que ela tinha para eles. – Meninas, por favor, não

interrompam. Nando, pode continuar.

- Ele disse que a mulher do lobisomem pode ter dado algo para ele beber, antes

de se transformar, algo que o fizesse dormir, ou se acalmar. O que acha?

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- Acho difícil. Poções desse tipo são muito recentes e os lobisomens, geralmen-

te, não se casavam, pois o segredo da lupinia não devia vazar.

- Que? Poções? Do que está falando?

- Bom – Morgana deu um longo suspiro. Parecia escolher as palavras para falar

– certos chás, vamos chamá-los assim, acalmam, mas a descoberta deles é recente, logo é

muito difícil que a esposa do nosso amigo usasse esse tipo de coisa com ele. Mas é uma pos-

sibilidade, embora remota.

- Peraí, mãe. Explica direitinho esse negócio de poção.

- Fernando... bom...

- Pode parar, mãe. Tu falas as coisas e depois volta atrás. Poção. PO-CÂO. En-

tendeu? Quero saber por que chamasse de poção. Não vem com essa história de chá! – Fer-

nando ficara tão agitado que estava de pé em cima do sofá.

- Nando... tem certas coisas que eu não posso explicar...

- Por que não quer dizer. Tu mesma dissesses isso lá na capoeira, lembra? Eu

lembro. Muito bem! Chega de historinha, mãe. Não precisa tratar a gente como criança.

- Mas vocês SÃO crianças!

- Ah, não. Assim não vai dar pra conversar. A vó ta te dando aulas de como

contar as coisas pela metade? Tu nunca fosses assim! O que mudou agora? Por que tanto mis-

tério?

- Vou pegar um café. – e saiu da sala.

- É tempo. Ela quer tempo para pensar, mas hoje ela não escapa!

- Calma, Nando. Tenho que reconhecer que estava errada: realmente pensasses

em algo que se aproveite, mas vai com calma com a mãe, ta?

- Vou. Pode deixar. Venço a ela nem que seja pela insistência!

Morgana voltara para a sala com uma xícara de café.

- Aí, pode começar.

- Ta bom, Nando. Vou te explicar. – os três sentaram-se e começaram a ouvir a

explicação. Era como se bebessem cada palavra da mãe.

- Quando o vô Lau falou sobre os livros, ele sabia o que estava dizendo: já

conversei com ele várias vezes sobre o assunto. Ele sabe que eu estudo o aspecto religioso de

alguns povos, principalmente dos Celtas. Tudo começou por acaso, quando voltei a estudar

inglês: a base da língua inglesa está na antiga língua falada pelos celtas, que era um povo nô-

made, que geralmente casava-se com pessoas de outros povos. Também há influência do la-

tim. Vocês sabem que somos descendentes de Europeus e, por muitas ―coincidências‖, eu

diria que somos descendentes dos antigos Celtas.

Estudando essas coisas, me deparei com muitos dos mitos de que se houve fa-

lar: aparições... bruxas.... vampiros... e lobisomens! – Os três se entreolharam – Mas isso não

quer dizer que eu saiba a cura: apenas que eu sei alguma coisa sobre o assunto. Por isso eu

sabia do termo lupinia, que vem do latim: eu estudei latim para saber melhor Português, aca-

bou ajudando no inglês, e por isso eu usei o termo poção. Nada demais.

- É só isso?

- É. É só isso.

- Então por que o mistério?

- Por que quem estuda a religião dos celtas, geralmente é chamado de bruxo, ou

bruxa. Há, inclusive, religiões pagãs que estão renascendo, onde as pessoas se auto-

denominam bruxos. Mas nós vivemos numa cidade pequena, onde o preconceito é muito

grande. Eu mesma já tive problemas por falar destas coisas para os alunos, algum tempo atrás.

Por isso evitei falar nisso pra vocês. – depois de algum tempo, Nando continuou.

- Ta bom, entendi. Mas vamos usar o termo certo: poção. A que tipo de poção,

especificamente, estavas te referindo?

- Poções calmantes, à base de plantas que têm a propriedade de acalmar, fazer

dormir. O maracujá, por exemplo. Seu chá é extremamente calmante, mas se preparado da

maneira certa, pode fazer uma pessoa dormir horas a fio. Talvez mais de um dia. Quanto ao

uso com o lobisomem, há uma poção, chamada mata-cão, que não impede a transformação,

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mas acalma de tal forma, que o bicho dorme o tempo todo, ou, se fica acordado, é inofensivo.

Ela é preparada à base de extrato de maracujá, chuchu e alface. As três plantas têm proprieda-

des altamente calmantes, mas, misturadas, têm um cheiro horrível: só quem realmente precisa

é que toma uma coisa dessas. Sem contar que nesse tipo de poção, açúcar fica fora: pode alte-

rar o efeito.

- Puxa, mãe! Estou pasmo!

- Não, não precisa pasmar. Só que agora vocês sabem o porquê de muitas coisas.

Entenderam?

- Entendi, mas...

- Olha só! – Carola mostrava o desenho da casa, que ilustrava detalhadamente os

cômodos e os objetos maiores: o fogão, o guarda louças, os baús, todos estes com setas que

indicavam o nome.

- Uau! Legal!

- Eu não lembrava mais da mesa.

- O que é namoradeira?

- É aquele banco comprido, Carola, que estava na sala.

- Ah...

Assim, passaram a discutir sobre a casa velha, Queca fazendo anotações, Mor-

gana respondendo perguntas. Mas acabaram por esquecer de perguntar algo muito importante:

as mulheres não se transformam em lobisomem?

Capítulo VI – Parentes e contra-parentes

Na manhã de quarta-feira, Morgana saíra para trabalhar sem tomar café: não queria

fazer barulho para não acordar os filhos. Eles haviam ficado acordados até muito tarde, pois a

conversa e as explicações da noite anterior se estenderam pela madrugada. Mas ela estava

tranqüila: conseguira responder as perguntas dos filhos sem comprometer o segredo. Precisa-

va mantê-lo o máximo de tempo, se possível para sempre.

Érica acordou às dez e meia com o telefone tocando.

- Alô?

- Quem fala? – era uma voz desconhecida, aguda, que esticava as palavras: quem

faaaaala, e Érica achou que o telefonema era um engano.

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- É da casa da Professora Morgana.

- Ah, meu beeeem! E voooocê? Queeeem é?

- Sou a filha mais velha dela: Érica.

- Ah. Queeeerida! Eu só a vi quando era um liiiindo bebêêêê!

- Quem é a Senhora?

- Sou a tia Niiiilda!

- Tia Nilda? Acho que a senhora deve estar procurando uma outra Morgana....

- Nãããão, meu beeeem! É a sua mããããe! Ela estáááá?

- Não, mas acho que ela vem almoçar. Quer deixar recado?

- Ah, coooomo é espeeeerta! Diga que a Niiiilda ligou, meu beeeem! Mas ela

nãããão precisa ligar de voooolta. Eu meeeesma ligarei ao meeeeio diiiia!

- Ok. Eu dou o recado. – e desligou o telefone, ainda intrigada.

- Ui! Que susto! Panaca!

- Panaca por quê?

- Ta aqui, grudado em mim! Quer me matar do coração?

- Não. Só queria ver se dava pra ouvir a conversa. – disse Nando, encaminhando-

se para a cozinha. – Quem era?

- Uma tal de tia Niiiilda.

- Que? – Queca desatara a rir.

- É que a mulher estica as palavras. O nome deve ser Nilda. Disse que era tia, né?

Vai ver é uma maluca que já trabalhou com a mãe em alguma escola.

- É. Vai ver?

- Aí, ontem a gente falou, falou, perguntou, e eu esqueci de uma coisa importante.

- O que?

- Aquele lance que a Pulga falou, das mulheres não se transformarem em lobiso-

mem.

- É mesmo, cara! Vacilamos.

- É, mas hoje eu não vou vacilar.

- Mas hoje é quarta-feira, a mama trabalha até dez e meia da noite. Acho que não

agüento acordada tanto tempo. Ainda mais depois de ontem. Que horas fomos dormir?

- Nem sei. Mas eu agüento. Vou esperar o quanto for preciso.

Quinze para o meio-dia, Morgana chegava em casa.

- Oi, povo!

- Oi, mãe! Aí, podemos bater um papo?

- Podemos, desde que não seja uma ―sessão lobisomem‖ outra vez. Ainda estou

cansada de ontem. Quase não dormi com medo de perder a hora.

- Ah, mãe, qual é? – Nando ainda insistia.

- Não, Fernando. Amanhã a gente continua, ta? - e encaminhou-se para seu quar-

to, onde sempre deixava o material escolar e a bolsa.

- Mãe, uma tal de tia Nilda ligou. Disse que ligaria ao meio dia.

Quando ouviu o recado, Morgana parou de repente:

- A tia Nilda ligou? Aconteceu alguma coisa?

- Ela não disse nada. Só que ligaria ao meio dia. Por que, mãe? Quem é a tia Nil-

da?

- Irmã da tua avó.

- Da vó Ester? Essa eu não conheço!

- Não, Queca, da vó Viviane. Não conhece mesmo. Ela mora há muitos anos em

outra cidade, raramente procura os parentes. – De repente, o telefone tocou. – Pode deixar que

eu atendo. – disse Morgana, olhando para o relógio de parede, que passava alguns segundos

das doze horas.

- Alô?

Os três tentaram se aproximar, mas Morgana pediu ―um minuto‖, cobriu o fone

com a mão e pediu aos filhos que a deixassem sozinha. Os três não gostaram nada, mas não

insistiram: foram para a cozinha pôr a mesa para o almoço.

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- Mais mistérios. Sabe que, às vezes, tenho a impressão que minha própria mãe é

uma estranha?

- Que exagero, Nando!

- Exagero nada, Queca. Até uma irmã da tia Viviane de quem ela nunca tinha fala-

do liga aqui pra casa. O que mais ela nos escondeu?

- Exagero, sim! A vó Viviane tinha quantos irmãos? Eu nem sei. Tu sabes? Co-

nheces todos eles?

- Não. É verdade, quando a mama nasceu, a vó Viviane já tinha uns quarenta

anos... mas mesmo assim, ainda acho um bocado de mistério. Precisamos fazer mais um bom

inquérito com a mama.

Continuaram colocando o almoço na mesa e conversando sobre o assunto, quando

Morgana entrou na cozinha.

- E aí, o que a velha queria?

- Mais respeito, Fernando: ela é tua tia-avó!

- O quê?

- Claro: irmã da tua avó, tua tia-avó. Ela vem nos fazer uma visita.

- Ta, então avisa quando é: vou precisar sair de casa.

- Fernando?!

- Ah, mãe, dá um tempo! Visita de cortesia, em pleno século XXI? Qual é? A ve-

lha acha que não tens mais o que fazer?

- Ta bom, eu te aviso pra saíres de casa.

Os três não entenderam: normalmente, Morgana começaria a falar sobre relações

familiares, sobre conhecer os parentes, sobre... sobre... enfim, muitos sobres, mas, desta vez,

concordou com Fernando, o que levantou suspeitas.

- Qual o problema, mãe?

- Nenhum. Por quê?

- Porque tu sempre nos obrigas a ficar em casa quando algum parente vem aqui.

Por que podemos sair no dia em que a tia Niiiilda vier?

- Por que ela é uma senhora de idade e vocês vão achar chato conversar com ela.

Se quiserem sair, tudo bem.

Os três serviram-se do almoço preparado por Érica: macarrão com molho de atum.

Comeram em silêncio, achando estranho o comportamento da mãe; mesmo assim, não disse-

ram nada. Morgana percebeu o constrangimento e, querendo aliviar o clima, entabulou a con-

versa sugerida por Fernando quando ela chegou em casa:

- Acho que ontem muitas coisas foram esclarecidas, não é mesmo?

- É mas faltou uma importante – Nando se aproveitava rapidamente da situação,

ambos observados pelas irmãs – mulheres não se transformam em lobisomem, mãe?

- Boa pergunta, Nando.

- Não é minha. É da Pulga.

- Não gosto que chames a tua irmã assim!

- É brincadeira, mãe. Mas tudo bem, esquece a Pulga e responde.

Morgana não quis discutir para não piorar o clima entre eles outra vez.

- Antigamente, as mulheres não saíam à noite sozinhas, mas sempre acompanhadas

por um homem, que as protegia. Imagine uma mulher que precisa ir à casa de alguém à noite,

nos tempos em que o teu bisavô era jovem: não tinha iluminação pública, muitos lugares eram

desabitados, as casas ficavam muito longe umas das outras. Um homem a acompanha para

fazer a segurança. Se ouvissem um barulho, ou um rosnado de cão, por exemplo, ele trataria

de colocar a mulher num lugar seguro e ―caçar‖ o animal. Ou descobrir a origem do barulho.

Por isso os homens eram mais vulneráveis ao ataque dos lobisomens. Eu nunca soube de uma

mulher que tivesse levado uma mordida de lobisomem. Mas a pergunta é interessante. Muito

interessante!

Não puderam conversar muito, pois tinham dormido até mais tarde e precisavam

preparar o material para as aulas e vestir os uniformes. Morgana arrumou a mesa e lavou as

louças. Saíram de carona com a mãe para a escola, mas não lembraram de mais nada referente

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ao lobisomem para conversar e estavam preocupados com o final do semestre: provas e traba-

lhos!

Quinta à tarde era folga de Morgana, e eles haviam saído para a escola achando

que ela estava muito nervosa. Geralmente, era bastante serena.

- O que acham que ela tem?

- Deve ser estresse, Queca. Imagina a quantidade de coisas que ela deve ter para

corrigir? Ontem à noite, ainda vi, na mesa, um papel sobre um curso para professores que

acontece bem na semana de férias. Ela deve estar uma pilha!

- É. Deve ser.

Morgana estava realmente nervosa, mas não com os afazeres. O telefonema da tia

a deixara preocupada, mas ela conseguira disfarçar bem. Pelo menos até aquele dia. Só que tia

Nilda tinha marcado a visita para quinta-feira à tarde, bem na folga de Morgana, para evitar a

presença dos filhos dela. Tudo isso fora combinado durante o curto telefonema. O problema

maior, na verdade, não era a tia Nilda: ela não viria sozinha. Um velho amigo de Morgana a

acompanharia e ela não estava nem um pouco interessada que seus filhos conhecessem um

―tipo estranho‖ como seu amigo. Ele tinha ―a língua fora da boca‖ e Morgana não gostava

nem um pouco disso!

Estava alimentando Jezebel, a gata, que andara sumida quase o tempo todo:

- Malandrinha! Onde tem se metido, hein? – conversar com Jezebel lhe tran-

qüilizava. Jezebel era uma gata persa cinza, muito tranqüila, mas que dava bastante trabalho:

apartamento acarpetado com gato peludo é uma combinação excêntrica! A campainha tocara,

despertando Morgana de sua paz, fazendo seus nervos tinirem na freqüência do som: tia Nilda

chegara com Herculano!

Morgana deixara a gata na área de serviço e viera atender à porta, tirando pêlos

cinza de sua roupa preta.

- Oi, tia! – ela abraçara Morgana antes mesmo de cruzar a porta.

- Ah, coooomo está boniiiita, a viuviiiinha!

- Tia, não fale assim!

- Ah, meu beeeem! Seeeeu marido era maraaaavilhoso, mas já nãããão está mais

aquiiii! Mas me deeeeixe entraaaar. Assiiim poooodes me coooontar sobre os namoraaaados!

Nilza entrou, seguida por Herculano. Morgana surpreendeu-se: ele continuava

muito bonito. Alto, atlético, olhos muito azuis e um cabelo castanho claro lhe davam ares de

astro do cinema. Mas o que Morgana mais gostava nele fisicamente era a barba, quase sempre

por fazer.

- Oi, Mo.

- Oi, Herculano.

- Que cerimônia! Me deixa te dar um abraço. – Morgana fez desse abraço o mais

breve que pôde: tia Nilda os apresentara, na esperança de que namorassem uns dois anos de-

pois da viuvez. Ficaram muito amigos, mas Morgana não deixara passar disso. Herculano,

como sempre, vestia-se de maneira muito peculiar: negro dos pés à cabeça, com seu detalhe

quase imperceptível, que Morgana só notou quando sentou-se: meias roxas! Isso a fez come-

çar a rir.

- Que foi, Mo?

- Nada... nada não.

- Ah, meu beeeem! O que é iiiisso? Segreeeedos agoooora?

- Não, tia. Só tinha esquecido que o Herculano adora um detalhe chocante.

- Ela está falando das minhas meias. – e puxou a barra das calças e levantou os pés

para que tia Nilda as visse melhor. – Nem te conto a cor da cueca! – disse, sorrindo.

- Eu só imagino!

Depois do incidente das meias, Morgana aquietou-se. Sentia-se bem na presença

dos dois e estava tranqüila, pois as crianças tinham aula até as cinco e meia. Este foi seu mai-

or erro: o tempo! Ficou tão à vontade com os dois que esqueceu-se do tempo!

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Capítulo VII – Uma visita muito estranha

Morgana, Herculano e tia Nilda tomavam café e conversavam quando o barulho da

porta abrindo alertou-os: um mensageiro dos ventos fora pendurado na porta assim que muda-

ram para aquele apartamento para que Morgana pudesse, pelo som, saber quando os filhos

entravam e saíam de casa. O barulho fez com que ela olhasse o relógio de parede: seis e quin-

ze! Eram as crianças! Levantou-se de sobressalto, mas tia Nilda a tranqüilizou.

- Pode deixar, meu bem! Vocês dois continuam conversando aqui na cozinha, en-

quanto isso eu recebo as crianças e converso com eles. Sejam breves, por favor! – e saiu em

direção à porta.

- Oláááá, meus amoooores! Eu sou a tia Niiiilda! Tu deeeeves ser a mooooci-

nha que atendeeeeu o meeeeu telefoneeeema! – os três se entreolharam.

- Cadê a minha mãe? – Nando perguntava, olhando para dentro, impedido de

avançar pelo corredor pela presença maciça da tia: ela devia pesar uns noventa quilos, distri-

buídos em pouco mais de um metro e sessenta.

- Ah, meu beeeem! Eu vim aquiiii para trazeeeer um amigo da suuuua mããããe,

que há muuuuito tempo precisaaaava falaaaar com eeeela. Vocês me fazeeeem companhiiiia

enquaaaanto eles conveeeersam?

Queca olhou para os irmãos e decidiu tomar uma iniciativa. A tia só poderia es-

tar fazendo aquilo, senão a pedido, mas com o consentimento da mãe.

- Claro, tia. Será um prazer. Não é galera?

- Quem... – Fernando não conseguiu terminar a frase: Queca pisara tão forte em

seu pé que ele engasgou-se. Pensou que nem mesmo os tênis protegiam mais seus pés....

Foram para a sala, onde puderam ver, ao passarem pela porta da cozinha no corre-

dor, que a mãe estava encostada na pia, e havia um homem vestido de negro, de frente para

ela, portanto de costas para a porta, a pouca distância.

- Quem é o amigo? – Nando ficou curioso.

- Herculaaaano...

- Ele é grande, hein?! – Nando referira-se à estatura: certamente mais de um metro

e oitenta.

- Ah, siiiim. Descendeeeente de Euroooopeus... são toooodos graaaandes...

- Nem todos – ele resmungara.

- Como, querido? – desta vez ela não esticara as palavras.

- Nada, não, tia.

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Assim, tia Nilda senta-se no sofá e começa a falar sobre a vó Viviane, que morrera

três anos antes. Pergunta muito. Sobre as coisas que ela os ensinou, se eles nunca tinham visto

nada estranho, ou mesmo assustador, na casa da avó. Nando acha tudo muito esquisito e acaba

achando que a tia Nilda era só uma velha maluca. Mas percebeu que, à medida em que con-

versavam, ela falava mais baixo, e também parara de falar daquele jeito engraçado, esticando

algumas vogais das palavras:

- Ah, mas me contem, me contem! – ela parecia apreensiva – Nunca viram nada

mesmo?

- Não, tia. Mas o que, especificamente, nós poderíamos ter visto?

- Ah, não sei... vocês é que têm que me contar... Sabem, há muitos anos, a tua fale-

cida avó, num passeio com o teu avô, falecido também, que Deus os tenha, viram uma bola de

fogo que os seguia a pouca distância e muitos diziam que era um tesouro enterrado que o teu

bisavô, sabe-se lá o nome dele, morreu quando o vô Nico era criança, tinha enterrado.

- Ah, essa não! Não faltava mais nada!

- Cala a boca, Nando! – era Queca, entre dentes, pois parecia estar anotando men-

talmente o que a tia dizia. – e o que mais, tia?

- Ah, minha queridinha se interessou... muito bem, quando ameaçava tempestade,

as pessoas da vizinhança já logo traziam um machado para que ela ―cortasse‖ a tormenta, li-

vrando as lavouras do estrago da chuva, que vinha bem mais fraca...

Fernando estava de boca aberta, literalmente! ―Como é que alguém pode ‗cortar‘

uma tempestade‖? O garoto, quanto mais tempo passava com a tia, mais pensava que ela tinha

alguns parafusos a menos, ou então, gastos pela idade.

- E, também, uma vez, uma bruxa maldosa estava entisicando um menino, eu e a

tua avó, falecida, que Deus a tenha, descobrimos a malvada e fizemos com que ela confessas-

se, tirando os poderes da bandida sobre o menino... Ah, eu me lembro muito bem...

- Tia, quer dizer que bruxas más existem mesmo?

- Bruxas boas também!

- E... como vocês conseguiram tirar os poderes dela?

- Ah, queridinha... – a mulher parecia preferir Queca aos outros dois – eu posso te

contar tudo, nos mínimos detalhes, mas isso se vocês me fizerem uma visita. Posso até mos-

trar o pilão, se quiserem, ainda o tenho guardado. Mas eu quero saber, mesmo, é se vocês

nunca fizeram nada de estranho, de poderoso...

- E eu quero é saber, mesmo, o que é que a mãe tanto conversa com o tal de Hércu-

les...

- Herculano, animal.

- Grande como Hércules!

- Ta é com medo!

- To é com fome!

- Está bem, meus queridos, vou dizer para que se apressem. Por favor, não vão até

a cozinha, eles não devem ser interrompidos por vocês, sua mãe vai ficar preocupada, o que

não é bom para ninguém! – levantou-se com dificuldade por causa do peso e foi em direção à

cozinha.

- Tia Nilda.... Humpf! Tia Orca!

- Palhaço! E tanso! Viu quanta coisa interessante ela falou? Prestou atenção?

- Não vi nada! Ouvi! O que? Aquele monte de abobrinhas, como bola de fogo que

persegue pessoas, ou tirar poderes de bruxas... Peraí? Como alguém pode tirar o poder de uma

bruxa?

- Só outra bruxa, seu imbecil! Lembra de toda aquela conversa mole que a mãe

veio pra cima da gente, com estudar ―aspectos religiosos de outros povos‖?

- Ta pensando o mesmo que eu?

- Não sei se tens capacidade para tanto.

- Deixa de bancar a Sissi e diz logo.

- Que Sissi?

- Que ta Si-sintindo-a-tal.

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- Que anta! É SE-SEN-TIN-DO! Fugiu da escola, é?

- Fugi... tava dentro da tua mochila quando tu pulasses o muro. Fala logo!

Mas nesse momento, a tia Nilda voltava da cozinha com Morgana e o ―Hércules‖ à

tira-colo.

- Que tal a gente pedir uma pizza? Ou vocês preferem sair para comer? – Era o

troglodita-quase-louro que tentava ser amigável. Érica achou seu sorriso LIN-DO! Carolina

adorou a idéia. Fernando fez cara feia.

- Ei, Nando, o que prefere?

- Eu? Qualquer coisa... sou minoria numa casa onde predominam as mulheres...

- Ah, mas o que é isso! Verdade que nós dois somos a minoria, mas eu faço ques-

tão de pagar, mas só se tu escolheres...

Fernando percebeu que o homem tentava aproximar-se dele. Olhou-o de alto a

baixo – felizmente não viu as meias roxas – analisando o que um tipo como aquele poderia

querer e, mais especificamente ainda, querer com Morgana.

- Gosta de quatro queijos? É a minha preferida!

- A minha também!

Carola atalhou: - Verdade, Nando?

- Verdade. – Foi uma resposta dita tão baixo que mais parecia um sussurro. Nem

mesmo Fernando soube como ele o ouvira.

- E vocês, mulheres? O que preferem? Sim, porque os homens comem mais, e uma

pizza gigante só dá pro Nando e eu. Certo, Nando?

- Não sei... – o garoto ainda estava desconfiado.

- E vocês?

Nando foi se perdendo em pensamentos e quando se deu conta, a campainha toca-

va: o entregador de pizzas chegara com quatro, QUATRO pizzas gigantes e refrigerantes de

diversos sabores.

Jantaram, riram, disseram piadas, mas nada de cunho sobrenatural foi falado. Co-

meram e divertiram-se, e sentiram-se cansados. Morgana, quando viu a cara de sono dos fi-

lhos, insistiu para que fossem tomar banho e prepararem-se para dormir, o que as meninas

fizeram primeiro, sem reclamar. Nando ainda esperou por elas, pois o apartamento só tinha

um banheiro. Mas logo que elas vieram dizer boa noite ele foi direto tomar banho. Parecia

tonto de tanto sono...

Capítulo VIII – O comprovante de Renda

A sexta-feira começou diferente: os três levantaram cedo e prepararam o café

da manhã. Quando Morgana acordou, quinze para sete, sobressaltou-se, pois pensou que teria

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que sair correndo de casa, sem ao menos tomar café. Correu para a cozinha para preparar algo

para o desjejum das crianças e surpreendeu-se ao ver, sentados à mesa, os três filhos.

- Que milagre é esse?

- Não sei. Que milagre, mãe?

- Vocês três, levantados esta hora?

- E com o café pronto. Se quiser tomar um banho rápido, como gostas, ainda dá

tempo.

- O que aconteceu, Queca?

- Nada. Acordei cedo, levantei, fiz o café; o Nando levantou logo depois, pôs a

mesa. E a Carola acabou de acordar, por isso ainda está comendo. Nós vamos estudar para

umas provas. E aí, café ou banho?

- Já que o mundo parece ter mudado, vou tomar banho primeiro.

Foi uma ducha rápida. Morgana, vinte minutos depois, estava sentada à mesa

com os filhos, tomando uma xícara de café.

- Mãe, como aquele Herculano é bonito!

Morgana parou com a xícara a caminho da boca.

- O que o Herculano tem a ver com isso?

- Que ―isso‖?

- Isso, de vocês levantarem, prepararem o café...

- Sabe, às vezes eu acho que o Nando tem razão. Tu deves estar estressada,

mesmo. – e levantou-se da mesa.

- Hei, espera aí! Eu só perguntei...

- Ah, ta bom. Mãe, não sonha! Eu só disse que o cara era bonito. Para de pro-

curar cabelo em passarinho! O que uma coisa tem com a outra?

- Desculpe... é que eu tenho tantas provas para corrigir, que acho que não vai

dar tempo!

- É, o Nando tem razão. – e foi saindo da cozinha – mas que ele é bonito, ah,

isso é!

- É, mãe. E ele é bem legal, também! Eu gostei bastante dele!

- Ah, cristãos!

- Não tem nada de cristão! – e seguiu a irmã.

- Também vai dizer que ele é bonito, legal, ou o que?

- Que ele parece interessado em ti.

- Vamos parar, ta, Nando.

- Não, nada contra, nem a favor. Só me pareceu que ele fez esforço demais pra

agradar. Só não entendi por que o sono... acho que a gente foi dormir super cedo... a que horas

fomos deitar, mãe?

- Não sei, não olhei. Por quê?

- Porque a gente acordou antes das seis da manhã. Isso não é normal. A menos

que vá dormir muito cedo. O que acho que aconteceu ontem...

- Sinto muito, filhote. Depois a gente discute isso. Se eu ficar mais um pouco,

me atraso! Beijo.

- Beijo. – Fernando ainda estava pensando na conversa com a mãe, quando as

garotas voltaram para a cozinha, cada uma com a pasta da escola nas mãos.

- Ainda não tirou a mesa?

- Não... Tava pensando em ontem... acho que aquele cara ta interessado na

mama...

- Ta com ciúmes, é?

- Não. Só acho que ele se esforçou demais para agradar...

O Telefone toca, e Carola vai atender. Queca e Nando começam a tirar as lou-

ças da mesa, e Carola vem correndo chamá-los:

- O vô Lau, o vô Lau no telefone, corram! Ele descobriu umas coisas!

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Érica pegou o fone, conversou com o avô, e ele sugeriu que os três fossem passar o

final de semana em Congonhas outra vez. Se acaso Morgana não quisesse levá-los, vô Lau

pediria a um dos seus outros filhos que os levassem, pois ele não dirigia.

Enquanto Érica conversava com o avô, Nando e Carola se espremiam ao seu lado,

na tentativa de ouvir a conversa, mas não conseguiram nada.

- Ta, vô. Pode deixar. Conversamos com a mãe assim que ela chegar. Beijo.

- E aí, Queca. O que ele falou?

- Não disse nada de concreto, mas falou que descobriu umas coisas que vão nos in-

teressar. Ele quer saber o que descobrimos durante a semana, e o que falamos com a mama,

mas não quer que ninguém se intrometa, por isso pediu que fossemos dormir lá, de preferên-

cia hoje.

- A mãe não vai deixar, Queca.

- E por que não?

- Por que a gente ta até os olhos de provas e trabalhos. Como vamos dar conta? Se

dormirmos na vó, não estudaremos, e o fechamento do semestre ta em cima!

- Se adiantarmos as tarefas e os trabalhos, ela não poderá dizer não. Ainda temos

tempo. Vamos dividir as coisas: primeiro, organizamos a casa. Nano, tu ajeitas o banheiro a

área de serviços. Eu ajeito a cozinha. Carola, arrume as camas do nosso quarto. Quem termi-

nar primeiro, põe as roupas na máquina de lavar. Depois de terminar o banheiro, Nando, ar-

ruma o teu quarto. Eu molho as plantas e vejo se tem alguma coisa pra fazer no quarto da

mama. A sala ta legal. Depois, todo mundo pra mesa da cozinha com todo o material: quem

terminar primeiro as próprias tarefas, ajuda a Carola. Ok?

- Ok.

Menos de meia hora depois, tudo estava pronto,exceto as roupas, que ainda esta-

vam sendo lavadas pela máquina. Os três estavam sentados à mesa da cozinha, fazendo as

tarefas e organizando o material para a próxima semana.

- Tomara que ninguém dê tarefas para a segunda-feira, senão nossos planos vão

por água abaixo.

- É, mas mesmo assim teremos um grande adiantamento. Se tivermos tarefas para

a segunda-feira, voltamos domingo, depois do almoço.

- Será que dá tempo?

- Dá, sim. Se um ajudar ao outro, dá.

- E a minha pesquisa?

- Qual?

- Sobre a origem das festas juninas e a da fogueira. Não sei onde acho isso!

- Essa é realmente difícil. Deixa por último, assim nós te ajudamos. E se não con-

seguirmos, pedimos pra mama.

- Mas ela pode aproveitar esse pretexto pra nos deixar aqui nesse final de semana,

Queca.

- Só vamos saber quando perguntarmos.

E assim, rapidamente terminaram as tarefas, e para que o almoço também ficasse

pronto rápido, mais uma vez o cardápio foi macarrão, só que desta vez com molho branco,

que é mais rápido de preparar.

Morgana chegou quinze para o meio-dia.

- Oi, galerinha!

- Oi, mãe!

- Mãe, leva a gente pra casa da vó, depois da aula?

- De novo? Vocês dormiram lá no final de semana passado!

- Nós sabemos, mas o vô Lau ligou, e nós gostaríamos de ir.

- O vô Lau? O que ele quer?

Os três ficaram sem saber responder. O telefone tocou.

- Podem deixar que eu atendo.

Morgana pegou o fone e começou a conversar com alguém. Os três aproveitaram

para combinar o que seria dito.

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- E agora? O que a gente diz?

- Não sei. Alguma idéia, Dr. Sabe-tudo?

- Sabe-tudo-menos-o-que-dizer!

- Era o vô Lau. – Morgana justificava o telefonema.

- O vô? – os três perguntaram.

- É. Ele disse que quer bancar o detetive com vocês neste fim de semana. Como

estão as tarefas?

- Tudo em dia, mãe.

- Só falta a minha pesquisa.

- Que pesquisa?

- A Dona Jussara pediu que pesquisássemos a origem da fogueira e das festas juni-

nas.

- Isso é fácil: são festas pagãs incorporadas ao calendário cristão. A fogueira faz

parte da lenda cristã, onde Isabel, mãe de João Batista, que era tia de Jesus, acendeu a foguei-

ra para avisar Maria que seu filho tinha nascido. Assim Maria poderia ver a luz da fogueira e

entender o recado, pois elas já tinham combinado antes.

- E como posso escrever tudo isso? Qual a fonte?

- A cabeça da mãe!

- Não, Nando! Carola, pode deixar, eu pego alguma coisa na Internet, assim vocês

podem passar o final de semana bancando os detetives.

- Mãe, eu te amo!

- Nando, como tu mentes! Agora vamos almoçar logo, arrumar a cozinha, deixar

as mochilas prontas porque eu trabalho hoje à noite. Só tenho tempo de passar na escola, pe-

gar vocês, vir aqui buscar as mochilas e deixá-los na vó. Senão me atraso para as aulas da

noite.

- Legal!

Assim, tudo foi feito conforme o combinado. Seis e meia, todos estavam pegando

a bagagem para ficar na casa da avó.

- Vamos logo, galera! Minha aula começa às sete!

- Calma, mãe! Dá tempo!

- Dá tempo se tu não ficares embaçando! Mãe, pode deixar que a gente leva tudo

pra dentro de casa. Beijo.

- Beijo Queca. Ajudem a Carola.

E Morgana deixa os filhos no pátio da casa da avó e volta para trabalhar. Eles en-

tram perguntando pelo avô, mas a casa está deserta.

- Vô?

- Ué, cadê todo mundo?

Os garotos guardam suas coisas e vão tomar café, o tempo passa, mas ninguém

aparece.

- Que estranho! Vamos sair pra procurar por eles?

- Não, Carola. Melhor esperar aqui. Estou nervosa!

- Qual é, Queca! O vô não teria chamado a gente se não quisesse que viéssemos.

- Ainda bem que a mama não entrou, senão ela nos levaria de volta!

- É mesmo! Talvez o Geraldo saiba onde eles foram. Vou lá.

- Não demora, Nando. Nós ficaremos assistindo aos desenhos.

- ―Fica gelo‖, Queca!

Logo que Fernando saiu, Dona Ester entrou pela porta da frente.

- Ah, já chegaram! Deixei a porta da cozinha aberta pra vocês. Eu o Nicolau está-

vamos na Catarina: o chuveiro dela queimou, e o Everton está trabalhando.

- E o tio Everton sabe consertar chuveiro?

- Foi só a resistência, Carolina. Quase todo mundo sabe substituir por uma nova.

- Ah...

- Cadê o Fernando?

- Cheguei! Fui saber do Geraldo se ele tinha notícias de vocês.

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- Estavam na tia Catarina.

- Já sei, Carola: o chuveiro ―baleou‖.

- O que?

- Nada, não, vó. Deixa baixo.

- Que palavreado estranho.

- Vocabulário, vó. Palavreado também é bem feio. Mas deixa pra lá. Vamos assis-

tir TV, ta bom?

- Tudo bem. Vou ver o que posso fazer para o jantar!

Os três foram, ansiosos, para a sala de TV. Estavam loucos pela chegada do avô,

mas Queca fez uma observação importante:

- Nem adianta esperar alguma coisa hoje. Droga de chuveiro!

- Por quê?

- Porque não teremos oportunidade para conversar com o vô. A vó não vai nos

deixar sozinhos com ele, e ele não quer que ela saiba das nossas investigações!

Fernando sentiu como se uma chuva de gelo caísse sobre ele.

- É... droga de chuveiro!

Como esperado, jantaram, ajudaram a tirar a mesa e foram assistir TV. Vô Lau

aproveitou enquanto Dona Ester lavava as louças, e foi falar com os netos:

- Não se preocupem. Amanhã a gente conversa cedo. Hoje não vai dar: a Ester vai

ficar em cima. Então, eu vou ao Bar. Tudo bem?

- Tudo, né? Fazer o que?

- Calma, Nando! Amanhã ainda é sábado!

- Ta bom!

Assim, assistiram TV e foram deitar-se, os ânimos arrefecidos pela presença da

avó.

Amanheceu um típico dia de inverno: frio e fechado pela cerração. Via-se pouco

mais de um metro à frente, mas o dia estava claro, embora o sol ainda estivesse encoberto pela

névoa. Carola olhava pela janela do quarto em que dormiram, quando Queca acordou:

- Já acordada, Pulga?

- Já. O vô saiu.

- Como sabes?

- Ouvi barulho lá fora, e vi pela janela quando ele saiu.

- Mas já? Que horas são?

- Não sei.

- Vamos levantar.

Quando chegaram na cozinha, sentiram o cheirinho delicioso do café novo, e de

um bolo que ainda assava no forno.

- Bom dia, vó!

- Bom dia, meninas.

- Cadê o vô Lau?

- Saiu. Mas deixou um recado para vocês: disse que terão que alimentar as gali-

nhas para ele, que estará de volta perto da dez horas.

- Que horas são, vó?

- Oito e meia, eu acho. Veja no relógio de parede, na salinha de TV.

Ela errara por pouco: oito e quarenta. Ainda teriam uma hora e vinte minutos para

esperar.

- Vamos acordar o Nando. Depois do café, alimentamos as galinhas.

- Vamos.

Já no galinheiro, os três procuraram pelo milho, que ficava armazenado num depó-

sito de madeira.

- Psiu! – os três se entreolharam, em busca da origem do som.

- Psiu! – mais uma vez, nenhum deles foi capaz de dizer de onde vinha.

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- Aqui! Como vocês demoraram!

- Vô!

- Falem baixo! Senão a Ester ouve vocês. Peguem o milho e sentem-se aqui nestes

troncos. Assim posso dizer o que preciso falar pra vocês!

Vô Nicolau estava escondido entre um bambuzal e uma parreira de maracujás.

- Fingi que saí para poder falar com vocês. Pensei que nem vinham mais!

- Grande idéia, vô! – Mas porque não nos disse ontem à noite? Assim não precisa-

ria ter esperado tanto!

- Por que eu só pensei nisso quando voltava do bar. Vocês já estavam dormindo.

Escutem, não podemos demorar muito: tem uma certidão de nascimento do bicho debaixo da

televisão.

- Uau!

- Calem a boca! Querem que a avó de vocês descubra tudo? Também tem uma car-

ta pra vocês. Levem para a casa de vocês, e só abram lá, entenderam? Mostrem para a Morga-

na. Ela vai poder ajudar vocês. Tchau!

- Vô!

- O que é?

- Tu és demais! Sherlock Holmes da Silva!

- O que?

- Deixa pra lá, outro dia explico melhor!

- Biruta igual a mãe!

Os três caíram na gargalhada: o avô não sabia quem fora Sherlock Holmes, o mai-

or detetive da literatura inglesa. Mas isso não importava mais. Eles tinham pistas. E concretas.

O sábado arrastou-se como nenhum outro: os garotos estavam loucos para voltar

para casa, para poder ler o que tinha no envelope alaranjado que Queca tirou debaixo da TV.

Estava guardado na mochila, e nenhum dos três quisera sair de casa naquele dia. De´pois do

almoço, deitaram-se para assistir à TV, e mais uma vez despertaram as suspeitas da avó:

- Vocês estão doentes?

- Não, vó: estamos com frio! – Fernando, mais uma vez, pensara rápido – Até pen-

samos em ir no Marquinhos jogar vídeo game, mas não anima. Ta um ventão!

- É, teu avô só chegou e saiu. Não sei que tanto um velho aposentado tem pra fazer

na rua!

- Deixa ele, vó! Acho que vou ligar pra mãe vir buscar a gente. Ta muito frio.

- Ela ligou ainda há pouco: não está em casa, e não quis que eu chamasse vocês.

Disse que só vem buscá-los à noite, para fazerem um trabalho amanhã. Por falar em traba-

lho... como foi o das plantas?

Fernando tinha esquecido completamente das plantas dentro do livro. Nas ultimas

aulas de ciências, a Professora passara um vídeo sobre plantas e dera um questionário para ser

respondido, sobre o vídeo que passara. Ele sequer abriu o livro, onde as folhas estavam.

- Ah... ela ainda não deu nota, vó. Acho que vai ser nessa semana.

- O Geraldo também perguntou...

- Assim que a professora der a nota, eu ligo avisando, ta?

- Está bem! Vou dormir um pouco!

- Por que ela não faz tricô, igual às outras avós?

- Acho que ela nem sabe fazer.

- A mama sabe, e nem é avó, ainda.

- E acho que nem vai ser tão cedo. Quer pensar em algo mais produtivo?

- É que se a vó Ester fizesse tricô, não estaria sempre na ―nossa cola‖, entende?

- Entendo. Mas ninguém na nossa família é 100% normal.

- Nem nós.

- Agora cala a boca que eu quero assistir ao desenho.

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E passaram o resto da tarde em frente à TV, loucos para abrir o envelope, mas não

queriam desobedecer às ordens do avô. Também não era aconselhável: a vò Ester tinha um

sono de pulga, quando menos esperavam, ela estava ao lado deles.

Às oito horas, quando jantavam, Morgana apareceu:

- Alô, povo!

- Que demora! Aonde andastes?

- Ué! Que pressa! Para quem queria tanto vir para cá?

- É que aqui ta muito frio!

- Ta bom! Fui na Biblioteca da Universidade pesquisar o trabalho da Carola. Trou-

xe bastante informações, e descobri que nós temos uns quatro livros que falam no assunto.

- Que bom! Não vejo a hora de começar!

- Posso jantar primeiro? – Morgana estava surpresa com a reação dos filhos... por

que a pressa?

Mal passou pelo portão da casa, os três começaram a contar tudo, numa confusão

de sons vindos de três crianças, e Morgana precisou brigar para poder entender o que eles

queriam dizer.

- Calma! Todo mundo ao mesmo tempo não dá! Érica, tu começas. Não ouvi a tua

voz desde que cheguei aqui!

E assim, Érica contou, calmamente, tudo o que se passara. O envelope, o esconde-

rijo do avô, tudo para que Dona Ester não descobrisse. Morgana ria solto:

- O avô de vocês é uma figura! Pra que tanto suspense! Mas, tudo bem! Quando

chegarmos em casa, olhamos tudo. Carola, tem alguma coisa que copiei da Internet num dis-

quete, e preciso te ensinar como se faz a citação da fonte quando o trabalho foi tirado de al-

guma página eletrônica.

Assim, voltaram para casa, agora mais calmos, mas nem um pouco menos curiosos

sobre o conteúdo do envelope...

Capítulo IX – Informação sem conclusão

Já em casa, Morgana pegou o envelope e deixou-o sobre a mesa:

- Não será aberto até que as coisas de vocês estejam guardadas em seus devidos

lugares.

- Mas mãe!

- Não! Até agora o vô Lau fez suspense. Agora é a minha vez. Não vou abri-lo:

vou pegar um café para sentarmos juntos e descobrirmos o que tem de tão importante nos

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papéis. Queca, traga o caderninho: quero ver todas as informações que tens anotadas. Vamos,

andem logo. Também não quero esperar muito.

Os três foram fazer o que a mãe mandara de cara amarrada. Mas não demoraram:

guardaram tudo de qualquer jeito só para poder ver o que tinha no envelope.

Menos de dez minutos depois, chegaram à sala, onde Morgana tomava café, senta-

da, lendo um livro.

Os três sentaram-se ao lado da mãe, ansiosos. Morgana continuava lendo.

- Como é, mãe?

- Calma, Fernando. Estou na última página deste capítulo.

- Eu não acredito! Não estás curiosa?

- Curiosa com o final deste capítulo do livro. O envelope não vai fugir. Pegue-o e

me deixe terminar de ler.

Pouco depois, Morgana fechava o livro e colocava-o no braço do sofá. Apanhou o

envelope das mãos de Nando e abriu-o:

- É uma carta, bem comprida, por sinal. E uma... certidão de nascimento?

- É! Uma certidão de nascimento! Leia!

- Aqui diz:

Certifico que, sob o nº 1026, às folhas 92, do livro Z-73 de Registro de Nascimen-

tos, encontra-se o assento de ÚLMER BASILEU LUPPI, nascido aos 31 de Outubro de 1913,

em às ―está em branco‖ horas, em casa, na localidade de Barro Branco – Lauro Müller, do

sexo: masculino, Filho de Basileu Landolfo Luppi, natural de Cecília – Itália, de profissão

Lavrador; e de Belatriz Paola Silvestrini Luppi, Natural de Cecília – Itália, de profissão La-

vradora, avós Paternos: Landolfo Luppi e Francesca Luppi; a avós maternos: Giuseppe Silves-

trini e Maria Silvestrini. Foi declarante: o pai, as testemunhas constam no termo. O Assento

foi feito no dia 14 de Dezembro de 1914. Observações: Falecido a 02de Novembro de 1994.

Depois, a assinatura do oficial do Cartório... a data... Ei! O teu avô pediu um registro... ou

melhor, uma cópia do registro...

- Uma certidão, mãe.

- É, Fernando... Parece que sim. E por pouco, não o encontramos vivo. São só dez

anos!

- Nem chega a dez, mãe: Estamos em julho...

- É verdade...

- Ta, e a carta?

- Vamos lá:

Caros netos Mostrem estes papéis pra a mãe de vocês: ela vai saber o que fazer. Perguntem a

ela se existe alguma coisa religiosa nos nomes, os significados deles, se ela souber, ou tiver como e onde procurar. Digam que procure também nas datas. Ela disse que existe uma “ciên-cia” que estuda os números... coisa de superstição... ela sabe. E não esqueçam de me manter informado.

Outra coisa: o lobisomem era aposentado. O pai dele morreu quando ele e os seis irmãos – ele era o sétimo – ainda eram bem pequenos, e a mãe dele passou a receber a pensão como lavradora viúva.

Acho que os irmãos voltaram para a Itália, pois, pelo que pude saber, só ele ficou com a mãe. Ela se recusou a voltar para o lugar de onde viera. Parece que não tinha mais parentes vivos. Talvez os irmãos tivessem medo dele. Nunca saberemos. Muitos não usam mais o sobrenome, outros sim. Mas não soube de mais ninguém que tivesse a “doença do lobi-somem”.

Foi tudo o que consegui descobrir. Depois de conversarem com a mãe de vocês, es-crevam tudo e deixem no mesmo lugar em que encontraram esse envelope: será a maneira co-mo nos comunicaremos.

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Um abraço, Nicolau - Bom...

- Bom o quê? E os nomes? Os números?

- Preciso estudá-los, Nando. Não lembro de tudo, preciso pesquisar em alguns li-

vros.

- Livros... e quanto tempo demora?

- Não sei...

- Vai começar agora, não é?

- Calma, Nando. Preciso pensar.

- Pensar em que?

- Em muitas coisas. Vamos combinar o seguinte: começo hoje, mas só digo algu-

ma coisa quando tiver respostas interessantes. Se não encontrar nada que preste, esquecemos

tudo isso.

- Pelo menos de uma coisa já sabemos.

- O que, Queca?

- O dinheiro dele vinha da aposentadoria. Era disso que viviam.

- Sim. E do que produziam também.

- Além disso, mais nada. É como se não tivéssemos avançado muito.

- Pelo menos um passo foi dado. Anote no caderninho. Pode ser que tudo isso seja

útil mais tarde. Carola, vou te dar o material para o teu trabalho; vou pegar uns livros e come-

çar a estudar os dados.

- Talvez hoje já tenha alguma coisa...

- Talvez, Nando. Talvez.

Morgana pegou alguns livros e foi para seu quarto. Nando e Queca resolveram

ajudar Carola com o trabalho, mas estavam desmotivados.

- O que podemos fazer?

- Não sei...

- Sabem, gurias, eu estive pensando...

- Fala logo, Nando. Não começa com suspense. Eu já cansei: o vô Lau demorou

praticamente o final de semana inteiro com isso e não foi de grande ajuda, a não ser pela cer-

teza da aposentadoria, que a mama já suspeitava.

- Mas agora temos certeza.

- Ta. Qual foi o pensamento?

- Que aquele amigo misterioso da mama talvez possa nos ajudar.

- A troco de que?

- A troco de que se alguém tem indícios de ser uma bruxa, mesmo que do bem, é

aquela velha maluca da tia Niiiilda. E ele veio com ela, lembram? Talvez ele seja um bruxo

também. Pelo menos, um morcegão. Viram? Ele estava todo de preto.

- Não viaja, Nando.

- Ta, eu só pensei...

- Então, não pensa mais!

Terminaram o trabalho, tomaram banho e foram dormir: não chamaram Morgana.

Fernando viu, pela fresta da porta, que havia luz em seu quarto. Talvez ela estivesse estudan-

do as coisas do lobisomem. Não disse nada às meninas. Disse ―boa noite‖ a elas e foi deitar-se

também.

Acordaram cedo e surpreenderam-se ao ver a mãe na cozinha, em pleno domingo,

àquela hora.

- Que foi, caiu da cama?

- Quase. Na verdade, não dormi.

- O que?

- Descobri umas coisas interessantes. Gastei a noite toda analisando os números e

acho que descobri algo que pode interessá-los.

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- Essa é minha mãe! Diz aí: o que é?

- Ponha a mesa.

- O que?

- Ponha a mesa. Depois chame as meninas para tomarem café. Não vou contar a

mesma coisa três vezes. E se apresse porque as panquecas vão esfriar...

Fernando, mais que depressa, preparou a mesa para o café e correu para o quarto

das garotas. Tirou os cobertores de cima delas e foi logo intimando:

- Rápido! A mama disse que descobriu uns negócios interessantes sobre o lobis.

Levantem porque ela disse que vai falar durante o café.

Mais que depressa, as duas levantaram, escovaram os dentes, tiraram os pijamas e

correram para a cozinha, onde Morgana tomava uma xícara de chá.

- Pode falar, mãe.

- Pode comer, filha.

- O Nando disse que nos contarias durante o café!

- Eu não disse DURANTE! Comam primeiro. Depois eu mostro o que descobri.

Assim, tiveram de comer resignadamente, ou melhor, comeram apressadamente,

para depois saber o que Morgana havia descoberto.

Depois de comerem, limparam a mesa e a mãe trouxe vários papéis e espalhou-os.

- Ta, o que esse monte de contas tem a ver com o lobisomem?

- Desculpem, esqueci que nunca tinha falado a vocês sobre numerologia antes! É

como a astrologia, só que, ao invés de estudar a influência dos astros, estuda a influência dos

números. Não fiz a correspondência entre números e letras para ver o quanto os nomes podem

revelar, só estudei os números mais importantes, como as datas da certidão. Fiz algumas con-

tas para ver o que se poderia dizer sobre o nascimento dele. Bem... não temos a hora do nas-

cimento porque não era comum colocar isso nos registros naquela época. Mas temos datas: 31

de outubro de 1913, ou seja, 31, 10, 1913. Em numerologia, é comum não contar o 10, pois

ele é neutro. Logo, o mês está fora. Também está fora o século, pois o 19 de 1900, se somar-

mos 1+9 = 10, neutro também. Sobra 31 e 13, que, se observarmos, são anagramas.

- O que é isso?

- É a mesma coisa, só que invertido. 31, três e um; 13, um e três. Entenderam?

Além disso, ambos têm a mesma soma: 4, que, para muitos...

- O que é?

- Simboliza a morte. Ou grande agonia. Treze, para muitos, também é o número

que carrega o azar. Sem contar que, pela carta do vô Lau, ele era o sétimo filho. Se não tinha

irmãs, mas só irmãos, era portador da maldição: era um lobisomem!

- Mãe... mãe...

- Diga, Nando.

- Tanto suspense pra isso?

- Como assim?

- Nós já sabemos que ele era um lobisomem. Eu não quero saber se ele ficou assim

por maldição ou mordida. Eu quero saber é como ele se curou. Entendeu? COMO!

- Sinto muito. – Morgana deu um longo suspiro. – Não posso dizer isso. Nem

mesmo pelos nomes.

- Então não adiantou ficar sem dormir! O que nos interessa é a cura!

Morgana saiu da cozinha sem dizer uma palavra. Juntou os papéis da mesa e en-

trou em seu quarto e fechou a porta. Queca irritou-se:

- Ô, Nando! Que saco! Ela, com a maior boa vontade em nos ajudar e tu ficas cha-

teando!

- Ah, vai dizer que ficasse satisfeita com o que ela descobriu?

- Não, mas também não desfiz o que ela falou. Informação nunca é demais!

- Ah, Ta bom! Não vou discutir contigo.

Morgana ainda ficou o dia todo trancada no quarto. Mandou vir comida de um res-

taurante para que não precisasse cozinhar. Só saiu do quarto para pegar comida. Quando vol-

tava para o quarto, Nando falou:

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- Ficasse brava comigo?

- Não. Por quê?

- Porque não saísse do quarto para nada.

- Saí, sim. Fui ao banheiro ainda há pouco.

- Gracinha.

- Nando, estou estudando pra ver se consigo alguma informação que preste. Já te-

nho algumas, mas...

-Mas, o que? Por que não fala pra gente. Almoça aqui!

Morgana olhou as meninas que pareciam pedir a mesma coisa.

- Ta bom... – no intervalo das garfadas, foi contando – ele foi registrado no dia 14

de dezembro de 1914, mais de um ano depois. Isso era comum, pois as pessoas, normalmente,

esperavam para registrar dois, até três filhos de uma vez só.

- Que filharada!

- É, era comum ter famílias grandes. Elas garantiam muitos braços para trabalhar

na lavoura. Mas não é isso que nos interessa. Para o lobisomem, isso foi bom, porque o cinco,

a soma de 1 + 4, anula o efeito ruim do 13. E ele se repete no dia e no ano, sem esquecer que

devemos desprezar o 19.

- Mas tem o 12, do mês de dezembro.

- Que, embora no Calendário Juliano correspondesse ao décimo mês, que era o úl-

timo, para a numerologia, seu peso é 3, 1 + 2, que garante vencer batalhas vitais. Ou seja, ele

nasceu sob a maldição, mas foi abençoado pelo registro. Ainda não acabei o estudo dos no-

mes, depois falamos sobre isso.

Morgana acabou de comer a lasagna quatro queijos e, com um beijo em cada um

dos filhos, voltou para o quarto.

- Viu, panaca!

- Viu o que, Queca?

- Os números justificam por que ele parou de se transformar.

- Ah, ta bom!

- Tu vais ver só. Ela ainda vai descobrir mais coisas...

- Ah, tenho certeza que sim. Calendário Juliano... alguém sabe o que é isso?

- Podemos perguntar depois...

- É... tudo depois...

A tarde de domingo se esvaiu em frente à TV. Morgana continuou no quarto e os

três comeram biscoitos e beberam chocolate com leite. Por volta das sete horas, ela apareceu

com mais um monte de papéis.

- Alguma novidade?

- Muitas. Todas anotadas para que possas passar para o caderninho, Queca.

- Então, vamos a elas!

- Quero comer primeiro. Estou tísica.

- Ta, tem biscoito aqui. Quer café ou chocolate?

- Café. – enquanto beliscava os biscoitos, Morgana ia explicando uma relação com

nomes e seus significados:

- Primeiro, ele:

Úlmer significa lobo famoso. Faz sentido, não?

Basileu: rei. Rei dos lobos, o mais forte e inteligente de todos, o lobisomen.

Luppi: lobo. Ou seja, todo o nome dele está envolto na maldição lupina.

- Até agora, nenhuma novidade.

- Calma, Nando. Continuando: o pai dele:

Basileu, já vimos que é rei. Era comum os filhos terem, como segundo nome, o

primeiro nome do pai, e as filhas tinham como segundo nome, o primeiro nome da mãe. De-

pois vem Landolfo, que é o nome do avô, e Luppi, que também já vimos. Vamos lá:

Landolfo: lobo da terra. Mais uma vez, lobo. A avó: Belatriz: Guerreira. Paola, o

mesmo que Paolo, ou Paulo. Não encontrei significado. Silvestrini: das florestas. Não acres-

centa nada.

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- Acrescenta, sim. Eles não eram lavradores?

- É, faz sentido. Luppi, já vimos. Landolfo e Luppi, já vimos. Francesca, o mesmo

que Francisca, nem procurei. Giuseppe: José. E Maria. Também não procurei estes, mas acho

que não mudarão muita coisa.

- Interessante...

- Tem mais uma coisa, Queca: Ele morreu em 02 de novembro de 1994.

- E o que tem isso?

- Tem: no dia 02 de novembro, segundo as religiões pagãs, todos os espíritos estão

livres. 1994: tiramos o 19, 94: 9 + 4 = 13, 1+3 = 4, o número da morte outra vez.

- E o que isso quer dizer?

- Pode significar que ele se libertou da maldição, que a alma dele é livre.

- Puxa!

- Só tem uma coisa...

- O que?

- Escreveram ―Cecília‖ no registro.

- E daí?

- Daí que o nome do lugar é Sicília, e não Cecília.

- Ah, tava demorando! A SPP.

- O que é isso?

- Síndrome da Professora de Português!

Capítulo X – Feitiçaria

A semana corre rápida, cheia de provas, trabalhos e tarefas. Parece que todos des-

ligam, de alguma forma, do mistério. Mas Nando não esquece. Está com a idéia fixa de pedir

ajuda a Herculano. Nem mesmo suas tarefas de escola o impedem de pensar no amigo da

mãe. Nando acaba por fazer seus trabalhos e tarefas sem a devida concentração, mas faz tudo

o que é preciso fazer. Está até nervoso.

As garotas, como sempre, divertem-se e lêem, mas ele está sempre pensando numa

maneira de entrar em contato com Herculano sem pedir a ajuda da mãe, é claro, e sem contar

seu plano pras irmãs.

Morgana também está cheia de afazeres, por isso ela também não toca mais no as-

sunto. Já passava da metade da semana e as aulas de Morgana acabariam, no máximo, na

quinta feira.

Pela manhã de quarta-feira, as meninas saíram de casa para comprar revistas em

quadrinhos. Nando, sozinho, ficou pensando, mais uma vez, em como entrar em contato com

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Herculano. Nada lhe tirava da cabeça que o ―Morcegão‖ poderia ajudar. Esquentava os miolos

pensando numa maneira de encontrá-lo.

―Tia Nilda! É isso!‖ Pensando na tia ‗maciça‘, Nando pega a agenda de telefones

da casa e começa a procurar. Resolve começar pelo nome de Herculano, mas não encontra

nada. Lembra-se que a anotação pode começar pelo sobrenome, mas ele não sabe qual é. En-

tão recorda-se, ainda, que a mãe tem a memória ótima: muitos de seus amigos não têm o nú-

mero escrito na agenda. Resolve procurar pela tia. Não demora muito, encontra: Nilda, tia.

Não encontrara nenhum ―tio‖ ou ―tia‖ na letra ―T‖. Disca o número, ansioso. O telefone

chama apenas uma vez:

- Alôôôô!

- Alô, tia. Aqui é o Fernando...

- Ah, meu boooom feiticeiriiiinho! Está tuuuudo beeeem? Em que tua veeeelha

tiiiia pode ajudaaaar?

- Está, está tudo bem. Eu nem sei por onde começar...

- Pelo comeeeeço, meu queriiiido, pelo comeeeeço...

- Bom... – e Fernando conta, resumidamente, o mistério da cura do lobisomem. Tia

Nilda apenas fazia uns Ahans, Hummms, de vez em quando. Talvez para incentivar o garoto.

A conversa não se estendeu muito, e quando a história terminou, ele concluiu.

- E, agora, não sei mais onde procurar...

- Ah, meu queriiiido, e a tua mããããe, o que ela diiiiz diiiisso?

- Ela anda muito ocupada, e acho que não pode ajudar muito. Eu pensei que o

amigo de vocês...

- O Herculaaaano? Queeeeres o núúúúmero do telefoooone deeeele?

Nando sentia, apesar do frio, o suor escorrer em suas costas.

- Se a tia acha que ele não vai se chatear...

- Claaaaro que nãããão, meu queriiiido. Anoooote aíííí. – e assim, o destemido

Nando, sozinho e em segredo, conseguiu o que queria.

Estava agitado, pois o modo como a tia falava lhe dera nos nervos. Olhou no reló-

gio. Não sabia quanto tempo fazia que as garotas tinham saído. Resolveu arriscar. Discou o

número e esperou. Ocupado. Tentou de novo. Ocupado outra vez. Esperou cinco minutos.

Resolveu não desistir: discou novamente e esperou. Mas esperou muito pouco: na segunda

chamada, uma voz conhecida respondeu:

- Herculano falando.

- Hã... oi.... é... – Fernando não sabia o que dizer.

- Por acaso é o Fernando, filho da minha grande amiga Morgana?

- Como sabe?

- A Nilda acabou de me ligar e contou a história. Acho que ela pensou que ficarias

sem jeito de falar comigo, ou chateado de ter que contar tudo outra vez. ―Velha fofoqueira‖ –

pensou Fernando. Por que ela teria feito aquilo?

- Ah, que bom que ela fez isso... – foi o que conseguiu dizer.

- Ainda bem que gostou. Bom, meu amigo. Quem pode resolver o enigma? Uma

pessoa muito conhecida de nós.

- Quem? – O estômago de Nando parecia que estava no chão. Sentia o fone escor-

regar em suas mãos, que suavam muito.

- Morgana.

- Mas ela nos ajudou o quanto pode e não descobrimos muita coisa, só o que eu

contei pra tia Nilda.

- Então... vocês!

- Mas como? Não consigo entender o que mais precisamos fazer!

- Bem, eu não posso dizer, embora eu saiba qual é a maneira. Também sei de mui-

tas coisas que são do interesse de vocês. Aliás, nunca soube de nenhum bruxo ou bruxa que

ficasse infeliz quando descobre que tem poderes. Mas a Morgana não permitiria que vocês

usassem a chave do tempo. Nem mesmo os poderes sem que ela estivesse com os olhos gru-

dados em vocês.

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- Usassem o que?

- A chave.

- Que chave?

- A chave do tempo. Só com ela vocês podem descobrir.

- Onde nós podemos conseguir essa chave?

- Fernando... não precisa conseguir nada! Só vai precisar de uns acessórios, algo

que te leve ao tempo em que queres ir, entende? Olhe, eu quero ser teu amigo. Mas sou amigo

da tua mãe. Ela não me perdoaria se eu contasse a vocês, em detalhes, sobre como usar a cha-

ve do tempo.

- Me diga apenas o que é!

- A chave do tempo... é... um ritual de feitiçaria!

Herculano ainda conversou um tempo com Fernando, insinuando que ele e as ir-

mãs poderiam presidir o ritual, que tinham poderes para isso e muito mais, mas não disse co-

mo o ritual acontecia. Aquela conversa soava estranha aos ouvidos de Fernando: eles poderi-

am presidir o ritual? O que isso significava? Fernando não conseguia se concentrar no que

ouvia, era como se a voz de Herculano dançasse em seus ouvidos. Apesar das dúvidas, resol-

veu não perguntar. Passou a prestar mais atenção ao que o ―Morcegão‖ falava. Mas ele só

insistia numa coisa: que inquirissem Morgana. Ela é quem deveria lhes contar tudo, e que o

segredo – ―que raio de segredo é esse?‖- já deveria ter sido revelado.

O barulho do mensageiro dos ventos na porta anunciou a chegada das garotas.

Fernando despediu-se de Herculano, agradecendo as informações e desligou. Herculano não

insistiu, e disse que, sempre que precisasse, Fernando poderia ligar. Ainda prometeu fazer o

que estivesse ao seu alcance para ajudá-lo, Nando não entendeu como ele poderia.

Fernando não contou nada às garotas, mas ficou cada vez mais calado, mais estra-

nho! Ele pegou algumas revistas em quadrinhos e foi para o quarto.

A cada dia, Fernando ficava mais taciturno. Passou a fazer as tarefas no quarto,

não usava mais a mesa da cozinha, nem compartilhava seu desagrado por tantas tarefas com

as garotas. Depois dos telefonemas, ele se fechava cada vez mais.

As garotas tentavam conversar com ele, mas este sempre dava respostas vazias, ou

dizia que estava cheio de coisas pra estudar.

As garotas não quiseram preocupar a mãe, pois logo entrariam em férias, e ela

mesma perceberia as mudanças em Fernando, então, resolveram não contar nada a ela. Mas,

na quarta-feira à noite, Nando saiu do quarto e perguntou:

- Vocês sabem o que é a chave do tempo?

E assim, Fernando contou sobre os telefonemas e as conversas que tivera com a

tia Niiiilda e Herculano. Contara também sobre as insinuações de Herculano, de que eles ti-

nham poderes, sobre a conversa maluca sobre rituais. Finalmente, sentiu-se aliviado. E elas,

estavam de bocas abertas, com os olhos arregalados!

Mas Queca começava a juntar os pedaços das histórias:

- Lembra daquele papo maluco que a tia Niiiilda teve com a gente? Sobre as coisas

estranhas que deveríamos ter visto na casa da vó Viviane?

- Lembro, mas não em detalhes.

- Nem eu. Só lembro que a velha era muito chata, e aquela verruga que ela tem

perto da boca parece uma pereba!

- O que é isso, Carola! Coitada da mulher!

- Coitada, nada! Ela ficou alugando a gente para nós não escutarmos a conversa da

mãe com aquele amigo dela. Ele é bem legal, mas ela é muito chata!

- Mas ele é outro doido varrido! Depois de tudo o que eu ouvi do cara, não tenho

mais dúvidas: são todos doidos, por isso a mama não nos tinha apresentado a eles.

- Pode ser, Nando. Mas eu ainda acho que tem mais pedaços, mais coisas que a

gente não sabe. E não é por vontade nossa. Acho que a mama é que não quer que a gente sai-

ba.

- É, ela anda misteriosa demais.

- E o segredo, de que ele tanto te falou. Talvez seja...

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- Seja?

- Deixa pra lá. Deixa eu ter certeza primeiro. Acho que vou dar uma olhada nos li-

vros da mama. Naqueles que ela guarda no quarto dela.

- Acho melhor ninguém mexer lá. Ela vai perceber e não vai gostar nada. E, além

do mais, as férias estão aí, são só mais dois dias de aula, hoje e amanhã, e ela entra em férias

antes da gente: as férias do Ensino Médio sempre começam primeiro.

- Ta bom... eu espero as férias começarem. Mas na primeira oportunidade, vou ler

os livros que ela não deixa ao nosso alcance.

- Como não? É só entrar no quarto dela e olhar...

- Mas ela não gosta que a gente mexa nas coisas dela, e se não deixa os livros junto

com os outros, é pra não despertar a nossa curiosidade. Alguma coisa deve ter lá...

- É... até os livros de Medicina ficam nas prateleiras... talvez tenhas razão.

- Eu sei que tenho!

Aquela quarta-feira foi mais tranqüila para Fernando, que sentia como se tivesse ti-

rado uma tonelada das costas. Na escola, estava até mais descontraído, fazia brincadeiras com

os colegas, coisa que há alguns dias não queria mais. Carola estava mais preocupada com suas

notas que com qualquer outra coisa, por isso, já esquecera da conversa que tivera com os ir-

mãos pela manhã, antes de ir à escola. Morgana não almoçara em casa, ligara avisando às

onze e meia, aproveitara o intervalo das aulas para passar no Banco. Mas Érica fora mordida

pela curiosidade: o que teria naqueles livros? Talvez fossem os livros de que o vô Lau falara...

mas ela ia descobrir, ah, isso ia! Não importava que os outros estivessem desligados ou sem a

mínima curiosidade: ela descobriria tudo!

Capítulo XI – O Grande Segredo

Quinta-feira, quinze para o meio-dia. Penúltimo dia de aula, e os três ainda discu-

tem se devem ou não conversar com Morgana sobre os telefonemas. O frio, cada vez mais

intenso, anuncia férias bem dentro de casa. Morgana chega e, ao contrário do que costuma

fazer, não diz nada quando entra. Fernando estranha, e vai até a porta para ver quem a abriu,

pois a mãe sempre chega dizendo um ―Oi‖.

A surpresa deixa Nando sem palavras: tia Nilda e Herculano – outra vez todo de

preto – estão com ela. Os três têm bolsas de restaurante, indicando que trouxeram comida

pronta.

- Tem refrigerante? – Herculano perguntou a Fernando, sem qualquer cerimônia.

- Oi. Não. Aqui em casa é raro ter isso. Mas tem suco de maracujá. Serve?

- É... serve. Morgana, ta na hora de para com essa mania ―natureba‖, faça-me o fa-

vor!

- Para os meus filhos, só o melhor. Refrigerantes têm muito açúcar, não devem ser

consumidos todos os dias.

- Ah, ta bom! – os três foram entrando, surpreendendo as garotas, que acabavam

de pôr a mesa.

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- Filhotes, temos companhia para o almoço. Por favor: louças para mais duas pes-

soas.

O almoço transcorre bem: tia Niiiilda com suas intermináveis histórias sobrenatu-

rais; Herculano com seu riso frouxo; Morgana calada. Até que despede os filhos para irem

vestir os uniformes.

Os três saem para a escola, intrigados com a nova visita. Pelo caminho, discutem

sobre a razão de Herculano e Nilda estarem ali. Mas eles ainda têm dois dias de aula: não dá

para especular por muito tempo.

- Nando, acabo de lembrar de uma coisa.

- O que, Carola?

- A vó Ester quer saber qual a nota do trabalho de Ciências.

- Hi! É verdade! O que vou dizer?

- Diga que ela deu apenas alguns pontos para ajudar na média bimestral. Mostras-

ses as folhas?

- Não. Aconteceu tanta coisa que eu acabei esquecendo!

- Então, diga que deixou de ganhar uns pontos na média.

- Gracinha!

Assim, os três seguiram para a escola, onde mais uma tarde interminável de aulas

aconteceu. Fernando nem mesmo desceu durante o recreio: queria adiantar um trabalho de

Geografia. Quando o final do período chegou, estavam cansados. Passando pelo portão da

escola, um antigo carro preto, estacionado logo depois do ponto de ônibus buzinou.

- Quem anda com uma velharia daquelas?

- E com película escura nos vidros! Que fashion!

Mas quando eles se encaminharam para o outro sentido, o carro buzinou mais uma

vez. Os três nem olharam. Então, o vidro baixou e uma voz conhecida chamou:

- Fernando!

Nando virou-se, e quando percebeu que era Herculano que estava no carro, falou

depressa para as irmãs:

- Vamos logo! Acho que o Morcegão veio nos buscar. Sorriam, senão ele vai co-

meçar a buzinar outra vez, e ainda temos amanhã para galera ―tirar onda com mico‖.

- Mico? Não era Morcego?

- Cala a boca e anda logo, Carola!

Foram até o carro, onde Herculano prontamente disse que viera buscá-los.

- Que bom! Obrigado, mas não precisava!

- Sei que não precisava, amigão. Mas eu, a tia Nilda e a Morgana queremos ter

uma conversa especial com vocês. Pena que não pode ser na minha casa: vocês iam adorar!

- Eu só imagino! – Assim, Herculano dirigia em direção à casa dos garotos. ―Ain-

da bem que os vidros estão fechados e têm película. Não gostaria que ninguém me visse an-

dando nesse... sei-lá-o-que! Nem tem com o quê comparar!‖ Mergulhado nesses pensamentos,

e sem ter atenção com o caminho, Nando percebeu que chegaram em casa muito rápido, rápi-

do demais para o horário de rush.

Em casa, encontram Morgana e a tia preparando o jantar.

- Por que tão cedo?

- Porque vamos aprooooveitar para conveeeersar, então vamos pulaaaar o café da

taaaarde, viu, queriiiida.

Queca tinha esquecido o quanto era chato o jeito que tia Nilda tinha para falar.

- Então vou tomar um banho, aproveitar que é a última noite antes das férias. Não

tenho nada importante para amanhã; nem tarefa, nenhum trabalho para entregar. Acho que vai

ser só um encerramento.

- Pra mim também! A Dona Jussara adorou a pesquisa, mãe! Disse que estava óti-

ma!

- Que bom, Carola! Então valeu à pena o esforço em conjunto...

- Como assim?

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- Eu peguei as informações, mas foram o Nando e a Queca que te ajudaram, lem-

bra?

- Ah, é mesmo!

- E tu, Nando? Muita coisa para amanhã?

- Não, nada. Acho que nem vou à aula: só vão fazer um encerramento, talvez cam-

peonato de alguma coisa.

- Que tipo de coisa?

- Ah, sei lá! Nos outros anos, a gente jogava tênis de mesa, vôlei, futebol na qua-

dra com os garotos das outras séries. Acho que vai ser a mesma coisa. Já me considero em

férias!

Herculano entrou na cozinha e começou a perguntar sobre o jantar. Os três apro-

veitaram e saíram, indo cada um desfazer as mochilas, tomar banho ou relaxar um pouco em

frente à TV.

Mais ou menos uma hora depois, Herculano veio chamá-los:

- O jantar está servido!

Os três já haviam tomado banho e estavam assistindo à TV.

Antes mesmo que os garotos sentassem, tia Nilda anunciou:

- Precisamos contar uma coisa muito importante a vocês. – os três sentaram-se sem

perguntar nada. Nem olharam para a comida. – Esta é uma noite muito especial: são oito ho-

ras!

Nando pensou ―e daí?‖, mas não disse nada.

- Hoje, o Grande Segredo será revelado!

Nenhum dos três percebera que a tia Nilda, mais uma vez, perdera o hábito de esti-

car as vogais. Estavam com os olhos vidrados nela: finalmente! O raio de segredo seria conta-

do a eles!

Ela fez uma pausa, ninguém perguntou nada. A mulher os olhava de maneira es-

tranha, seus olhos muito verdes pareciam faiscar. Os três sentaram-se e olharam Morgana, que

estava calada, com o olhar perdido.

- Agora que vocês três já estão grandes, são quase adultos, já podem entender o

que significa o segredo. E por que nunca lhes foi revelado antes.

Queca queria, a cada pausa que a tia fazia, dizer a ela que ninguém ali gostava de

suspense, mas se conteve: resolveu esperar o que estava por vir.

- Crianças, Morgana, a mãe de vocês, é uma bruxa!

Capítulo XII – O Ritual

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Fernando e Carolina estavam estarrecidos. Érica, mais calma que nunca e mos-

trando um olhar de triunfo, anuncia:

- Eu já desconfiava...

- Como assim? Por que não nos disse nada?

- Eu tentei, mas vocês não quiseram me ouvir. Todas aquelas histórias sobre bolas

de fogo, poderes retirados de uma bruxa, só poderiam indicar uma coisa: a vó Viviane era

uma bruxa. E o vô Nico sabia disso!

- Sabia, minha querida. Ele mesmo também era um bruxo. Por isso mesmo a mãe

de vocês tem poderes especiais, além disso, ela é a sétima filha.

- Eu também já tinha pensado nisso.

- Quando?

- Quando a vó Ester contou a história do lobisomem. Lembrei na mesma hora, mas

achei que era só um detalhe que, na verdade, nem dizia respeito à história que ela estava con-

tando. Também não acreditava na probabilidade de bruxas existirem de verdade.

- Quer dizer que nós somos filhos de uma bruxa?

- Quer dizer, amigão, que, como eu, vocês são bruxos também. Minha mãe era

bruxa, meu pai sabia, mas não tinha poderes. Mas eu os herdei dela.

- E nós herdamos também?

- Sim, mas não é como vocês pensam...

- Como assim?

- Não é só estalar os dedos que as coisas acontecem. Na antiguidade, bem antes da

Caça às Bruxas, nós tínhamos muito mais poderes, pois estávamos em harmonia com o Uni-

verso. Quando a Caça foi iniciada, na Idade Média, tivemos de nos esconder para não mor-

rermos queimadas, e muitas de nós nem sabem que têm poderes.

- Não entendi.

- Oh, minha queridinha! Você é tão jovenzinha!

- Pode me explicar?

- Claro! Em tempos antigos, eram as mães e os pais bruxos que ensinavam seus fi-

lhos, passando as receitas de poções, ensinando a preparar o livro das sombras...

- Livro do que?

- É como chamamos nossos livros de encantamentos. Todo bruxo tem o seu.

- Ah... a mama também?

- É claro que sim, queridinha, mas deixe a tia Nilda explicar: existia uma guerra

declarada às bruxas, que vocês certamente vão estudar em História, onde todas tiveram que

se esconder: enterraram seus caldeirões e suas varinhas, esconderam ou atiraram nas águas

seus livros das sombras. E, para manter viva a Tradição da Grande Arte, passaram a usar

utensílios de cozinha como instrumentos dos rituais: a varinha mágica foi substituída pela

colher de pau, as panelas eram usadas como caldeirões, e as receitas deveriam ser memoriza-

das, para que não se corresse o risco de que alguém encontrasse. Assim, a Tradição sobrevi-

veu através dos tempos, mas, de certa forma, nos enfraquecemos. Muitos descendentes de

bruxos não sabem que têm poderes, nunca se harmonizam com o Universo. Mas, quando al-

guém da família adoece, acabam por fazer um chá milagroso, que cura rapidamente o doente,

não sabendo de onde vem tal inspiração. É a Mãe Terra que se manifesta, mesmo quando não

são feitos os Rituais.

- Por isso a senhora perguntou se nunca tínhamos feito nada de extraordinário!

- Isso mesmo! Mas muitos bruxos só manifestam seus poderes na vida adulta, em

estado de extrema necessidade, outras, nem mesmo têm poderes.

- Quer dizer que pode ser que nós não tenhamos poder algum?

- É possível, Nando. Mas temos maneiras de saber isso.

- Como?

- Com o Ritual de Iniciação.

- Quero fazer.

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- Não! – Morgana falou pela primeira vez – A iniciação deve ser feita depois dos

treze anos, e requer disciplina e estudo. Tu até podes deixar de te dedicar, mas não podes es-

quecer jamais dos preceitos, das leis. Eu mesma não sabia que era uma bruxa, descobri a me-

nos de cinco anos, quando comecei a estudar outras culturas.

- Descobriu como?

- Eu lia sobre as manifestações religiosas dos Celtas, quando me deparei com uma

―simpatia‖, como a vó Viviane chamava, idêntica a que ela costumava fazer para diminuir os

perigos das tempestades. Lembrei nitidamente dela realizando o ritual, e do meu pai dizendo a

ela para olhar bem para onde mandaria a tempestade, pois poderia ter embarcações no mar.

Lembro que sempre lhe dizia para evitar mandá-la para o mar, pois poderia matar pescadores.

Eu era uma criança, quando vi estas coisas. Então, passei a perguntar aos meus irmãos e tios

sobre as simpatias, e descobri muitas coisas. Mas esta não é a hora de falarmos sobre isso.

Érica, se quiseres fazer o ritual de iniciação, nós o faremos. Mas quanto ao Fer-

nando e a Carolina, só depois dos treze anos.

- Por que isso?

- Já te disse, Fernando: é preciso ter maturidade para usar os poderes! Há leis na

bruxaria que não podem ser quebradas, como as leis da natureza. Se algo de errado é feito à

natureza, as conseqüências são sempre desastrosas. Na magia é igual!

- Como assim?

- A Primeira Lei da Bruxaria é a seguinte:

―Tudo o que fizeres ou desejares ao outro, voltará triplicado para ti. Quando apon-

tas um dedo para outra pessoa, três dos teus dedos estão apontados na tua direção‖. Aponte o

dedo para mim, e verás que outros três, da mesma mão, estão apontados para ti: é a Lei do

Tríplice Retorno. Por esta razão, é preciso saber o que fazer. Crianças tendem a ser vingativas

e, às vezes, até maldosas. Por isso não se deve ensinar-lhes a usar os poderes antes de cresce-

rem, pelo menos um pouco. Aos treze anos, já se tem responsabilidade. É por isso que eu não

permitirei que sejas iniciado antes de completares essa idade.

- Por que não nos contou antes?

- Porque as pessoas são muito supersticiosas, e acham que todas as bruxas são

más.

- Mas foi na Idade Média que tudo isso começou: a figura da bruxa foi associada à

mulher má, vestida de preto, feia e com uma grande verruga no nariz. A minha é perto da bo-

ca, saiu no lugar errado!

- Ora, tia...

- Foi uma brincadeira! Mas é verdade, crianças. E o preto é a cor da proteção, por

isso é tão usado pelos bruxos. Mas há alguns que preferem outras cores, que representam ou-

tros poderes, ou outros elementos. Mas tudo isso vocês terão tempo de sobra para aprender.

Uma coisa é importante: estudar! Como os estudos de vocês, a bruxaria pede muita leitura,

muita dedicação e treino. Quem respeita essas condições, consegue viver em harmonia com o

Universo e ser muito feliz. Vocês também podem!

A conversa estendeu-se madrugada a dentro, com perguntas e mais perguntas. Tia

Nilda deu a ―primeira aula‖ aos garotos.

Na manhã seguinte, Morgana saiu cedo, antes dos três acordarem. Comprou o que

seria preciso utilizar no Ritua de Iniciação de Érica, um caderno grosso para que ela escreves-

se seus encantamentos, couro para que fizesse a capa, e muitas ervas.

Quando Carola e Nando acordaram, Érica estava costurando, sentada à mesa com

Morgana, que lhe explicava as propriedades das ervas.

- Depois de terminada a capa, colocaremos algumas ervas por dentro, como forma

de proteção. Também podes bordar símbolos pela capa.

- Que símbolos?

- De proteção, sabedoria e muitos outros. Mas isso vai ficar para depois. Mais tar-

de, quero que faças uma lista das ervas, que aprendas a reconhecê-las. As que temos aqui fo-

ram compradas numa farmácia de manipulação: estão secas e todas têm uma etiqueta com o

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nome e algumas propriedades. Mas é preciso aprender a reconhecê-las na natureza, o que leva

tempo. Sairemos outro dia para procurar algumas.

- Onde vocês vão procurar?

- Em qualquer lugar, Nando. Muitas nós poderemos encontrar em Congonhas, até

mesmo no capoeirão. Outras, na margem do Rio. Não será tão difícil.

- Também quero aprender...

- Ótimo! Assim, quando fizeres o ritual, já saberás muitas utilidades das plantas!

- Mãe... como é o Ritual de Iniciação?

- Não se assuste, não é nada demais.

- E aquelas coisas que comprasse?

- Não vamos usar tudo. Algumas são para mim. Mas certos objetos devem ser pes-

soais, então terás os teus e eu terei os meus. Outros, usaremos em comum. mas espere a hora

certa.

- Ta bom... – Érica olhava a mãe.

- O que há?

- Estou com medo...

- Medo de que?

- Sei lá... tem sangue?

Morgana caíra na gargalhada!

- Érica, tem água, suco de uva e uma bebida que costumamos usar. Essa a tia Nilda

vai trazer, porque dá muito trabalho e demora bastante.

- Que bebida é essa?

- Hidromel.

- O que é isso?

- Calma! Ainda vou te ensinar a preparar, e poderás escrever a receita no teu livro

das sombras. Também terá bolo e biscoitos.

- Então é uma festa?

- De certa forma, sim.

- A gente vai poder comer e beber também?

- Podem, Carolina, mas só do que não fizer parte do ritual. Ou depois. Mas não se

preocupem, pois a tia Nilda disse que vai trazer tudo a mais para vocês poderem experimen-

tar.

- Oba! – Nando e Carola adoraram a notícia.

Às oito horas tia Nilda e Herculano chegaram. Estavam vestidos de preto, e Mor-

gana disse à Érica:

- Agora, o banho da purificação. Tome o banho e depois jogue a infusão de ervas

sobre o corpo. Pense bem no que tudo isso significa, durante o banho. Depois, vista a túnica

que lhe dei, e sairemos.

- E nós?

- Vocês já tomaram banho e estão de roupas limpas, é suficiente.

Érica demorou cerca de vinte minutos no banho, então todos saíram.

Rodaram uns vinte minutos de carro, mas dez para às nove já estava tudo pronto.

Foram a um bosque, um lugar que os garotos nunca visitaram antes. Tia Nilda instruiu Carola

e Nando para que sentassem no tronco de uma árvore e apenas observassem. A lua estava

cheia, por isso a noite era clara e, mesmo sendo inverno, não estava tão frio.

Herculano pediu que Érica ficasse num determinado lugar, então, pegou um pó

branco e com ele desenhou um círculo no chão. Morgana e Nilda se posicionaram, de modo

que os quatro estavam em pontos próximos, como fechando o circulo desenhado. No meio do

círculo, Herculano arrumara alguns objetos sobre uma grande pedra. Os quatro levantaram os

braços, fecharam os olhos. Eram nove em ponto quando Morgana começou a falar:

Salve Guardião da Torre Norte e seus poderes! Salve Guardião da Torre Sul e seus poderes! Salve Guardião da Torre Leste e seus poderes!

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Salve Guardião da Torre Oeste e seus poderes! Salve Ahasha, a essência da vida! Salve os Poderes Sazonais: Inverno, Primavera, Verão e Outono! Poderes dos cinco elementos e seus poderes: Poderes da Terra: Lei e Invenção! Salve Gob, regente da Terra e seus gnomos! Poder do Ar: Inteligência! Salve Paralda, regente do Ar e seus silfos! Poderes do Fogo: Ação e Realização! Salve Djin e suas salamandras! Poderes da Água: Fertilidade e Amor! Salve Necksa, regente da Água e suas ondinas! Que os Guardiões nos mostrem os ensinamentos necessários: Araquiel, os segredos da Terra Armaros, solucionar encantamentos Azazel: a magia da beleza Barqel, a astrologia Ezequeel, a magia das nuvens Gadreel, as artes da guerra Kokabeel, os mistérios das estrelas Penemue, a escrita Sariel, os segredos da Lua Semjaza, os encantamentos das ervas Shamshiel, os signos do sol!

Abriram os olhos, baixaram os braços e Herculano fez um gesto de cabeça para

Érica: Os quatro entraram juntos no círculo e sentaram-se. Érica fez uma oração, agradecendo

a vida, os amigos, parentes, tudo o que possuía, até mesmo a escola e o lugar onde morava.

Pediu proteção e sabedoria. Tocou cada um dos objetos de cima da pedra, olhou com atenção

e depois colocou-os no mesmo lugar: uma estrela de cinco pontas, dois cálices, pratos, pedras

e flores. Herculano pegou o que parecia ser um cálice, e disse:

Bebo com minhas irmãs pela harmonia com o Universo, pela sabedoria, pela vida e pelos pode-

res.

Passou o cálice para as mãos da tia Nilda, que repetiu as palavras, depois para

Morgana, e por último, para Érica. Depois, Herculano pegou um biscoito e disse, antes de

comer:

Bebo com minhas irmãs pela harmonia com o Universo, pela sabedoria, pela vida e pelos pode-

res.

O gesto foi repetido pelas outras.

Então, Morgana levou Érica até o lugar onde estava, e os outros dois também toca-

ram suas costas, enquanto diziam:

Apresentamos esta irmã ao Norte, pela harmonia com a Grande Mãe e o Grande Pai!

O mesmo foi repetido em cada um dos pontos cardeais. Depois, Morgana falou:

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Dormiremos, cada um em seu lar, em harmonia com o Universo, pela sabedoria, pela vida e pe-los poderes.

Que a Grande Mãe e o Grande Pai nos abençoem!

Eles saíram do círculo, de costas, cada um dando um passo atrás. Herculano falou:

Fecho este círculo pelo dever cumprido e pela harmonia do Universo!

Enquanto falava, tentava espalhar o pó branco que fora depositado sobre a grama.

Terminado o trabalho, não havia o menor sinal do pó, os utensílios foram guarda-

dos e Herculano falou:

- Agora é o nosso piquenique!

- É só isso?

- É, o que mais queriam?

- Sei lá, umas luzes, barulho, espíritos...

- Fernando, não é nada disso! Não confunda bruxaria de verdade com filmes de te-

levisão. Agora precisamos esperar para ver se Érica manifesta poderes.

- Como assim?

- Não sabemos, mas se ela tiver poderes, eles vão se manifestar. Com cada um

acontece de uma maneira.

- Como foi que aconteceu contigo? – eles começavam a comer – Isso é bom! O

que é isso?

- Bolo de crescente. Beba isso!

- Nossa! É doce, mas nunca bebi nada assim!

- É hidromel...

Assim, Fernando esqueceu das perguntas. Voltaram tarde para casa, mas sentiam-

se bem. Cansados, mas muito bem.

Capítulo XIII – O sonho de Érica

―Um vento frio uivava cortante, e eles estavam em casa. Era noite e a única luz vi-

nha do fogo aceso no fogão à lenha, na cozinha. Ela dizia que não tinha medo, e que eles de-

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veriam tentar. Dizia que não deveriam esperar que as coisas acontecessem, mas buscar solu-

ções, mesmo que pudessem sofrer com isso. Ele dizia que era perigoso demais, que preferia

ser preso todas as vezes que a lua enchesse. Sentia-se inseguro, não por si mesmo, mas por

ela. Ela insistia, dizendo que, se tudo desse certo, poderiam levar uma vida normal, e que as

pessoas não os olhariam mais como se eles fossem monstros. E eles não eram monstros. A

maldição existia, mas precisava ser quebrada. E ela acreditava que eles podiam quebrá-la. O

vento fustigava as paredes da casa velha, e a lenha estalava no fogão, onde um fogo vivo ain-

da ardia.

Olharam-se em silêncio, ela num vestido simples, estampado com pequenas flores,

o cabelo preso numa longa trança, com um xale negro tecido à mão, sobre os ombros. Calçava

chinelos simples, mas que deveriam aquecer seus pés. Ele passou a olhar para o chão, sua

camisa de algodão aberta na altura do peito, mostrava os pêlos escuros. Ela olha o fogo, e

repete insistentemente que eles devem tentar. Ninguém precisa saber, mas eles devem tentar,

antes que a lua cheia venha outra vez. Ele olha o fogo e concorda, apenas com um gesto de

cabeça. Está sentado numa velha cadeira de palha, bem perto do fogão.

Ouvem gritos lancinantes: ‗Matem o monstro! Matem o monstro! Lobisomem só

traz desgraças! Matem o monstro, e assim poderemos viver em paz!‘

Os gritos cessam e o silêncio parece pior que a gritaria. Ela abraça o próprio corpo,

puxando o xale para se proteger.

‗Precisamos correr o risco, ou viver para sempre essa agonia. Eu quero tentar.

Nossas vidas não valerão nada se algum acidente grave acontecer. A bruxa disse que era a

única maneira, e que era preciso coragem e amor. Eu tenho os dois! Precisamos fazer! Pelo

nosso filho!‘ - Ela acaricia o ventre. Uma forte rajada de vento assobia lá fora, o fogo crepita.

Os dois se abraçam. Ele responde:

‗Verônica, amanhã é Sexta-feira Santa, nossa última chance neste ano. Logo de-

pois, vem a lua cheia.- um silêncio assustador - Então, vamos fazer!‘

Érica acorda ensopada de suor. Pensa no sonho que teve, e tem absoluta certeza de

que era a casa velha, em outros tempos. Bem cuidada, mais nova, porém, a mesma casa que

visitara com a mãe e os irmãos. Pensa no casal que vira no sonho. Só poderiam ser o lobiso-

mem e sua esposa. Úlmer e a mulher. Ele dissera o nome dela, mas não conseguia lembrar.

Levantou, foi até a cozinha e tomou água. Por que sonhara com eles? Talvez fosse porque

esteve durante muito tempo escrevendo as explicações da mãe numa carta para o avô. Tudo

isso deve ter causado uma impressão forte, e foi dormir pensando no que escrevera, tentando

adivinhar o que aconteceu com eles.

Não. A última coisa que pensara, certamente, fora na chave do tempo. Tanta coisa

acontecera que ela nem teve tempo de perguntar sobre ela à mãe. A ida repentina para a casa

da avó, o vô Lau indo buscá-los com o tio Rivaldo, no sábado de manhã, logo depois do ritu-

al. Nem teve tempo de perguntar o que era aquele pó branco que Herculano usara. As outras

coisas ela identificou: bolos, suco de uva, água, pedras, velas, incenso, algumas sementes.

Mas aquele pó branco, o que seria? Herculano o tirara de dentro de um pote de vidro. Parecia

açúcar, ou algo semelhante. Perdida em pensamentos, olhava a noite escura pela janela.

- Perdeu o sono? – Érica quase deixou o copo d‘água cair, tamanho o susto que le-

vou.

- Quer me matar do coração?

- Ta doida? Peguei água, tomei, estou te olhando há uns dois minutos, mas tu nem

te mexeste. O que foi?

- Desculpe, eu estava pensando.

- Pensando em que? No piquenique irado?

- Também...

- Em que mais?

- Num sonho que tive. Acordei ensopada de suor. Acho que a vó colocou coberto-

res demais na cama.

- Talvez. Ela tem mania de ‗agasalhar bem as crianças‘.

- Ou o sonho me fez ficar ensopada...

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- Sopa de Érica?

- Não brinca, Nando. Estou falando a sério. Sonhei com o lobisomem!

- Uuuuuuu!

- Que ú! Foi um sonho estranho... – Érica esperava que o irmão parasse com as

brincadeiras de costume.

- Ele atacava alguém? – Fernando pareceu mais sério.

- Não. Estava na casa velha, com a mulher dele. Droga!

- Foi tão arrepiante assim?

- Não, na verdade, eu só estou chateada porque não consigo lembrar o nome dela.

Ele falou, eu sei que falou... mas...

- Nenhuma pista?

- Que gracinha! Pista de nome num sonho! Acho que és tu que estás sonhando!

- Vamos deitar logo. Amanhã a gente discute teu sonho. Não adianta ficar se tortu-

rando. Quando menos esperar, vais lembrar.

- Tenho medo de não lembrar mais...

- Do sonho?

- De tudo...

- Então escreve. Tem caneta e um bloco de notas numa destas gavetas. Anote, ar-

ranque as folhas e guarde. Assim ninguém vai ver depois, mas podes ler para lembrar. Vou

deitar. Fomos dormir muito tarde na noite passada. Estou ‗moído!‘

Érica encontrou o bloco de anotações na gaveta de um armário. Dividiu-o ao meio,

pois alguém poderia procurá-lo. Ainda ficou boa parte da noite acordada, escrevendo o sonho,

deitada na cama, mas não lembrou o nome que tanto queria.

A manhã de domingo chegou cinza e nevoenta. Érica dormira até mais tarde, pois

perdera boa parte da noite escrevendo. Marquinhos e os outros primos e primas também esta-

vam na casa da vó Ester, transformando as refeições em algazarras. Oito crianças em idades

próximas conseguiam fazer mais barulho que os trinta e poucos alunos numa sala de aula.

Nando estava irritado, pois não conseguia ouvir ao desenho que assistia. Carola reclamava

que alguém sempre furava a ‗fila‘ do vídeo game. Queca estava cansada demais para prestar

atenção em qualquer coisa.

- Érica, estás doente?

- Não, vó. Por quê?

- Estás tão pálida!

- É que não dormi bem nesta noite... vou ligar pra mãe.

- Ela ligou hoje cedo, mas vocês estavam dormindo. Disse que viria buscá-los à

tarde para irem passear.

- Ah, que bom. A que horas ela vem?

- Acho que logo depois do almoço... Não queres tomar um chá?

- Não precisa, vó. Eu estou bem! Só estou cansada, e essa bagunça não ajuda na-

da...

- Mas eu gosto quando vocês todos estão aqui... – ―Coisa de avó‖, pensou Queca.

Logo depois do almoço, Morgana chegou.

- Alô, povo!

Brincou e conversou com os sobrinhos, jogou vídeo game, mas não conseguiu pas-

sar de fase. Érica estava apreensiva:

- Mãe, a gente não ia sair?

- Vamos, mas não precisa ter pressa. Vocês escolhem aonde vamos. Só queria ter

um tempo com vocês...

- Quero conversar...

- Eu sabia – era a vó Ester – Morgana, ela está doente! Está pálida e quieta. Eu

quis fazer um chá, mas ela se recusou a tomar!

- Pode deixar, Dona Ester. Eu cuido dela. Chame a Carola e o Nando, Érica. Assim

podemos sair.

Tão logo entraram no carro, Érica começou a falar:

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- Mãe, sonhei com o lobisomem nesta noite.

- E...

- E acordei ensopada de suor! – Érica contou o sonho a Morgana, que ouviu em si-

lêncio. Os irmãos também prestavam atenção ao que a garota dizia sem falar uma palavra.

- O que pode ser?

- Bom, vamos por partes, como faria Jack, o estripador.

- Mãe, para de brincadeira!

- Ta bom, ta bom, mas vamos por partes: a palidez é por causa da falta de sono. O

cansaço também faz isso comigo, vocês já me viram assim dúzias de vezes. Quanto ao sonho,

não foi por causa da carta, mas porque dormisse pensando em como foi que tudo aconteceu.

Depois do ritual, entrasse em harmonia com o Universo, e a resposta para a tua pergunta veio

em forma de sonho. É provável que voltes a sonhar a mesma coisa, com mais detalhes. Para

evitar essa palidez, durma à tarde. Assim vais descansar e te recuperar. Também não deixes

de te alimentar.

- Eu estou me alimentando normal, mas estou sempre sem fome.

- Isso também é comum. Quando estamos em harmonia, comemos para manter a

saúde, e geralmente sem gula. Por isso está sentindo menos fome. O ideal é que faças uma

oração de agradecimento antes de dormir. Depois, se quiser continuar a sonhar, peça. Pergun-

te e as respostas virão. Mas não esqueça de agradecer depois, Ok?

- Ok.

- Vamos combinar o seguinte: hoje é domingo, então o primeiro dia de férias, de

verdade, é amanhã. Vou fazer um curso o dia todo, e só chego umas nove horas. Na terça-

feira, ligo de manhã e vou para a casa da vó. Assim, se quiserem, podemos visitar a casa velha

outra vez. Que tal a idéia?

- Ótima, mas vamos todos, né?

- Sim, vamos todos. Por que, Nando?

- Porque pensei que fosses querer voltar só com a Érica.

- Não se preocupe: no que depender de mim, vocês dois sempre estarão presentes!

Voltaram ao bosque onde o ritual fora realizado, e Nando espantou-se ao saber que

ficava dentro de um cemitério. Mas não um cemitério comum, pois não havia construções: os

túmulos eram debaixo da terra, e só apareciam lápides muito pequenas com as inscrições dos

nomes daqueles que foram sepultados ali. Mas a parte reservada ao cemitério ficava bem mais

ao norte, por isso eles não haviam percebido o que era no dia do ritual.

- Por que justo num cemitério?

- Porque não conheço nenhum outro bosque que possamos entrar livremente, e

porque simboliza o renascimento dela para uma nova vida. Aqui é um lugar sagrado, e por

muitos é chamado de campo santo.

Fernando insistiu:

- Não poderia ser em outro lugar?

- Sim.

- Onde?

- Numa praia, por exemplo. O problema são os curiosos: o que seis pessoas, três

adultos e três crianças estariam fazendo numa praia à noite, em pleno inverno?

- É, faz sentido...

- Mãe...

- Diga, Érica.

- O que era aquele pó branco que o Herculano usou?

- Era sal.

- Sal?

- Sim. Proteção. Muitos acreditam que bruxas não entram onde há um círculo de

sal, mas ele serve de proteção contra o mal. É que a maioria das pessoas associa as bruxas

com o mal. Então, bruxas também podem se proteger com ele.

- Mas vocês queriam se proteger conta o que?

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- No círculo, invocamos energias muito fortes, e não queríamos que outras energi-

as estivessem presentes conosco. Outras que não tivessem sido invocadas. Só o que é invoca-

do pode entrar no círculo. Por isso usamos o sal. A tia Nilda e o Herculano vieram aqui mais

cedo e fizeram um círculo ao redor do lugar em que vocês se sentaram.

- Por que vieram antes?

- Para se certificar de que não teríamos problemas, que não havia ninguém nas

imediações, e para evitar que vocês fizessem perguntas sobre o círculo e atrapalhassem o ritu-

al.

- Pensaram em tudo, hein?

- Talvez. Vamos voltar? Já está anoitecendo.

- Vamos.

Voltaram para a casa de Dona Ester, e Morgana nem sequer entrou. Ainda ficou

um tempo conversando com os filhos no carro, mas não quis entrar. Fernando não entendeu a

razão.

- Por que a mama não quis entrar? Ela tinha algum compromisso hoje?

- Não. Ela apenas não queria responder às perguntas da vó.

- Que perguntas?

- Ela acha que estou doente. Vou dizer a ela que tive um pesadelo e que a mama

acha que eu andei comendo algo muito pesado antes de dormir, assim ela me deixa em paz.

- Bem pensado!

Capítulo XIV – Uma conversa muito séria

Naquela segunda-feira, Morgana viajou bem cedo para uma cidade próxima onde

faria um curso de aperfeiçoamento, junto com vários outros professores. Mas, quando se pre-

parava para voltar, no final da tarde, logo que o curso terminara, seu carro não funcionou.

Tentou dar a partida no motor, virou a chave várias vezes, e nada! Ainda teve sorte, pois al-

guns professores que saíam do curso naquele momento, moravam em Braço do Norte, e um

deles se aproximou, perguntando se ela deixara o rádio ligado.

- Não, não é a bateria. Provavelmente algo de errado com o arranque.

- Tem um eletricista de carros aqui perto. Se quiseres, posso te dar uma carona. O

rapaz é de confiança, e ele pode te trazer de volta.

Morgana aceitou a oferta do colega e, em poucos minutos, estava em frente a uma

oficina com uma grande placa que dizia:

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Ela olhou a placa e pensou no nome: já tinha visto aquele sobrenome em algum

lugar. E não era de nenhum aluno, pois ela lembraria. Heitor, o professor que lhe dera carona,

desceu do carro e chamou alguém de quem se via uma sobra difusa dentro da oficina: o exces-

so da claridade do sol fazia o interior da loja parecer ainda mais escuro.

- Leu? – Heitor parecia chamar alguém. – Leu?

- Opa! Se não é meu amigo Hector!

- Heitor, Leu. Meu nome é Heitor! Sou brasileiro.

- Mas é de origem hispânica, não pode fugir às raízes! – ele apertava a mão do

amigo e batia-lhe o ombro, num intenso cumprimento cheio de satisfação.

- O que o traz aqui? Teu carro está perfeito, tenho certeza, pois eu mesmo fiz a úl-

tima revisão...

- Não, não! Com meu velho fusca está tudo bem. É o carro dela – Heitor apontou

para Morgana, que estava encostada no carro. Os dois estavam a alguma distância, o que per-

mitiu ao eletricista fazer um comentário:

- Que gata, hem! E a Joana?

- Ta doido? Ela é uma professora que estava no mesmo curso que eu, e teve pro-

blemas com o carro. Eu só quis ajudar...

- A Joana não vai gostar... – nem deixou o amigo responder – mas eu já gostei! – e

saiu ao encontro dela.

- Boa tarde, moça! Posso ajudar?

- Boa tarde, e espero que realmente possa. Meu carro está em frente ao ginásio e

não quer pegar.

- Não deixou o som ligado, ou os faróis.

- Nem liguei o rádio no caminho, e os faróis desligam-se automaticamente com o

motor. Creio que o problema seja no mecanismo de arranque.

- Bem informada, hem, dona! Pode deixar que eu dou um jeito no seu carro rapidi-

nho.

- Podes levá-la até o carro?

- Claro, Heitor! Com o maior prazer! Já levo algumas ferramentas e peças, e caso o

problema seja simples, resolvo lá mesmo.

- Obrigada, Heitor.

- Não tem de quê! Até outro dia!

- Até...

Enquanto Morgana e Heitor se despediam, ―Leu‖ colocou algumas caixas em sua

pick-up, entrou e deu partida no motor.

- Vamos, moça?

- Vamos!

No caminho. O eletricista puxa conversa com Morgana:

- É de longe?

- Moro em Tubarão.

- Então preciso fazer o conserto rápido, senão a moça vai ter que viajar à noite.

- Não me incomodo com isso. Só não quero ficar pelo caminho.

Chegaram em frente ao Ginásio, e o homem mostrou-se bastante rápido no traba-

lho: girou a chave, tentou dar partida, abriu o capô e deu o diagnóstico:

- Escova do arranque. Vou abrir para confirmar.

Logo depois ele mostrava a Morgana uma peça danificada.

- Só precisa substituir.

- Que bom! Então é rápido!

- Seria.

- Seria?

- Se eu tivesse uma para substituir. Vamos voltar para a oficina. Lá eu telefono pa-

ra os fornecedores e outros eletricistas. Se alguém tiver, faço o serviço ainda hoje.

- Ah, não!

- Prometo fazer o possível, moça.

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Assim, voltaram para a oficina, e Morgana aguardou sentada numa velha poltrona

de tecido, em frente à mesa do escritório do eletricista. Mais de uma hora, e vários telefone-

mas depois, ele olhava desolado para Morgana:

- Sinto muito. Só entregarão a peça amanhã cedo.

- Que droga! Quanto tempo demora a troca?

- Uns vinte minutos. É que já passa das seis, e a peça é muito barata, ninguém quer

fazer a entrega hoje.

- Paciência. – Morgana dá um suspiro. – onde posso encontrar um hotel que não

seja muito caro?

- Te dou uma carona.

Chegaram à frente de um prédio antigo, e o rapaz ainda entrou com ela e conse-

guiu um desconto na diária.

- Não te preocupes com o carro. Vou rebocá-lo para a oficina, ficará seguro lá. As-

sim que estiver pronto trago aqui, logo cedo.

- Obrigada. Ainda não seu teu nome.

- Basileu. Mas todo mundo me chama de Leu.

―O lobisomem!‖ Morgana lembrou do nome: era o nome do lobisomem, ou de um

de seus avós. Silvestrini também!

- Está passando bem? Ficou tão pálida!

- Ah... acho que fiquei nervosa com o problema do carro. Desculpe, não disse meu

nome: Morgana.

- A fada Morgana, irmã do Rei Artur?

- Talvez fosse bom ser. Assim eu mesma poderia consertar meu carro...

- Fadas não são eletricistas. Deixe isso comigo! Foi um prazer, Morgana. Se quiser

comer algo, tem uma boa lanchonete na esquina, ao sul. Vou até lá todas as noites, por volta

das nove. Se tiveres fome, te vejo lá. Até logo.

- Até.

Morgana ficou inquieta, e resolveu ligar para os filhos, mas não havia telefone no

quarto: só poderia usar o da portaria. Não pôde falar nada aos filhos sobre o nome do eletricis-

ta, apenas avisou-os que de voltaria no dia seguinte, por causa dos problemas no carro. Quase

sete horas. Subiu para o quarto, tomou banho, mas precisou vestir as mesmas roupas. Encon-

trou na mesa de cabeceira um livro. Suas últimas folhas estavam cheias de anotações escritas

à mão, e várias páginas dele estavam rabiscadas com coisas impossíveis de entender. Na con-

tra capa, em belas letras escritas com caneta tinteiro, estava o nome

Verônica Luppi

Quando desligou o telefone, Érica estava desanimada. Queria conversar com a

mãe. Sonhara outra vez com o lobisomem, outra vez o mesmo sonho, mas não ouvira nova-

mente o nome da mulher dele. Haviam jantado há pouco mais de meia hora, e Fernando es-

moreceu ao saber que a mãe não voltaria naquela noite.

- O que há com vocês? Até parece que é a primeira vez que a Morgana dorme em

outra cidade...

- Não é isso, vó. É que...

- Que a gente ta acostumado a ficar com ela. Desta vez, esperávamos que voltasse,

não é Queca?

- É, Nando, é isso...

- Amanhã vocês podem dar um passeio. Visitar alguém...

- Quem sabe o vô não inventa alguma coisa legal pra gente fazer?

- Isso mesmo, Carolina!

- Carola, vó! Carola!

Deitaram-se em seguida, os três no mesmo quarto que Marcos. Os outros primos

ficaram no quarto ao lado, e a avó ainda levou dois dos menores para o quarto com ela. Não

poderiam conversar. Marcos tinha medo de histórias sobrenaturais.

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Depois do café da manhã, Seu Nicolau convidou-os para um passeio na ponte de

ferro, construída pelos ingleses quando implantaram a ferrovia. Marcos quis acompanhá-los.

Como não podiam conversar sobre as investigações, Nando acabou afastando-se

do grupo. Sentado num tronco perto da ponte, ele observava o avô explicando a Marcos como

navegar com a canoa a motor. Érica também estava quieta. Carola e Marcos pareciam os úni-

cos a se divertir. Érica se afasta deles.

- Deveríamos ter ido para outro lugar.

- Onde, vô?

Na figueira, perto do matadouro.

- Que matadouro?

- Há alguns anos, o gado criado por aqui era abatido lá, para depois ser levado aos

açougues.

- E não é mais?

- Não. Hoje em dia a carne deve ter controle sanitário, e é abatida com melhores

condições de higiene, coisa que os matadouros não oferecem.

- E o que mais tem lá?

- A figueira.

- Mas tem figueiras espalhadas por toda a parte!

- Mas aquela é especial.

- Especial, como?

- Dizem que, nas noites de lua cheia, aparece pendurada nela a caveira do enforca-

do.

- Ui, vô! Que medo!

- E o vô já a viu?

- Não, Carolina. Nunca fui para aqueles lados em noite de lua cheia, mas a tua mãe

já deve ter ido. E por que o medo, Marcos?

- Não gosto dessas histórias, vô. Elas me dão arrepios!

Então vamos mudar de assunto.

- Outro dia o vô conta?

- Claro, Carola! É só me lembrar.

- Então está combinado.

Érica se aproximara do irmão.

- Sonhei outra vez.

- E aí, qual é o nome?

- Não sei. Acho que ele não a chamou mais pelo nome.

- Por que será, hem?

- Não sei. Por isso quero conversar com a mama...

Voltaram para casa, pois já era quase meio-dia. Os três saíram correndo quando vi-

ram o Uno branco de Morgana estacionado no pátio da casa.

- Cadê a mama?

- Saiu.

- O quê? – os três perguntaram.

- Calma! Ela deve ter ido ao mercadinho comprar algo.

- Vou encontrá-la, Vó!

- Mas que pressa!

- Também vamos!

- Crianças!

- Deixa eles, Ester! Está tudo bem com a Morgana?

- O problema era com o carro, não com ela. É claro que está tudo bem!

- Estou doida para conversar com vocês. Mas precisamos ser discretos.

- Mas, como?

- Deixem comigo. Vamos almoçar.

Comeram, arrumaram a cozinha, e Morgana falou que estava muito cansada. Va-

mos?

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- Vamos. – os três aceitaram na hora.

- Dormir? Pensei que íamos jogar futebol com os outros garotos...

- Não, Marcos. Vou ficar um pouco com a mama.

- Que grude, hem, Morgana!

- Eu gosto, vó.

Assim, no quarto, Érica fala dos sonhos.

- Mãe, tenho sonhado todas as noites com o lobisomem, aquele mesmo sonho que

te contei...

- Tenho uma coisa pra contar a vocês.

- Mãe, meu sonho...

- Ouviu o nome?

- Não. Acho que ele não falou mais o nome dela...

- Como a gente faz para descobrir?

- Eu já descobri.

- Hã?

- É. Descobri. Encontrei um sobrinho da mãe do lobisomem em Braço do Norte.

Lá tem uma grande colônia de italianos, e conversamos bastante...

- Como encontrou o cara?

- Ele é o eletricista que consertou o carro.

- Como assim?

- Me deixem contar como tudo aconteceu.

E assim, Morgana contou sobre a noite anterior em Braço do Norte.

Deitada na cama, Morgana folheava o livro e não conseguia entender nada do que

estava escrito. Não sabia dizer se era pela caligrafia ou se por estar escrito em uma língua que

ela não conhecia. Mas pensou que, se ―Leu‖ tinha o mesmo nome e um sobrenome de alguém

da família do lobisomem, talvez ele soubesse de algo. Olhou o relógio. Oito e meia. Ele deve-

ria estar na lanchonete da esquina sul. Guardou o livro no mesmo lugar, e resolveu procurar

―Leu‖.

Poucos minutos depois, Morgana chegava à Lanchonete. O ambiente era bom, e

alguns casais lanchavam nas mesas, e um comprido balcão abrigava pessoas solitárias. No

canto mais afastado, estava ―Leu‖.

- Oi...

- Fada Morgana! Que bela surpresa! Juro que pensei que não viesse...

- E não viria, mesmo! Mudei de idéia por causa de um livro que encontrei no hotel.

- Um livro?

- O que vai querer? – era o garçom que vinha atender Morgana. Ela pediu um san-

duíche da casa e um suco.

- Não bebe? – ―Leu‖ perguntou.

- Não.

- Paramos no livro. – o garçom se afastara.

- Está escrito, na contra capa, o nome de uma pessoa que morou num lugar que

conheço.

- Que nome?

- Verônica Luppi.

- Verônica Silvestrini Luppi, queres dizer.

- Não entendi.

- Era de uma tia-avó. Mãe da dona do hotel. Ela está viajando com o marido.

Aquele rapaz que nos atendeu é meu primo.

Morgana emudecera. Estava com a boca aberta, mas não sabia o que dizer.

- Sei o que quer saber. Sobre a suposta Lenda do Lobisomem. – o garçom chegou

com o pedido, e a conversa mudou de rumo.

- Teu carro já está seguro. Reboquei para a oficina. – o garçom se afastou.

- Por que suposta Lenda?

- Porque é verdade! - Morgana não diz nada. – Não acredita?

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- Eu... eu acredito. Tanto que tenho conversado com todas as pessoas que sei que

têm algum conhecimento da história, mas ninguém diz nada. Todo aquele a quem pergunta-

mos, dá respostas evasivas, ou mostra claramente que tem medo.

- É normal. Todo mundo tem medo do que não conhece. Só não sei como foi des-

feita a maldição. Mas que ela existiu, existiu.

- Como podes ter tanta certeza?

- A tia Paola contava que os pais dela lhe disseram. Mas não contaram como, pois

a maldição ia, com o tempo, desaparecer da terra.

- Faz sentido. Se ela recai sobre o sétimo filho, a tendência é desaparecer. As famí-

lias já não são tão grandes.

- Também porque os lobisomens eram mortos, quando descobertos. Então, era

bem mais difícil de alguém acabar sendo mordido.

- Mas... o que mais sabes sobre a maldição?

- Bom, foi a mulher dele, a Verônica, que desfez. Dizem que ela teve a ajuda de

uma bruxa, que ensinou como desfazer a maldição, mas que ela fez tudo sozinha. Cada um

conta uma coisa diferente, mas pelo menos uma coisa todas as histórias têm em comum.

- O que?

- Que deve ser feito num cemitério, na hora em que a lua começa a aparecer. Ela

era um bocado corajosa.

- É, deveria ser mesmo.

- E o que mais?

- Bom, cada qual com sua versão, mas nenhuma com coisa que se aproveite. Aca-

bei esquecendo a maioria das bobagens que o povo diz.

- Que bobagens?

- As que envolvem mexer com a terra do cemitério, por exemplo.

- E por que não?

- Porque foi uma bruxa que a ensinou. Nenhuma bruxa de verdade brinca com coi-

sas sagradas, e o cemitério é um lugar sagrado. É o portal que as almas usam para entrar e sair

deste mundo. – Morgana levantou as sobrancelhas. – Olhe, Morgana, pode lhe parecer pre-

sunção da minha parte, mas sei que és uma bruxa. Sei reconhecer uma quando vejo.

- Como?

- Minha mãe também é.

- E tu?

- Infelizmente, não herdei os poderes dela. Por mais que estude, me aplique, não

consigo nada.

- Talvez a hora ainda não tenha chegado... – Basileu se mostrava triste – talvez sua

missão seja outra...

- Qual?

- Tu mesmo deves descobrir. Mas, o importante, é que aprendestes a respeitar as

bruxas e as pessoas comuns. Esse é o primeiro passo para ser um bom bruxo. Quem sabe a

hora de despertar não seja agora?

- Há algo que eu possa fazer?

- Já foi iniciado?

- Já.

- E nada?

- Nada.

- Bom... na família do meu pai, os que não demonstravam poderes passavam por

uma purificação... Sabe o que é?

- Não. Acho que a mama não sabe...

- Vocês são descendentes de italianos, minha mãe também era. Na família dela es-

se ritual não era conhecido. Eu mesma o descobri há pouco tempo, conversando com uma tia

com quem aconteceu a mesma coisa que...

- Morgana, por favor, sem rodeios. Não queres ensinar direto para a mama?

- Ela não precisará fazer nada.

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- Não? Quem vai fazer, então?

- Tu mesmo.

- Como?

- Bem, as bruxas estão em harmonia com a natureza, certo?

- Certo.

- Então, a primeira coisa a fazer é parar de destruir.

- Mas eu não destruo nada!

- Mas come carne. Está matando para se alimentar, ou há outra opção?

- Eu... nunca tinha pensado nisso...

- Então, se quiser, pode tentar.

- Nem tocasse teu sanduíche.

- Eu não sabia que ele tinha tanta carne. Mas, quando nos alimentamos apenas com

os frutos da terra, com o leite do gado e ovos, nossa percepção e os poderes melhoram. Acho

que não custa nada tentar...

- Vou fazer isso, Morgana. Vou fazer.

- Se quiser, podes dizer à tua mama que apenas resolvesse te abster de carne e, se

aparecerem poderes, certamente ela vai ficar muito feliz. E eu vou dormir. Quero voltar cedo

para casa amanhã.

- Morgana... obrigado!

- Espero que dê certo. Até amanhã.

Quando contou aos filhos, Morgana omitiu boa parte da história. Contou apenas o

que os interessava sobre Verônica.

- Isso mesmo, mãe! Era Verônica!

- Ouvir o nome te fez lembrar?

- Sim! Tenho certeza que foi esse nome que ouvi!

- E o que vamos fazer, agora?

- Não sei, Nando. Não sei.

Capítulo XV – A casa velha e os objetos dos baús

Morgana deixou-os depois do jantar e foi dormir em casa. Érica estava tranqüila,

por isso Morgana foi para casa sem preocupações. Desde que ficara viúva, não dormira mais

na casa de Dona Ester. Na manhã seguinte, voltou para lá, pois tinham combinado de ir até a

casa velha para mais algumas explorações.

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Desta vez, a caminhada até a casa velha deixou as crianças cansadas: o sol estava

forte e, mesmo sendo final de julho, no pior do inverno, o dia estava bastante quente. Mais

uma vez Morgana fez reverências ao entrar na floresta. Érica ficou observando, mas nem foi

preciso perguntar, pois a mãe, tão logo terminou seu pequeno ritual, explicou:

- Pedi permissão para entrar no capoeirão. Para os bruxos, todas as matas são

sagradas, e a natureza é uma força, uma enorme fonte de energia.

- Mas por que fez isso numa língua que não entendemos?

- Por que aprendi a fazê-lo em latim, mas vou te ensinar em português: será

uma das coisas que deverão estar anotadas no teu livro das sombras.

- Não preciso decorar?

- Não é algo decorado. Como tudo que realmente se aprende, é preciso enten-

der. Se esta é uma grande fonte sagrada de energia, deves pedir licença para entrar.

- Pedir necessariamente a quem?

- Quem tu achas que está aqui?

- Não sei... espíritos, talvez...

- Então peça a eles. Mas é preciso senti-los.

- Também é preciso falar?

- As palavras são poderosas. Tudo o que tu falas, se transforma em energia. Se

os espíritos são energia, então têm a mesma freqüência das palavras.

- Preciso fazer isso agora?

- Não. Apenas quando achar que é necessário. Quando sentir que deve. Já fiz

isso por vocês, mas não esqueça que já és uma iniciada: uma bruxa. Aprendendo a Arte, mas

uma bruxa.

Continuaram o caminho e, quando chegaram ao córrego, mãe e filha inclinam-

se e falam juntas:

- Força das águas, permitam nossa passagem, emprestem vossa energia para que se cumpra o que é necessário. Que assim seja!

- Vocês ensaiaram?

- Não. Saiu. Simplesmente saiu! – Érica explicava, perplexa, ao irmão. Morga-

na deu um sorriso maroto e os quatro continuaram o caminho.

Na frente da casa velha, Morgana adverte os filhos:

- Pode ser que, desta vez, nossa visita seja diferente. Não se assustem, e não

precisam ter medo.

Já dentro da casa, Morgana pede aos filhos que encontrem o que pode lhes

ajudar a ver o passado. Eles olham ao redor, pegam alguns objetos, mas não se decidem por

nada, não encontram nada que julguem ajudar. Ela sugere que abram os baús, mas antes fa-

zem um ritual de proteção.

Antigos donos que aqui viveram Permitam que conheçamos a verdade Permitam que possamos tocar em seus pertences Emprestem suas energias para que a verdade seja conhecida Eles se olham antes de mexer nos baús.

- Não esqueçam que devemos ter respeito por tudo que tocarmos. Não importa

o que venhamos a encontrar, não nos pertence. Se a permissão que pedi nos foi dada, então a

chave do tempo se materializará.

Fernando ficou imaginando uma grande chave, bem antiga, de metal. Mas o

que ela abriria? Será que ia se materializar uma porta? Não conseguia entender...

Encontraram vários objetos nos baús: fronhas, cobertores, toalhas e roupas antigas.

Morgana pega uma camisa velha, fecha os olhos e um vento forte varre a casa velha. Ela solta

a roupa a roupa no chão.

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- Nando, Carola. Vão lá fora e peguem terra da rua nas duas mãos. Sintam a terra,

e peçam a ela que os proteja. Na volta, entrem aqui e se encostem nas paredes. É uma prote-

ção.

Os dois obedecem a mãe sem fazer perguntas.

- Érica, faremos a chave do tempo. Segure, com ambas as mãos, este vestido ve-

lho, deve ter sido de Verônica. Eu seguro a camisa.

Nando e Carola voltam da rua, as mãos cheias da terra úmida que tem ao redor da

casa. Tiveram que arrancar o mato para poder pegá-la. Quando os dois encostam na parede,

Érica segura o vestido e fecha os olhos. Morgana segura a camisa de algodão. Novamente o

vento varre a casa, e os três são projetados para o passado. Erica se vê no corpo de uma mu-

lher, a mulher do lobisomem, e vê o lobisomem, mas sente que a mãe está no corpo dele. Elas

não conseguem controlar os acontecimentos, são apenas veículos da projeção.

Capitulo XVI – A cura do Lobisomem

Os três continuam no passado, e vêem o casal se preparar para o ritual de cura, que

deve permanecer em segredo, sob pena das transformações voltarem. Não sabem como enten-

deram isso, pois nenhum dos dois falou. Eles parecem muito nervosos, e conversam sobre

uma viúva que vivia num povoado distante. Ela os ensinou o ritual. Quando falam na viúva,

ouve-se um forte estrondo, e Érica vê nitidamente os brilhantes olhos castanho-claros da mãe.

―É preciso muita coragem e muito amor para que tudo dê certo‖- Verônica diz ao marido.

―Nós temos os dois. E muito mais! Faremos o que for preciso.‖

O lobisomem e a mulher saem da casa, caminham até o cemitério e esperam o

aparecimento da lua. O lusco-fusco da chegada da noite, dentro do cemitério é assustador.

Tudo acontece sem que Morgana e os filhos saiam da casa. É a chave do tempo que está mos-

trando o passado.

Quando a lua começa a aparecer, Úlmer atira-se ao chão e começa a se contorcer.

A transformação está começando. Verônica pronuncia umas palavras estranhas, algumas re-

conhecidas do ritual de iniciação de Érica. Há vento forte, trovões e raios que cortam o céu.

Verônica levanta os braços, segurando um grande espinho na mão direita. Aproxima-se de

Úlmer e espeta o lobisomem, na altura do coração com o espinho. Ele se contorce, uiva, pare-

ce sofrer muito. O sangue que sai do ferimento escorre em sua camisa clara de algodão, mas

ao invés de se transformar na fera, a metamorfose cessa. Ele ainda fica parado por alguns mi-

nutos, estendido no chão. Depois começa a voltar ao normal. A maldição está quebrada! Os

dois se abraçam e iniciam o caminho de volta para casa, felizes. Neste momento, o forte vento

varre a casa mais uma vez, e Érica e Morgana estão caídas no chão.

Exaustos, os quatro sentaram-se no chão. Mas nem mesmo o cansaço impediu-

os de conversar.

- Mão, por que aquele estrondo? E bem na hora em que falaram da viúva?

- Ela era a bisavó de vocês. Ficou viúva muito jovem, criou os filhos sozinha. E

sempre ajudou a quem precisava, sempre que podia. Eu desconfiava que ela era bruxa por

causa dos conhecimentos que tinha sobre as ervas: conhecia um remédio natural para qualquer

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coisa. Ela ensinou o que sabia sobre as ervas aos filhos. O sangue de bruxo está na nossa fa-

mília há muitas gerações. Mas vocês são mestiços, pois herdaram o sangue apenas da minha

parte. O pai de vocês não tinha poderes sobrenaturais, e nunca soube de qualquer um da famí-

lia dele que os tivesse.

- Engraçado...

- O que é engraçado, Nando?

- Sei que eram vocês duas, mas estavam diferentes...

- Então vocês viram alguma coisa?

- Eu vi... acho que tudo... – e contam o que viram, fazendo perguntas para entender

melhor.

- Mãe... a vó Viviane também era uma bruxa. A família dela também é de bruxos?

- Sim. Mas isso a tia Nilda pode explicar melhor. Eu tinha esperanças de que vocês

não tivessem poderes, mas parece que me enganei.

- Melhor assim. Eu ficaria muito frustrado se não conseguisse ver o que aconteceu

aqui.

- Só os bruxos conseguem materializar e ver a chave do tempo.

- O que acontece se uma pessoa comum, quer dizer, que não é bruxa, está junto

quando se faz a chave do tempo?

- Eles podem sentir o vento, ver trovões, ouvir estrondos. Mas não conseguem ver

nada. Só os bruxos conseguem conectar o passado com objetos antigos, por isso somos tão

cuidadosos com antiguidades. Elas podem ser mais valiosas do que parecem. Mas os poderes

só devem ser usados para o bem, nunca para o mal. Outra coisa muito importante: não se deve

mexer com o tempo. Principalmente tentar alterar fatos que já aconteceram. Isso poder ter

conseqüências desastrosas.

- E isso é possível?

- Espero que não, Nando. Do contrário, bruxos inescrupulosos podem tentar alterar

coisas que já aconteceram. É melhor irmos embora. Estou muito cansada, e temos uma cami-

nhada e tanto pela frente.

Fazem a caminhada de volta para a casa da avó e, muito cansados, arrumam suas

coisas para voltar para casa.

- Mas, por quê? Brigaram com alguém? Estão doentes?

- Não, Vó. A gente só quer voltar pra casa, só isso.

- Esta vai ser a primeira vez que vocês não ficam até o final das férias!

Dona Ester parece triste, mas conformada com a decisão dos netos.

- Talvez a gente vá viajar, Dona Ester. É o único tempo que temos para isso. Nas

férias de verão nunca consigo viajar por causa dos cursos. Eles se despedem e iniciam o ca-

minho de volta, largados nos bancos do carro, Morgana dirigindo.

- Mãe, o vô Lau contou que tem uma curva que chama ―curva da figueira do en-

forcado.‖ Já ouviu falar?

- Claro que sim! Mas quem conhece toda a história é a tia Nilda.

- Legal! Que tal a gente ir visitá-la?

- É, podemos, mas só amanhã, porque hoje estou muito cansada.

- É, seria legal! - Erica se entusiasma e, num olhar silencioso, os três entendem que

a tia Nilda poderia contar outras histórias interessantes, outros mistérios a serem descobertos.

- Mãe, precisamos contar ao vô Lau que descobrimos tudo. Mas como?

- Digam que o rapaz da oficina em Braço do Norte me contou.

- Acho que ele não vai acreditar nisso!

- Não custa tentar, Carola. Se ele não acreditar, paciência. É melhor não envolver o

uso de magia, e a única maneira que vejo é essa.

Quando estão chegando perto de casa, ao abrir o portão eletrônico vêem, saindo

da garagem deles, um enorme cão negro. Morgana, Érica, Nando e Carolina se entreolham em

silêncio. Seria um lobisomem?

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BIBLIOGRAFIA AUXILIAR

UTILIZADA COMO FONTE PARA OS RITUAIS QUE CONSTAM DA HISTÓRIA

RECONTADA

BAGNO, Marcos. Preconceito lingüístico. São Paulo: Loyola, 2001.

BEIMS, Marina G. Wicca e outras tradições. Florianópolis: Edição da autora, 2001.

BIANCARDI, Rosa M. O livro secreto da bruxa. São Paulo: O artífice editorial, 2001.

____________. Sabedoria das bruxas – Manual de iniciação à magia. São Paulo: Berkana

Editora, 1998.

CONWAY, D. J. O livro mágico da lua – magias, encantamentos e dias mágicos. São

Paulo: Gaia, 2001.

CUNNINGHAM, Scott, HARRINGTON, David. A casa mágica. São Paulo: Gaia, 2001.

CUNNINGHAM, Scott, A verdade sobre a bruxaria moderna. São Paulo: Gaia, 1998.

____________. Magia natural. São Paulo: Gaia, 2001.

GRIMASSI, Raven. Os mistérios wiccanos. 2. ed. São Paulo: Gaia, 2001.

LELAND, Charles G. Aradia, o evangelho das bruxas. São Paulo: Outras Palavras, 2000.

QUINTINO, Cláudio C. A Religião da grande deusa. São Paulo: Gaia, 2000.

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alt="Licença Creative Commons" style="border-width:0"

src="http://i.creativecommons.org/l/by-nc-nd/3.0/88x31.png" /></a><br />A obra <span

xmlns:dct="http://purl.org/dc/terms/" href="http://purl.org/dc/dcmitype/Text" proper-

ty="dct:title" rel="dct:type">Imaginários em diálogo: a lenda do lobisomem em uma perspec-

tiva bakhtiniana como resgate de narrativas folclóricas</span> de <a

xmlns:cc="http://creativecommons.org/ns#" href="www.magiadasletras.com" proper-

ty="cc:attributionName" rel="cc:attributionURL">Elita de Medeiros</a> foi licenciada com

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rel="cc:morePermissions">www.magiadasletras.com</a>.