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66 Manipulações do tempo em música – uma introdução Eli-Eri Moura (UFPB) Tradução de Wilson Guerreiro Pinheiro 1 Resumo: Neste artigo, discutimos como a música pode dar forma à passagem do tempo e o modo como o tempo pode ser manipulado quando é música. O texto está dividido em três partes. Na primeira, como ponto de partida, escolhemos um conceito de tempo cujas proposições coincidem com aquelas da definição de música. Na segunda, apresentamos primeiramente as abordagens de alguns autores que mostram que essas coincidências os levaram a identificar o tempo como música. Então, considerando que o tempo, quando é música, pode ser controlado, propomos alguns determinantes de manipulações temporais, e especulamos sobre o papel da música como uma mediação simbólica para o homem. A parte final é uma tentativa de exemplificar a discussão, examinando o modo como materiais musicais similares podem evocar predominantemente o tempo linear do devir ou o tempo não- linear do ser. Primeiramente, usamos um material tonal para escrever duas passagens distintas; em seguida, comentamos sobre três peças de massas sonoras de Ligeti, Cage e Lutoslawski, respectivamente. Palavras-chave: Tempo e música. Ser e Devir. Composições de massas sonoras. Ligeti. Cage. Lutoslawski. Manipulations of time in music – an introduction Abstract: In this paper we discuss both how music can give shape to the passage of time and the way time can be manipulated when it is music. The text is divided into three parts. In the first part, as a starting point, we choose a concept of time whose propositions coincide with those of the definition of music. In the second part we first present some authors’ approaches which show that these coincidences have led them to identify time with music. Then, considering that when time is music it can be controlled, we propose some determinants of temporal manipulation, and speculate about the role of music as symbolic mediation for man. The final part is an attempt to exemplify the discussion by examining the way similar musical materials can evoke either the linear time of becoming or the nonlinear time of being. We use first some tonal material to write two distinct passages; and second, comment on three sound mass pieces by Ligeti, Cage, and Lutoslawski respectively. Keywords: Time and music. Being and Becoming. Sound mass compositions. Ligeti. Cage. Lutoslawski. Um conceito de tempo De todas as coisas que nos cercam e que fazem nossa realidade, o tempo é certamente uma das nossas mais difíceis incógnitas. Na tentativa de entender e conceituar o tempo, o homem tem produzido, ao longo dos séculos, diferentes visões que revelam, em muitos pontos, contradições e referências cruzadas entre áreas como a filosofia, a psicologia, a física e a matemática, entre outras. Algumas linhas comuns de pensa- mento, no entanto, podem ser detectadas. Objetivando estabelecer um referencial para servir de suporte ao exame das questões temporais em música, a breve discussão que segue enfoca dois pontos de vista ontológicos que apresentam algumas dessas linhas. Dependendo de o foco ser dado à natureza do tempo ou à nossa percepção dele, encontramos (de forma reducionista), por um lado, pontos de vista que tendem a aceitá-lo como uma realidade externa, um Então, o que é o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; mas quando me pedem para explicá-lo, eu não sei. (Santo Agostinho) 1 Este artigo foi escrito originalmente em inglês, em 1993. A tradução, de 2006, inclui todas as citações de referências em língua inglesa. Claves n.° 4 - Novembro de 2007

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    Manipulaes do tempo em msica uma introduo

    Eli-Eri Moura (UFPB)Traduo de Wilson Guerreiro Pinheiro1

    Resumo: Neste artigo, discutimos como a msica pode dar forma passagem do tempo e o modo como o tempopode ser manipulado quando msica. O texto est dividido em trs partes. Na primeira, como ponto de partida,escolhemos um conceito de tempo cujas proposies coincidem com aquelas da definio de msica. Na segunda,apresentamos primeiramente as abordagens de alguns autores que mostram que essas coincidncias os levarama identificar o tempo como msica. Ento, considerando que o tempo, quando msica, pode ser controlado,propomos alguns determinantes de manipulaes temporais, e especulamos sobre o papel da msica como umamediao simblica para o homem. A parte final uma tentativa de exemplificar a discusso, examinando o modocomo materiais musicais similares podem evocar predominantemente o tempo linear do devir ou o tempo no-linear do ser. Primeiramente, usamos um material tonal para escrever duas passagens distintas; em seguida,comentamos sobre trs peas de massas sonoras de Ligeti, Cage e Lutoslawski, respectivamente.Palavras-chave: Tempo e msica. Ser e Devir. Composies de massas sonoras. Ligeti. Cage. Lutoslawski.

    Manipulations of time in music an introduction

    Abstract: In this paper we discuss both how music can give shape to the passage of time and the way time can bemanipulated when it is music. The text is divided into three parts. In the first part, as a starting point, we choose aconcept of time whose propositions coincide with those of the definition of music. In the second part we firstpresent some authors approaches which show that these coincidences have led them to identify time with music.Then, considering that when time is music it can be controlled, we propose some determinants of temporalmanipulation, and speculate about the role of music as symbolic mediation for man. The final part is an attempt toexemplify the discussion by examining the way similar musical materials can evoke either the linear time ofbecoming or the nonlinear time of being. We use first some tonal material to write two distinct passages; andsecond, comment on three sound mass pieces by Ligeti, Cage, and Lutoslawski respectively.Keywords: Time and music. Being and Becoming. Sound mass compositions. Ligeti. Cage. Lutoslawski.

    Um conceito de tempo

    De todas as coisas que nos cercam e que fazem nossa realidade, o tempo certamente uma das nossas

    mais difceis incgnitas. Na tentativa de entender e conceituar o tempo, o homem tem produzido, ao longo

    dos sculos, diferentes vises que revelam, em muitos pontos, contradies e referncias cruzadas entre

    reas como a filosofia, a psicologia, a fsica e a matemtica, entre outras. Algumas linhas comuns de pensa-

    mento, no entanto, podem ser detectadas. Objetivando estabelecer um referencial para servir de suporte ao

    exame das questes temporais em msica, a breve discusso que segue enfoca dois pontos de vista ontolgicos

    que apresentam algumas dessas linhas.

    Dependendo de o foco ser dado natureza do tempo ou nossa percepo dele, encontramos (de

    forma reducionista), por um lado, pontos de vista que tendem a aceit-lo como uma realidade externa, um

    Ento, o que o tempo? Se ningum me pergunta, eu sei;mas quando me pedem para explic-lo, eu no sei.

    (Santo Agostinho)

    1 Este artigo foi escrito originalmente em ingls, em 1993. A traduo, de 2006, inclui todas as citaes de referncias emlngua inglesa.

    Claves n. 4 - Novembro de 2007

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    receptculo imvel, um tempo a ser contemplado, e, por outro lado, como uma iluso, uma propriedade da

    mente, uma criao humana, um tempo introspectivo associado descrio de experincias.

    Plato, mesmo acreditando que o tempo e o mundo estavam ligados para sempre desde a criao at

    a extino (um no existiria sem o outro), mantinha uma postura contemplativa em relao ao primeiro. Em

    Timeu, ele trata a matria metaforicamente e considera que Deus, depois da criao do homem, resolveu ter

    uma imagem em movimento da eternidade, uma vez que era impossvel outorgar sua criatura seu atributo de

    eternidade. Assim, ao ordenar os cus, Deus fez tal imagem eterna, mas em movimento de acordo com

    nmeros evidenciados e expressados pelo incorruptvel e eterno movimento circular dos cus. Na viso do

    filsofo, essa imagem (a ser observada e entendida como realidade externa) chamada de tempo.

    Santo Agostinho tambm aceitava o tempo como algo estabelecido anteriormente, pois, de acordo

    com ele, Deus criou o mundo e o tempo juntos antes da criao havia uma eternidade atemporal. Diferen-

    temente de Plato, porm, seu enfoque d nfase maneira como a nossa mente apreende o tempo. Em vez

    de contemplar o movimento dos cus, como fez Plato, Santo Agostinho pensou sobre o tempo em termos

    introspectivos. Na realidade, ele sugeriu que passado e futuro so intuies de nossa mente, pois apenas o

    presente indivisvel existe. Argumentou que o passado e o futuro so experienciados subjetivamente como

    momentos de presente na mente e da mente em si mesma, por meio da memria e da expectativa, respecti-

    vamente (VANCE, 1982, p. 20).

    A teoria matemtica clssica pode ser pensada como provedora de uma espcie de idealizao do

    fenmeno do tempo, mas ela no fornece uma descrio de como o tempo percebido. Fraser observa que

    Nicholas Bonet, ao distinguir entre o tempo natural aquilo que o tempo possui em matria sensvel e o

    tempo matemtico aquele separado por abstrao da matria sensvel , estabeleceu a extraordinria

    viso moderna de que o tempo matemtico algo abstrado da totalidade experiencial e separado da

    multiplicidade das coisas (FRASER, 1990, p. 29). Essa foi uma das bases da idia newtoniana do tempo

    absoluto: independente de eventos e ontologicamente anterior a eventos (portanto, existente mesmo antes

    da criao do mundo), o tempo absoluto, verdadeiro e matemtico, de si mesmo, e da natureza, flui cons-

    tantemente sem relao com qualquer outra coisa (Idem, ibidem, p. 33).

    Tal postulado foi refutado por Leibniz em termos lgicos instantes, considerados sem as coisas, no

    so nada e significativamente em termos fsicos por Einstein, quando formulou a teoria especial da relativi-

    dade em 1905. Nessa teoria, um novo conceito, espao-tempo, um refgio metafsico no qual a distncia,

    o tempo e a massa so dependentes das velocidades relativas e da velocidade da luz. Alm disso, essa teoria

    sugere que, ao se falar de tempo, o observador no pode ser desconsiderado. Filosoficamente, ele diria que

    tempo e espao so modos pelos quais pensamos, e no condies nas quais vivemos (ROWELL, 1990,

    p. 354).

    Idias como a de Leibniz corroboram pontos de vista que implicam ser o tempo, de alguma maneira,

    uma criao do homem. Sob a mesma ptica, est a opinio de que eventos, no o tempo, esto em fluxo

    (KRAMER, 1988, p. 5). Conseqentemente, afirma Clifton, so os eventos, vivenciados pelas pessoas,

    que definem o tempo (Idem, ibidem, p. 5). Nas palavras de Kramer (1988, p. 5), o tempo uma relao

    entre as pessoas e os eventos que elas percebem, ou uma abstrao, uma deduo inferida pelo homem

    Eli-Eri Moura - Manipulaes do tempo em msica uma introduo (p. 66 a 90)

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    (como um observador), depois de testemunhar e experimentar eventos organizados em determinados

    modos. Crucial para tal deduo a sensao de repetitividade (e alternncia) provida pela recorrncia

    contnua (e alternada) de eventos similares identificveis, ou de estados de eventos, em intervalos regulares.

    De acordo com essa viso, poder-se-ia dizer que, sem qualquer recorrncia ou se eventos ocorrentes fos-

    sem eternamente diferentes e inidentificveis, o tempo no existiria para o homem, e o mundo seria catico.

    Essa recorrncia contnua, encontrada em movimentos ondulatrios, ritmicamente interpretada pelo olho,

    pelo ouvido e pelo tato exemplos so as ondas, nossa pulsao e respirao. Assim como o curso das

    estaes, outros agrupamentos de tempo mais estendidos tambm conduzem a uma interpretao rtmica, j

    que eles podem ser reduzidos pelo pensamento, transformados em sries conceituais e, assim, vistos como

    ondulao (DRR, 1968, p. 182).

    Esses so apenas alguns exemplos dos numerosos pontos de vista que enfocam o tempo objetivamente

    (como realidade externa) ou subjetivamente (como idealizao). Considerando que msica algo inerente-

    mente temporal2 e tomando a afinidade como um critrio, faz-se crer que o segundo um ponto de vista

    apropriado para tratar das questes temporais em msica. Especificamente, a viso que considera o tempo

    como uma abstrao humana, baseada na percepo e na experincia de eventos, pode ser vista como uma

    base conceitual til para enfocar a msica e suas temporalidades, pois toca alguns pontos que so tambm

    identificveis em msica:

    msica constitui uma srie de eventos;

    em pelo menos alguns nveis de sua construo (e em diferentes graus), msica precisa de algum tipo

    de recorrncia para ter sentido;

    apesar do fato de que a natureza d todas as condies de suporte sua existncia, msica , no final

    das contas, uma criao humana e, assim, depende de algum modo da abstrao e conscincia

    humanas;

    a percepo humana fundamental para a existncia da msica.

    Finalmente, importante referir aqui ao consenso moderno de que, de fato, como assinala Barry

    (1990, p. 4) [...] no h nenhuma definio do termo tempo que cubra todos os seus significados e usos,

    assim como no h nenhum tipo de tempo que abarca tudo. Na verdade, para o fragmentado homem

    contemporneo, o tempo real atravs de uma variedade de nveis e tipos, um afluxo de temporalidades

    qualitativas, que atua freqentemente sobre ele, tanto de maneira simultnea, ou numa espcie de textura

    polifnica temporal (BARRY, 1990, p. 5), quanto num plano abstracional e/ou experiencial.

    Msica: o tempo com um contedo especial

    Tomando como referncia essa abordagem do tempo, percebe-se que a msica pode ser pensada

    num nvel conceitual como algo extremamente anlogo ao prprio tempo. Pode-se dizer que, em certo grau,

    msica e tempo so conceitos correlatos ou duais: duas expresses do mesmo fenmeno. Isso porque, ao

    2 O tempo uma condio necessria para a msica, talvez tambm uma condio suficiente. No estou questionando aexistncia da msica sem som, ou msica sem as pessoas, mas ambas so imaginveis. Entretanto, no posso imaginar umamsica sem a extenso do tempo (ROWELL, 1983, p. 7).

    Claves n. 4 - Novembro de 2007

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    elaborar ou examinar seus status nticos, verifica-se que ambos compartilham caractersticas comuns funda-

    mentais e inerentes, como visto acima. Conseqentemente, encontramos alguns autores que, percebendo tal

    correlao, consideram a prpria msica como tempo ou uma forma dele. Kramer (1988, passim), por exem-

    plo, tem essa idia em mente quando afirma: O tempo evolve em msica; e [...] a msica cria o tempo.

    Discutindo o assunto, Susanne Langer (1953, p. 116) cita Koechlin, o qual incluiu o tempo musical ao

    listar o que ele considerou os vrios tipos de tempo: (i) pura intuio (desenrolar da vida); (ii) psicolgico

    (dependente das impresses); (iii) medido por meios matemticos; e (iv) musical (tempo audiente).

    A prpria abordagem de Langer tambm sintomtica de tal pensamento. Referindo-se aos diversos

    tipos de tempo, ela identifica duas categorias bsicas. A primeira o tempo do relgio, com o qual ela chama

    a ateno para o tempo como pura seqncia, uma abstrao especial da experincia temporal feita pelo

    relgio. De acordo com ela, esse tipo de tempo simbolizado por uma classe de eventos ideais, indiferentes

    em si mesmos, mas estendidos numa densa e infinita srie pela relao nica da sucesso (LANGER,

    1953, p. 111). A segunda categoria o tempo experienciado (o tempo como o conhecemos da experincia

    direta), ou passagem, o sentido de transitoriedade. Ela atribui metaforicamente certo volume a esse tipo de

    tempo, pois, de acordo com ela, cheio de tenses, que podem ser fsicas, emocionais ou intelectuais.

    importante notar que, nesta categoria, Langer no se refere diretamente a eventos, mas a tenses. Supondo que

    tais tenses sejam resultantes das aes de eventos, fica implcita a idia de que os eventos no so indiferentes

    em si mesmos; ao contrrio, so de certo modo qualitativos e, portanto, capazes de provocar tenses.

    Ao tratar da questo do tempo musical, Langer o define como uma imagem da sua segunda categoria

    de tempo, uma espcie de tempo virtual cujo modelo o tempo experienciado. Em sua abordagem, aquelas

    tenses que preenchem o tempo experienciado, quando trazidas para o mbito do tempo virtual, so trans-

    formadas em tenses musicais, os contedos qualitativos so transformados em qualidades musicais, e assim

    por diante (LANGER, 1953, p. 112-113):

    Ela [a msica] cria uma imagem do tempo medida pelo movimento, de formas que parecem dar-lhe substnciaque consiste inteiramente de som. Portanto, ela a prpria transitoriedade. A msica torna o tempo audvele sua forma e continuidade sensveis (LANGER, 1953, p. 110).

    Alm de exemplificar o ponto mencionado acima, as observaes de Langer tocam um segundo

    aspecto: os eventos musicais no so neutros; eles no so simplesmente estendidos numa densa e infinita

    srie pela relao nica da sucesso. Pelo contrrio, eles provocam experincia direta (tenses, de acordo

    com Langer); so qualitativos. De fato, mais do que qualitativos no modo de ver de Langer (ao se referir ao

    seu tempo experienciado), os eventos musicais so qualitativos num modo que faz o tempo (que a msica

    torna audvel) ser susceptvel manipulao; suas qualidades especiais podem dar forma passagem do

    tempo.3 Tais suposies trazem tona duas questes pragmticas: 1) o que faz um evento musical ser

    qualitativo dessa maneira?; 2) como, de fato, se pode exercer tal manipulao?

    3 Podemos argumentar que o dia e a noite, como dois exemplos de eventos do tempo experienciado de Langer, soqualitativos porque ns os experimentamos; nossas vidas so diretamente influenciadas por eles. Mas, diferentemente doseventos musicais, esses tipos de evento esto indefinidamente fora de nosso controle.

    Eli-Eri Moura - Manipulaes do tempo em msica uma introduo (p. 66 a 90)

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    Focando a primeira questo, consideremos inicialmente que a hiptese expressa acima (eventos

    musicais so qualitativos e capazes de provocar experincia direta ou tenses) uma simplificao,

    pois sugere apenas uma reao unilateral. Na verdade, para compreender que eventos musicais so qualita-

    tivos preciso entender que eles so dependentes de uma cadeia de ao-reao envolvendo mente/percep-

    o humana e o modo como eles prprios so organizados. Ao relacionar eventos musicais com a percepo

    humana, referimo-nos compatibilidade e concordncia de eventos e sua organizao aos nossos modos

    biolgico-natural-culturais de apreenso, processamento e interpretao de dados. Para responder ques-

    to, apropriado, ento, examinar alguns dos fatores que contribuem para tal compatibilidade.

    De modo geral, um evento musical envolve a combinao de vrios parmetros musicais primrios:

    som (altura, rudo, silncio sua contraparte), timbre (colorao, articulao, registro, intensidade), durao

    e textura (densidade, complexidade). Wallace Berry (1987, passim) observa que essas qualidades tm em si

    mesmas poderes evocativos, e que so capazes de implementar fora afetiva a um nico evento musical,

    mesmo se esse estiver isolado:

    O valor afetivo que inerente a eventos sonoros isolados [...] no deveria ser ignorado ou descartado emnenhuma viso abrangente da expresso e experincia musicais [...]. (Uma danarina responder com movi-mento correspondente, estimulado pelo contedo afetivo de um nico som) (BERRY, 1987, p. 25).

    Todavia, atravs de diferentes graus de associaes contextuais4 que os eventos musicais adqui-

    rem foras qualitativas mais fortes. Com esse termo, referimo-nos capacidade de quaisquer eventos musi-

    cais confluentes e/ou sucessivos para estabelecer entre si (ou, mais apropriadamente, na mente perceptiva)

    nveis variados de conexes, relaes e interaes sintticas. Essa capacidade pode ser explicada por estu-

    dos da psicologia da Gestalt, os quais mostram que uma caracterstica tanto de nossa viso quanto de nossa

    percepo auditiva impor padro at mesmo sobre dados sensoriais aparentemente sem conexo (ROWELL,

    1983, p. 245).

    Fundamental a verificao de que o ato cognitivo de relacionar necessita de alguma recorrncia e

    de alguma mudana ocorrendo entre os vrios nveis de construo da msica. Conseqentemente, depen-

    dendo da predominncia de uma dessas aes, certo grau do que podemos chamar de redundncia ser

    encontrado ao longo de tais nveis. De modo geral, tanto a redundncia total quanto a ausncia de redun-

    dncia implicaro nveis muito baixos de associaes contextuais, enquanto que taxas mdias de redun-

    dncia resultaro em graus mais elevados. Tomemos alguns exemplos. Primeiro, consideremos a repetio

    indefinida de uma nica nota no piano, com durao precisa, mesmo intervalo de ataque e mesmo nvel de

    dinmica. Poder-se- dizer que tal seqncia incorpora redundncia total ou quase total, pois os eventos

    nela apresentam recorrncia de todos os seus parmetros. Por outro lado, uma seqncia de eventos como

    uma batida num tam-tamD65 no pianoum cluster cromtico numa orquestraum siln-

    cioLb2 no trombone, apresentando diferentes nveis de dinmica, duraes distintas, etc., pode ser

    4 Esse um termo tomado de emprstimo de Berry. Entretanto, usado aqui num sentido muito mais amplo que o utilizadopor ele.

    5 O nmero ao lado do nome da nota indica a oitava em que a nota est localizada. A numerao em cada oitava comea noD; portanto, D central D4, e Si um semitom abaixo Si3.

    Claves n. 4 - Novembro de 2007

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    considerada um exemplo de no-redundncia ou de quase no-redundncia, pois agora no h pratica-

    mente nenhuma recorrncia das qualidades de qualquer evento. Consideremos agora uma seqncia de

    quatro notas tocadas crescendo no piano, com duraes e intervalos de ataque semelhantes: D4Rb4

    Sol4Lb4. Aqui, encontra-se recorrncia na qualidade tmbrica (nota do pianonota do piano em vez de,

    por exemplo, pianoclarinete ou notarudo), na durao, na distncia dos ataques e na distncia intervalar

    (2m ascendente4aum ascendente2m ascendente) dos eventos. Ocorrem, porm, ao mesmo tempo,

    mudanas na dinmica (intensidade) e, mais notadamente, nas alturas em si (registro).6 Combinando simulta-

    neamente recorrncia e mudana entre seus parmetros, os eventos constituem uma seqncia que apresenta

    uma taxa mdia de redundncia.

    Passagens musicais em tais plos extremos de redundncia total e de no-redundncia so considera-

    das de baixo grau de associaes contextuais por razes bvias: a ausncia de eventos contrastantes, no

    primeiro caso, e a ausncia de eventos referenciais, no segundo, resultam no estabelecimento de bases no

    comparativas para nveis mais altos de relao e conexo, alm de nossa deduo de que os eventos so

    simplesmente semelhantes ou de espcies diferentes. Por outro lado, passagens como a terceira mencionada

    acima apresentam um alto grau de associaes contextuais porque, entre outras razes, a combinao de

    recorrncia e mudana entre os parmetros dos eventos resulta numa emergncia natural de diferentes nveis

    hierrquicos de estrutura musical um fator que ajuda a relacionar sintaticamente diversos eventos. Para

    esclarecer o ponto, consideremos inicialmente a primeira nota da passagem D4 como um evento nico,

    identificvel, no nvel estrutural mais baixo. Ao ser tocada a prxima nota Rb4 , possivelmente ainda

    ouviremos ambas as notas como dois eventos discretos em seqncia. Entretanto, depois de ouvir as outras

    duas notas consecutivas Sol4Lb4 , nossa mente provavelmente interpretar o segundo conjunto de

    notas como um evento singular, identificvel, em relao ao primeiro conjunto, pois, agora, uma nova ordem

    foi criada: um nvel estrutural mais alto no qual ambos os conjuntos so vistos como elementos de qualidades

    equivalentes eles tm como fator redundante o recorrente intervalo ascendente de segunda menor sepa-

    rando suas notas individuais. Tal interpretao seria ainda reforada se entre os conjuntos houvesse uma

    pontuao, como um silncio, ou um conjunto organizado diferentemente, funcionando como um elemento

    de mudana nesse novo nvel. Considerando a possibilidade de nosso exemplo ser desdobrado num cenrio

    temtico e de desenvolvimento (no sentido tradicional), nveis hierrquicos mais altos de estrutura musical

    poderiam ser atingidos na forma de unidades identificveis como motivos, frases, temas, etc. Essas unidades

    poderiam funcionar ento como pontos de referncia e de articulao do tempo, j que, por meio de suas

    caractersticas bem definidas, feio e perfil poderiam ser lembrados e assimilados (BARRY, 1990, p. 262).

    Alm de recorrncia, mudana e taxa de redundncia resultante, alguns outros fatores relacionados

    influenciam no grau de associaes contextuais:

    Taxa de mudana dos eventos: necessrio que exista uma compatibilidade entre o tempo neces-

    srio para interpretar e armazenar na memria as caractersticas dos eventos e o tempo disponvel

    6 importante notar que, em msica, associamos mudana a movimento: [...] a sucesso de um evento sonoro por outro dequalidade(s) diferente(s) (digamos, dois eventos com diferentes nveis de dinmica) produz uma impresso anloga demovimento de uma distncia percorrida entre estados qualitativos dspares. Assim, num certo sentido, em msica,mudana movimento (BERRY ,1987, p. 8).

    Eli-Eri Moura - Manipulaes do tempo em msica uma introduo (p. 66 a 90)

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    para process-los, de modo a facilitar o surgimento de conexes sintticas. Para usar uma expres-

    so de Barry, necessrio ter um tempo preenchido de forma moderada. Citando Broadbent,

    Meyer (1967, p. 291-292) afirma: experimentos sugerem que h um limite para a quantidade de

    informao que um ouvinte pode absorver numa certa quantidade de tempo; isto , ele tem uma

    capacidade limitada. Se uma sobrecarga de informao excede essa capacidade, o resultado

    um baixo grau ou nenhum grau de associaes contextuais. Surpreendentemente, uma taxa de

    informao extremamente baixa tambm produz o mesmo efeito. Drr (1968, p. 182-3) assinala

    que o mximo de durao preenchida (ou vazia) de que podemos ter conscincia de forma

    distinta e imediata parece ser no mais que alguns poucos segundos. Eventos mais longos, esten-

    didos excessivamente no espao ou silncio, tendem a atenuar as demandas de ateno contnua

    sobre como os eventos passados se relacionam com os eventos presentes.

    Complexidade: Quanto maior a densidade de informao (complexidade e irregularidade de even-

    tos) durante uma passagem, menor a probabilidade de que muito do que j passou seja lembrado

    pelo ouvinte, e, como conseqncia, menor o grau de associaes contextuais. A complexidade

    est geralmente associada sobrecarga de informao.

    Designao de registros: Eventos de altura separados por designaes extremas de registro con-

    tradizem uma das leis da Gestalt a lei da proximidade e, conseqentemente, tornam-se mais

    difceis de ser processados, causando graus de associaes contextuais baixos. Por outro lado, de

    acordo com essa lei, notas conjuntas facilitam a percepo, a assimilao e, por conseguinte, o

    atingimento de elevados graus de associaes contextuais.

    Outro resultado direto das associaes contextuais da maior importncia para o entendimento de

    suas qualidades especiais a sensao de tenso/relaxamento. Tal fator surge em msica porque, atravs

    de altos graus de associaes contextuais, os eventos musicais podem implicar uns nos outros de diferentes

    maneiras, em diferentes graus, e em diferentes nveis hierrquicos (MEYER, 1967, p. 8). Quando associa-

    mos, afetiva ou intelectualmente, eventos e processos posteriores como resoluo (satisfao de expectativa)

    de eventos implicativos anteriores, a sensao resultante de tenso seguida de relaxamento. Outras manei-

    ras de evocar tenso e relaxamento so respectivamente: 1) condies comparveis de instabilidade (no-

    congruncia de sintaxe) e de estabilidade (congruncia); 2) ambigidade relativa (em relao a uma norma

    referencial) e certeza de referncia; 3) complexidade e restaurao de estados mais simples (ou reconheci-

    mento de estrutura); e 4) desvio e retorno ao normativo (em geral, uma vez que fatores redundantes sejam

    suficientemente reiterados para se estabelecerem como uma norma referencial, mudanas e perturbaes

    nessa norma so experimentadas por ns como tenso, e o caminho normativo, como relaxamento).

    J implcito acima, o fator previsibilidade, tambm resultante de eventos com elevados graus de

    associaes contextuais, uma extenso da sensao de tenso/relaxamento. Geralmente, medida que

    ouvimos uma msica que apresenta muitos nveis de relaes sintticas, seus eventos e processos implicativos

    estabelecem uma base na qual fazemos predies sobre eventos e processos futuros. Nossas predies

    podem resultar erradas: o que esperamos pode no vir, pode acontecer de maneiras diferentes, ou pode ser

    Claves n. 4 - Novembro de 2007

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    atrasado ou antecipado. O importante, todavia, que o que realmente advm matizado por essas predi-

    es. Desse modo, medida que nossas predies alcanam ou no as realizaes de implicaes prvias,

    entendemos os eventos musicais como normais, regulares, inesperados, etc. (MEYER, 1967, p. 71-2).

    Por seu turno, tais inferncias contribuem para evocar novas ordens (nveis mais elevados, por assim dizer)

    de implicaes e previsibilidade.

    Um ponto final que, em msica com altos graus de associaes contextuais, tanto o sentido de

    tenso/relaxamento quanto o de previsibilidade esto ligados diretamente ao surgimento de certos fatores

    que atuam como marcas de orientao e articulao. Entre esses fatores est o sentido de direcionamento

    (ordem). Ele dependente de altos graus de associaes contextuais para surgir porque, como assinala

    Barry (1990, p. 256), [...] se variaes na superfcie musical ocorrem extensiva e simultaneamente em

    diversos parmetros, como variaes contnuas, ou so baseadas em materiais que variam continuamente,

    sem elementos de apoio reconhecveis, ento no h meio de predizer sobre continuao e, em conseqn-

    cia, qualquer direo do tempo anulada. Meyer corrobora o ponto sugerindo o seguinte:

    Se os eventos so desprovidos de implicaes, no faz diferena em qual arranjo temporal eles so experi-mentados ou descritos. O mundo , para todos os intentos e propsitos, sem tempo direcionado [...] o tempohumano sem direo quando a ateno est focada na unicidade dos particulares (MEYER, 1967, p. 164).

    Um outro fator diz respeito a objetivos (pontos de chegada e de partida) que podem ser identificados

    no retorno de um tema ou numa cadncia, assim como num evento congruente que procede a processos tais

    como aumento ou diminuio de intensidade ou velocidade, compresso ou descompresso de padres,

    aumento ou diminuio da freqncia de pontos de ataque ou da densidade textural, entre outros. Quando o

    objetivo um ponto musical culminante, um ponto de chegada muito enftico e destacado, geralmente o

    processamos como um clmax, um ponto culminante.

    Sob a luz de tais consideraes, o tema referente segunda questo apresentada acima relativa a

    como, de fato, possvel exercer manipulao do tempo em msica pode ser enfocado. Nosso argumento

    que, atravs de associaes contextuais controladas (em acordo com as escalas resultantes de tenso/

    relaxamento pretendidas e os conseqentes graus de previsibilidade), os eventos musicais podem ser perce-

    bidos e entendidos em uma grande variedade de estruturas temporais. Elevados graus de associaes

    contextuais podem levar, por exemplo, criao de pontos de articulao estratgicos (objetivos, pontos

    culminantes, chegadas, etc.) de tal modo que uma estrutura temporal definida, com gestos implementados de

    comeo, de meio (progresso) e de fim pode ser efetivada. Deslocando os pontos referenciais, pode-se

    chegar a uma estrutura na qual ordem e direo so ainda fatores importantes, porm de tipos diferentes.

    Uma espcie de tempo descontnuo poderia ser refletido numa msica com expectativas no satisfeitas, com

    interrupes abruptas das progresses, e outros procedimentos similares. Baixos graus de associaes

    contextuais e a resultante atenuao de tenso/relaxamento poderiam levar formao de estruturas tempo-

    rais apresentando um tempo com trajetria dilatada ou mesmo (por meio de redundncia total ou no-

    redundncia) um estado esttico completo no qual a ordem dos eventos no teria nenhuma relevncia.7

    7 No estranho, portanto, que Kramer proponha em The Time of Music (1988) uma longa lista de categorias temporais que,de acordo com ele, a msica capaz de expressar. Alguns nomes so tempo gestual, tempo do momento, tempomultidirecionado, tempo linear no-direcionado, tempo vertical.

    Eli-Eri Moura - Manipulaes do tempo em msica uma introduo (p. 66 a 90)

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    Sob a perspectiva de tais idias, possvel ver as reais implicaes de afirmaes como as de Kramer,

    de que a msica cria o tempo. As implicaes tornam-se ainda mais evidentes se levamos em conta que,

    ao ouvirmos msica de uma maneira envolvida, o tempo externo (como o tempo do relgio e o tempo

    experienciado de Langer) e os ritmos circundantes so substitudos pela temporalidade projetada da msica

    e por ritmos musicais. Basil de Selincourt resume a idia da seguinte maneira:

    Msica uma das formas de durao; ela suspende o tempo ordinrio e se oferece como um substituto eequivalente ideal. Nada mais metafrico ou mais forado em msica do que a sugesto de que o tempo estpassando medida que a ouvimos [...] Msica [...] demanda a absoro da totalidade de nossa noo detempo; nossa prpria continuidade perdida naquela do som que ouvimos [...]. Nossa prpria vida medidapor ritmos: de nossa respirao, das batidas do corao. Estes so todos irrelevantes, seus sentidos ficam emsuspenso, enquanto o tempo msica (DE SELINCOURT, 1958, p. 153).8

    Por fim, importante ressaltar que a identidade entre tempo e msica, bem como a noo de que,

    quando msica tempo, o tempo pode ser controlado, no so casuais ou fortuitas, mas, ao contrrio,

    altamente significativas para o homem. De acordo com a teoria do paradoxo vivido, de Paul Ricoeur,

    dispomos de duas perspectivas extremas do tempo: (i) a angustiante experincia da brevidade da vida (tempo

    qualitativo, um tempo com presente), ante (ii) a imensido do tempo csmico (tempo quantitativo, um

    tempo sem presente), que retorna infatigavelmente atravs de ciclos de dias, estaes e anos. O paradoxo

    vivido resulta da percepo humana de que a experincia fundamental do tempo vivido (presente humano)

    sempre ser ausente tanto do passado remoto quanto do futuro remoto, pois no pertinente representa-

    o do tempo quantitativo. De acordo com Ricoeur, o homem tenta superar tal desproporo (entre o tempo

    csmico e o tempo vivido) atravs de mediaes simblicas o complexo de tais estruturas simblicas

    constitui o que, para ele, , ao final, o tempo humano. As mediaes simblicas se manifestam atravs dos

    relatos mticos, picos e literrios, assim como na forma de cronologias, calendrios e histria. Essa idia leva

    o filsofo concluso de que o tempo humano sempre um tempo relatado (RICOEUR, 1991, p. 5-8).

    Partindo da viso de Ricoeur, podemos inferir que a msica esteja entre as mediaes simblicas menciona-

    das. Indo alm, possvel supor que, se as manifestaes humanas citadas acima atingirem a condio

    mediadora como tempo relatado, a msica, num nvel mais profundo, se torna uma mediao simblica

    como tempo incorporado. Enquanto nos mitos, nas cronologias e na histria o homem encontra uma forma

    de controlar e alcanar o imensurvel por meios cognitivos, em msica ele encontra uma forma de manipul-

    lo e viv-lo atravs de uma estrutura que pode incorporar o prprio imensurvel. Em outras palavras, como

    o homem no pode, de fato, atingir o tempo csmico, ele concebe na msica uma mimese profunda desse

    tempo, que susceptvel de manipulao, e assim, sob seu controle, funciona como mediao simblica.

    Ser, devir e composies de massa sonora: alguns exemplos

    Alguns exemplos de manipulao temporal em msica so sugeridos em seguida. Parece particular-

    mente apropriado citar casos nos quais a msica incorpora predominantemente uma das seguintes vises do

    tempo: o tempo (no-linear) do ser e o tempo (linear) do devir. O objetivo verificar que, por meio de

    8 Uma viso interessante sobre essa idia defendida por Barry (1990, p. 7-8).

    Claves n. 4 - Novembro de 2007

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    diferentes graus de associaes contextuais, materiais musicais similares podem produzir temporalidades

    distintas. Primeiro, fazemos uso de alguns materiais tpicos da msica tonal geralmente uma forte represen-

    tante da linearidade para escrever tanto uma passagem linear quanto uma passagem no-linear. Examina-

    mos, em seguida, trs diferentes abordagens de composies de massa sonora: Gyrgy Ligeti com sua pea

    Atmosphres, John Cage e Lejaren Hiller com HPSCHD, e Witold Lutoslawski com Livre pour Orchestre.

    Verificar-se- que, enquanto o uso de massas sonoras representou um meio natural de evocar temporalidades

    no-lineares na msica de Ligeti e Cage, o emprego dos mesmos agentes foi til para Lutoslawski escrever

    um tipo de msica linear.

    De acordo com Fraser, o princpio do ser sustenta que, sob nossa experincia de tempo, h uma

    realidade final de permanncia, enquanto que, para o devir, a realidade final do mundo a da pura mudana.

    As vises do mundo derivadas do princpio do ser tendem a considerar a matria e o espao como

    ontologicamente anterior funo; aquelas relativas ao princpio do devir tendem a considerar o processo

    e a funo mais fundamentais que a matria e o espao (FRASER, 1990, p. 44). Paralelamente aos dois

    pontos de vista ontolgicos apresentados na primeira parte de nossa discusso, as atitudes do ser e do devir

    tm caracterizado muitas abordagens atravs da histria do pensamento sobre o tempo. Vises influenciadas

    pelo princpio do devir so mais freqentemente encontradas na cincia e nas filosofias ocidentais elas vo

    de Herclito a Bergson, passando por Aristteles, Santo Agostinho, So Toms de Aquino, e muitos outros.

    Por outro lado, a idia do ser, como assinalada por Kramer, estabeleceu-se mais fortemente nas filosofias do

    Zen Budismo oriental9 (KRAMER, 1988, p. 16). Nota-se, todavia, que vises que abordam o ser so

    tambm encontradas entre pensadores ocidentais do passado exemplos so Plato10 e Averroes de Crdova

    e que, nos tempos modernos, elas encontraram fortes reverberaes nas filosofias ocidentais, como o

    existencialismo. Paralelamente, culturas orientais tambm abordaram o tempo envolvendo a idia do devir. A

    viso de um tempo orientado a objetivos, por exemplo, usualmente associado ao devir, vem dos hebreus,

    que consideravam o tempo como um movimento direcionado frente, com um comeo identificvel no ato

    divino da criao, conduzindo ao cumprimento do propsito divino, como diz Fraser (1990, p. 22), ou em

    direo a um evento final, apocalptico, como observa Rowell (1983, p. 30). Concordando com a idia de

    que nossa experincia do tempo inclui tanto o ser quanto o devir, vises modernas como as de Hauser,

    Fraser, Kramer e outros tendem a explicar a coexistncia desses princpios antagnicos, algumas vezes

    enfatizando uma tentativa de combin-los, outras vezes enfatizando suas inerentes condies conflitantes.

    Devir e ser so, respectivamente, os princpios subjacentes aos conceitos de linearidade e de no-

    linearidade, geralmente aplicados s artes temporais a msica, em particular. Se a idia do devir se refere

    exaltao de mudana, processo e funo, ento a linearidade em msica tem a ver com algo em curso,

    evolucional e orgnico. Analogamente, Kramer define o termo como:

    9 As filosofias do Zen-Budismo advogam que o verdadeiro conhecimento vem como um estado especial de iluminao eclarificao conhecido como satori, que traz, como uma revelao, a percepo da unicidade de todas as coisas (MEYER,1967, p. 167-8). Concernente pura experincia, e no cognio discursiva, tal experincia envolve, entre outras coisas, atentativa de transcendncia de nossa conscincia temporal do mundo real para atingir um estado atemporal, um presente eterno.

    10 Tomando como base sua idia de que o tempo uma imagem movente da eternidade, Plato, por fim, o vislumbrou comouma manifestao da ordem csmica e das leis universais. Enaltecendo o imutvel, sua concepo se aproxima, no fundo, deuma abordagem do ser.

    Eli-Eri Moura - Manipulaes do tempo em msica uma introduo (p. 66 a 90)

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    [...] a determinao de alguma(s) caracterstica(s) da msica em acordo com implicaes que advm deeventos anteriores da pea [...]. A linearidade uma rede complexa de implicaes continuamente mutveis(na msica) e expectativas (do ouvinte) (KRAMER,1988, p. 20).

    Em seu livro Thinking About Music, Rowell (1983, p. 242-3) lista uma srie de hipteses relativas

    idia de linearidade em msica. De acordo com ele, encontraremos os seguintes fatores na msica linear:

    movimento direcionado;

    conduo a um objetivo futuro (teleologia e irreversibilidade);

    continuidade cumulativa;

    uma escala hierrquica de pulsaes e periodicidades;

    comeos claros e incisivos, prosseguimentos atravs de partes relacionadas, e finalizaes com sen-

    tido de concluso e plena efetivao;

    uma linha de tempo nica que passa gradualmente de nosso futuro, atravs de nosso presente, para

    nosso passado;

    uma estrutura ideal sugerindo uma interpretao narrativa da dinmica da vida humana;

    condies para o ouvinte sentir expectativa e perceber por meio de predio e regresso;

    propriedades incluindo causalidade, relaes sintticas e conotaes que produzem referncias cru-

    zadas entre eventos musicais separados no tempo.

    Por outro lado, a idia do ser, enfatizando a prioridade da substncia sobre a funo e exaltando

    permanncia, refletida nas qualidades no evolutivas da no-linearidade:

    [No-linearidade] a determinao de alguma(s) caracterstica(s) da msica em acordo com implicaesque advm de princpios ou tendncias que governam uma seo ou pea inteira [...]. Princpios no-lineares podem ser revelados gradualmente, mas eles no se desenvolvem a partir de eventos ou tendnciasanteriores (KRAMER, 1988, p. 21).

    Analogamente, podemos encontrar alguns dos seguintes fatores em msica no-linear:

    estatismo ou movimento no-direcionado;

    ausncia de objetivos para os quais se mover, ausncia de clmax ou pontos culminantes (no-

    teleologia e reversibilidade);

    descontinuidade;

    falta de articulao ou diviso temporal, ausncia de frases, total consistncia;

    no-apresentao de fechamentos de larga escala (partidas em vez de comeos claros, paradas em

    vez de finais claros);

    dois ou mais tempos simultneos, atemporalidade, ou um tempo do momento aps o outro (ROWELL,

    1983, p. 245-7);

    no-expectao/no-resoluo (ou expectativa atrasada/desviada) (BARRY, 1990, p. 253);

    separao do momento de percepo de seu passado e de seu futuro, resultando em ausncia de

    base para predio, ausncia de conexes dentro dos eventos ou entre os eventos, falta de relaes

    sintticas. Os sons aparecem como sensaes individuais, presentes e discretas (som qua som);

    reiterao, justaposio e acumulao em vez de progresso lgica.

    Claves n. 4 - Novembro de 2007

  • 77

    Dessas definies, pode-se observar que linearidade e no-linearidade so conceitos muito amplos.

    Cada qual pode aparecer numa variedade de modos relacionados, mas algumas vezes mutuamente exclusi-

    vos. Outra considerao que ambos os modos coexistem, em diferentes propores, em todas as msicas.

    Como observa Kramer (1988, p. 62), mesmo a msica mais no-linear existe no tempo [...] e , portanto,

    inicialmente ouvida como uma sucesso temporalmente ordenada, implicando, ento, uma experincia line-

    ar. Esses pontos so ressaltados para declarar, primeiro, que examinaremos, de fato, casos particulares de

    linearidade e no-linearidade. Segundo, apesar do fato de que possvel encontrar traos de ambos os

    modos nos exemplos, as caractersticas do modo predominante que sero focalizadas.

    Dependente de elevados graus de associaes contextuais para emergir, a tonalidade produz uma

    msica que pode exibir todos os fatores caractersticos da linearidade listados acima: movimento direcionado

    a objetivos (funes de tnica, cadncias, clmax, pontos culminantes meldicos, diferentes reas tonais por

    meio de modulaes); escuta cumulativa (eventos previamente caracterizados, como motivos e temas, rela-

    cionados a outros posteriores); um sistema hierrquico de periodicidades igualmente divididas (mtrica, rit-

    mo divisivo); eventos e processos convencionados para servir de comeos (tnica, encadeamentos espec-

    ficos de acordes), prosseguimentos (conduo das vozes, progresses harmnicas envolvendo funes de

    dominante, cadncias intermedirias) e concluses (funo de tnica, cadncias conclusivas); etc. Verifica-

    se, todavia, que mesmo alguns dos materiais mais representativos da tonalidade podem ser arranjados de

    modo a resultar uma msica predominantemente no-linear. Alegamos que isso seja devido grande suscep-

    tibilidade da substncia musical manipulao temporal por meio de associaes contextuais controladas.

    Para fornecer um exemplo, consideremos as oito trades seguintes (em estado fundamental) como material

    bsico: Sol# menor, L menor, Si menor, D menor, D# menor, R menor, Mi menor, F menor. Organizando

    no tempo essas trades de acordo com alguns princpios gerais da harmonia tonal, um resultado possvel pode

    ser uma passagem linear como a mostrada no Exemplo 1:

    Exemplo 1 Passagem 1.

    Basta no seguir algumas convenes sistmicas da tonalidade para criar uma passagem contendo

    basicamente os mesmos eventos acima, porm evocando uma temporalidade distinta11 (Exemplo 2):

    11 Esta uma verso esquemtica de um trecho extrado de minha pea Rquiem Contestado, para tenor, coro e orquestra decmara.

    Eli-Eri Moura - Manipulaes do tempo em msica uma introduo (p. 66 a 90)

  • 78

    Exemplo 2 Passagem 2.

    Levando em considerao especificamente o nvel formado pelos acordes como agentes estruturais, vemos

    que uma diferena bsica entre essas passagens que, dentro do perodo necessrio para enunciar todas as oito

    trades (i.e., oito compassos), a primeira apresenta acordes recorrentes (resultando numa taxa de redundncia

    mdia), enquanto na segunda, a primeira ocorrncia acrdica s vem depois que todas as oito trades foram

    expostas (resultando em no-redundncia). Outra maneira de checar a diferena na taxa de redundncia

    verificando os eventos de notas isolados. As 11 classes-de-notas usadas para formar os acordes (Sib est

    ausente) ocorrem no tempo de acordo com o esquema mostrado na Figura 1 (duplicaes no so consideradas):

    Figura 1 Classes-de-notas dos acordes.

    Sabendo que repetio de nota inevitvel depois que um determinado nmero dessas formaes

    tridicas enunciado, verificamos que na segunda passagem o nmero de vezes em que aparece a mesma

    classe-de-nota varia de 1 para apenas 3, enquanto que na primeira passagem varia de 1 a 7. Significativa-

    mente, as notas mais recorrentes da primeira passagem so aquelas que formam os acordes representativos

    das trs principais reas tonais pelas quais passa a msica L menor, Mi menor e D menor. Existe tambm

    Claves n. 4 - Novembro de 2007

  • 79

    o fato de que, embora ambas as passagens faam uso de 11 classes-de-notas, na segunda a maioria das

    notas ocorre regularmente atravs de sucessivos espaos de tempo da msica (implicando, localmente,

    sobrecarga de informao, complexidade e ambigidade tonal), enquanto que na primeira passagem as

    classes-de-notas aparecem em grupos de nmero limitado que caracterizam tonalmente diferentes espaos

    de tempo (implicando, localmente, simplicidade e definio tonal).

    As notas que formam esses grupos na primeira passagem so exemplos do que denominamos

    invariantes determinados eventos e/ou procedimentos selecionados que, por recorrncia estatisticamente

    controlada, servem como matria-prima musical ou base para a emergncia de formaes estruturais e/ou

    sistmicas.12 Na primeira passagem, o espao de tempo preenchido pelas primeiras quatro trades apresenta

    apenas 7 classes-de-notas (L, Si, D, R, Mi, F e Sol). Essas so as invariantes formadoras da escala e

    dos acordes especficos que limitam a ao musical a uma rea tonal especfica L menor. medida que a

    msica avana, ela caracterizada por outras invariantes da mesma ordem que estabelecem Mi menor e D

    menor como novas reas tonais. Diferentemente, na segunda passagem o mesmo espao de tempo (as primei-

    ras quatro trades) j apresenta 9 classes-de-nota, a quase totalidade do espectro cromtico (R, R#, Mi, F,

    F#, Sol, Sol#, L e Si). Situao anloga ocorre em qualquer outro espao de tempo dessa passagem.

    Envolvendo um enorme complexo de invariantes relacionadas e simultneas, a tonalidade abarca

    diversos fatores determinantes de altos graus de associaes contextuais, os quais se tornam inerentes ao

    sistema ordens especficas de trades, consonncia e dissonncia envolvendo tenso e relaxamento, etc.

    Analisar as propriedades internas da tonalidade foge ao escopo desta discusso. suficiente, porm, levar

    em considerao os fatores relativos recorrncia mencionados acima para vislumbrar como o ouvinte

    poder perceber um tempo linear na primeira passagem. Trades recorrentes dentro de um pequeno espao

    de tempo, fazendo parte de um tipo consistente de invariantes, bem como a recorrncia de procedimentos

    equivalentes em reas tonais diferentes, fazem o ouvinte encontrar nessa passagem micropontos e

    macropontos de partida e de chegada. medida que ele compara e relaciona eventos presentes com

    eventos prvios, uma sensao resultante de movimento direcionado a objetivos futuros leva-o a experimen-

    tar a passagem como um segmento fechado de tempo com comeo e fim definidos. Graus ainda mais eleva-

    dos de associaes contextuais poderiam ser alcanados se, por meio da recorrncia de motivos meldicos

    mais bem definidos, escrevssemos uma verso mais idiomtica e consistente para essa passagem, como a

    apresentada no Exemplo 3:

    Exemplo 3 Segunda verso da Passagem 1.

    12 Alguns exemplos de invariantes so: classes-de-notas selecionadas para formar escalas especficas e, por extenso,intervalos adjacentes caractersticos; determinados intervalos que formam tipos consistentes de acordes (trades, acordesquartais); algumas relaes de durao estabelecendo propores fixas.

    Eli-Eri Moura - Manipulaes do tempo em msica uma introduo (p. 66 a 90)

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    J na segunda passagem, o ouvinte provavelmente perceber pontos de partida e de chegada e algum

    movimento direcionado de forma atenuada. Isso se d por conta dos baixos graus de associaes contextuais

    produzidos por eventos no-redundantes, um contexto tonal ambguo e uma diviso rtmica sempre igual.

    Notadamente, sem pontos de articulao claros, essa msica pode ser repetida indefinidamente, e, assim,

    apresentar redundncia total em seu nvel estrutural de larga escala. Implementando um carter cclico e

    esttico a essa msica, esses fatores podem evocar uma temporalidade no-linear que enfatiza o presente,

    mais que o passado e o futuro.

    Assim como a msica tonal uma tima expresso musical da linearidade temporal, peas de massas

    sonoras, por outro lado, representam fortemente alguns tipos de no-linearidade. Como ser visto a seguir,

    alguns determinantes de baixos graus de associaes contextuais, ao definir a formao de massas sonoras,

    tambm produzem as condies necessrias para o surgimento de uma temporalidade que, de acordo com

    alguns autores, evoca o espao musical e a estase. Apesar disso, verificar-se- que as massas sonoras, uma

    vez concebidas como unidades identificveis de um idioma musical envolvendo altos graus de associaes

    contextuais, podem ser arranjadas de modo a produzir uma msica predominantemente linear.

    Edgard Varse foi um dos primeiros a articularem sobre a possibilidade de escrever peas que tives-

    sem massas sonoras como as unidades do discurso musical.13 Todavia, foi s no final da dcada de 1950

    que novas tcnicas levaram a msica a incorporar o que ele almejara dcadas antes.14 Como previra Varse,

    o surgimento de novos instrumentos (o que resultou na msica eletrnica) teve, de fato, um papel funda-

    mental nessa questo, mas isso no foi necessariamente o fator determinante que levou os compositores a

    conceberem e comporem msicas governadas por massas sonoras (e componentes relacionados, como

    texturas, densidades, registros). Em seu afastamento do serialismo, Ligeti estava entre aqueles que notaram

    que at os trabalhos instrumentais de quase todos os compositores seriais mostram uma tendncia para a

    composio por camadas (LIGETI, 1965, p. 7).15 Ele observou na maioria da msica serial escrita na

    dcada de 1950 o que ele chamou de permeabilidade de estruturas,16 alm de uma crescente perda de

    sensibilidade a intervalos e um processo de nivelamento musical que acarretava uma crescente dificuldade em

    obter contraste. De acordo com Ligeti, os seguintes pontos, entre outros, causavam tais fenmenos: (1) o

    13 Numa palestra intitulada Novos Instrumentos e Nova Msica, apresentada na Mary Austin House, Santa F (EUA), em1936, Varse expressou o seguinte: Quando novos instrumentos me permitirem escrever msica como eu a concebo, omovimento de massas sonoras, de planos mutveis, ser claramente percebido em minhas obras, tomando o lugar docontraponto linear. Quando essas massas sonoras colidirem, os fenmenos de penetrao ou repulso sero aparentes.Certas transmutaes ocorrendo em certos planos daro a impresso de serem projetadas em outros planos, movendo emdiferentes velocidades e em diferentes ngulos. Com as massas em movimento, vocs seriam conscientes de suastransmutaes quando elas atravessassem diferentes camadas, penetrassem certas opacidades, ou fossem dilatadas emcertas rarefaes (VARSE, 1967, p. 197).

    14 Embora um caso anterior de construo de massas sonoras seja encontrado na msica de Charles Ives.

    15 Ligeti escreveu o artigo sob esta referncia, Metamorphoses of Musical Form, em 1958. A referncia indica a data dapublicao no peridico Die Reihe.

    16 Isso significa que estruturas de diferentes texturas podem ocorrer concomitantemente, penetrar e mesmo imergir umasnas outras completamente, alterando as relaes de densidade horizontal e vertical, [...] sendo uma questo indiferentequais intervalos coincidem no meio do embate (LIGETI, 1965, p. 8).

    Claves n. 4 - Novembro de 2007

  • 81

    entrelaamento de diversas sries horizontais em superposio, que resultavam no enfraquecimento do carter

    individual dos vrios arranjos seriais e relegavam o som resultante ao status de subproduto; (2) a preferncia

    por seqncias de intervalos homogneas, particularmente a escala cromtica, e a disposio vertical desse

    material, resultando num empilhamento de notas contguas. Ele concluiu que no mais intervalos, mas princi-

    palmente relaes de densidade, distribuio de registros e vrios deslocamentos na construo e

    desconstruo dos complexos verticais constituam agora a estrutura da msica (LIGETI, 1965, p. 5-8). Ele

    percebeu tambm que, como conseqncia desses fatores, essa nova estrutura refletia uma temporalidade

    cuja principal caracterstica era a estase.

    Como assinala Bernard (1987, p. 208-9), essas observaes levaram Ligeti a uma concluso-chave:

    se as qualidades que ele notara eram, de fato, os reais determinantes da configurao aural na nova msica,

    por que no empreg-las diretamente, em vez de faz-lo atravs de mtodos composicionais que no podiam

    controlar tais qualidades, exceto de forma acidental ou aproximada? Desse modo, vendo no material resul-

    tante um meio apropriado para expressar determinadas intenes temporais, vrios compositores desenvol-

    veram tcnicas especficas que passaram a ser aplicadas em composies de massas sonoras. Entre eles

    estava o prprio Ligeti, que utilizou, entre outras tcnicas, micropolifonia e clusters sustentados. Por meio

    de uma contnua transformao de uma massa sonora em outra, ele tentou concretizar uma estrutura musical

    que refletisse um eterno processo de mudana, o qual no-linear em essncia. Outro compositor foi Cage,

    com sua msica aleatria, o qual extraiu o mximo do carter esttico das massas sonoras para evocar uma

    temporalidade no-linear radical. Lutoslawski, usando aleatorismo limitado em combinao com agrega-

    dos de 12 sons tratados modalmente e outros procedimentos, tratou as massas sonoras como unidades de

    um discurso musical linear.17

    Ligeti aplica em sua msica o dispositivo tcnico que ele chama micropolifonia, no qual partes solistas

    (linhas meldicas), governadas, segundo ele, por regras to estritas quanto as de Palestrina ou aquelas da

    escola flamenga, combinam para criar complexos cromticos. O que h de peculiar no procedimento que

    so tantas as linhas meldicas superpostas, e seu entrelaamento contrapontstico to complexo que as

    partes individuais no so discernveis, os intervalos dentro delas perdem sua identidade. Uma textura impe-

    netrvel de som o que a experincia perceptiva de ouvir passagens escritas de acordo com essa tcnica

    dispe ao ouvinte. Em outras palavras, uma complexidade extrema (uma sobrecarga de informao) causa

    um baixssimo grau de associaes contextuais tanto entre os eventos dentro de uma parte as notas

    quanto entre as partes superpostas. Por conseguinte, como as relaes sintticas no so possveis dentro de

    microeventos, a estrutura interna se torna inaudvel (LIGETI, 1983, p. 14-5): a ateno est direcionada

    principalmente para a totalidade textural, a dimenso global. Rowell (1983, p. 158-159) explica esse fen-

    meno afirmando que a mente tenta instintivamente reduzir a complexidade percebida [...] fundindo as infor-

    maes numa superfcie unificada. A psicologia Gestalt corrobora a questo argumentando que a mente

    17 Devido ao escopo deste trabalho, no selecionamos uma obra do compositor Iannis Xenakis como exemplo. Devemosressaltar, porm, que esse compositor no apenas formulou proposies diretamente relacionadas ao assunto, como tam-bm desenvolveu tcnicas composicionais especficas para escrever peas de massas sonoras que ele chamou de msicaestocstica usando modelos matemticos (leis de probabilidade como as de Maxwell-Boltzmann).

    Eli-Eri Moura - Manipulaes do tempo em msica uma introduo (p. 66 a 90)

  • 82

    perceptiva busca o agrupamento disponvel mais simples, procurando por formas bsicas, completas ou

    todos contnuos (BENT, 1980, p. 354). Aqui, o mais imediato agrupamento disponvel uma massa musical

    homognea, de polifonia supersaturada, que toma a forma de espaos cromaticamente preenchidos.

    Clusters sustentados, outro artifcio usado por Ligeti na composio de massas sonoras, so

    construdos simplesmente atravs da superposio e alternncia de notas muito longas formando feixes

    cromticos. Aqui, em contraste com a micropolifonia, um grau muito baixo de associaes contextuais

    alcanado por meio de uma taxa de informao extremamente baixa: a velocidade das mudanas to

    lenta e eventos individuais de uma nota so to longos que a contnua ateno necessria para relacionar e

    associar eventos presentes com eventos vizinhos atenuada. Novamente, no so partes individuais ou

    notas individuais dentro das partes que so percebidas, mas, sim, massas sonoras.

    importante notar que, devido aos baixos graus de associaes contextuais resultantes, ambos os

    procedimentos mudam hierarquicamente o papel tradicional dos diversos parmetros musicais: a organi-

    zao de altura e ritmo torna-se subordinada a aspectos de fenmenos de superfcie tais como textura,

    densidade e registro. Isso significa que a manipulao de altura e ritmo para variar textura, densidade,

    registro, etc. se torna integral estruturao das massas sonoras. Em tal contexto, dois outros elementos

    estruturais so cor (timbre, orquestrao) e dinmica.

    Massas sonoras construdas com micropolifonia e clusters sustentados tm, em geral, um carter

    esttico: como sua continuao no depende de relaes sintticas, mas de blocos de densidade de vrias

    espessuras, elas evocam poucas expectativas no ouvinte alm da iminente extenso delas prprias. Refe-

    rindo-se msica que apresenta tais materiais, Barry (1990, p. 259) afirma que, embora o meio seja,

    obviamente, o tempo, [...] sua qualidade constante predominante no direo, mas espacialidade.

    Um dos mais conhecidos exemplos de pea composta por Ligeti utilizando esses meios a obra

    orquestral Atmosphres (1961).18 Suas sempre presentes massas sonoras possuem, em geral, esse carter

    esttico, mas v-se que, na realidade, elas se encontram num processo de transformao constante, embora

    bastante gradual. Depois de caracterizar uma massa sonora especificando seus elementos estruturais (textura,

    densidade, dinmica e, principalmente, cor instrumental19 ), o compositor utiliza o recurso da variao

    sistemtica desses elementos para transform-la gradualmente. Como ele faz diferentes massas sonoras se

    sobreporem e se originarem umas das outras sem divises claras as entradas so freqentemente imper-

    ceptveis, e as extines, graduais algumas vezes a impresso geral de ouvir simplesmente uma massa

    sonora ininterrupta, submetida a uma contnua modificao.20

    H nessa pea um nvel estrutural de alta hierarquia constitudo de massas sonoras diferentemente

    caracterizadas. O ponto crucial que elas no so recorrentes: uma vez expostas, reciprocamente excluem sua

    18 Micropolifonia pode ser encontrada a partir da letra H, compasso 44; conglomerados sustentados, a partir do incio e aolongo da pea.

    19 Com referncia ao assunto, Ligeti afirma que Atmosphres uma composio de cores tonais por excelncia e estintimamente relacionada terceira pea orquestral do opus 16 de Schoenberg (LIGETI, 1983, p. 86).

    20 De fato, Atmosphres praticamente no apresenta cesuras, pausas de silncio e descontinuidade, exceto uma na letra G,compasso 40.

    Claves n. 4 - Novembro de 2007

  • 83

    repetio, e, assim, tornam-se irrecuperveis. Isso implica uma quase no-redundncia (ao nvel das massas

    sonoras como unidades formais) gerando um grau muito baixo de associaes contextuais nesse nvel.21

    Por trs desses procedimentos est a inteno do compositor em escrever msica que d a impresso

    de que poderia fluir continuamente, como se ela no tivesse comeo nem fim (LIGETI, 1983, p. 84) e, ao

    mesmo tempo, msica que incorpora uma ideao composicional do processo de mudana (Idem, 1965,

    p. 19). Analogamente, se uma pea constitui um fluxo uniforme de massas sonoras e transformaes continua-

    mente renovadas, sem pontos claros de articulao, ela certamente no enfatizar um movimento direcionado,

    pois suas unidades formais no so retidas do passado para, a partir de uma base estabelecida, se projetar no

    futuro (BARRY, 1990, p. 258). O resultado um presente em constante mudana, um processo de eterno

    devir que, paradoxalmente, reflete o tempo no-linear do ser. O processo no alude a uma estase completa,

    mas tambm no contm o devir plenamente, pois ele estabelece um mundo de pura sucesso. Eventos de

    massas sonoras no implicam outras posteriores, no confirmam as anteriores, no incorporam objetivos nem

    estabelecem bases para previsibilidade: elas apenas fazem parte de um nvel estrutural no-hierrquico que

    sugere a experincia de um presente estendido novo, um aps o outro, indefinidamente.

    John Cage e Lejaren Hiller compuseram HPSCHD22 entre 1967 e 1969. O projeto original para 58

    canais amplificados: 51 canais com msica gerada por computador, em fitas pr-gravadas, e sete canais com

    cravos amplificados.23 A msica nas fitas foi composta usando sete escalas macrotonais igualmente divididas

    (de 5 a 11 notas na oitava, sucessivamente) e quarenta e oito escalas microtonais (de 13 a 56 notas). A escala

    temperada tradicional de 12 notas no usada. Yates (1969) ressalta que cada fita foi concebida de acordo

    com uma srie de programas: e.g., de simples notas repetidas e silncios atravessando um plano at notas

    no-repetitivas em espaos complexamente variados. Procedimentos aleatrios do antigo Livro das Muta-

    es chins (I Ching) tambm foram utilizados para compor vrias das fitas. J a msica dos cravos

    organizada da seguinte forma:

    Solo I: print-out de computador aplicado gama das 12 notas cromticas.

    Solo II: uma verso fixa (feita com auxlio do computador) da Introduo Composio de Valsas

    por Meio de Dados, trabalho atribudo a Mozart (K. Anh. C 30.01).24

    Solos III e IV: o mesmo, mas incorporando passagens de sonatas para piano, de Mozart.

    Solos V e VI: colagens fixas de msica para teclado, de Mozart at o presente.

    Solo VII: carta-branca para tocar qualquer trecho musical de Mozart.

    A cada instrumentista tambm dada permisso para tocar, alm de seu prprio solo individual, qual-

    quer parte dos demais. Notadamente, como todos os canais soam ao mesmo tempo (sem necessidade de

    21 Referindo-se pea, Ligeti aborda essas questes de maneira metafrica: Eu pensaria aqui numa superfcie de gua emque uma imagem refletida; essa superfcie , ento, agitada gradualmente, e a imagem desaparece, mas muito, muitogradualmente. Subseqentemente, a gua fica tranqila novamente, e vemos uma imagem diferente (LIGETI, 1983, p. 84).

    22 O nome advm da palavra harpsichord (cravo) reduzida aos seis caracteres usados na transmisso computacional da poca.

    23 Nonesuch Records (H-71224) lanou uma verso compacta da obra incluindo trs cravos solistas inseridos no amlgamadas 51 fitas.

    24 Esta obra consiste de um conjunto de danas rurais. Sua escrita exige que dados sejam lanados para determinar qualcompasso (de uma tabela preparada pelo compositor) deve aparecer em cada passo do processo composicional.

    Eli-Eri Moura - Manipulaes do tempo em msica uma introduo (p. 66 a 90)

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    sincronizao, pois qualquer parte pode comear a qualquer tempo), o efeito resultante o de uma enorme

    massa sonora emergindo de um caos sumamente microtonal, como o colocou Kostelanetz (1970, p. 174).

    Alguns fatores especficos operam aqui para causar essa experincia aural. Primeiro, uma sobrecarga de

    informao produzida devido ao fato de haver tantas notas seguindo umas s outras to rapidamente.

    Segundo, a mistura de muitas escalas, alm da que estamos culturalmente condicionados a assimilar, causa a

    emergncia de uma mirade de possveis relaes intervalares, aumentando, dessa maneira, a densidade de

    informao e a complexidade do objeto sonoro resultante. A conseqncia um grau extremamente baixo de

    associaes contextuais entre os eventos sonoros individuais. Os trechos de Mozart que, obviamente,

    apresentam graus elevados de associaes contextuais no interferem nesse resultado porque esto bem

    emaranhados na grande densidade de sons aglomerados mal podemos separar mais do que um ou dois

    canais dos demais (em qualquer ponto da pea), a menos que rastreemos um canal especfico e nele centra-

    lizemos propositadamente total ateno. Na verdade, as sempre presentes camadas sonoras dos canais

    tendem a se fundir, causando uma total permeabilidade de estruturas musicais, como provavelmente diria

    Ligeti. Desse modo, a percepo tende a ser focada num complexo campo de estmulos musicais, e no em

    padres meldicos e rtmicos individuais.25

    Um aspecto importante que, diferentemente das massas sonoras de Atmosphres, as de HPSCHD

    parecem completamente estticas. E so assim apesar da quantidade de mudanas de notas (implicando

    movimento) que ocorrem dentro delas, pois, como explica Rowell, muita mobilidade em msica pode fazer

    com que percamos nossas referncias e norteamento, e, dessa forma, percebamos essa msica como estase

    (ROWELL, 1983, p. 172). Os fatores que, na realidade, poderiam implementar a noo de movimento em

    uma composio de massas sonoras como mudanas de densidade, peso e cor, e variaes expressivas e

    uniformes de registro no so aplicados na pea. Diferentemente de Ligeti, que buscou, atravs da

    micropolifonia e de outras tcnicas, um modo de controlar tais mudanas e de dar sua msica a forma

    especfica que ele planejara, os compositores de HPSCHD relegaram ao acaso tais fatores. Eles recorreram

    a operaes aleatrias no somente para superpor as camadas sonoras, mas tambm para construir as

    prprias camadas, atravs do uso de programas de computador, de procedimentos aleatrios de I Ching, da

    Introduo Composio de Valsas por Meio de Dados, e de outros artifcios. As camadas individuais

    podem at exibir, por exemplo, densidades diferenciadas (resultantes dos processos aleatrios), mas o

    excessivo nmero de superposies delas leva o som global a tornar-se uniforme e no-climtico (em qual-

    quer aspecto musical), e a no apresentar descontinuidade ou contraste interno significativos, nem pontos de

    articulao, de diviso ou de referncia, nem hierarquia estrutural. Referindo-se natureza totalmente esttica

    dessa pea, Kramer comenta:

    Esta obra representa, com efeito, um gigantesco momento, sem comeo nem fim. Nesse tipo de msica, noimporta realmente se o ouvinte perde parte da execuo, j que ela pode ter sido levada a cabo por um tempomais longo ou mais curto sem realmente alterar a pea. Nenhuma poro da msica um componente essen-cial de sua totalidade (KRAMER, 1988, p. 209-210).

    25 Interessantemente, Yates (1969) refere-se a essa obra comparando-a a uma floresta. Aqueles padres que podem serdistinguidos (os mais recorrentes e redundantes) parecem rvores individuais incorporando-se a uma floresta.

    Claves n. 4 - Novembro de 2007

  • 85

    Somos levados a concordar com Kostelanetz quando ele diz que a concepo total da pea parece

    mais distintamente de Cage que de Hiller (KOSTELANETZ, 1970, p. 176), pois tais peculiaridades tornam

    essa obra uma forte representante de uma temporalidade no-linear h muito favorecida pelo primeiro. De

    fato, numa tentativa de alcanar determinados objetivos, Cage estava entre aqueles que, aplicando procedi-

    mentos aleatrios, reavivaram o dadasmo em msica. Entre seus objetivos estava a criao de uma msica

    que intensificasse nossa percepo e apreenso do som musical em si, de uma msica que sugerisse um

    estado em vez de um processo, de uma msica cujos eventos sonoros pudessem ser audveis somente como

    sensaes do presente, de uma msica at mesmo capaz de induzir o ouvinte experincia temporal de um

    presente estendido ou contnuo (intemporalidade). Seu envolvimento com uma esttica atribuindo grande

    importncia ao presente, como aquele a ser refletido nessa msica, foi uma conseqncia natural de seu

    permanente interesse no pensamento oriental, particularmente o Zen-Budismo, pois, nele, viu uma maneira

    de abrir a mente humana para uma conscincia mais intensa da existncia cotidiana, diria (GILLMOR,

    1982, p. 18).

    Por meio de eventos musicais num grau muito baixo de associaes contextuais, Cage conseguiu

    implementar em HPSCHD no apenas o efeito de massa sonora, mas tambm a noo de um modo tempo-

    ral no-linear. De fato, parafraseando Meyer, quanto menos se percebe as relaes entre as coisas, mais se

    tende a ser ciente de sua existncia como coisas em si mesmas como pura sensao. Meyer compara a

    situao a um eslaide colorido to fora de foco que, nele, as figuras se tornam irreconhecveis. O resultado

    uma conscincia intensa da experincia da cor como cor (MEYER, 1967, p. 74). Em msica, o indeferimento

    de relaes sintticas que resultam em falta de sensao de tenso/relaxamento, de base para predio, de

    objetivos e de direo leva-nos simplesmente a ouvir os sons como sons, como sensaes discretas.26

    Desse modo, aplicando uma idia de Barry, medida que a massa sonora se revela momento a momento,

    tudo se passa como se, em cada um desses momentos, o contedo do agora presente fosse substitudo por

    outro agora. Afirma ela: O efeito dessa constante substituio tem como objetivo desnudar a sucesso da

    perspectiva temporal de passado e futuro, e permitir a existncia de um ponto presente continuamente

    mutvel, que est, efetivamente, imvel (BARRY, 1990, p. 264). Como esse processo lembra o eterno

    devir de Atmosphres, pertinente assinalar que, se a afirmao de Barry fosse aplicada a essa pea, em vez

    de ponto, um termo mais apropriado para referir-se ao seu presente mutvel poderia ser momento esten-

    dido. Como visto, Atmosphres apresenta um nvel estrutural musical mais alto, formado por diferentes

    massas sonoras, cada qual representando um momento estendido do presente diferenciado. Por outro lado,

    na pea de Cage e Hiller, o presente em contnua mudana vem em forma de bits, ou pontos encontrados

    dentro de uma nica massa sonora aqui no h nenhum nvel estrutural mais alto em ao. Como pontos

    que formam uma linha, a seqncia de tais bits evoca um nico tempo indivisvel um presente eterno.

    Em contraste com Cage e Ligeti, Lutoslawski interessa-se na escrita de msica com um carter dram-

    tico, msica que, de acordo com ele, a expresso do que eu tenho para comunicar aos outros

    26 Isso est em sintonia com as famosas observaes de Cage (apud SHIMODA, 1982, p. 28) de que se pode deixar de ladoo desejo de controlar os sons, limpar a mente e comear a descobrir meios para permitir que os sons sejam eles prprios emvez de veculos para teorias elaboradas pelo homem ou expresses de sentimentos humanos.

    Eli-Eri Moura - Manipulaes do tempo em msica uma introduo (p. 66 a 90)

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    (LUTOSLAWSKI, 1968a, p. 48),27 ou, em outras palavras, a escrita de uma msica teleolgica, linear,

    com pontos de articulao bem definidos, baseada no modelo de percepo do tipo expectativa-resoluo

    ou implicao-realizao. Para ele, msica, em vez de um estado, uma ocorrncia (Idem, 1968a, p. 49;

    1970, p. 135). Em conseqncia, o compositor faz uso de massas sonoras como unidades propulsoras

    identificveis, em movimento, capazes de estabelecer graus elevados de associaes contextuais na mente

    do ouvinte, e, assim, passveis de serem direcionadas para objetivos definidos dentro da msica. Isso signi-

    fica que, na sua msica, as massas sonoras no so percebidas como um fim em si, mas como componentes

    ou veculos de um discurso musical que linear e tradicional na sua essncia.

    No mtodo de Lutoslawski para construir massas sonoras, duas tcnicas so bsicas: aleatorismo

    limitado ou conjunto Ad Libitum em combinao com agregados de 12 classes-de-notas. Na primeira,

    o compositor aplica certo grau de aleatoriedade ao aspecto rtmico da msica, fazendo com que certo

    nmero de executantes toque Ad Libitum simultaneamente as partes dos instrumentistas no tm o mesmo

    pulso nem o mesmo andamento, e no podem ser regidas , de tal forma que a clssica diviso de tempo

    dissipada (LUTOSLAWSKI, 1970, p. 145).

    O trabalho com agregados de 12 classes-de-notas um procedimento referencial de Lutoslawski para

    organizar alturas. Eles consistem basicamente em colees de 12 classes-de-notas distribudas no transcor-

    rer da msica, atravs do procedimento que o compositor chama de tratamento modal. Isto , ao estabe-

    lecer um agregado, o compositor atribui algumas de suas notas a cada um dos instrumentos do conjunto para

    serem tocadas linearmente (melodicamente) durante certo perodo de tempo.28 Devido tcnica do

    aleatorismo limitado, as partes individuais que podem conter ritmos bastante complicados no so sin-

    cronizadas no tempo umas com as outras. O resultado da combinao desses fatores que o ouvinte no

    percebe os agregados como acordes ou texturas tradicionais, mas, sim, como massas de sons, pois, da

    mesma forma que ocorre com a msica de Ligeti e de Cage, o baixo grau de associaes contextuais resul-

    tante (advindo da densidade e sobrecarga de informao) leva-o a focar o global em lugar da dimenso

    interna.

    Agora, para dar identidades definidas s massas sonoras, o compositor, analogamente a Ligeti,

    implementa-as com texturas especficas (finas ou densas, simples ou complexas, leves ou pesadas) e cores

    especficas (por meio de orquestrao, timbre). Diferentemente de Ligeti, entretanto, cujos complexos sono-

    ros so construdos na maior parte das vezes por espaos cromaticamente preenchidos, Lutoslawski emprega

    uma variada gama de cores harmnicas para caracterizar ainda mais suas massas sonoras, e, desse modo,

    ajudar a definir unidades contrastantes. Isso significa que a maneira como o compositor organiza as alturas

    no apenas dependente de quo fina ou grossa, leve ou pesada, etc. ele quer que seja a textura, mas

    tambm de quais cores harmnicas especficas ele espera da combinao dos intervalos entre essas alturas.

    Lutoslawski refere-se a essa questo afirmando que, para ele, alguns agregados de 12 classes-de-notas so

    27 Lutoslawski tambm aborda essas idias ao afirmar: [...] uma das razes pelas quais compomos msica evocar noouvinte uma srie de reaes especficas cuja seqncia no tempo de importncia essencial para o resultado final, isto ,para a percepo da composio como um todo (LUTOSLAWSKI, 1970, p. 133).

    28 De acordo com o compositor, pode ocorrer que o agregado nunca soe realmente em sua totalidade ele suplementadopor nossa memria e nossa imaginao (LUTOSLAWSKI, 1976, p. 24-25.).

    Claves n. 4 - Novembro de 2007

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    preferveis a outros particularmente aqueles cujos sons adjacentes resultam num nmero limitado de tipos

    de intervalo (em geral, de um a trs), pois aqueles contendo todos os tipos de intervalo so, na opinio do

    compositor, sem cor (LUTOSLAWSKI, 1968b, p. 109-112).

    Tais formaes so inerentemente de uma natureza esttica singular, como assinalado pelo prprio

    Lutoslawski (1986, p. 45).29 Em parte, ele resolve o problema atravs do uso do que ele chama notas

    designadas. Com esse termo, o compositor se refere quelas alturas (de um agregado de 12 classes-de-

    notas tratado modalmente) que so selecionadas para ser tocadas por um determinado instrumento

    (LUTOSLAWSKI, 1986, p. 53). O modo como ele as organiza controla, em parte, alguns procedimentos

    relacionados ao movimento das massas sonoras durante um determinado lapso de tempo. Esses procedi-

    mentos incluem: expanso e contrao, deslocamento de registro, transformao, e segmentao em feixes

    ou strands. Outro procedimento a variao da velocidade, que determinada pelo aumento ou decrscimo

    da atividade interna.

    Tendo as massas sonoras caracterizadas e implementadas com movimento (isto , transformadas em

    unidades musicais identificveis em movimento), o compositor recorre a algumas tcnicas que envolvem

    recorrncia e mudana para organiz-las no tempo. As tcnicas incluem: superposio, justaposio,

    alternao, sobreposio, fuso e repetio variada. por meio dessas tcnicas, entre outros fatores, que o

    compositor consegue estabelecer um elevado grau de associaes contextuais entre suas unidades musicais.

    interessante notar que tal abordagem muito similar ao modo como vozes/partes individuais so

    tratadas na msica tradicional, tornando possvel, como assinalado por Stucky (1981, p. 123), falar de

    homofonia e polifonia texturais (e timbrsticas). Lutoslawski refere-se a essa particularidade da sua msica

    usando a expresso tipo especial de contraponto que no um contraponto de linhas meldicas, mas de

    seus conjuntos (LUTOSLAWSKI, 1968b, p. 109). O que est implcito aqui um nvel estrutural mais alto

    de organizao rtmica e textural (Lutoslawski chama macrorritmo) formado pela distribuio no tempo das

    massas sonoras como identidades musicais distintas. Enquanto a organizao textural e rtmica desse nvel,

    de acordo com determinantes de elevado grau de associaes contextuais, materializa o discurso musical e,

    por extenso, a forma da pea, a organizao textural e rtmica do nvel mais baixo (microrritmo), de

    acordo com determinantes de baixo grau de associaes contextuais, d forma na percepo do ouvinte

    s massas sonoras.

    A pea Livre pour Orchestre (1968), de Lutoslawski particularmente o ltimo movimento (Chapitre

    Final) tpica de tal abordagem.30 Exemplo da forma com final acentuado31 do compositor, ela uma

    pea de larga escala contendo quatro movimentos tipo sute, separados por interldios muito breves, e com

    um nico clmax importante localizado muito perto do final. Como assinalado por Stucky, os trs primeiros

    movimentos funcionam mais como preldios para o quarto movimento, que o nico a estabelecer continui-

    dade de larga escala e a alcanar um clmax (STUCKY, 1981, p. 166).

    29 Uma das razes para isso que, de acordo com ele, para se obter o mximo da tcnica de conjunto Ad Libitum, ela deveser empregada sobre sees suficientemente longas, j que a obteno de liberdade completa na interpretao em adlibitum uma questo de tempo (LUTOSLAWSKI, 1986, p. 52-53).

    30 Outras peas tpicas so Jeux vnitiens, o Quarteto de Cordas, a Segunda Sinfonia, Mi-parti.

    31 Esse um termo cunhado por Stucky (1981, p. 130).

    Eli-Eri Moura - Manipulaes do tempo em msica uma introduo (p. 66 a 90)

  • 88

    Aqui, o objetivo do compositor abordar o ponto culminante o clmax e, com ele, um gesto

    musical de consumao que possa conduzir a pea a uma concluso satisfatria. Desse modo, ele necessita

    criar expectativas dramticas e implicaes para eventos posteriores. Para tanto, divide o movimento em

    estgios, de acordo com um esquema formal traado por Stucky (1981, p. 170-171). O Estgio 1 (a partir

    do nmero de ensaio 404), que se conecta com o terceiro interldio da pea, todo escrito de acordo com

    a tcnica de conjunto Ad Libitum, e serve para estabelecer uma massa sonora formada principalmente por

    longas notas tocadas de modo cantabile Stucky chama-a cantilena. Essa massa sonora se expande

    gradualmente a partir de apenas duas notas, tocadas por dois violoncelos solistas, at um completo agregado

    de 12 classes-de-notas, executado pelas cordas em tutti em 409 (mais os sopros em 410). Significativamente,

    a partir do nmero 411, Lutoslawski superpe cantilena uma massa sonora distinta, formada por notas

    curtas tocadas muito rapidamente pelos sopros. medida que a cantilena adota gradualmente para si as

    notas rpidas, tem-se a impresso de que ela invadida e, finalmente, submetida a uma transformao pela

    nova massa sonora. H dois fatores importantes aqui: um que, superpondo massas sonoras movendo-se

    em diferentes velocidades (determinadas por suas atividades internas), o compositor estabelece uma tenso

    inicial que demanda uma resoluo posterior (encontrada parcialmente na assimilao pela cantilena do carter

    vivo da massa sonora dos sopros); o outro que essas duas massas sonoras se revelaro depois como as

    unidades da msica mais marcantes em seu nvel hierrquico, e, como tal, desempenharo o papel de duas

    polaridades conflitantes, no muito diferente do papel exercido por temas contrastantes na msica tradicio-

    nal. Na verdade, a partir do Estgio 2 (no nmero 419), o compositor instaura um accelerando do macrorritmo,

    no qual novas massas sonoras, que se sucedem umas s outras em intervalos cada vez menores, so gradu-

    almente substitudas pelas duas anteriores.32 Esse accelerando continua de tal modo que, em 439 comeo

    do Estgio 3 , no mais massas sonoras, mas, sim, acordes em staccato so tocados por toda a orquestra,

    agora sob um pulso mtrico comum. Por fim, a sucesso de acordes abruptamente interrompida por longas

    pausas, que conduzem a msica a uma primeira tentativa de clmax (no nmero 443), e imediatamente

    depois, ao verdadeiro ponto culminante, afirmativo e satisfatrio, em 445 (comeo do Estgio 4).

    Interessantemente, o clmax tentativo vem na forma da massa sonora de notas rpidas, e o satisfatrio, na

    forma da cantilena (tutta forza ma cantabile), ambas tocadas Ad Libitum. A segunda massa sonora resume

    e sintetiza as cores instrumentais anteriores e se apresenta como a unidade predominante, lembrando o papel

    da tnica numa recapitulao de sonata.

    A identificao de um clmax nesse movimento possvel porque o compositor manipula suas unidades

    de massa sonora de acordo com determinantes de altos graus de associaes contextuais. Por exemplo, ele

    no as reitera simplesmente atravs de recorrncia de todos os seus parmetros (o que poderia resultar em

    total redundncia). Em vez disso, como se estivesse trabalhando com linhas meldicas num contexto de

    msica tradicional, ele as modifica combinando recorrncia e mudana de seus componentes (o que resulta

    numa taxa mdia de redundncia), sem interferir, assim, em suas identidades bsicas. Uma massa sonora que

    j est caracterizada por certo tipo de articulao ou ataque, por exemplo, pode ser reexposta apresentando

    32 Stucky compara essas massas sonoras com algumas frases das sees de desenvolvimento de Beethoven, cujos compri-mentos so progressivamente reduzidos medida que se aproximam da recapitulao (STUCKY, 1981, p.128).

    Claves n. 4 - Novembro de 2007

  • 89

    um agregado de 12 classes-de-notas diferente (portanto, apresentando uma cor harmnica distinta),33

    peculiaridades de movimento alteradas, etc. Isso no muito diferente dos motivos meldicos que so

    reexpostos numa forma variada (por meio de transposio para diferentes reas tonais, modificaes rtmi-

    cas e intervalares, etc.). Assim como a ao mtua desses motivos pode levar o ouvinte a ouvir linearmente,

    tambm a ao dialtica de massas sonoras (de acordo com os fatores mencionados) pode induzir o ouvinte

    a associ-las contextualmente e, portanto, no perceb-las como sensaes esparsas e desarticuladas, mas

    como pontos de orientao e articulao de um nvel hierrquico de estrutura musical superior. Como tal, elas

    podem implicar eventos posteriores ou confirmar os anteriores, levando o ouvinte a sentir tenso/relaxamento,

    a fazer alguma previso, assim como a perceber direo e objetivos.

    Ademais, outros fatores contextuais reforam a acumulao de momentum necessria para produzir

    o clmax em Livre. Um deles o referido accelerando do macrorritmo, em combinao com as pausas

    bruscas que surgem imediatamente antes do ponto culminante. A acelerao rtmica tradicionalmente rela-

    cionada ao surgimento de tenso porque, alm do fato de estar cineticamente associada acelerao da

    respirao e do batimento cardaco causados por ansiedade, estabelece uma condio de instabilidade e

    desvio do normativo (modificao na regularidade dos intervalos de ataque), bem como da complexidade

    (sobrecarga de informao). Em Livre, o acmulo de expectativa causado por esse processo ainda inten-

    sificado pelas pausas de interrupo visto que elas atrasam um pouco mais a iminente restaurao de estabi-

    lidade e o retorno ao normativo (uma extensa massa sonora), que chega na forma de uma estrutura reconhe-

    cida (a cantilena predominante) e, finalmente, traz um sentido de resoluo bem como um ponto climtico

    para a pea.

    Todos esses fatores fazem o ouvinte ouvir, mais do que os prprios eventos musicais, as relaes

    entre esses eventos. Para ele, eventos musicais tero significado ao apontarem para outros eventos musicais.

    Essa uma condio fundamental para a emergncia de uma temporalidade linear em msica; uma

    temporalidade que, em Livre, leva o ouvinte a perceber a msica como uma estrutura temporal fechada com

    gestos definidos de comeo, evoluo e concluso.

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    33 A cantilena (a partir de 404), por exemplo, que inicialmente apresenta um agregado de 12 notas enfatizando a classe deintervalo 2, alcana sua fase culminante (depois que os sopros se juntaram) apresentando um agregado de 12 notasconstrudo principalmente das classes de intervalos 3 e 4. Depois, no clmax bem sucedido, reaparece com um agregado de12 notas consonante, formado pelas classes de intervalos 3 e 5.

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  • 90

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