elementos históricos e filosóficos para a crítica da epidemiologia

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ATUALIZAÇÃO/CURRENT COMMENTS Elementos históricos e filosóficos para a crítica da epidemiologia* Historical and Philosophical bases for a criticism of epidemiology José Ricardo de C. M. Ayres** AYRES, J.R. de C.M. Elementos históricos e filosóficos para a crítica da epidemiologia. Rev. Saúde Pública, 27: 135-44, 1993. Objetivou-se identificar as bases históricas e filosóficas da epidemiologia, a fim de enriquecer a reflexão sobre a inserção dessa ciência no conjunto das práticas de saúde. Utilizando-se informações historiográficas extraídas de textos consagrados na literatura especializada, e buscando-se subsídios teóricos e metodológicos na produção da epistemologia histórica francesa, procede-se a uma aproximação epistemológica apoiada ético-filosoficamente na crítica da razão moderna desenvolvida pela chamada Escola de Frankfurt. Destaca-se a noção abstrata de "meio" na tradução teórica do "espaço público da saúde" como a base contraditória da conformação instrumental do conhecimento epidemiológico. Com base nesta noção ampliou-se, de forma progressiva, a possibilidade de conhecimento e intervenção sobre os fenômenos sanitários, mas, ao mesmo tempo, limitou-se a objetivação do caráter propriamente público desses fenômenos. Descritores: Epidemiologia, história. Métodos epidemiológicos. Filosofia. Medicina Social. * Apresentado ao II Congresso Brasileiro de Epidemiolo- gia, Belo Horizonte, 1992; baseado na Dissertação de Mestrado "A epidemiologia e o projeto emancipador nas práticas de saúde: a crítica da razão instrumental na constituição histórica da ciência epidemiológica", 1991, apresentada à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. ** Centro de Saúde Escola Samuel B. Pessoa (C.S.Escola do Butantã), Departamento de Medicina Preventiva da FMUSP - São Paulo, SP - Brasil. Separatas/ Reprints : J.R. de C.M, Ayres - Av. Dr. Vital Brasil, 1490 - Butantã - 05503-000 - São Paulo, SP - Brasil Edição subvencionada pela FAPESP. Processo Medicina 93/ 0208-5. Introdução A epidemiologia tem vivido, nos últimos anos, ricos questionamentos acerca de suas bases epistemológicas, isto é, seus pressupostos teórico-filosóficos, sua metodologia científica, suas técnicas de investigação, entre outros. Adje- tivos como epidemiologia "clínica", epidemiolo- gia "social", epidemiologia "crítica" indicam a existência de compreensões diversas já com relação à própria identidade científica deste sa- ber. Chega-se, em certos casos, à suspeição acer- ca da cientificidade mesma da epidemiologia - seria ela uma ciência, com seu objeto próprio, ou apenas um método científico, uma forma sistemática de investigar objetos definidos por outras ciências? Formando o substrato desses questionamentos mais amplos, uma série de aspectos particulares ocupa epidemiologistas e profissionais afins: quais os modelos determinísticos mais adequados à explicação de fenômenos de natureza epidemio- lógica, quais os critérios apropriados de validação do conhecimento, quais os melhores desenhos de pesquisa, quais as técnicas mais eficazes para a apreensão da realidade epidemiológica? As questões acima poderiam parecer dizer res- peito apenas à rotina de trabalho de um círculo es- pecífico de cientistas, sendo de interesse meto- dológico em senso estrito, mas a verdade é que, por trás da aparência exclusivamente operacional dessas questões, estão aspectos mais amplos da vida social. De fato, é possível relacionar a pluralidade e as tensões que vêm marcando as diversas propo- sições no debate travado hoje na epidemiologia com profundas contradições geradas em esferas mais abrangentes das práticas sociais, ainda que, algumas vezes, tome-se difícil reconhecer estas contradições nos termos em que são retraduzidas no plano epistemológico. Grande parte dos dife- rentes problemas e respostas que vêm sendo for- mulados ao longo do desenvolvimento da epi- demiologia c pelos sucessos e fracassos, consensos e conflitos, chances e obstáculos na realização de necessi- dades de saúde dos diversos indivíduos e grupos humanos vivendo em sociedade. É a partir desta perspectiva que se entende aqui a relevância e o vigor do debate episte-

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ATUALIZAÇÃO/CURRENT COMMENTS

Elementos históricos e filosóficos para a crítica da epidemiologia*

Historical and Philosophical bases for a criticism of epidemiologyJosé Ricardo de C. M. Ayres**

AYRES, J.R. de C.M. Elementos históricos e filosóficos para a crítica da epidemiologia. Rev.Saúde Pública, 27: 135-44, 1993. Objetivou-se identificar as bases históricas e filosóficas daepidemiologia, a fim de enriquecer a reflexão sobre a inserção dessa ciência no conjunto daspráticas de saúde. Utilizando-se informações historiográficas extraídas de textos consagrados naliteratura especializada, e buscando-se subsídios teóricos e metodológicos na produção daepistemologia histórica francesa, procede-se a uma aproximação epistemológica apoiadaético-filosoficamente na crítica da razão moderna desenvolvida pela chamada Escola de Frankfurt.Destaca-se a noção abstrata de "meio" na tradução teórica do "espaço público da saúde" como abase contraditória da conformação instrumental do conhecimento epidemiológico. Com base nestanoção ampliou-se, de forma progressiva, a possibilidade de conhecimento e intervenção sobre osfenômenos sanitários, mas, ao mesmo tempo, limitou-se a objetivação do caráter propriamentepúblico desses fenômenos.

Descritores: Epidemiologia, história. Métodos epidemiológicos. Filosofia. Medicina Social.

* Apresentado ao II Congresso Brasileiro de Epidemiolo-gia, Belo Horizonte, 1992; baseado na Dissertação de

Mestrado "A epidemiologia e o projeto emancipadornas práticas de saúde: a crítica da razão instrumental naconstituição histórica da ciência epidemiológica", 1991,apresentada à Faculdade de Medicina da Universidadede São Paulo.

** Centro de Saúde Escola Samuel B. Pessoa (C.S.Escolado Butantã), Departamento de Medicina Preventiva daFMUSP - São Paulo, SP - Brasil.

Separatas/Reprints: J.R. de C.M, Ayres - Av. Dr. Vital Brasil,1490 - Butantã - 05503-000 - São Paulo,SP - Brasil

Edição subvencionada pela FAPESP. Processo Medicina 93/0208-5.

Introdução

A epidemiologia tem vivido, nos últimosanos, ricos questionamentos acerca de suas basesepistemológicas, isto é, seus pressupostosteórico-filosóficos, sua metodologia científica,suas técnicas de investigação, entre outros. Adje-tivos como epidemiologia "clínica", epidemiolo-

gia "social", epidemiologia "crítica" indicam aexistência de compreensões diversas já comrelação à própria identidade científica deste sa-ber. Chega-se, em certos casos, à suspeição acer-ca da cientificidade mesma da epidemiologia -seria ela uma ciência, com seu objeto próprio,ou apenas um método científico, uma formasistemática de investigar objetos definidos poroutras ciências?

Formando o substrato desses questionamentosmais amplos, uma série de aspectos particularesocupa epidemiologistas e profissionais afins: quaisos modelos determinísticos mais adequados àexplicação de fenômenos de natureza epidemio-lógica, quais os critérios apropriados de validaçãodo conhecimento, quais os melhores desenhos depesquisa, quais as técnicas mais eficazes para aapreensão da realidade epidemiológica?

As questões acima poderiam parecer dizer res-peito apenas à rotina de trabalho de um círculo es-pecífico de cientistas, sendo de interesse meto-dológico em senso estrito, mas a verdade é que,por trás da aparência exclusivamente operacionaldessas questões, estão aspectos mais amplos davida social.

De fato, é possível relacionar a pluralidade eas tensões que vêm marcando as diversas propo-sições no debate travado hoje na epidemiologiacom profundas contradições geradas em esferasmais abrangentes das práticas sociais, ainda que,algumas vezes, tome-se difícil reconhecer estascontradições nos termos em que são retraduzidasno plano epistemológico. Grande parte dos dife-rentes problemas e respostas que vêm sendo for-mulados ao longo do desenvolvimento da epi-

demiologia como ciência pode ser explicadapelos sucessos e fracassos, consensos e conflitos,chances e obstáculos na realização de necessi-dades de saúde dos diversos indivíduos e gruposhumanos vivendo em sociedade.

É a partir desta perspectiva que se entendeaqui a relevância e o vigor do debate episte-

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mológico na epidemiologia. É esta perspectivaque, por isso mesmo, será adotada nesta re-flexão.

A concepção que justifica e fundamenta o pre-sente trabalho é a de que os impasses epistemo-lógicos, acima indicados, são amplamente deter-minados pela complexidade e pelo carátercontraditório das necessidades sociais (individu-ais e coletivas) que foram constituindo, historica-mente, a saúde pública como campo de práticas.Na mesma proporção e sentido em que se vão tor-nando fundamentais para a vida humana na socie-dade moderna, tais necessidades determinam, deformas menos ou mais mediadas, as diversas pro-posições abstratas que caracterizam a epidemiolo-

gia como ciência (e, enquanto tal, como, tambémela, uma esfera de necessidades e práticas do cam-po da saúde pública).

Será, portanto, de grande interesse examinaros dilemas epistemológicos da epidemiologiasem a habitual restrição à dimensão estritamentelógico-formal. Abordar as questões teórico-metodológicas da epidemiologia no contextomais abrangente de suas articulações práticaspode mostrar-se um recurso necessário para asuperação da "crise de identidade" apontada noinício deste texto. Só o resgate da identidadeprática da epidemiologia parece, hoje, capaz delevá-la a superar o aparente paradoxo de verobscurecer-se sua identidade científica e esva-ziar-se a organicidade de seu corpo teórico namesma velocidade em que se multiplicam e so-fisticam seus recursos técnicos de investigação eanálise.

A partir do posicionamento ético favorável aoadensamento teórico de uma "ciência da saúdepública", e somando esforços ao compromissotecnopolítico da medicina social com a sua cons-trução efetiva, torna-se objetivo central do pre-sente trabalho a investigação da constituiçãohistórica das bases empíricas e racionais de umcampo propriamente epidemiológico de objetivi-dade científica. Procurar-se-á resgatar as raízesdas feições atuais da epidemiologia e de suascorrespondentes contradições. Para isso, serãodetectadas as inflexões mais importantes nahistória epistemológica de um saber de cortecientífico acerca dos fenômenos coletivos dasaúde, buscando relacioná-las às necessidades desaúde pública, nos contextos sociopolíticos emque ocorreram. Espera-se, desta maneira, contri-buir para a expansão do horizonte crítico das di-versas proposições teóricas e metodológicas deconstrução desse saber tão estratégico para aemancipação igualitária dos homens no camposanitário.

Razão tecnológica e o espaço público dasaúde

Apesar da historiografia tradicional ir, muitasvezes, buscar as origens da epidemiologia na An-tigüidade Clássica, no trabalho "Ares, águas e lu-gares", de Hipócrates28, não parece adequado lo-calizar nessa obra as bases de uma objetividadepropriamente epidemiológica. O recurso ao quadroteórico da epistemologia histórica francesa, deCanguilhem e Foucault, deixa claro o equívocodesta genealogia clássica.

Como afirma Canguilhem12, "o passado deuma ciência não se confunde com essa mesmaciência no seu passado". Assim, se a obra deHipócrates está, efetivamente, entre as primeirasreferências à relação de aspectos externos aoorganismo individual com fenômenos de saúde edoença, a análise dos conteúdos conceituais e daestrutura discursiva da mesma aponta desconti-nuidades importantes com a construção teóricaque caracteriza a epidemiologia. De tal magni-tude e relevância são essas descontinuidades quenão se justifica, senão por razões cuja especu-lação foge aos propósitos do presente trabalho,buscar na ciência e na conjuntura hipocráticas asbases da construção do campo objetivo da epi-demiologia.

A obra de Hipócrates28 caracteriza-se, sintetica-mente, por três aspectos básicos: 1) os elementos"externos" ao organismo humano são compreendi-dos como portadores de qualidades essenciais; 2)as qualidades dos elementos externos são depreen-didas "a priori" segundo processos dedutivosabstratos; 3) o conhecimento dos mesmos temcomo finalidade a compreensão mais adequada dasingularidade de cada doente a ser tratado pelomédico grego.

Essas características do conhecimento hi-pocrático e de sua orientação prática deixam clarasas descontinuidades acima referidas.

O objeto epidemiológico, tal como concebidohoje, está longe de ser apreendido por intermédiode qualidades essenciais: cada fenômeno epide-miológico tem seu significado determinado pelascondições objetivas de sua apreensão, e só nessascondições adquire objetividade. Sua caracteri-zação, por outro lado, não procede de mecanis-mos dedutivos abstratos, mas é configurada a par-tir de dados indutivamente construídos, isto é, deconhecimentos empíricos acumulados pela expe-riência sensível, mesmo quando dedutivamenteintuídos. Por fim, ainda que possa concorrer paraações de caráter individual, a inferência epide-miológica refere-se substantivamente a coletivos,a grupos de indivíduos, não podendo, senão àforça de artifícios nem sempre legítimos, ser

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tomada como expressão objetiva de condições hu-manas singulares.

Um objeto de conhecimento assim configuradosó tem, verdadeiramente, condições empíricas elógicas para plasmar-se muito tempo depois daAntigüidade Clássica. Como questão prática ecomo construção abstrata, o objeto da epidemiolo-

gia é produto da Modernidade.Nesse sentido, dois movimentos precisam ser

considerados quando se trata de compreender onascimento da ciência epidemiológica. De um lado,está o processo de emancipação da dimensão tec-nológica da razão27,37 e, de outro lado, da emancipa-ção dos sujeitos privados na constituição do espaçopúblico da sociedade4,6,44, sendo, um e outro,marcos importantes, apenas analiticamente distin-guíveis, do processo de emergência do período mo-derno na história das sociedades ocidentais.

Tome-se inicialmente a questão da razão.

Todo procedimento racional, em qualquer lugarou tempo em que tenha sido realizado, admitesempre ser entendido como "tecnológico", umavez que ele poderá ser compreendido como "ins-trumento" para a transformação produtiva da rea-lidade, de modo a reproduzir, material e espiritu-almente, o sujeito que o realiza24,38. Os váriosestatutos que a razão humana se autoconferiu aolongo da história da civilização ocidental são ra-cionalmente compreensíveis - a partir da con-cepção teórica aqui adotada - como parte do con-juntos de instrumentos que os homens de cadaépoca desenvolveram para garantir sua subsistên-cia física, para realizar suas ambições éticas, darvazão às suas vivências estéticas, entre outros.

No entanto, na sua aptidão reflexiva, na sua au-tocompreensão, a razão tem interpretado essa con-dição de "instrumento" com conteúdos e re-levância variáveis. Se hoje é possível pensar arazão como sendo fundamentalmente este instru-mento, é justamente porque a razão modernaemancipou sua dimensão tecnológica, isto é, pas-sou a privilegiar como seu atributo e sua finali-dade a capacidade de interferir ativamente nascondições de vida do homem.

O conhecimento do modo como as coisas sãona realidade foi, progressivamente, substituindo aespeculação sobre o que é a realidade das coisas,na auto-compreensão da razão moderna acerca desuas vocações mais legítimas. Conhecer e dominaros processos materiais a partir dos quais as coisasvêm a ser o que são, reproduzindo-os e aper-feiçoando-os, em alguns casos, e atenuando-os ousuprimindo-os, em outros, é o que a razão passa aentender como sua competência e função9,30,53.

A grande novidade da razão na Era Moderna é,portanto, a dissociação entre a possibilidade deconhecer a realidade objetiva do homem e trans-formá-la, e a busca das causas primárias (ouúltimas) do mundo, a razão de ser de todo o uni-verso e de cada coisa no universo. Desde Des-cartes, essa dimensão secular e prática da razãopassou a alcançar cada vez maior autonomia,eficácia e valorização social e, conseqüentemente,maior legitimidade.

A configuração histórica de um saber substan-tivamente epidemiológico começa já em plenoprocesso de emancipação da racionalidade tec-nológica. Os trabalhos que manifestam os primei-ros movimentos de "epistemologização"21 dessesaber, isto é, os primeiros discursos aspirantes aoestatuto de verdade objetiva acerca do processosaúde-doença nos moldes em que a epidemiologiaveio a desenvolver, datam do século XVIII6,10,34.Nesse período, em consonância com a superaçãodo projeto social hegemônico no modo de pro-dução feudal pelo(s) projeto(s) de um modo deprodução organizado em moldes capitalistas, jáhavia amplo predomínio da racionalidade tec-nológica, tanto em termos sociopolíticos como emtermos estritamente epistemológicos.

A dimensão secular da realidade e das necessi-dades do homem passou, então, a ser consciente-mente tomada como a origem e as bases para aformulação de problemáticas e de caminhos parasua solução, substituindo as motivações e os fun-damentos transcendentais que sustentavam ideolo-gicamente a antiga Ordem. O momento indutivoda produção da abstração teórica, por partir da ex-periência dos cinco sentidos materiais do homem,ganhou terreno em relação à dedução, consideradauma porta sempre aberta a "devaneios" me-tafísicos. Por fim, a busca da certeza quanto à va-lidade do conhecimento não pôde mais prescindirda evidência empírica, já que o domínio da lógicanão representava mais qualquer garantia de acessoàs verdades do mundo. A propósito do conheci-mento humano, Hume29 viria a afirmar de formaparadigmática: "Contém ele algum raciocínio acer-ca da quantidade ou do número? Não. Contém elealgum raciocínio experimental relativo à questãodo fato e à existência? Não. Lançai-o às chamas,porque só pode conter sofisma e ilusão".

Com base nos corolários acima, uma série deimportantes mudanças ocorreram nas relações en-tre teoria e prática em todos os campos da ativi-dade humana, inclusive na saúde. O nascimento daepidemiologia é uma dessas mudanças. Ele seráexaminado, a partir deste ponto, com o recurso aosegundo movimento acima citado: a constituiçãode um espaço público estruturalmente diverso da-quele existente na Idade Média, um espaço de in-

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teração entre sujeitos privados politicamenteemancipados.

Assim como a razão transpõe as fronteiras daModernidade através de uma transformação estru-tural de suas articulações práticas e de sua auto-compreensão abstrata, também a maneira da socie-dade constituir e compreender a comunidadesocionatural de seus componentes vive radicaistransformações. A dimensão pública da experiên-cia social do homem era, na Idade Média, concebi-da e construída através de normas e símbolos quetranscendiam as necessidades e juízos de cada in-divíduo particular, de cada sujeito social. Estesdiziam respeito ao espaço privado, uma esfera desociabilidade que atingia apenas o núcleo familiarou, no máximo, agrupamentos societários, isto é,derivados de interesses materiais mútuos. Já a so-ciabilidade ampliada da esfera pública era umespaço de vivências gregárias, isto é, de reconheci-mento, transmissão e celebração da identidade devalores espirituais, morais e culturais que amalga-mava as sociedades feudais.

O espaço público, enquanto ambiente físico,instituição social ou conjunto de práticas, assumiaum caráter metafísico e representativo, ou seja, de-rivava, aparentemente, de uma ordem divina. Erao espaço de realizar e ver realizado os papéis decada um num grande "drama", determinado porforças externas e superiores aos homens. OPríncipe, o castelo, a Igreja e as igrejas, a indu-mentária, o heroísmo, as celebrações... cada aspec-to da vida pública expressava e realizava simboli-camente a transcendência do homem em relaçãoao mundo material, legitimando os valores e nor-mas que subjaziam às relações de poder na divisãoda produção e do usofruto das riquezas da socie-dade feudal.

Com o advento da Modernidade e do modocapitalista de produção, no entanto, o espaçopúblico tem esse seu caráter representativo subsu-mido numa orientação de natureza secular, nãomais transcendental. Os símbolos que sinalizam adimensão pública da vida social passam a legiti-mar-se, nuclearmente, a partir de seu caráter fun-cional. Ainda, o que é muito relevante para ospropósitos desta reflexão, o espaço público moder-no passa a ser constituído por intermédio de umaconstrução contratual, isto é, substitui-se a pseu-doespontaneidade da organização dos espaços deinteração por soluções consensuais de diversasnaturezas.

O estreitamento do caráter solidário da orga-nização social da produção - a estruturação daatividade de produção com base na crescentecooperação das forças produtivas e na compo-sição coletiva da força de trabalho - e a proprie-dade privada como princípio da divisão social e

técnica do trabalho, foram, em poucas palavras,as bases materiais dessas transformações. Elasforam condição de possibilidade ideológica epolítica para o sujeito privado conceber e postu-lar que os juízos e valores relativos às suas ne-cessidades materiais fossem fonte legítima denormas e símbolos para a esfera gregária da ex-periência humana.

A esfera pública moderna passa, então, a con-figurar-se como o espaço físico, institucional ecultural de circulação e troca, societariamente or-ganizadas, de valores materiais e espirituais dossujeitos privados. Quanto mais organicamente asobrevivência material dos indivíduos se organizaem práticas coletivizadas de produção e consumo,mais rápida e profundamente se estrutura o espaçopúblico moderno.

É a partir deste processo histórico que se tornacompreensível a configuração de um saber queapreende os aspectos extra-orgânicos do processosaúde-doença como uma "condição transindividu-al". Ou seja, só quando a razão tecnológica é cha-mada a conhecer condições desfavoráveis às in-terações entre necessidades privadas socialmentelegitimadas é que se desenvolve a consciência deuma dimensão da realidade de saúde que diz res-peito a determinados indivíduos, não se restringe àrealidade de qualquer um deles em particular, e édo interesse de todos. Só a partir dessa "mentali-dade sanitária" pôde emergir uma objetividadepropriamente epidemiológica.

A emergência histórica da mentalidade sani-tária relaciona-se dialeticamente com mudançasem todas as esferas de saberes e práticas de saúde.Na esfera tradicional - a esfera dos sujeitos priva-dos - deu origem à clínica, ou medicina moder-na17,20. No mesmo movimento gerou, no que se re-fere à esfera pública, a higiene moderna5,45 cujossaberes constituem a matriz epistemológica da epi-demiologia.

A higiene de fins do século XVIII e início doséculo XIX na Europa, constitui, de fato, o primei-ro saber tipicamente moderno a tomar como obje-to a transindividualidade do processo saúde-doença, a identificar "patologias" no "corpo" so-cial, e a buscar a determinação das mesmas nascondições de vida dos diversos grupamentos soci-almente diferenciados. Na higiene, especialmentena higiene iluminista francesa, de Villermé, De-salle, Parent-Duchatelet, entre outros, estão asraízes metodológicas, conceituais, éticas e fi-losóficas da epidemiologia.

É preciso ter claro que a higiene não chegou,ela própria, a configurar-se como uma ciência emmoldes modernos, apesar de, às vezes, auto-intitular-se assim. Ela permaneceu num estágioepistemológico que pode ser melhor designado,

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seguindo Canguilhem12, como uma "ideologiacientífica".

Diz Canguilhem12, que uma ideologia científicaé um saber a respeito de algum aspecto objetivo daexistência que não elabora, enquanto tal, um modooperativo de validação de suas normas de cienti-ficidade. Dito de outra forma, uma ideologiacientífica é o saber objetivo que precede uma ciên-cia, e o que caracteriza a passagem de uma à outraforma de saber é o estabelecimento de uma norma-tividade interna ao conhecimento, o desenvolvi-mento de axiomas que garantem aos enunciadosteóricos, de forma estável e simultânea, a veraci-dade da relação "conceito abstrato - realidade con-creta" e a organicidade da relação "conceito - teo-ria". Através de seus axiomas, a ciência garanteque fala verdades e que elas são verdades carac-terísticas do seu objeto.

Prende-se ao processo acima a relevância dahigiene para os propósitos desta reflexão. A hi-giene, na condição de saber pré-científico acercada saúde no espaço público, produziu conheci-mento abundante, em quantidade e qualidade,abordando de forma ampla e profunda a di-mensão social do processo saúde-doença e alcan-çando notável impacto prático1. Entretanto, quan-do a estrutura discursiva da higiene atravessouseu limiar de "formalização científica"21, re-duções consideráveis foram operadas no seu cam-po de objetividade, o que era inevitável. É exata-mente esta redução que interessa aqui destacar,pois o modo como se dá o reducionismo de umaciência, por referência às pretensões teóricas daideologia científica que a precede, indica adireção concretamente tomada pelo saber para aobtenção de sua legitimação como conhecimentoobjetivo; indica que tipo de verdades este saber sepropõe a enunciar e sobre que aspectos da reali-dade pretende se debruçar. E o que será examina-do na seqüência.

A noção de meio e a epidemiologia comociência

Diversos elementos da conjuntura científica donascimento da epidemiologia precisam ser consi-derados quando se trata de compreender o campode objetividade que resulta de sua formalizaçãocientífica. Os notórios progressos conceituais dasciências biológicas, os expressivos êxitos práticosdo experimentalismo de Claude Bernard, o vultosodesenvolvimento técnico da estatística vital, oamadurecimento filosófico do empirismo cien-tífico, entre outros aspectos, ajudam a explicar asfiliações teóricas e o perfil metodológico dessaciência32,33,46,51.

Sem menosprezar a importância desses ele-mentos na configuração da ciência epidemio-lógica, parece inadequado, porém, limitar aosmesmos a compreensão de sua determinação. Se,por um lado, a epidemiologia não pode ser con-cebida sem a concorrência desses elementos, elessão incapazes, por outro lado, de esclarecer aquestão central desta reflexão: o paroxismo ins-trumental do conhecimento epidemiológico e acorrelata "desagregação" teórica do seu corpoconceitual. Para isso, será necessário voltar a am-pliar a reflexão para o cenário mais abrangentedas práticas sanitárias e circunstanciar o movi-mento epistemológico que privilegia o conheci-mento de certos aspectos da determinação dasaúde no espaço público em detrimento de tantosoutros apontados pela higiene.

A formalização da ciência epidemiológica, apartir da segunda metade do século XIX, dá-se nocontexto da consolidação institucional da nova or-dem social, conduzida sob a hegemonia político-ideológica da burguesia. As práticas e os saberessanitários não ficaram à margem desse processo,como não poderia deixar de ser. Ao contrário, elesse fizeram instrumentos fundamentais dessa con-solidação, em função de sua grande importânciana reconstrução de um espaço público mais ade-quado à livre circulação de valores e idéias exigi-das pelos novos tempos18.

Contudo, por evidenciar necessidades contra-ditórias nas interações entre os sujeitos privados,denunciadas pelas diferentes formas e freqüênciasdesses indivíduos adoecerem em uma mesma so-ciedade, a natureza estratégica desse conhecimen-to variou, se analisado antes ou após o fim doprocesso revolucionário que conduziu a burguesiaao poder.

Na sua fase científico-ideológica, correspon-dente ao período revolucionário da implantação danova ordem social, o recém emancipado carátertecnológico da razão punha-se a serviço dadenúncia e superação das condições desfavoráveisà saúde no espaço público, por meio da transfor-mação radical das relações entre os diversos sujei-tos sociais. Um amplo arco de forças sociais, uni-dos sob o léxico da "liberdade, igualdade efraternidade", davam viabilidade política a esseprojeto intelectual. Os princípios éticos do huma-nismo revolucionário secundarizavam a necessi-dade de qualquer tipo de normatividade episte-mológica para a higiene, uma vez que anormatividade que deles próprios emanava agiacomo critério objetivo para a positividade das infe-rências e explicações.

As exigências dessa normatividade interna nãotardaram, contudo, a chegar, uma vez que, ao seconsolidarem institucionalmente novas relações

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sociais, com base em novas e assimétricas estrutu-ras de poder, o caráter inevitavelmente plural desaberes cuja positividade provinha de valores éti-cos tornou-se insustentável. Não se tratava mais dereconstruir as práticas sociais, mas de aperfeiçoá-las, de potencializar seu caráter construtivo nos li-mites de balizamentos éticos comuns, fixados "apriori" pelos valores hegemônicos nas novas estru-turas de poder.

O processo então vivido pelas ciências é co-nhecido. As constantes físicas e químicas e asregularidades matemáticas passaram a conformara normatividade epistemológica preferencial nocampo da saúde, como em todo o campocientífico13,22,35.

Isto se deve à aptidão desses elementos paraoferecer, ao conhecimento objetivo, critérios posi-tivos estritamente instrumentais, autônomos emrelação aos valores do sujeito que conhece. Asquantidades são as formas mais abstratas deapreensão e comparação de comportamentosempíricos, possibilitando significativa independên-cia da inferência científica em relação ao significa-do concreto do objeto estudado. As constantesfísicas e químicas estabelecem, por sua vez, hori-zontes fenomênicos comuns para as mais diversasperspectivas subjetivas.

Para esse "paroxismo instrumental"27, isto é,para esta normatividade intracientífica naturaliza-da e quantificada, tenderam todos os processos deformalização científica a partir da segunda metadedo século XIX, incluindo o da epidemiologia. Res-ta saber como a higiene, um saber plasmado subs-tantivamente no plano das relações do homemcom o próprio homem e com o mundo, pôde de-senvolver critérios epistemológicos de validaçãoindependentes da concretude das relações huma-nas, da pluralidade contraditória dos valores dossujeitos privados. Como foi possível, em termosepistemológicos, passar a apreender objetivamentea dimensão social do processo saúde-doença a par-tir de constantes e quantidades? Esta é a questãoque se impõe neste ponto da reflexão.

Examinando-se as primeiras construçõesteóricas tipicamente epidemiológicas, é possívelidentificar um elemento epistemológico funda-mental para realizar, nesta ciência, o paroxismoinstrumental da racionalidade científica moderna:a noção abstrata de meio. Através dela, o causalis-mo biologicista adentra o campo objetivo da infe-rência epidemiológica e estabelece, com força dedogma, normas de cientificidade desenvolvidasem esferas de objetividade estranhas à sua, nocampo das ciências naturais.

Segundo Canguilhem15, o conceito de meio éformulado pela primeira vez por Newton, nafísica, não como produto da observação imediata,

mas como uma necessidade lógica da suamecânica. Esse conceito permitiu a Newton su-perar as antigas noções da física com umamecânica baseada na interação simultaneamenterecíproca e independente dos corpos. O "meio"foi, inicialmente, uma conjectura teórica derivadadas evidências empíricas da nova mecânica, masacabou por se consolidar conceitualmente comoesta qualidade de "pôr em relação", especialmentequando transportado por Comte às ciênciasbiológicas.

Funcionando como recurso conceitual paraexpressar a noção de exterioridade qualitativa-mente contínua e homogênea que relaciona círculo-esfera, unidade-todo, finito-infinito, o meio se con-figurou na biologia como um "instrumento univer-sal de dissolução das sínteses orgânicas individuali-zadas, no anonimato dos elementos e movimentosuniversais". Ele "desvalorizou" as qualidades quecompunham o substrato concreto dos objetos quepunha em relação. Configurou-se como um "siste-ma de relações sem suporte"15.

A incorporação do conceito de meio no póloclínico dos saberes da saúde dá-se, principalmente,pelas mãos de Claude Bernard. Este declara, expli-citamente, a influência do conceito, tal comoComte o desenvolvera, na formulação da noção de"meio interno", um dos pilares fundamentais desua patologia experimental14.

No pólo sanitário está ainda por ser feita a recu-peração histórica da trajetória que levou a noçãode meio aos contagionistas ingleses. John StuartMill, um dedicado estudioso de Comte, e uma es-pécie de "recondicionador" de sua doutrina para oempirismo inglês, parece ser a peça chave dessatransmissão, considerando sua influência nas for-mulações científicas de John Snow, Budd, oúltimo Farr, entre outros54.

"Sobre a maneira de transmissão da cólera" deSnow48, é o trabalho emblemático da aplicação doconceito de meio na epidemiologia.

O caráter abstrato de que se reveste a transin-dividualidade da cólera no raciocínio de Snowfica evidente já desde a fundamentação de suametodologia de investigação, baseada na possi-bilidade de associar as condições extra-orgânicasrelacionadas à doença com características fisiopa-tológicas da mesma. De fato, todo o trabalho deSnow pode ser resumido como um minucioso ebrilhante esforço de relacionamento abstrato deinúmeros elementos extra-orgânicos (que a hi-giene, ao longo dos anos anteriores, associarapositivamente à dimensão pública da saúde) comas disfunções gastrintestinais que caracterizavamo quadro orgânico da cólera. Snow logra associar,nos moldes do causalismo mecanicista das ciên-cias naturais, fenômenos naturais e não naturais,

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lançando mão da noção de um espaço real estra-nho aos corpos biológicos mas tornado conceitu-almente contínuo a estes.

Esta construção tornou-se possível porque anoção de meio permitiu relacionar externo e inter-no através de uma mesma referência qualitativa.Através dela, os elementos externos puderam tersua identidade objetiva restringida à condição de"interdição e transmissão" da mecânica fisiopa-tológica do cólera.

Em uma obra posterior47, Snow explicita deforma clara este seu procedimento. Ele afirma terpartido, em sua investigação, da consubstanciali-dade entre os fenômenos físicoquímicos inor-gânicos, ou de laboratório, e aqueles que aconte-cem nos seres vivos. Mesmo admitindo aespecificidade dos processos vitais, o cientista in-glês julgava possível apreender tais processos pormeio de sua substância físicoquímica. SegundoSnow47, a vida pode ser definida como uma sériede "alterações moleculares" (formas de interaçãoentre as partículas da matéria em distâncias in-sensíveis) que se transmitem em todas asdireções. A partir disso, conclui: "Somando-se àsérie de mudanças moleculares contínuas que têmpor resultado a preservação do indivíduo e da es-pécie, há outras, ocorrendo em seres vivos, quetêm uma tendência oposta; elas desviam parte dasubstância do indivíduo das ações que são natu-rais à espécie para um outro tipo de ação, emconseqüência de que essa substância é empregadana multiplicação e incremento da "materies mor-bi" de doenças comunicáveis - um extenso grupode doenças, cada qual causada por algum materialque, como regra geral, foi produzido no sistemade um outro indivíduo".

A referência de elementos empíricos de nature-za diversa, tais como as condições de vida e osfenômenos fisiopatológicos, a um mesmo aspectoconceitual qualitativo - as mudanças molecularestransmitidas - limita a apreensão da dimensãotransindividual do processo saúde-doença àrelação dos elementos concretos da vida socialcom a positividade orgânica das supostas alte-rações moleculares.

É, portanto, na versão contagionista que o saberepidemiológico logra transpor o umbral da forma-lização científica. A superação das teorias mi-asmáticas pelo contagionismo não é menos que aexpressão do êxito deste último em construir umconhecimento objetivo cuja normatividade interna,por seu caráter instrumental, passou a prescindirda "falibilidade" e variabilidade de juízos huma-nos para garantir sua validade e veracidade. Asnoções modernas de miasma, ainda que secular-mente fundadas, eram construções sintéticas, cujaobjetividade era diretamente proporcional ao grau

de particularização das características concretas deseu objeto e dos juízos de seu observador. Vide, apropósito, o trabalho de Villermé52, ou a clássicaobra de Engels19 a respeito da situação da classetrabalhadora na Inglaterra. O raciocínio contagio-nista, inversamente, retira sua eficácia do fato deabstrair ao máximo a concretude dos diversosagrupamentos humanos e os valores do cientistaque os estuda.

De Snow à epidemiologia contemporânea mui-tas transformações ocorreram, que não cabe emnossos propósitos discutir. É importante apenasdestacar que a substituição, no século XX, docausalismo biologicista pela associação causal denatureza probabilística, ou a passagem ao para-digma de risco2, não modificou radicalmente estequadro. Ao contrário, a vocação abstracionista daassociação probabilística e a sofisticação das téc-nicas de investigação e análise têm permitido aoconhecimento epidemiológico alcançar um instru-mentalismo ainda mais acentuado. A ele pode-mos creditar os inúmeros sucessos e osincômodos fracassos que conduziram a epidemio-logia contemporânea à "crise de identidade" emque se encontra.

Considerações finais

Os êxitos positivos e negativos da epidemiolo-gia têm sido muitos. Por um lado, expandiu-seenormemente a capacidade de conhecimento etransformação produtiva do espaço público dasaúde, que aproximações metafísicas de diversasnaturezas deixaram por longo tempo fora do al-cance de uma intervenção mais positiva. Poroutro lado, junto com a preterição dos juízos devalor e dos procedimentos sintéticos, em favor deuma racionalidade exclusivamente instrumental,restringiu-se o potencial de enriquecimento criati-vo e solidário de saberes e práticas relativos aoespaço público da saúde. Com o aprofundamentodo seu caráter instrumental, a epidemiologia temse tornado, progressivamente, capaz de fazer infe-rências cada vez mais precisas e consistentes so-bre aspectos do real cuja gênese concreta conhececada vez menos.

A consolidação de um campo de objetividadeespecificamente epidemiológico, apoiado numnúcleo científico "duro", matematicamente funda-do, permitiu à epidemiologia perfilar-se entre ossaberes que legitimamente sustentam a inter-venção sobre a saúde nos seus moldes modernos,interagindo mais radicalmente com os saberes quese ocupam da individualidade orgânica39. Resultadesse processo que a dimensão pública da saúde,posta em contato direto com as ciências biológicas

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da saúde, condiciona à consistência epidemi-ológica os saberes produzidos por estas ciências.Em suma, há como contrapartida da axiomati-zação naturalizadora da mentalidade sanitária, a"invasão do social"18 na estrutura disciplinar nu-clear às práticas de saúde na sociedade contem-porânea - a propedêutica clínica.

Se essa "invasão" tem o mérito de fecundarmutuamente os pólos individual e coletivo dossaberes sobre saúde, ela oferece, por outro lado, orisco, cada vez mais presente, de subordinar aconstrução da inferência epidemiológica a ques-tões cada vez menos relativas à dimensão propria-mente pública da saúde. Ou seja, a formalizaçãodo saber epidemiológico levou-o a uma dependên-cia tão marcante de sua consistência com as regu-laridades orgânicas36,43 que tem se tornado cadavez mais difícil perseguir o que, ainda em Frost,era tido como um ideal para a epidemiologia: tor-nar-se "uma ciência indutiva, interessada não sim-plesmente na descrição da distribuição da doençamas igualmente ou mais na sua contextualizaçãonuma filosofia consistente"23.

A propósito, já foi sugerido, recentemente, quese retirasse o radical "demo" da designação da epi-demiologia41, em uma lúcida, embora lamentável,constatação do afastamento desta ciência da esferapública, onde estão suas raízes.

Alguns setores da comunidade científica vêmrealizando esforços, em diversas direções, natentativa de reter, nas categorias analíticas emodelos determinísticos adotados, a dimensãopropriamente pública do objeto da epidemiolo-gia. Na produção anglo-saxônica destacam-se ostrabalhos de Cassel11, Susser49 e Terris50; naFrança, mais recentemente, surge a produção deGoldberg25; nos países latinos emergem as pro-posições profundamente críticas de Breilh8 eLaurell31, entre outros. A presente reflexão vem,não obstante, somar elementos à convicção, quetoma corpo no meio acadêmico3,7,16,40,42, de quehá outras tarefas igualmente relevantes, hoje,para a superação do instrumentalismo do saberepidemiológico.

Parece, efetivamente, fundamental rever a es-trutura axiomática que faz valorizar certos ele-mentos científicos, preterindo outros, na cons-trução de teorias e de mecanismos de validaçãoda ciência epidemiológica. Não é suficienteconstruir novas categorias conceituais ou adotarmodelos determinísticos não naturalizantes senão conseguirmos inverter, de certa forma, omovimento operado no núcleo do processocientífico da epidemiologia. Nesse sentido, ao in-vés de reduzir a transindividualidade da doençaaos mecanismos de facilitação ou interdição defenômenos orgânicos, fazendo aí residir a identi-

dade do objeto epidemiológico, é preciso aden-sar, por intermédio da interpretação positiva dosignificado das regularidades orgânicas, a cons-ciência da identidade concreta dos sujeitos en-volvidos nas diversas situações sociais. Em ummovimento interpretativo conseqüente, a positivi-dade da inferência epidemiológica não seria su-bordinada ao relacionamento abstrato daquelassituações sociais com constantes fisicoquímicas.Inversamente, estas constantes tornar-se-iam oselementos sinalizadores de situações desfa-voráveis à satisfação e enriquecimento das neces-sidades humanas.

A consolidação da identidade sanitária da epi-demiologia mostra, assim, ser uma tarefa muito

mais ampla que um "aperfeiçoamento" meto-dológico. A emancipação igualitária da plurali-dade dos projetos de vida dos homens depende deuma esfera pública eticamente concebida, cons-truída com justiça e solidariedade. A importânciada epidemiologia para essa construção nos conduzao difícil, mas necessário, desafio prático de colo-car a autonomia tecnológica conquistada pelarazão a serviço do gênero humano, e não ocontrário.

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Keywords: Epidemiology, history. Epidemiologic meth-ods. Philosophy. Social medicine.

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Recebido para publicação em 31.7.1992Reapresentado em 30.2.1993

Aprovado para publicação em 29.3.1993