eles foram para dentro lá fora

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REPORTAGEM Eles foram para dentro lá fora Eles foram para dentro lá fora INÊS NADAIS 19/06/2015 - 00:20 Não há maneira de os contabilizar, mas os portugueses que escolheram ir fazer artes performativas no estrangeiro encheriam facilmente vários autocarros. Uma geração em jet lag existencial, que finalmente se reencontra em carne e osso (ou seja: sem ser via Facebook ou Skype) no FITEI. Há reportagens que pedem avisos prévios e esta que aqui se aproxima da casa chegada depois de quatro dias de jet lag (existencial, pelo menos, para citarmos um dos nossos sete artistas expatriados, a portuguesa no Brasil Rita Natálio) é uma delas. Para os termos a todos nestas páginas (ainda assim, sem foto de família) houve chamadas Skype de péssima qualidade e dispendiosos telefonemas internacionais, apertos de mão mulher-mulher como se estivéssemos em Berlim e atrasos que afinal eram pontualidade britânica (o iPhone é que não tinha actualizado a hora…), palavras em português que só um brasileiro entenderá e aquele irritante inglês de trabalho que se tornou língua universal. Rita Natálio: passaporte português, muitos carimbos brasileiros RITA FRANÇA

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- PÚBLICOentrevista artistas portugueses

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REPORTAGEM

Eles foram para dentro lá foraEles foram para dentro lá foraINÊS NADAIS 19/06/2015 - 00:20

Não há maneira de os contabilizar, mas os portugueses queescolheram ir fazer artes performativas no estrangeiro encheriamfacilmente vários autocarros. Uma geração em jet lag existencial, quefinalmente se reencontra em carne e osso (ou seja: sem ser viaFacebook ou Skype) no FITEI.

Há reportagens que pedem avisos prévios e esta que aqui se aproximada casa chegada depois de quatro dias de jet lag (existencial, pelomenos, para citarmos um dos nossos sete artistas expatriados, aportuguesa no Brasil Rita Natálio) é uma delas. Para os termos a todosnestas páginas (ainda assim, sem foto de família) houve chamadasSkype de péssima qualidade e dispendiosos telefonemas internacionais,apertos de mão mulher-mulher como se estivéssemos em Berlim eatrasos que afinal eram pontualidade britânica (o iPhone é que nãotinha actualizado a hora…), palavras em português que só um brasileiroentenderá e aquele irritante inglês de trabalho que se tornou línguauniversal.

Rita Natálio: passaporte português, muitos carimbos brasileiros RITA FRANÇA

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Nem tudo, no entanto, se perdeu na tradução: segue-se uma amostra,pequena mas representativa, de um fenómeno que anos de Erasmus,viagens low-cost, bolsas Gulbenkian, apoios públicos àinternacionalização e uma recessão profunda vulgarizaram, o daemigração (alguns preferem dizer nomadismo) nas artes performativas.

À falta de estatísticas especializadas, não há maneira de contabilizar osportugueses a fazer teatro, dança ou performance no estrangeiro.Gonçalo Amorim, o novo director do FITEI – Festival Internacional deTeatro de Expressão Ibérica, recebeu cerca de 80 respostas quandolançou um open-call destinado a mapear estes expatriados a que a 38.ªedição em curso até domingo dedicou um módulo (enquanto, no mundoreal, um primeiro-ministro garantia nunca ter encorajado os jovens aemigrar…). Uma verdadeira operação de repatriamento – em carne eosso, depois de muitas horas a inventariá-lo no Skype – de umpatrimónio da diáspora, e portanto maioritariamente desconhecido emPortugal, o que não quer dizer desincentivado. Dos seis portugueses queintegram o ciclo Expatriados, só um não recebeu apoio público ouprivado para sair: três tiveram bolsas de estudo da Fundação CalousteGulbenkian (FCG), uma fez o INOV-ART (o programa de estágiosinternacionais da DGArtes), e outra passou de uma formação apoiadapelo INOV-ART para um mestrado apoiado pela Gulbenkian.

Os números da FCG e da DGArtes permitem uma aproximação àdimensão destes movimentos.

De 1957 a 2014, a Gulbenkian apoiou 621 bolseiros nas áreas do teatro,da dança, das artes cénicas e da cenografia (arquitectura/design edesenho/pintura/escultura absorveram mais de 50% do investimento,com mais de 2.800 bolsas no mesmo período). No total das suas trêsedições (2009, 2010 e 2012), o INOV-ART atribuiu 82 bolsas na áreadas artes performativas e cruzamentos disciplinares, com a Europa(sobretudo Espanha, Alemanha e Reino Unido) e, fora dela, o Brasil adominarem a lista de destinos preferenciais. De todos os dadosdisponíveis, porém, este que consta do relatório da última edição é omais sugestivo: 57% dos bolseiros optaram por não voltar a Portugal.

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A casa às costasSe uma das perguntas dointerrogatório a que Ana Mendes

(http://www.anamendes.com/performance/self-portrait/),dramaturga, se submete em Self-Portrait – o trabalho que veioapresentar no FITEI (http://www.fitei.com/?opt=fitei&id=programa)em modo tão relâmpago que a entrevista doÍpsilon teve de ser feita em duas partes, metade ao vivo no Porto,metade por Skype já com ela em Viena – fosse “onde é que vives”, nãohaveria resposta. Ou pelo menos não haveria só uma. “A minha sedefiscal é em Londres, mas viajo bastante entre a Alemanha, a Áustria e aSuíça”, diz. Esteve uma hora à nossa espera porque não chegou aacertar o relógio e é como se continuasse na Áustria, onde acabou decomissariar uma exposição e vai começar a ensaiar a sua próxima peçacom uma finlandesa e um suíço. A verdade é que “na Europa, éimpossível sobreviver trabalhando num só país”, e “então é sempre este

(http://imagens1.publico.pt/imagens.aspx/936061?tp=UH&db=IMAGENS)

Jorge Gonçalves: Porto-Berlim, Berlim-Porto, o movimento pendular é constantedesde 2010 RITA FRANÇA

Participo numa vida culturalglobalizada que é uma bolha.Não pertenço a lado nenhum

e pertenço a todo o lado

Jorge Gonçalves

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problema das viagens, do dinheiro, dos encontros e dos desencontros”.Isso e o problema de “já não saber como é que se cumprimenta emPortugal”.

No caso de Ana, o estrangeiro começou com uma bolsa para ummestrado na Goldsmiths, em 2010, e depois não acabou. Foi “um anoluxuoso”, em que pôde “ler e escrever a tempo inteiro” – um luxo a quecontinua a dar-se porque como ex-aluna mantém o acesso aos estúdiosda universidade e ao cartão da biblioteca. “Para a minha condição deexpatriada foi fundamental, porque um dos problemas de Londres é afalta de espaço para ensaiar e trabalhar. E tudo o que me aconteceu aseguir aconteceu porque estava em Londres, onde a competição éterrível, mesmo a matar, mas também há uma abertura que te permiteexperimentar. Não interessa que tenhas estudado teatro e agora estejasa fazer fotografia, ninguém te diz que não podes”, explica. Foi o que lheaconteceu depois de mais uma bolsa, desta vez para trabalhar emWeimar, onde paralelamente pôde frequentar o curso de fotografia daBauhaus. Estava redefinido o seu território, um eixo entre Londres e aEuropa Central que é particularmente receptivo à consistência de umpercurso (“Mesmo quando gostam muito, querem saber qual é a razãopor trás, o que vem a seguir”) e ao trabalho “político” em que seespecializou, depois de uma primeira fase de tentativa e erro, ainda emPortugal, no cinema de animação e na escrita para teatro (últimosdesenvolvimentos, em que aparecem mais nítidas as questões pós-coloniais: Map Series, em que costura ao vivo as fronteiras dos impérioscoloniais dos séculos XIX-XX; e The People’s Museum, em quefotografa imigrantes no Museu Britânico e a peça que cada um delesgostaria que fosse devolvida ao país de origem).

É por aí que Rita Natálio tem andado desde que chegou a São Paulo(também com uma bolsa da Gulbenkian para um mestrado): MuseuEncantador (http://museuencantador.com/doadores/rita-natalio/),que hoje apresenta na Mala Voadora, às 18h, é o seu contributo para areconstrução, a meias com a encenadora carioca Joana Levi, doencontro de Portugal com o Brasil, do colonizador com o índio, umcontributo que pretende “resgatar a memória de uma história comumque se tornou quase fantasmagórica, não para curar uma ferida masperceber como ainda nos afecta”.

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Sendo uma ficção colectiva – 20 artistas dos dois países foramconvidados a doar objectos –, Museu Encantador é também a históriareal do encontro de Rita e Joana, com quem trabalha desde 2012. Naverdade, desde 2010 que a ideia de sair de Portugal se punhaperemptoriamente: “A dança e a performance já têm uma lógica demercado que incita à internacionalização; os artistas são muitoconvocados a apresentar-se lá fora, até para sobreviverem, e eu viajeimuito com os coreógrafos para os quais fiz dramaturgia. Mas quandochegou a crise e as artes começaram a ficar sucateadas, como se diz noBrasil, decidi sair.” Tinha com o Brasil afinidades electivas, umahistória de trabalho (com a performer Marcela Levi), uma agenda decontactos. “Vivo entre o Rio e São Paulo, embora não tenha deixado deter projectos cá. Por isso é que o jet lag é existencial. Com uma filha queacabou de nascer, tenho de criar casa onde quer que vá; andoliteralmente com a casa às costas.”

Exactamente por isso – “São Paulo é demasiado agitado, poluído,grande e difícil para constituir família” –, está “num momento detransição”, sem saber se volta a Portugal ou recomeça do zero noutrosítio. O que a tem feito ficar, “embora o sistema de apoio às artes noBrasil seja muito mais neo-liberal” – “Tens de dar muito dinheiro, fazerpublicidade às empresas ou estar a cumprir funções do Estado, como aeducação” –, é a diversidade nas fontes de financiamento: “Aqui só tensa DGArtes. Lá tens apoios federais, regionais, municipais, de empresas,de fundações – então não são sempre os mesmos que ganham.” Edepois tudo – apesar “do abismo social, da polícia a bater a torto e adireito, da guerra civil no Rio” – parece “menos difícil e menosdepressivo”. Resumindo: “Voltar é uma possibilidade se não tiver detrabalhar cá. Não sei se estou disposta a procurar apoios aqui quandosei que tens de pôr em campo capacidades pessoais e sociais que estãopara além do teu trabalho como artista, já para não falar na necessidadede repetir, sempre que saem os resultados de um concurso da DGArtes(e os últimos foram vergonhosos), que os artistas são importantes – àsvezes parece melhor abrir um café. E depois eu lembro-me como era.Para ganhar algum dinheiro tinha de fazer 400 projectos e não podia tervida própria. No Brasil consigo trabalhar, ser paga e ir à praia – sem mesentir culpada por isso.”

Raquel André (http://raquelandretiagocadete.blogspot.pt/), actriz,também foi ficando: chegou ao Rio para “um estágio de cinco meses naCia. dos Atores que se transformou em quatro anos” de permanência.

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“Quando cheguei ao fim o Ministério da Cultura em Portugal tinha sidoextinto e as coisas estavam objectivamente a piorar. Ao mesmo tempo,começava a sentir-me integrada no meio artístico e queria ver-menoutros contextos. No último ano em Portugal basicamente tinha feitotelenovelas e séries: se voltasse, era isso que me esperava”, conta-nos aoito mil quilómetros e quatro fusos horários de distância. Chega hoje aoPorto para apresentar Nós somos o lugar que nos faz falta (domingo, às18h, nos Maus Hábitos), uma conversa pública com o tambémexpatriado no Brasil António Pedro Lopes, e fica por três meses, aconstruir a peça com que abrirá a 11 de Setembro a primeira temporadade Tiago Rodrigues no Teatro Nacional D. Maria II. Colecção deAmantes, em que marca encontros de uma hora com desconhecidos eficciona com eles uma intimidade (vai em 38 pessoas; quer chegar às75), é o tipo de trabalho que não lhe ocorreria antes da experiênciaemigrante: “Quando estás fora tens de ponderar como é que teapresentas, como é que entras em contacto com um desconhecido,como é que crias intimidade. No Brasil a questão complica-se porque acultura e os códigos são muito parecidos, mas as diferenças são radicais.A língua então é todo um problema: o meu português aqui estácompletamente errado. Falar noutra língua teria sido menos cansativodo que falar a minha de outra maneira.”

Os três próximos meses serão operíodo mais longo que Raquelpassa em Portugal desde que saiu,e isso “assusta”: “Não sei seLisboa ainda é o meu lugar – nãosei mais qual é o meu lugar.” OBrasil, admite, talvez também nãoseja, embora lhe tenha permitidofazer sete espectáculos em trêsanos, além de curadoria numteatro, o Galpão Gamboa, eassistência para “um encenadorincrível”, Marco Nanini. Tal comoRita, que depende das viagens

(caras) a Portugal para ver o teatro e a dança que verdadeiramente a“alimentam” – “Este ano vim menos a Portugal e isso faz diferença,parece que embrutece” –, Raquel sente falta da experimentaçãocongénita das artes performativas europeias: “Foi uma dificuldade

Voltar é uma possibilidade senão tiver de trabalhar cá (...).

Eu lembro-me como era.Para ganhar algum dinheirotinha de fazer 400 projectose não podia ter vida própria.No Brasil consigo trabalhar,

ser paga e ir à praia — sem mesentir culpada por isso

Rita Natálio

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encontrar pares com quem pudesse trabalhar, sobretudo no teatro…Está muito ligado à narrativa, ao drama; de uma sala de espectáculos aspessoas esperam uma história com princípio, meio e fim, não umposicionamento político. Não é por acaso que o Brasil é a maiorempresa mundial de produção de novelas.”

São prós e contras a pesar nos próximos meses: “Por coincidência, omestrado acaba em Março, o contrato de arrendamento acaba emMarço, o visto acaba em Março. Poder fazer o meu trabalho emqualquer parte do mundo é uma sensação muito boa, mas tambémpavorosa: se nunca passo três meses seguidos na mesma cidade, como éque garanto que o meu trabalho tem testemunhas?”

Daqui até Março, a vida continua on-line: “No meu computador, asjanelas do Word, do YouTube, do Facebook e do Skype estão sempreabertas. Tornaram-se ferramentas de sobrevivência. Aquele toque doSkype? Já é como ouvir alguém a chamar-me na rua.”

Entretanto, na Europa“Desculpa, eu agora patino muito entre o português e o inglês”, avisaJorge Gonçalves (http://jorgegoncalves.org/), bailarino, coreógrafo,performer e director da Mezzanine, o motivo que o levou a Berlim,onde vive desde 2010. Um ano antes, tinha fundado a plataforma comAna Rocha; quando ela ganhou uma bolsa INOV-ART acompanhou-apor uns nove meses que se prolongaram até hoje “porque se criaramcumplicidades artísticas que tornaram quase obrigatório ficar e pensara vida internacionalmente, entre Berlim e o Porto”. As condiçõesalteraram-se substancialmente com o fim dos anos Rui Rio e areabertura do Teatro Municipal Rivoli (a Mezzanine integra, de resto, acandidatura com que a Câmara Municipal do Porto ganhou um apoiotripartido da DGArtes), mas é preciso lembrar que há cinco anos,sobretudo na dança contemporânea, a cidade era “quase um desertocultural” onde “o fosso entre artistas estabelecidos e artistas emergentestornava difícil reivindicar um lugar”.

A mudança do Porto é convidativa, mas para já Jorge mantém as chavesdas suas duas casas paralelas. Na comunidade de Berlim encontrou umfeedback (e condições de trabalho, a começar pela oferta de estúdios)que aqui nunca teve, e interessa-lhe explorar essas cumplicidades naMezzanine, que em breve organizará no Porto uma residência deartistas berlinenses. A verdade é que a vida na capital alemã também

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começa a complicar-se: “Está excessivamente povoada de artistas e jánão há condições financeiras para todos, instalou-se a precariedade. Aomesmo tempo, sinto-me isolado porque não participo nas políticas dacidade: participo numa vida cultural globalizada que é uma espécie debolha. É comum a esta geração que está sempre a viajar: não pertenço alado nenhum e pertenço a todo o lado. Dá muito mais trabalho manteras relações profissionais e de amizade.”

(http://imagens2.publico.pt/imagens.aspx/936062?tp=UH&db=IMAGENS)

Darr Tah Lei, islandesa: é uma das ficções que compõem o singular projecto deinvestigação de Sílvia Pereira RITA FRANÇA

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O FITEI, onde apresentou o solo A Suspended Gesture , foi umaoportunidade para contrariar essa tendência: “É impossível pertencer àcomunidade artística portuguesa, mesmo a expatriada. Em Berlimtrabalho muito com um coreógrafo de Singapura e com umaencenadora e artista visual da Noruega. E em Portugal já não me

(http://imagens4.publico.pt/imagens.aspx/936064?tp=UH&db=IMAGENS)

Nuno Lucas passou por Barcelona, Berlim, Montpellier, Paris RITA FRANÇA

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apresentava desde 2011, portanto ninguém sabe o que estou a fazer, emque nível de discurso e de contexto me encontro.” Em contrapartida, oeixo Berlim-Bruxelas-Amesterdão, “à volta do qual gira a economia dasartes performativas” – e do qual o Porto “está muito afastado”,piorando o acesso “a fundos, apoios, meios” –, indiferencia, ao forçar osartistas a entrarem no circuito da black box e a investirem em trabalhostotalmente independentes do contexto em que são apresentados (e daspessoas para quem são apresentados): “As condições de produção e derecepção são sempre iguais. Procuro contrariar esse nivelamento,dirigindo-me directamente ao espectador, e dando-lhe um papel activonas minhas ficções.”

Nuno Lucas (http://nunolucas.blogspot.pt/), que passou por Barcelona,Berlim e Montpellier (aqui com uma bolsa da Gulbenkian para umaformação no Centre Choréographique National) antes de se fixar emParis, também sente falta desse contacto pessoal, mas a outro nível:“Lisboa é das cidades mais violentas do mundo para um artistaportuguês apresentar trabalho. Há uma grande exigência, por vezesdesmesurada. E depois há isto: se faço um espectáculo em Lisboaninguém me diz nada a seguir porque as pessoas vão como para umjogo de futebol, em que têm de estar a favor ou contra; na Bélgica ou naAlemanha as pessoas não têm medo de discutir o teu trabalho, mesmoque não tenham gostado.” Desde que saiu das Caldas da Rainha para irestudar Economia em Lisboa e se iniciou como intérprete com ocoreógrafo Miguel Pereira, está habituado a estar entre dois mundos:hoje é um performer e criador a meio caminho entre o teatro e a dança,entre Portugal e França, tanto que a meio da entrevista se sente “aestrangeirar” (“Houve situações em que já não sabia falar nenhumalíngua, nem sequer o português, e aí é assustador porque te sentes aperder-te, a afastar-te da tua história”).

Para quem gosta de se pôr constantemente “numa zona dedesconforto”, Paris já se tornou demasiado confortável: “Tenho tidotrabalho com o [encenador] Joris Lacoste e há uma comunidade deartistas com quem quero colaborar. França deve ser o único lugar daEuropa onde é possível ter uma carreira sem precisar de saltitar de paísem país; Portugal é o oposto, um engonhanço, e eu não queria estarlimitado a fazer uma peça por ano: em França, só num ano sou capaz deestar 50 vezes em palco, aqui a tournée mais simpática que fiz teve novedatas.” De resto, em Portugal sente-se particularmente bloqueado (enão é só porque a luta pré-histórica pela defesa dos apoios públicos à

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criação artística continua, sem fim à vista): “Aqui eu podia serintérprete mas não criador: preciso de uma distância que também éfísica para conseguir manifestar-me.”

Mais ou menos o contrário de Hugo Torres – o único que não integra ociclo Expatriados, embora também esteja no FITEI com a suacompanhia galega, a Voadora, que hoje apresenta Waltz no TeatroMunicipal Rivoli, às 21h30. Depois de muitos anos a trabalharregularmente como actor com o Trigo Limpo, de Tondela, e o TeatroNacional São João, no Porto, mudou-se para Santiago de Compostelaporque foi aí que encontrou a pessoa com quem queria dividir a vida e otrabalho. Fundou a Voadora em 2007 com Marta Pazos e José Díaz; vaia caminho da 11.ª produção, e sempre com um potencial de circulaçãoque em Portugal, pela exiguidade do país e do mercado associado àlíngua, era impensável: é “uma diferença abissal”, com várias dezenasde apresentações por cada espectáculo (e a Voadora ainda nem sequerconseguiu entrar na América Latina…), apesar de mesmo fora daquiHugo ter levado com a crise em cima. “Quando cheguei, havia umaestrutura de apoio montada e de que também beneficiámos. É claro quetudo isso desapareceu: quando todo a gente estava a deixar detrabalhar, nós estávamos a começar”, diz-nos ao telefone (aqui o Skypedo Ípsilon não cooperou e voltámos à idade da pedra, financeiramenteimpraticável, das chamadas internacionais).

Com crise ou sem, toda a lógica do apoio às artes em Espanha é umpouco from outer space para um português, o que finalmente tornainteligível o facto de Hugo Torres chamar à Voadora empresa (e nãocompanhia). “Aqui tens de montar uma empresa para poderescandidatar-te aos apoios públicos. O sistema é declaradamenteempresarial: o próprio nome da instituição que distribui os dinheiros,Axencia Galega das Industrias Culturais, diz tudo. E não há apoiosanuais ou plurianuais: é sempre projecto a projecto, e com montantesque não ultrapassam os 60 mil euros, o que nos obriga a diversificar asfontes de financiamento. A Tempestade, que vamos apresentar emJulho no Festival de Almada, fizemos com crowfunding.”

Alter-egos e ursos polaresPor estar em Espanha há tantos anos, Hugo já está “meio aculturado”:“Em Portugal sentia-me sempre fora da maneira como estava em palco.Aqui o que faço em palco é mais eu – se calhar é só uma questão desentido de humor, o meu é muito espanhol.” Com Sílvia Pereira, cuja

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pesquisa artística mais recente implica uma heteronímia em cadeiacomo statement de recusa da lógica autoral do mercado da arte (umresumo dessa pesquisa, OMNIADVERSUS – self-actualising thesubject, pôde ver-se no FITEI), dá-se um processo infinitamente maiscomplexo: não tem propriamente um corpo de trabalho, mas váriosalter-egos com um corpo de trabalho autónomo, e absolutamentepessoal, cada um. Onde é que isso faz dela uma artista expatriada? VeraSuchankova, a sua primeira encarnação, criada acidentalmente paraconcorrer a um prémio, ainda antes de este processo se tornar umprograma, é eslovaca (como todas, tem uma biografia: fez 38 anos noúltimo sábado); Darr Tah Lei, a segunda, é islandesa; Urssa Severa, aterceira, é russa (e tem licença de porte de arma, porque já andou peloPólo Norte e todo o cuidado é pouco com os ursos polares); Jun O, amais recente, é japonesa.

Em todos os casos, Sílvia obrigou-se a um rigoroso processo de imersão,e a uma disponibilidade permanente para a viagem (não tem uma base,tem várias: Alemanha, Islândia, Bélgica, Portugal…): as artistas vivemnos lugares, falam as línguas, e as suas obras são de facto o produto decircunstâncias biográficas – e geográficas – particulares. “Com a Verapercebi que achava piada à ideia de responder a uma personagem. Derepente não tinha passado e podia continuar na vida real a questões queemergiam daquela ficção de biografia. Era estar a viver uma espécie deperformance acidental – poder ser uma pessoa diferente num lugardiferente. Sempre tive uma ânsia voraz de pertencer a outras culturas –não tanto de visitar, mas de me tornar”, explica.

A evolução da pesquisa transformou esse act no seu próprio corpo detrabalho – um corpo de trabalho que leva à letra a sua primeiraexperiência como expatriada, quando ainda estudante pediutransferência para Barcelona, onde o curso de Escultura quefrequentava passou, depois de uma reformulação, a chamar-seComportamentos Escultóricos. “O que eu faço hoje é exactamente isso.Se calhar nem os professores do curso levaram alguma vez o tópico tãoa sério.” Nisso, e ao contrário dos outros entrevistados, Sílvia é umaexpatriada à força: “O meu projecto artístico desenvolveu-se de umamaneira que torna quase impreterível a presença nos contextos: são elesque vão criando estas esculturas de seres. Preciso de chegar aos lugares,de criar relações. É das coisas que mais me fascinam neste processo: ofacto de me lançar ao acidente da vida.” O que talvez seja outra boamaneira de dizer: emigrante.

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