elierson - viiisemhipi

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1 PAISAGEM E MEMÓRIA DOS VERDES ANOS CINQUENTA: RENATO DUARTE E A INVENÇÃO DE UM TEMPO PARA PICOS-PI JOSÉ ELIERSON DE SOUSA MOURA* Buscamos uma atividade: a invenção de um tempo, que permitiu dar a ler/ver os anos 50 do século XX, em Picos, Piauí. Renato Duarte apresentou em 1991, Picos: os verdes anos cinquenta. Objetivou preservar a memória daquele período, interpretando as mudanças que ocorreram naquele espaço. Ele, quando escreveu/publicou residia em Recife, Estado do Pernambuco. Assim, problematizamos a invenção da década de 1950 em Picos, uma oposição à década de 1990, período tido como de dispersão da vida. Para tal, usamos Ricoeur (2010), para pensarmos a relação da narrativa que inventou um tempo, ao ser inventada também; e Gomes (2004), que nos possibilitou compreender que a escrita sobre a cidade partiu de uma escrita de si do autor, funcionando como um suporte de memória. Utilizamos ainda, a empiria do livro publicado em 1991; e de 13 cartões postais que ele trocou com a família, durante a década de 1970. Palavras-chave: Renato Duarte. Picos-PI. História e Literatura. Rio Guaribas! Doce retrato amordaçado na lembrança! Hoje és mofo. Esgoto. Fratura exposta. O homem mija na solidão das tuas costas. Quem saciava a sede alheia, Hoje morre de sede e porrada. Se arrastando para o mar, se contorcendo Feito cobra perseguida e machucada. Rio Guaribas, Estes versos são lágrimas salgadas e amargas e tristes. Um beijo ao teu renascimento, Do menino que ainda existe. (Rio Guaribas Vilebaldo Nogueira Rocha) Introdução Na epígrafe, um rio e um menino. Um leito de água dentro do poeta. O rio Guaribas e Vilebaldo Rocha 1 . Uma relação de curso: é que por meio dos versos, o rio atravessou o seu peito, rasgou a sua carne. Sangrou outro leito. Um leito vazio e vermelho de dor, fermentado pela falta. A força motriz para o rasgo foi uma lembrança. A lembrança de um rio que ao matar a sede alheia, também ficou com sede: uma sede de atenção. Encontra-se na solidão, com seu mofo diluído em esgoto. Rasteja feito uma cobra, sem energias para medir se a sua força é suficiente para desembocar no mar. Um deslizar que é volumoso e ondulante como o mar de lágrimas salgadas, amargas e tristes. Lágrimas que possuem a sua nascente nos olhos do poeta. Um menino habita o poeta. Um menino que lembra, ainda existe dentro do poeta. * Mestrando em História, pelo Programa de Pós-Graduação em História do Brasil PPGHB, da Universidade Federal do Piauí UFPI. É bolsista CAPES. 1 Vilebaldo Nogueira Rocha é um poeta da cidade de Picos. É membro da União Picoense de Escritores UPE. Publicou os livros Cacos de Vidro, em 2000; e O caçador de passarinhos, no ano de 2006.

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Page 1: Elierson - VIIISEMHIPI

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PAISAGEM E MEMÓRIA DOS VERDES ANOS CINQUENTA: RENATO DUARTE E

A INVENÇÃO DE UM TEMPO PARA PICOS-PI

JOSÉ ELIERSON DE SOUSA MOURA*

Buscamos uma atividade: a invenção de um tempo, que permitiu dar a ler/ver os anos 50 do

século XX, em Picos, Piauí. Renato Duarte apresentou em 1991, Picos: os verdes anos

cinquenta. Objetivou preservar a memória daquele período, interpretando as mudanças que

ocorreram naquele espaço. Ele, quando escreveu/publicou residia em Recife, Estado do

Pernambuco. Assim, problematizamos a invenção da década de 1950 em Picos, uma oposição

à década de 1990, período tido como de dispersão da vida. Para tal, usamos Ricoeur (2010),

para pensarmos a relação da narrativa que inventou um tempo, ao ser inventada também; e

Gomes (2004), que nos possibilitou compreender que a escrita sobre a cidade partiu de uma

escrita de si do autor, funcionando como um suporte de memória. Utilizamos ainda, a empiria

do livro publicado em 1991; e de 13 cartões postais que ele trocou com a família, durante a

década de 1970.

Palavras-chave: Renato Duarte. Picos-PI. História e Literatura.

Rio Guaribas!

Doce retrato amordaçado na lembrança!

Hoje és mofo. Esgoto. Fratura exposta.

O homem mija na solidão das tuas costas.

Quem saciava a sede alheia,

Hoje morre de sede e porrada.

Se arrastando para o mar, se contorcendo

Feito cobra perseguida e machucada.

Rio Guaribas,

Estes versos são lágrimas salgadas e amargas e tristes.

Um beijo ao teu renascimento,

Do menino que ainda existe.

(Rio Guaribas – Vilebaldo Nogueira Rocha)

Introdução

Na epígrafe, um rio e um menino. Um leito de água dentro do poeta. O rio Guaribas e

Vilebaldo Rocha1. Uma relação de curso: é que por meio dos versos, o rio atravessou o seu

peito, rasgou a sua carne. Sangrou outro leito. Um leito vazio e vermelho de dor, fermentado

pela falta. A força motriz para o rasgo foi uma lembrança. A lembrança de um rio que ao

matar a sede alheia, também ficou com sede: uma sede de atenção. Encontra-se na solidão,

com seu mofo diluído em esgoto. Rasteja feito uma cobra, sem energias para medir se a sua

força é suficiente para desembocar no mar. Um deslizar que é volumoso e ondulante como o

mar de lágrimas salgadas, amargas e tristes. Lágrimas que possuem a sua nascente nos olhos

do poeta. Um menino habita o poeta. Um menino que lembra, ainda existe dentro do poeta.

* Mestrando em História, pelo Programa de Pós-Graduação em História do Brasil – PPGHB, da Universidade

Federal do Piauí – UFPI. É bolsista CAPES. 1 Vilebaldo Nogueira Rocha é um poeta da cidade de Picos. É membro da União Picoense de Escritores – UPE.

Publicou os livros Cacos de Vidro, em 2000; e O caçador de passarinhos, no ano de 2006.

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Por causa da lembrança é que existe. Ela impede as mortes de muitos meninos que habitam os

crescidos.

Aqui, na porteira aberta pelas palavras, apareceu um encontro forjado por meio da

narrativa. O menino que habita o poeta Vilebaldo Rocha, recebeu outro. Tratou-se de um que

mora em um distinto homem de letras: Renato Duarte2. Deram-se as mãos, através dos

sentidos que empreenderam para a cidade de Picos. Sentidos que problematizamos. Um

encontro que aconteceu no terreiro da nossa imaginação. Terreiro que é infinito feito uma

folha de papel em branco. Passaram a habitar o terreiro, do modo que habitamos folhas de

papel, ao passo que escrevemos. Escrever é habitar. Escrever é ocupar espaço (PEREC,

2001:31). De início, imaginamos um diálogo entre os dois. Um diálogo entre Vilebaldo Rocha

e Renato Duarte. O tema: a saudade compartilhada de uma cidade. A saudade dos anos 50 e

60, do século passado, de Picos. Uma saudade que teve como fio condutor, o rio Guaribas.

Vilebaldo Rocha escreveu a partir da primeira década do século XXI.

Em seguida, Renato Duarte tomou o lugar de fala no nosso texto. Semelhante a

Vilebaldo Rocha, seus olhos também foram olhos-poesia. Eles igualmente tinham o velho e o

novo. Para justificar o uso da metáfora alheia, usamos o seu livro: Picos: os verdes anos

cinquenta. No “Pósfácio”, apareceu a afirmativa de que não pretendeu comparar “padrões e

estilos de vida”, de períodos diferentes. Ainda assim, seria inevitável que lendo, não

encontrássemos referências a um “padrão evolutivo” da cidade (DUARTE, 1995:207).

Explicamos: foi recorrente em seu livro, uma permanência evolutiva do tempo e uma

diferença de como tal evolução foi vivenciada em Picos. A narração da evolução do tempo

criou a falta. A narração criou a saudade. E o aprofundamento da feitura do seu livro se

constituiu condição necessária.

Outro menino entrou em cena. Um menino que não vivenciou as décadas de 1950 e

1960 em Picos, mas aprendeu algo: sentir saudades das cidades (invisíveis) de Picos daqueles

períodos, tendo como fio condutor, o rio Guaribas. A aprendizagem se converteu em um

paradoxo. Não mergulhou no rio uma única vez. Não colheu uma cebola plantada às margens

daquele. Não carregou uma lata de água na cabeça, buscada por lá. Não lavou uma peça de

roupa naquelas águas. Mesmo assim sentiu saudade daqueles tempos. Talvez, justifique o

desejo de correr o papel com essas linhas.

2 Renato Santos Duarte, também nasceu em Picos e é um economista residente na cidade de Recife, no Estado do

Pernambuco. Possui doutorado em Economia, pela Universidade de Glasgow, na Escócia. Trabalhou na

Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, no Programa de Pós-Graduação em Economia. Viveu parte de

sua infância e adolescência em Picos.

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Se Kublai Khan, imperador dos Tártaros, teve que confiar em Marco Polo para

conhecer as cidades do seu reino (CALVINO, 1990:9), de igual forma, nós precisamos

confiar no menino que observou o diálogo imaginado para os dois amigos, pelo modelo aqui

exposto da operação historiográfica3. Precisamos confiar nele, para sentirmos as cidades

invisíveis recitadas/faladas por aqueles dois. E uma condição foi necessária: à medida que o

menino narrou o diálogo, colocamos algumas perguntas como filtros de entendimento: quem

foi/é Renato Duarte? De que maneira inventou um tempo para a década de 1950 em Picos,

formatando um modo de ler o período, que ficou entre as décadas de 1950 e 1990? Qual o

percurso de vida feito entre o vivido (a década de 1950) e o escrito (a década de 1990)? E de

que maneira a escrita sobre a cidade de Picos, converteu-se em uma escrita de si?

Feito o senhor Palomar, olhamos a partir de uma praia. Pisamos em granulados de

areia, que são os restos deixados pelo tempo. Buscamos ondas. Ondas que compõem um mar:

a história4. Ela que também é uma imensidão de possibilidades para quem se insere na sua

escrita. Como o senhor Palomar, de pé, observamos uma onda: a década de 1950 em Picos.

Aprendemos com aquele, a impossibilidade de observar uma onda sem levar em conta duas

condições complexas: aspectos que concorreram para a sua formação; e aspectos que a mesma

deu lugar.

Assim, para fazermos um giro sobre Rentado Duarte, sujeito da onda dos anos 1950,

nós perscrutamos duas situações e as colocamos em mente: Renato Duarte, gota d’água

daquela onda, não pôde ser avistado/deslocado sem levar em conta as distintas ondas que

impulsionaram a escrita do seu livro. Escreveu sobre a década de 1950, mas escreveu em

1990. As ondas das décadas de 1960, 1970, 1980, atravessaram a sua onda de escrita de

alguma maneira. Outra, não menos importante: a necessidade de observar a onda mergulhada

por aquele, existiu pela condição de margear as ondas posteriores. Ou melhor: pela precisão

de entender o que se disse sobre a década de 1950 em Picos, com base no tempo inventado

por Renato Duarte. Com isso em mente, mergulhemos em busca dessa onda (CALVINO,

1994:5-6). Mergulhemos a partir dos rastros deixados por Renato Duarte. Mergulhemos na

análise dos seus livros Picos: os verdes anos cinquenta, publicado em 1991 e A reconstrução

3 A operação historiográfica fora usada, ao sentido de uma prática composta por: um lugar social, que tem a

função de informar que o escrito histórico se liga em um tempo, sem necessariamente pretender dizê-lo em sua

completude; procedimentos de análise, que são os limites da disciplina histórica; e pela construção de um texto, a

trama narrativa tecida pelo historiador (CERTEAU, 1982:65). 4 A história fora manuseada, não ao sentido que recebe quando é iniciada por letra maiúscula, enquanto uma

entidade que existe em si mesma, com realidade em si mesma ou como categoria que descreveria coisas que

teriam existências em si mesmas, mas ao contrário, enquanto um conceito que para ser lido necessita do filtro do

tempo e sua passagem, porque o sentido daquela também mudara ao longo do tempo (ALBUQUERQUE

JÚNIOR, 2013:19-20).

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de uma cidade: Plano de Desenvolvimento para Picos, do ano de 2002; um artigo intitulado

Picos – Os Verdes Anos Cinquenta, de 1993 e que foi publicado na Revista do Instituto

Histórico de Oeiras - IHO; treze cartões postais que trocou com a família entre os anos de

1969 e 1983; Censos Demográficos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE,

das décadas de 1950, 1960, 1980 e 1990; e a Revista Foco, de 1992. Na falta do curso do rio

Guaribas, o curso da escrita seguiu.

O itinerário feito e a fermentação da saudade no viajante

1993: a apresentação de uma cidade e uma apresentação de si. Um picoense em

Oeiras, no Estado do Piauí. Renato Duarte entre intelectuais. Renato Duarte entre membros do

Instituto Histórico de Oeiras – IHO5. Quanto a aqueles, lembremos: os intelectuais são

divisíveis em duas categorias, pelo menos: primeiro, os intelectuais criadores e “mediadores

culturais”. São os jornalistas, os escritores e os professores, na sua completude. Eles procuram

apresentar sentidos para o social, por meio dos textos ou da fala; o segundo grupo, engloba

aqueles que se entrelaçam em engajamento político. Eles se embrenham na vida das cidades

como atores, testemunhas ou consciências (SIRINELLI, 2003:242-243). Uma ressalva se faz

necessária. Apesar de ser possível uma dicotomia de tipos de intelectuais, um único pode

comportar as duas características. Um mesmo intelectual pode conter várias funções sociais.

Eles fogem do enquadramento analítico, que muitas vezes recebem. Não desejamos fixar uma

dicotomia de entendimento para aqueles.

Renato Duarte é um caso. Agiu enquanto um mediador cultural, quando da publicação

de Picos: os verdes anos cinquenta, ao tentar fixar uma memória para os anos 50, do século

XX, naquela cidade; e agiu também, enquanto um engajador político, ao publicar uma

proposta de “Plano de Desenvolvimento”, para a cidade, com o título de A reconstrução de

uma cidade: Plano de Desenvolvimento para Picos, no ano de 2002. Rodeado de políticos,

agradeceu a oportunidade de propor o plano. Ele, que aceitou a proposta de criação do

documento, publicamente, saudou com suas palavras, o então presidente daquela casa

institucional, João Militão Rufino, conhecido por João Rufino; um dos vereadores da época,

Antônio Evandro Reis Antão, dito Antônio Reis; e o grupo que nominou de “picoenses que se

têm mostrado sempre prontos a lutar pelos superiores interesses” daquela terra, com foco para

um sujeito: o então tesoureiro da Câmara Municipal, Paulo de Tarso Portela Veloso. Ou

5 O Instituto Histórico de Oeiras – IHO foi implantado em janeiro de 1972. A implantação foi feita por alguns

intelectuais: Possidônio Queiroz, historiador e professor; José Expedito, médico, poeta e escritor; e Raimundo da

Costa Machado, historiador. No dia 30 de janeiro de 1973, o prefeito municipal de Oeiras sancionou a Lei n.

914, reconhecendo ser de utilidade pública aquele Instituto (TAPETY, 2014:68).

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simplesmente, Paulo de Tarso (DUARTE, 2002:5). Na parte chamada de “Apresentação”,

explicitou algo. Explicitou fins para aquela proposta.

Este Plano de Desenvolvimento para Picos representa o pagamento de uma dívida,

assumida publicamente pelo seu autor, de elaborar um documento que norteasse as

ações públicas e privadas visando o maior aproveitamento do grande potencial de

crescimento econômico e de desenvolvimento social, cultural e ambiental do

município (DUARTE, 2002:11).

De início, uma constatação: Renato Duarte assumiu para si uma função. A função de

colocar o seu saber à disposição de Picos. Na época, ele era professor de Economia da

Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Justifica, assim, o uso da palavra “dívida”. Era

urgente para ele, envolver-se no direcionamento das decisões tomadas em Picos. Cidade que

foi palco de gestação da sua infância e de parte de sua adolescência. Renato Duarte jogou com

algo singular para a sua função de intelectual. Jogou com uma esperada “especialização”, para

legitimar/privilegiar a sua intervenção no debate da cidade. E foi esperada, porque o

funcionamento da “especialização” depende da sociedade ao qual o intelectual faz parte

(SIRINELLI, 2003:243). E Renato Duarte, ao passo que recebeu o convite para a feitura do

Plano, recebeu o reconhecimento de parte da sociedade. Ganhou o aval para colocar a sua

“especialização” em prática. O seu saber a disposição de Picos. E ele tinha o desejo de ser

visto de tal modo.

[...] Como picoense, o autor deste Plano acredita estar cumprindo o seu papel, ao

alertar a comunidade para a necessidade de se unir e de se manter mobilizada,

permanentemente, na tentativa de recuperação do tempo perdido. Não existe

qualquer interesse pessoal ou pretensão de qualquer ordem, por parte do autor

deste Plano, ao escrevê-lo, a não ser a retribuição ao meu torrão natal por aquilo

que lhe foi proporcionado em distintas fases da sua vida. A recompensa maior será

ver a cidade na posição em que ela sempre mereceu estar: entre os mais dinâmicos,

vigorosos, igualitários e civilizados pólos sub-regionais de desenvolvimento do

Nordeste brasileiro (DUARTE, 2002:14-15).

Acreditava, com o Plano, no cumprimento de um papel. Um papel de intelectual:

alertar. Um alerta que revelou algo: o desejo de recuperação de um tempo perdido. A

recuperação de uma falta sentida acerca daquele “torrão natal”. E não foi a primeira vez de

Renato Duarte, no desejo de lamentar uma falta para a cidade de Picos. O tempo perdido ao

qual se referiu é a década de 1950. Deixou dito a sua contribuição para aquela. Deixou dito no

jornal picoense Gazeta Popular, no ano de 1989. Um dizer que foi anterior mesmo ao seu

livro Picos: os verdes anos cinquenta, que data do ano de 1991. Com o título de “Decálogo

para Picos”, sugeriu iniciativas para que fossem postas em prática, como garantia de

“melhorar a qualidade de vida dos habitantes”. Escreveu um decálogo com olhar divino.

Escreveu seus mandamentos, como se olhasse a cidade em sobrevoo. Feito um deus voyeur,

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teve um olho totalizador. Melhor: a pretensão de ser totalizador. Pretendeu fixar a cidade e os

usos dela, pelos sujeitos (CERTEAU, 1994:171). Um detalhe. Não sugeriu apenas a

recuperação ambiental. Dissertou mais: um pedido de preservação do patrimônio

arquitetônico e cultural da cidade; e medidas para proporcionarem a geração de empregos

para grupos específicos. Grupos que chamou de “as camadas menos favorecidas da

população”. Uma digressão: Renato Duarte, em 1995, expressou o seu desejo de dar a sua

“contribuição para a perpetuação de curta, porém rica, fase da história de Picos”, como

definiu (DUARTE, 1995:217-218). Momento em que os dois livros se entrelaçaram em

gosmas de sentidos. De início, Renato Duarte propôs a reconstrução de uma memória da

década de 1950. Depois, a reconstrução de uma cidade. E ao passo que tentou, ocorreu uma

reconstrução de si. Gosmou-se também.

Voltemos ao ano de 1993, para entendermos a gosma de si. Era janeiro. Renato Duarte

e um momento. Ele possuiu as luzes e um palco: o Cine-Teatro, em Oeiras. Tivera como

objetivo apresentar Picos: os verdes anos cinquenta. Um título para a fala, que ficou parecido

com o título daquele livro: Picos – os verdes anos cinquenta. Do palco, ele avistou o público

e sentiu a recepção. Público que contou com a presença do então prefeito de Oeiras, Walburg

Ribeiro; e do Procurador Geral, Ferrer Freitas, que representou o IHO. A Prefeitura da cidade

e o Instituto patrocinaram o evento. Como resultado, a fala feita por aquele, teve a sua

publicação realizada na 13ª edição da Revista do Instituto Histórica de Oeiras, naquele

mesmo ano (REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO DE OEIRAS, 1993:11). Iniciou a sua

fala de maneira protocolar. Agradeceu a oportunidade de participar daquele evento. Um

evento que foi nominado de “lítero-musical”. Destacou a importância de poder reviver as

tradicionais tertúlias culturais, vistas como “caras” ao povo de Oeiras. Saudou duas figuras

daquela cidade: Edvaldo Pereira de Moura e Benedito Tapety. Dois oeirenses que

trabalhavam em Picos. Dois sujeitos que se engajaram na campanha de lançamento do livro,

que era lançado por Renato Duarte naquela noite (DUARTE, 1993:113). Em seguida, falou

sobre as duas cidades. Falou também dos seus conterrâneos e citadinos daquela última.

Aqui estão irmanados, os anfitriões, o povo da Oeiras aristocrática, culta e

ancestral, e os integrantes da comitiva da jovem, dinâmica e pujante Picos. Oeiras e

Picos, tão próximas geograficamente, mas historicamente tão distantes. Distância

essa que foi ampliada e mantida ao longo de várias décadas por uma rivalidade

despropositada e estéril. Certamente escapou às gerações pretéritas que Oeiras e

Picos têm passados e vocações que, de tão distintas, fazem delas cidades

complementares, mais do que rivais. Enquanto Picos se firmou como pólo

econômico em torno do qual gravitam várias cidades – satélites, Oeiras cumpre o

seu papel de preservadora das tradições e da cultura desta extensa área do interior

piauiense. Oeiras e Picos devem se irmanar – e oxalá esta noite memorável seja o

início de um auspicioso trabalho cooperativo [...] (DUARTE, 1993:113-114).

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Para filtrar tais palavras, um devaneio: no meu espelho, a tua imagem e(m)

semelhança. Renato Duarte fixou imagens e tempos. Fixou imagens no tempo. Olhou para

Oeiras, querendo enxergar Picos. O contrário também aconteceu. Uma Oeiras “aristocrática,

culta e ancestral”, como verbalizou. E uma cidade de Picos, “jovem, dinâmica e pujante”.

Falou de passados e vocações para aquelas. Para Oeiras, coube a sorte de carregar a função de

guardar as tradições e a cultura, de uma área do sertão piauiense. Faltava-lhe, assim, um

desenvolvimento econômico. Desenvolvimento, que foi a função guardada/martelada pelo

tempo, para Picos. Ou a cidade que perdia as suas tradições culturais, aos olhos de Renato

Duarte. Ele criou, com as suas palavras, identidades pela diferença. A cidade de Picos foi

definida pelo que Oeiras era. Enquanto Oeiras foi dita pelo que Picos continha. Ambas

cristalizadas, aos olhos daquele (HALL, 2005:17). No fundo, Renato Duarte olhava para

Oeiras e tentava flertar um encontro com o seu passado de vivências em Picos. Busca que teve

um toque de paradoxo. Aquele autor conheceu e admirou características de outras cidades.

Características que nos indicaram algo. Pegadas que rumaram em direção a aquela onda da

década de 1950. Em 1969, o primeiro Post Card que temos no nosso cesto de bordadeira

(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2009:4). Renato Duarte fez o seu envio, para quem ele os

chamou carinhosamente de “Maninho” e “Dey”. Depuremos o conteúdo.

Figura 1 – Dexter Press, INC (Ed.). Cartão Postal n. 44709. The White House, manuscrito em 20 ago. 1969

(anverso e verso).

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O cartão postal fez parte de uma viagem feita por Renato Duarte. Uma viagem dentre

muitas que realizou. Encontrava-se nos Estados Unidos da América – EUA. Mais

precisamente, admirando a Casa Branca, como indicou no manuscrito. Destacou o que

entendeu por beleza na cidade de Washington: a “vegetação”, a “variedade arquitetônica” e as

“avenidas duplas”. O que compôs o seu sentimento, para com aquela. Era – aos seus olhos

que vislumbraram as características levantadas – uma cidade “aprazível”. O ano era 1969. Um

ano que atravessou um movimento: as vivências em Picos, na década de 1950 e a publicação

de Picos: os verdes anos cinquenta, no ano de 1991. A imagem do cartão postal e o texto feito

por Renato Duarte possuem os seus segredos. Possuem os seus encantos. Depuremos os

segredos e encantos. Depuremos as suas sutilezas.

Uma prática sútil naquele. A construção de uma memória de si. É que o cartão postal,

também possuiu essa função. A função de guardar um momento para a posteridade. Aliás: um

momento que foi feito em um espaço-tempo distinto. Espaço-tempo que congelado, habitou

um pouco do privado de seus destinatários, “Maninho” e “Dey” (GOMES, 2004:11). Para

construir a memória de si, Renato Duarte fez um exercício: a interpretação da fotografia do

cartão postal. Posteriormente, destinou a sua interpretação em forma de mensagem para os

seus irmãos. Uma ressalva. Não acreditamos que o exercício da interpretação da fotografia,

por parte dele, tenha sido um a priori. Não desejamos marcar, que ao comprar o cartão postal,

o desejo de interpretar a fotografia tenha sido uma condição de sua aquisição. Renato Duarte,

talvez, teve uma admiração pela arquitetura da Casa Branca, já que destacou na mensagem, o

seu apreço pela “variedade arquitetônica” de Washington; ou mesmo, uma graça pelo verde

presente naquela. Por que destacou ainda, a “muita vegetação” presente na Casa Branca e que

se alojou na beira das suas íris. Divagamos sem buscar essências. Não buscamos o que foi

pensado pelo fotógrafo da Dexter Press, INC, como se fosse algo possível; nem mesmo

buscamos o que se passou pela cabeça de Renato Duarte ao comprar, escrever e enviar o Post

Card The White House (FRANCO, 2006:36).

Podemos indicar uma divagação para o cartão postal da “Figura 1”. Renato Duarte

produziu algo. Produziu outra coisa. Se o fotógrafo capturou a Casa Branca com uma intenção

ou se o seu desejo foi atingir um público geral, por meio de um regime de visualidade, cada

indivíduo, ao consumir a fotografia, produziu uma intenção diferente. O consumo ou a leitura

é uma produção ativa (ROCHE, 1998:44). A fotografia, não possuiu sentido em si. Ela contou

apenas, com atributos físico-químicos que são intrínsecos. Foi na interação social, que Renato

Duarte produziu sentidos para aquela. Sentidos marcados no tempo e no espaço. A análise do

cartão postal impôs uma condição: ser deslocado de maneira perspectiva (MENESES,

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2003:28). Uma característica de si, presente naquele foi o seu apreço por elementos da

natureza. O que justifica o destaque que deu para a vegetação da Casa Branca; e para a

presença do “verde”, no título de sua obra. A fotografia do cartão postal foi apropriada por ele

enquanto um momento feliz. Não apareceu na foto, mas o seu uso se encarregou de perpetuar

a felicidade. Uma perpetuação que virou nostalgia posteriormente, certamente (KOSSOY,

2001:100). Vejamos outro cartão postal de 1983.

Figura 2 – Grafica S.A. (Ed.). Cartão Postal n. 2108. Buenos Aires, manuscrito em 20 maio. 1983. (anverso e

verso).

Os mesmos destinatários e outra cidade. Renato Duarte buscou contato com aqueles a

quem chamou de “Caros manos”. Ao escrever a mensagem, encontrava-se em Buenos Aires,

na Argentina. O ano era 1983. Ao contrário do cartão postal da “Figura 1”, esse, da “Figura

2”, abriu espaço para o endereçamento. Constou como receptor, o “Sr. Waldemar Duarte”, na

“Avenida Getúlio Vargas, 276”, na cidade de Picos. Waldemar Duarte teve em suas mãos, um

palimpsesto de significados. O primeiro, disse respeito à fotografia do cartão postal. A cidade

era Buenos Aires; a Avenida fotografada era a 9 de Julio; e a ao centro, ficou o obelisco na

Plaza de la Republica, para explicar e simbolizar, retrospectivamente, a unificação da história

nacional argentina (GORELIK, 1994:65).

A fotografia utilizada pela Grafica S.A., para o cartão postal, agiu dentro do esperado

para determinadas fotografias: perpetuar uma memória coletiva nacional (KOSSOY,

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2007:132). Nada mais perpetuador do que um obelisco para simbolizar a unificação da

Argentina, na Plaza de la Republica. E mais uma vez, Renato Duarte consumiu uma

fotografia, enquanto escreveu a sua mensagem. Destacou que Buenos Aires era uma

“grandiosa e civilizada cidade”. Estamos diante de mais um paradoxo. O Renato Duarte que

tratou Buenos Aires – cidade que possuía naquele ano, a sua grandiloquência urbana, com

muitos arranha-céus, localizados em um centro financeiro –, enquanto “grandiosa e

civilizada”, foi o que mais tarde, se incomodou com as transformações do urbano em Picos.

Uma pergunta se fez necessária: por que um sujeito que morou em Recife entre as

décadas de 1960, 1970, 1980 e 1990 – cidade que passou por intensos processos de

modernização do seu espaço, como na década de 1920 (década que representou intensamente

o moderno e o tradicional, o novo e velho, a partir de uma tensão entre intelectuais como

Gilberto Freyre e Joaquim Inojosa, e que foi problematizada por Antonio Paulo Rezende)

(REZENDE, 1997:14); que viajou entre as décadas de 1970 e 1980, pela Grécia, em Atenas6;

que esteve na Turquia, em Istambul7; e em Rabat, no Marrocos

8 (além de Washington no

EUA e Buenos Aires na Argentina), quando escreveu sobre a cidade de Picos, em Picos: os

verdes anos cinquenta procurou uma cidade aos moldes da que deixou, durante a década de

1950? A pergunta soou, muito mais, enquanto um questionamento retórico. Ela nos intrigou.

Na impossibilidade da resposta, restou-nos, a análise daquele livro não menos inquietante.

Restou-nos, outra impossibilidade: a cidade de Picos, da década de 1950, faltou ao encontro

com Renato Duarte. Com a falta, ele inventou outra cidade para aquele período. E ao passo

que inventou outra cidade, inventou outro Renato Duarte. É que o passado desse viajante

mudou de acordo com o itinerário feito (CALVINO, 1990:28).

Picos e os verdes anos cinquenta: a invenção de um tempo sensível

Um encontro. Mais uma vez buscamos um menino. Ou uma poética sensível de um

tempo. Uma poética dentro do menino. Renato Duarte, entre palavras e brincadeiras. Renato

Duarte entre brincadeiras de palavras. Não sabemos ao certo, quem habitara quem: se aquele

habitara Picos: os verdes anos cinquenta ou se a obra o habitara. Talvez, não se trate de uma

relação de mão única. A obra e o criador se gosmaram. Afinal de contas, a notoriedade

daquele, formou-se também a partir dos seus escritos. Aquele livro recebeu uma interpretação.

Ganhou uma análise do sociólogo Sebastião Vila Nova. Ele fizera a apresentação.

6 COPYRIGHT (Ed.). Cartão Postal n. 661/97. Atenas – Acrópole – Parthenon, manuscrito em 20 jul. 1976.

(anverso e verso). 7 AND Kartpostal ve Yayinlari Koll. Stl. (Ed.). Cartão Postal n. 34-37. Dolmabahce Camii ve Bogaz (1854),

manuscrito em 23 jul. 1976. (anverso e verso). 8 LES Editions “Itacolor”. Cartão Postal n. 63. Rabat, manuscrito em 1981. (anverso e verso).

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O sociólogo e Renato Duarte trabalhavam na Fundação Joaquim Nabuco – FJN, no

período (NOVA, 1992:220). O contato ficou mais fácil. Sociólogo, que inseriu os escritos de

Renato Duarte em uma parcela do modo de fazer dos estudos sociais no Brasil: os Estudos de

Comunidades, que tiveram como um de seus começos Cunha, de Emílio Willems, em 1948; e

o seu último estudo dentro período áureo, com Os Parceiros do Rio Bonito, de Antônio

Cândido, em 1964 (DUARTE, 1995:9). E já era feito desde a década de 1920, nos EUA.

Caracterizaram-se, pelo estudo de comunidades em processo de mudança social. Melhor:

foram estudos que se voltaram para comunidades rurais que se atravessavam pelo urbano.

Tiveram como característica, a descrição e a abrangência. O desejo era colher a maior

quantidade possível de dados para compreender a configuração da estrutura social. Uma

compreensão do todo, por assim dizer (OLIVEIRA & MAIO, 2011:521-522). Renato Duarte,

não colocou o seu livro enquanto parte dos Estudos de Comunidades. Mas corroborou com

Sebastião Vila Nova. Permaneceu com a apresentação feita por aquele em 1991, na segunda

edição do seu livro, no ano de 1995.

Uma constatação: se assumiu a alcunha dada pelo sociólogo, ele não escreveu no

período tido como áureo para aqueles Estudos de Comunidades. Ele não escreveu entre as

décadas de 1940 e 1950. Diferiu: ele viveu o período em Picos. E mais tarde, publicou o livro

sobre aquele período. Um período em que a cidade aumentou a sua população. No censo

demográfico da década de 1950, a população da cidade era de 54.713 habitantes. 4.568 no

urbano e 50.145, no rural (IBGE, 1952:15); no da década de 1960, 49.801. Com 8.080, na

parte urbana e 41.721, zona rural (IBGE, 1960:252); no ano de 1968, Picos contava com

70.929 habitantes. 15.077, na parte urbana e 55.852, na rural (REVISTA FOCO, 2001:8); no

censo da década de 1980, a população total era de 64.860 (IBGE, 1992:49). Com 33.066, na

área urbana e 31.794 no perímetro rural (REVISTA FOCO, 2001:8); e em 1991, a população

atingiu 78.425 habitantes (IBGE, 1992:49), com 45.571 no urbano e 32.854, no rural

(REVISTA FOCO, 2001:8). Lembremos: a expansão demográfica provoca, também, o

crescimento dos problemas sociais de uma cidade. Provoca, principalmente, a busca por

moradia.

Assim, quando Renato Duarte deixou a cidade, ela tinha por volta de 54.713

habitantes, sendo 4.568 na parte urbana. Ele vez ou outra voltou até Picos, enquanto visitante.

De certa forma, acompanhou o crescimento demográfico daquela. No ano de 1991, em que

publicou Picos: os verdes anos cinquenta, a cidade tinha 78.425 habitantes, com 45.571 no

urbano. Um crescimento populacional significativo. Um crescimento que influenciou na

escrita daquele livro. Renato Duarte viveu um período singular em Picos. Os começos daquilo

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que Sérgio Buarque de Holanda evidenciou como a “nossa revolução”: a passagem do rural

para o urbano e a fixação de centros naquele último (HOLANDA, 1995:172). Movimento que

atravessou outras cidades, como Recife. Gilberto Freyre se contorceu de agonia, com o que

chamou de “reeuropeização”. Momento em que algumas características coloniais presentes na

arquitetura, na paisagem e entre os indivíduos, foram alteradas paulatinamente. Alterações

que o inquietou (ARRAIS, 2004:69). A relação de Renato Duarte com Picos lembrou-nos a

relação de Gilberto Freyre, com Recife, no início do século XX. Vejamos:

A comparação entre a Picos de então, envolvida por dois cinturões de umidade e

verdor, com a cidade árida, submetida a um desordenado processo de concentração

imobiliária de hoje, leva-nos à inevitável sensação de desânimo diante da

deterioração do meio ambiente a que a cidade vem sendo sujeita há décadas. O

bucolismo da paisagem em torno da cidade no início dos anos 50 pode ser melhor

visualizado se se recorda que as atuais ruas da Boa Sorte, São Francisco e São

Sebastião eram, então, caminhos sombreados por cajueiros, mangueiras,

jenipapeiros, umbuzeiros, juazeiros e cajazeiras [...] (DUARTE, 1995:26).

Iniciou a sua análise, demarcando dois tempos. Dissera sobre uma cidade torneada por

“cinturões de umidade e verdor”. Dissera assim, para falar de Picos e seu passado. Falou

também de uma “cidade árida” e seu “desordenado processo de concentração imobiliária”.

Era a cidade de Picos no presente da sua escrita. O desânimo chegou pela deturpação do meio

ambiente. O bucolismo da paisagem possuía as suas belezas que já não eram mais. Sentiu

falta dos cajueiros, das mangueiras, dos jenipapeiros, dos umbuzeiros, dos juazeiros e das

cajazeiras. Apropriou-se da natureza, para significar o tempo em que vivia. Significou, para

lamentar o tempo da falta. Renato Duarte e a natureza, não estavam em campos distintos. A

paisagem que criou para Picos, não se separou da sua mente. Existiu por causa da sua

cognição. Antes de ser natureza, a paisagem é cultural. Ela não nomeia a si mesma. Ela

passou a ter em sua composição, tanto as frutas citadas por Renato Duarte, quanto pelas

lembranças daquele. Ou mesmo, pelo curso agonizante do rio Guaribas, juntamente com as

lembranças presentes em Picos: os verdes anos cinquenta. Rio que foi significado por aquele

livro (SCHAMA, 1996:16-17).

A invenção da paisagem e a invenção de um tempo. Entre as invenções, uma narrativa.

Para que o tempo se torne tempo humano, ele necessita de uma narrativa articulada. E a

narrativa, significa na medida em que rabisca rastros de experiência temporal. Para Renato

Duarte criar os verdes anos cinquenta, ele teve que escrever. E para escrever, fez uma

apropriação da natureza. E a sua narrativa, para significar, cedeu aos encantos de restos de

experiências e lembranças daquele tempo distinto (RICOEUR, 2010:9). Assim, a sua

fermentação da saudade ganhou vida. Feito Renato Duarte, Gilberto Freyre também fez uma

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apropriação da natureza de Recife. Encantou-se com o rio Capibaribe, as plantas e os animais.

Foram vistos enquanto harmonizados, quando aquele escreveu sua obra Nordeste (ARRAIS,

2004:76). Renato Duarte também citou uma harmonização para Picos: “A Picos do final da

década de 40 e do início dos anos 50 era um pequeno núcleo urbano harmoniosamente

integrado ao meio rural” (DUARTE, 1995:19). Se Gilberto Freyre perambulou pelos EUA e

na volta fermentou saudade por uma cidade do Recife antiga (ARRAIS, 2004:70), que perdia

seus traços/gestos coloniais, Renato Duarte também rodou mundo a fora. E feito aquele,

derramou lágrimas de saudade nas suas linhas escritas. Verdadeiras escritas de si.

Considerações Finais

Falamos de meninos. Falamos de moleques. Eles moraram/moram em corações. Os

adultos fraquejaram e lá estiveram eles: aptos a lhes darem as mãos. Estiveram aptos a

pegarem em suas mãos. Divertiram-se com palavras e brincadeiras. Ou com brincadeiras de

palavras. Não muito longe. Da porteira do texto caminharam para o terreiro da nossa

imaginação. Dialogaram. Deram-se as mãos. Vilebaldo Rocha e Renato Duarte. Adultos e

meninos ao mesmo tempo. O primeiro iniciou a conversa. Feito adulto recordando, falou de

um rio Guaribas que já não era mais. Ainda assim, aquele menino de olhos-poesia, não havia

morrido dentro do adulto fraquejado. Do adulto que não tinha mais na beira das íris,

carnaubais e canaviais. Os tempos eram de esgoto e mofo. Chorou lágrimas salgadas, amargas

e tristes. O outro tomou a palavra em solidariedade ao amigo. É que aquele solidário, não

admirou a solidão.

O outro, Renato Duarte, que tomou a palavra, fora solidário de uma forma elegante.

Falou daquilo que imaginou ser as suas vivências de tempos idos. Tempos que já não eram

mais. Lembrou-se de Picos: os verdes anos cinquenta. E do adulto que fraquejou ao escrever

aquele. Adulto que havia feito um itinerário: de Picos foi para o Ceará, depois para o

Pernambuco e em seguida para o mundo. EUA e Argentina não foram países aptos a curarem

a sua dor. O menino imaginou que ao percorrer o mundo, sanaria a sua dor de passado.

Enganou-se. Nas idas e vindas até 1991, ano de publicação do seu livro, a ferida fermentou

uma dor incessante no seu peito. Para desapegar do peso, escreveu. Colocou para fora.

Resultado: ao se lembrar da natureza bucólica da cidade, inventou um tempo. A principal

ferramenta foi um tipo de narrativa. Renato Duarte criou, então, um modo de ler a cidade de

Picos. Um esquema para dizer uma cidade que ficou entremeada pelas décadas de 1940 e

1990. Em outra parte do terreiro, outro menino escutou os outros dois. Fez anotações e

análises. Concordou. Discordou. Sentiu-se parte do que foi contado pelos dois amigos.

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Algumas vezes, percebeu-se objetivo. Outras, subjetivo. Ao final, com a saída dos dois

amigos que dialogavam, também sentiu saudades daqueles tempos idos. E por não ter vivido,

sentiu que o papo daqueles dois passaria por seu filtro e seu fazer. Existiria a partir da sua

fabricação. Pensou consigo mesmo: eu sou um rio (Guaribas) e eu sorrio, porque eu me

invento ao inventar a história (ALBQUERQUE JÚNIOR, 2007:36).

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