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Elementos de DIREITO URBANÍSTICO /■ % Daniela Campos Libório Di Sarno ¿ _ Manóle

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Elementos de

DIREITO URBANÍSTICO/■

%

Daniela Campos Libório Di Sarno

¿ _

Manóle

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ELEMENTOS DE DIREITO U R B A N ÍSTIC O

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ELEMENTOS DE DIREITO UR BANÍSTICO

DANIELA CAMPOS LIBÓRIO DI SARNO Advogada e consultora em Direito Público,

mestre e doutora em Direito Urbanístico Ambiental, secretária-geral da Comissão de Meio Ambiente

da OAB-SP e professora da PUC-SP.

ÉLManóle

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Copyright <D 2004 Editora .Manóle Lula., conforme contrato coni a autora.

Projeto gráfico c editoração eletrônica: Know-How Editorial Ltda.

Capa: Eduardo Bertolini

Imagem da capa: PhotoDisc

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS. RJ

D524e

Di Samo, Daniela Campos Libório Elementos de direito urbanístico

/ Daniela Campos Libório Di Samo. - Barueri, SF: Manóle, 2004

Inclui bibliografia ISBN 85-204-1781-7

1. Direito Urbanístico. 2. Urbanização - Legislação.I. Título.

03-1203.CDU 349.44

Todos os direitos reservados.Nenhuma parte deste livropoderá ser reproduzida, por qualquer processo,sem a permissão expressa dos editores.

*

E proibida a reprodução por xerox.

Ia edição brasileira — 2004

Direitos adquiridos pela:Editora Manóle Ltda.Av. Ceei, 672 - Tamboré06460-120 - Barueri - SP - BrasilFone: (0__ 11) 4196 6000 - Fax: (0__ 11) 4196 [email protected]

Impresso no Brasil Primeé in Brazil

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SUMARIO

P refá c io ................................................................................................... IX

I ntrodução ................................................................................................ X II I

Capítulo IU rbanização , urbanismo e o surgim ento do direito urba n íst ic o 1

1. A cidade e a urbanização.............................................................. 1

2. Urbanismo............................................................................. 53. A evolução histórica do Direito Urbanístico............................... 7

3.1 No mundo........................................................................ 83.2 No Brasil........................................................................... 10

Capítulo IIF unções da c id a d e ....................................................................... 131. Carta de Atenas....................................................................... 132. Habitar.................................................................................. 173. Trabalhar............................................................................... 214. Circular.................................................................................. 22

5. Lazer..................................................................................... 25

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VI ELEMENTOS DE DIREITO URBANÍSTICO

Capítulo III

TRANSFORMAÇÒHS NO CONCEITO DE DIREITO URBANÍSTICO.......................... 29

1. A evolução do conceito de Direito Urbanístico............................. 29

2. Elementos a serem considerados na construção do conceito do

Direito Urbanístico atual............................................................. 30

3. Conceito de Direito Urbanístico................................................... 32

Capítulo IV

E lementos formadores do direito urbanístico patrio ........................ 35

1. Competencias constitucionais urbanísticas.................................. 35

1.1 Competência diante do Estado Federativo brasileiro............... 35

1.2 Competencias urbanísticas...................................................... 37

1.3 Municipio.............................................................................. 41

1.4 O problema da instituição de região metropolitana em um país

federativo............................................................................. 42

2. Função pública............................................................................ 44

3. Princípios de Direito Urbanístico................................................. 4 5

3.1 Função social da cidade.......................................................... 47

3.2 Função social da propriedade................................................. 47

3.3 Coesão dinâmica.................................................................... 50

3.4 Princípio da subsidiariedade................................................... 51

3.5 Princípio da repartição de ônus e distribuição de benefícios 53

3.6 Planejamento......................................................................... 55

4. Direito objetivo e ciência do direito - o objeto do Direito Urbanístico... 55

Capítulo V

Atividade urbanística como forma de realização do direito urbanístico -

comentários A lei n . 10.257/01 ......................................................... 59

1. Introdução................................................................................... 59

2. Atividade urbanística................................................................... 61

3. Plano urbanístico......................................................................... 62

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SUMÁRIO VII

3.1 Planos explícitos..................................................................... 63

3.2 Planos implícitos.................................................................... 63

4. Elaboração de normas jurídicas específicas................................... 65

5. Execução de atividades urbanísticas por meio dos planos 68

5.1 Inexecução.............................................................................. 68

5.2 Execução parcial..................................................................... 69

5.3 Alteração................................................................................ 69

5.4 Execução to tal........................................................................ 70

6. Instrumentos............................................................................... 70

6.1 Dos instrumentos de natureza urbanística.............................. 71

6.2 Dos instrumentos de natureza não-urbanística....................... 84

Capítulo V IM eio ambiente urbano...................................................................... 87

1. Introdução................................................................................... 87

2. Natureza e meio ambiente............................................................ 87

3. A intersecção da matéria ambiental perante o Direito Urbanístico ... 89

3.1 Considerações........................................................................ 89

3.2 Aspectos do meio ambiente..................................................... 90

4. Meio ambiente urbano................................................................. 94

Capítulo V II

R ealização e degradação da qualidade de vid a .................................. 9 5

1. Qualidade de vida........................................................................ 95

2. Degradação da qualidade de v ida ................................................. 100

2.1 Características........................................................................ 100

2.2 Considerações sobre a caracterização da degradação do meio ambiente urbano.................................................................... 101

2.3 Violência urbana.................................................................... 101

B ibliografía 107

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PREFÁCIO

Elementos de D iie iío Urbanístico corresponde à versão final do trabalho que, com o título de “Direito urbanístico moderno: meio ambiente urbano e qualida­de de vida”, foi a tese com a qual a profa. Daniela Campos Libório Di Samo obteve o título de doutora em Direito do Estado, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, após brilhante defesa perante banca examinadora composta por mim e pelos eminentes professores doutores Carlos Ari Sundfeld, Maria Paula Dallan Bucci. Marcelo Figueiredo e Sérgio Ferraz.

Este trabalho, dedicado em boa parte aos planos urbanísticos e ao pro­cesso de planejamento, de alguma forma complementa sua dissertação de mestrado, de 1996, sobre “A política de planejamento urbanístico no Direito brasileiro", que já revelava uma preocupação com o conhecimento da rea­lidade fática no ambiente urbano, com a necessidade de participação popu­lar no processo de planejamento e com o conhecimento também pelojurista das técnicas e dos princípios de urbanismo, como algo essencial para o desen­volvimento de um direito urbanístico ajustado à problemática enfrentada pelos municípios, caracterizado pela objetividade e pela eficiência da atuação governamental, lastreada em sólida fundamentação jurídica.

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X ELEMENTOS DE DIREITO URBANÍSTICO

Essa combinação da teoria e da prática talvez seja explicada pela efetiva militância da autora no assessoramento técnico a diversos municípios (in­clusive na condição de integrante da equipe técnica da Fundação Prefeito Faria Lima - Centro de Estudos e Pesquisas de Administração Municipal - Cepam), à sua intensa atividade como membro da comissão de meio am­biente da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil e, também, à intensa, freqüente e habitual discussão de problemas do direito urbanís­tico no exercício de suas atividades como minha assistente nos cursos de pós-graduação na área de Direito Urbanístico e Ambiental da PUC-SP du­rante muitos anos.

Essa convivência permanente com o direito urbanístico, antes e depois do advento do Estatuto da Cidade, possibilitou à autora aferir a evolução dessa disciplina ao longo do tempo, permitindo-lhe identificar, com pro­priedade, um direito urbanístico moderno, dotado de características e ins­trumentos de maior eficácia para a concretização dos objetivos almejados pela atuação governamental, especialmente no âmbito local.

Esse novo direito urbanístico, embora ainda continue sendo um seg­mento do direito administrativo, vai ganhando autonomia, na medida em que já dispõe de um conjunto articulado de normas gerais de aplicação na­cional (o Estatuto da Cidade), na medida em que já permite a identificação de princípios próprios (que aqui são estudados e devidamente explicitados) e no momento em que já se vai formando umajurisprudência ajustada a tais princípios.

Graças a sua experiência no trato de questões urbanísticas e ambientais, a autora soube reunir também essas duas coisas, ao discorrer sobre o meio ambiente urbano, mostrando que ele é tão importante quanto o ambiente natural, na medida em que cada vez mais as populações estão se concen­trando nas áreas urbanas, especialmente nas grandes cidades. A preocupa­ção fundamental dos urbanistas e dos cultores do direito urbanístico deve ser a questão da perda e da necessária e possível recuperação da qualidade de vida nas cidades.

Pode-se dizer que o presente livro, ao cuidar de noções propedêuticas de direito urbanístico, oferece um substrato necessário e indispensável para quem quiser avançar no estudo de questões específicas dessa disciplina, bus-

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PREFÁCIO XI

cando soluções coerentes para os infinitos problemas que sempre surgem e sempre surgirão quando se enfrenta a realidade do cotidiano da atuação governamental.

Como consideração final, quero registrar que a profa. Daniela Campos Libório Di Samo é a primeira doutora em Direito do Estado, da área de Direito Urbanístico e Ambiental do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC- SP, não obstante essa área tenha sido instituída em 1981. Nunca foi preocupa­ção dessa área conferir titulação a muita gente em pouco tempo; a preocupação central sempre foi com a qualidade e não com a quantidade. O que se está pre­tendendo dizer é que o título obtido pela autora corresponde sim a muitos anos de trabalho e estudo que levaram a um real amadurecimento científico, como, de resto, deveriam ser todos os títulos acadêmicos.

Adilson Abreu D a lla ri Professor T itu la r de D ire ito Adm in istra tivo da PUC-SP

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INTRODUÇÃO

Nos últimos dois séculos, a forma de organização do espaço habitado mudou drasticamente. De uma sociedade rural passamos a ser uma socie­dade urbana. Esse adensamento inédito na civilização trouxe profundas con­seqüências sociais, econômicas, políticas e jurídicas.

No século xix, as normas jurídicas voltadas para o processo de urbani­zação versavam, basicamente, sobre problemas sanitários ou tinham uma finalidade estética perante a cidade. Entretanto, centrar-se apenas nesses dois aspectos passou a ser insuficiente, pois as cidades foram se agigantando e a mi­gração do campo para a cidade tornou-se um fenômeno consagrado no sécu­lo xx. A elaboração de normas jurídicas que disciplinavam as edificações e o estabelecimento de alguns planos urbanísticos foram acrescentados à preo­cupação urbanística.

Ocorre que o modelo de desenvolvimento econômico adotado por quase todos os países ocidentais pressupôs uma alteração significativa do meio am­biente, fazendo com que houvesse uma reflexão a esse respeito, culminando

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XIV ELEMENTOS DE DIREITO URBANÍSTICO

com o entendimento de que o ser humano faz parte do meio ambiente e que o seu espaço habitado deve ser inserido nessa revisão de valores.

A Constituição Federal de 1988 traduziu, em alguns artigos (art. 5o, X III, 170, III e VI, 182,225, por exemplo), valores novos a serení consagra­dos na realização de um Estado mais equilibrado e justo, mediante a elabo­ração de normas jurídicas que lhes trouxessem eficácia.

Diante desse panorama, o desafio é tentar verificar se o Direito Urba­nístico, na estrutura que se apresenta no ordenamento jurídico pátrio, pode atuar eficazmente diante da degradação da qualidade de vida que se insta­lou em nosso país.

Para que o Direito Urbanístico possa realizar e concretizar esses novos desafios, faz-se necessária uma nova leitura a respeito dessa área, analisan­do suas transformações, conceituando-o e verificando os elementos e ins­trumentos disponíveis para essa atuação.

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CapítuloI

URBANIZAÇÃO, URBANISMO E O SURGIMENTO DO

DIREITO URBANÍSTICO

I . A CIDADE E A URBANIZAÇÃO0 conhecimento sobre a existencia das primeiras cidades data do ano

3.500 a.C., no vale entre os rios Tigre e Eufrates.1 Desde então, as cidades passaram por alguns estágios no que diz respeito à organização.

O processo de organização local na América Latina data de 2 mil anos atrás. Existiam núcleos que se estruturaram nos moldes do que hoje chama­mos “cidades", com localização, forma, traçado, arquitetura, além de terem sido centros de sistemas políticos, com estrutura social e organização econô­mica. Portanto, as primeiras cidades sul-americanas são precedentes à co­lonização européia.

Na virada do século XV para o XVI, os espanhóis fundaram vários povoa­dos na América Central e na América do Sul. Porém, estes foram sendo aban­donados em face da necessidade de se avançar no processo de colonização da América. No começo do século XVII, as relações da Espanha com as suas colônias e delas entre si haviam se acomodado em um sistema que não per-

1 SILVA. José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 3. ed. São Paulo. Malheiros. 2000. p. 3.

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2 ELEMENTOS DE DIREITO URBANÍSTICO

mitia maiores inovações. O ímpeto da conquista (leu lugar à rigidez e à len­tidão da administração colonial.

O Brasil constituiu sua própria lógica de ocupação do território. A co­lonização inicialmente se deu pelo sistema de capitanias (quinze ao todo), que consistia em entregar enormes extensões de terra a nobres ou a homens abas­tados economicamente, que se tornavam verdadeiros senhores feudais desses territórios. Por vezes, tais donatários não residiam no Brasil. Foram fundados vários portos para facilitar o escoamento das extrações no país (madeira, açú­car, tinturas, algodão e escravos índios). Assim, a maior parte das primeiras ci­dades fundadas pelos portugueses no Brasil localizava-se no litoral e tinha uma função militar e comercial com formação e expansão espontânea, em face da economia de exportação imposta pela Metrópole. Somado a esse modelo, o processo de ocupação do território ocorreu com a formação de cidades e vilas, derivado de atos de iniciativas oficiais, inclusive pelo interior da Colônia.

Em meio ao século XVI, a Coroa portuguesa extinguiu as capitanias e estabeleceu um Governo Geral nomeando Tomé de Souza para o cargo, es­tabelecendo-o nos arredores de Vila Velha (atual Bahia), cidade esta que permaneceu como capital do Brasil até o século XVIII.

Em face das funções administrativas e políticas e da indústria açucareira, Vila Velha cresceu muito, tornando-se a região mais próspera do país, ao lado de Pernambuco. Porém, este centro não conseguia controlar as outras re­giões da Colônia, que possuíam portos independentes para suas produções, dificultando a fiscalização e a troca de informações.

Já nessa época, a então Piratininga (São Paulo) era a única região que se voltava para o interior do país. Com a descoberta de ouro em Minas Gerais, em 1605, a região fortaleceu-se e a Coroa voltou seus interesses para o Bra­sil, o que atraiu muita gente e iniciou um fenomenal processo urbanístico (por exemplo, na cidade de Vila Rica). No século XVIII, metade da produção mundial de ouro foi extraída do Brasil. Isso levou a população dessas cida­des a ter luxo e prosperidade, desfrutando de condições muito diversas das do resto do país. A ai*quitetura das construções, sua riqueza e variedade são exemplos únicos do período colonial. Com o foco de interesses deslocado mais para o sul, as cidades do norte e do nordeste ficaram à própria sorte, exis­tindo apenas para sua auto-suficiência.

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URBANIZAÇÃO, URBANISMO E O SURGIMENTO DO DIREITO URBANISTICO 3

Em 1763, o Rio de Janeiro tornou-se a capital do Brasil por questões políticas e econômicas. O escoamento da produção de ouro ocorria pelo seu porto. No século XIX, essa cidade passou a ser a mais importante do país também porque a família real decidiu nela morar. Com o declínio da pro­dução do ouro, entretanto, a economia brasileira entrou em recessão, tor­nando-se mais dependente da agricultura.

A produção de café. no sudeste, dominou a economia, atraindo imigran­tes europeus e o comércio de escravos. Foram construídas ferrovias. São Pau­lo expandiu-se, formando vários povoados e distritos. Os ricos construíram grandes casas em bairros novos e afastados, pois temiam ficar perto das mo­radias populares, que já enfrentavam graves problemas de saneamento.2

Com o advento da Revolução Industrial, ocorreu o fenômeno avassala- dor da urbanização, nos mesmos moldes que na Europa e nos Estados Unidos, porém com agravantes sociais e políticos: sociais porque já havia, no Brasil, acentuadas diferenças de classes, e políticos por não haver uma postura plani­ficadora, deixando que a ocupação e o uso do solo ocorressem aleatoriamente.

Com o fim da escravidão e o fenômeno da concentração urbana, disse­minou-se a moradia precária que, por sua vez, era associada à imoralidade e às doenças. O Poder Público passou a intervir nesses espaços com finalidade higienista.

A cidade, na condição de espaço voltado para a coletividade, desconhe­cia certos fenômenos que se sucederam a esta repentina e intensa ocupação. Problemas de saúde pública (água, alimentos e saneamento) e de uso do espaço, com a conseqüente ordenação das vias de circulação e a oferta de serviços públicos mínimos, fizeram o Poder Público elaborar políticas pú­blicas e editar normas jurídicas até então inéditas. Foi o processo de urbani­zação. e não a existência das cidades3 que fez se desenvolver o urbanismo e, posteriormente, o Direito Urbanístico.

2 A população rica que habitava o bairro dos Campos Elíseos, sofrendo com a ausên­cia de saneamento, foi aconselhada pelos médicos a se transferir para a parte alta da­quela região, onde os esgotos não permaneciam, eliminando a causa de diversas doen­ças. A este bairro, devido a essa característica higienista, chamou-se Higienópolis.

3 Urbs. em latim, quer dizer cidade. Contudo, nos referimos aos modelos políticos e históricos vigentes, e não à etimologia.

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4 ELEMENTOS DE DIREITO URBANÍSTICO

Ñas últimas décadas do século XX, porém, ocorreu um outro fenômeno migratório além da migração do campo para a cidade: a migração de cidade para cidade. O desenvolvimento da tecnologia e o surgimento de pólos eco­nômicos refletiram na organização das cidades e na motivação da população. As cidades que não conseguiram desenvolver um pólo econômico, garan­tindo empregos e aquecendo a economia local, tiveram perda econômica e/ ou populacional considerável. O estímulo à sociedade de consumo (consu­mir para ser feliz) fez com que muitas cidades entrassem em descompasso, pois mesmo com a permanência dos habitantes, estes passaram a procurar outros centros para adquirir os bens desejados.

Com o domínio da cultura do consumo, adquirir a novidade começou a trazer status e certo poder para quem detinha tal preciosidade. Assim, a fixação da população em pequenos núcleos urbanos, distantes de grandes pólos, com dificuldade de acesso às novas tecnologias e aos bens de consumo tornou-se uma tarefa insana. As autoridades municipais locais (Prefeitura e Câmara Municipal) procuraram atrair investimentos a fim de que seus municípios não entrassem em colapso. Essas batalhas se concentraram, basicamente, no setor tributário, no qual se garantiram verdadeiros paraí­sos fiscais às empresas e indústrias para que nele se fixassem. Por certo que estas empresas não optam por transferir sua sede ou pólo industrial se a vanta­gem for pouca. Assim, as autoridades não medem esforços para satisfazer seus intentos, ferindo tremendamente o princípio da isonomia em face das empresas que já estão sediadas na localidade. Além desse ponto a conside­rar, existem outros fatores que interferem nessa tentativa de transformar uma cidade pequena e desmotivada em um rico pólo econômico.

A distância entre as possibilidades reais de uma dada localidade e as pretensões alavancadas pela autoridade pública às vezes é muito grande e mesmo que o Poder Público local destine espaços adequados e crie incenti­vos legais, isso pode não ser suficiente. Fatores como estradas mal conserva­das e escassez de mão-de-obra especializada devem ser considerados. Além disso, as exigências da vida moderna têm equiparado o meio rural com o urbano, trazendo grandes conseqüências aos municípios rurais.

O fato é que as cidades grandes têm se agigantado cada vez mais, al­gumas até chegando à categoria de megalópoles. Nesse processo, a quali­

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URBANIZAÇÃO, URBANISMO E O SURGIMENTO DO DIREITO URBANISTICO 5

dade de vida tem sido perdida. As pessoas têm se contentado com menos qualidade em suas vidas desde que estejam, pelo menos, perto do sucesso, da tecnologia, do modo de vida que vislumbram um dia ter (e que, em geral, nunca terão).

Atualmente, a cidade é vista de forma ampla, extrapolando uma leitura meramente espacial e inserindo a realização das várias necessidades huma­nas neste contexto. Assim,

La ciudad es la forma de asentamiento de población que corresponde a una eco­nomia donde reina la división del trabajo... especialmente apropriada para fo­mentar el comercio, la artesanía y el negocio, el cultivo de los valores espirituales)'

el ejercicio del poder público *

Portanto, as cidades brasileiras também são o resultado da ocupação caó­tica pelo ser humano, motivada pelos interesses particulares dos cidadãos.

2. URBANISMOO urbanismo surge como resposta à evolução da complexidade com

que se formaram os núcleos urbanos. Seu início é historicamente recente (o século XIX), tendo, de início desempenhado papel complementar à arquite­tura de conjunto, com a finalidade básica de tornar as cidades mais belas e harmoniosas.5

O rápido crescimento das cidades, impulsionado pela Revolução Indus­trial, que deslocou a produção de riquezas do campo para a cidade, também fez o urbanismo desenvolver-se. Acabou por ser tratado como tema de uma ciência multidisciplinar ou, ao menos. tema presente em diversas ciências, abrindo seu campo de ação do meramente estético para a organização e o planejamento dos núcleos urbanos, buscando resultados e alcançando ob-

1 OROZCO. Joaquín Hernández (Trad.). La ley federal alemana de ordenación urbanís­tica y los municipios. Madri, Instituto de Estudios de Administración Local. 1973. p. 11.

0 LEAL, Rogério Gesta; HENNIG. Mônia Clarissa. Urbanismo e direito: condições e possibilidades de uma nova abordagem. Revista de Direito, Santa Cruz do Sul. n. 13. 1995. p. 45.

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6 ELEMENTOS DE DIREITO URBANÍSTICO

jeto próprio por não existir qualquer outro conhecimento, instrumento ou mé­todo, de qualquer ciencia ou técnica, que tenha conseguido oferecer solução.

Nessa contextualizaçâo moderna, o urbanismo foi introduzido no Bra­sil no início do século XX, culminando com a elaboração do plano do Rio de Janeiro. No caso pátrio, àquela época havia uma vontade de copiar o modelo europeu de cidade moderna. Porém, por ser uma sociedade bastante desi­gual, econômica e socialmente, a elite quis uma urbanização que a afastasse do convívio com os desfavorecidos, econômica e socialmente.

Na era Vargas, o objetivo básico do urbanismo, no Brasil, era o embele­zamento, a monumentalidade e o controle social sobre o uso do espaço, com o Poder Público orientando a intervenção. O urbanismo brasileiro, até a década de 1940, era realizado por meio das funções administrativas dos diver­sos Estados-membros, que possuíam uma economia basicamente agrícola.

Na década de 1950, o urbanismo passou a ser encarado como uma ques­tão de desenvolvimento, fase essa em que já se constatava a dualidade “cam­po X cidade"; “integrantes x marginais'*. À economia ganhou grande rele­vo e impôs nova dinâmica urbana em todo o território. Ocorreu a formação de um mercado interno com absorção da lógica industrial/’

No final da década de 1970, com o tecnoburocratismo desenvolvi men- tista, não se pretendeu mais a cidade ideal e sim a eficiência sobre a cidade já existente. A política urbana ficou centralizada nas mãos do Estado, que se comprometeu com o planejamento.

Com os canais de comunicação fechados em razão do regime político vi­gente, a prática de políticas conservadoristas e privatistas não mudou, enfra­quecendo os mecanismos de integração social. A conseqüência desse processo é um profundo questionamento sobre o Poder instituído, pois a sociedade criou práticas de resolução de conflitos urbanos a partir de uma normatividade pró­pria e informal, às vezes ilegal (por exemplo, invasões).

Se na década de 1970 pretendeu-se a Reforma Urbana Modernizadora que incluía a habitação, a cidade e o planejamento, na década de 1980 desta­cou-se a Reforma Urbana Redistributiva, encarando a questão social, com ênfase na propriedade privada da terra, no uso do solo urbano e na partici­

ü Idem, Ibidem. p. 57.

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URBANIZAÇÃO, URBANISMO E O SURGIMENTO DO DIREITO URBANISTICO 7

pação direta das camadas populares na gestão das cidades. A atuação era essencialmente jurídica, produzindo novos direitos sociais.

Assim, no Brasil e no mundo, o urbanismo foi ganhando espaço como a ciência que conseguiria encaminhar e resolver os problemas cada vez maio­res que os núcleos urbanos tinham. A ordenação dos espaços, das ruas, das construções, as exigências do fazer ou não-fazer para conseguir articular a ci­dade se desenvolveram por meio de medidas estatais, dada a proporção de intervenções que tinha de haver no domínio privado.

O urbanismo é entendido hoje como uma ciência, uma técnica e uma arte ao mesmo tempo, cujo objetivo é a organização do espaço urbano, visan­do ao bem-estar coletivo, realizado por legislação, planejamento e execução de obras públicas que permitam o desempenho harmônico e progressivo das funções urbanas elementares: habitação, trabalho, recreação e circulação no espaço urbano.

Tomás-Ramón Fernández7 questiona a atualidade do urbanismo:

Qué es entonces el urbanismo en In actualidad? Sencillamente, una perspectivaglobal e integradora de todo lo que se reñere a la relación del hombre con el me­dio en el que se desenvuelve y que hace de la tierra, del suelo, su eje operativo.

Reconhecer o espaço como ordenador da vida coletiva torna o planeja­mento urbano e regional essencial na análise crítica da sociedade contem­poránea. O fenómeno urbano envolve questões de produção e consumo, emergência e generalização de novos valores e instituições, redes de trans­porte e comunicação, gerenciamento das carências do setor privado e redimensionamento das funções do Estado.

3. A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO URBANÍSTICOO aparecimento de regras de cunho urbanístico surgiu com a necessi­

dade de organizar a convivência entre pessoas que se fixavam em urna mes-

7 FERNANDEZ. Tomáz Ramón. Manual de derecho urbanístico. 8. ed. Madri, El Con­sultor de los Ayuntamientos y Juzgados. 1990, p. 16.

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8 ELEMENTOS DE DIREITO URBANÍSTICO

ma localidade. Por certo, tal convivência sempre existiu em face das mais diversas necessidades humanas; porém, o que fez com que emergissem nor­mas com tal conteúdo, evoluindo cada vez mais com o tempo, foi o fato de o Estado, através de seus Poderes, assumir uma postura interventora nessa organização espacial. Assim, conforme o Estado se organizou e se estruturou internamente, passou a exigir que sua comunidade também assim o fizesse.

Regias urbanísticas simples, esporádicas, já eram editadas na Idade Media. Com a Idade Moderna e o amadurecimento do Estado na Idade Con­temporánea, as regias urbanísticas também evoluíram. Isso porque o Estado reposicionou-se, enfocando como seu principal interesse a socieda­de e começou a exigir de cada individuo igual postura. As normas jurídicas urbanísticas encontraram, nesse contexto, a fomentação suficiente para cres­cer, pois, na essência, são sempre voltadas para o bem-estar da coletividade e para o interesse público.

3.1 No mundo

Na Idade Média, parte das cidades eram envoltas por uma grande mu­ralha, com o intuito de protegê-las contra invasões, isolando-as do convívio das demais localidades, um modelo que permaneceu na Espanha até a Revolução Industrial. A própria população quis buscar maiores espaços para se desenvol­ver. O desenvolvimento das cidades espanholas, durante o processo de in­dustrialização (século XIX), foi bem menos intenso que na Inglaterra e na Fran­ça. Mesmo assim, suas cidades passaram por transformações (adequações sanitárias, aumento de vias públicas, melhorias do conforto urbano, equipamen­tos públicos etc.). Em razão dessas necessidades, surgiram as primeiras leis ur­banísticas nesses |>aíses. Isso foi um marco do liberalismo,já que favoreceu cons­truções extramuros. rompendo com o modelo medieval e controlador até então vigente. Além disso, surgiu a desapropriação, por necessidade de implantar vias e espaços de usos públicos, e a introdução de um sistema de planejamento. Foi a partir dessas leis que surgiu o Direito Urbanístico espanhol.

Porém, foi em 1956, por meio da Lei do Solo e Ordenação Urbana, que a Espanha estruturou seu Direito Urbanístico. Eduardo Garcia de Enterria e Luciano Parejo Alfonso, citados por Tomás-Ramón Fernández, esclarecem as profundas modificações que essa lei trouxe:

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URBANIZAÇÃO, URBANISMO E O SURGIMENTO DO DIREITO URBANISTICO 9

El verdadero acta de nacimiento de un Derecho Urbanístico Español ¡)or fin ma­duro, orgánico y omn ¡comprensivo, lejos del casuismo normativo, délas timideces

y del arbitrismo ocasional de los cien años anteriores, animado de criterios técni­

cos profundos. ¡)or supuesto discutibles, pero que intentan responder a la vasta problemática de ios conflictos de intereses privados y colectivos que suscita ¡a rea­

lidad de! urbanismo contemporáneo.8

Já na Inglaterra, até 1835, cerca de trezentas entidades eram responsá­veis pela iluminação, pavimentação, esgotos, água, fiscalização de constru­ção, tráfego e policiamento, com um modelo claramente descentralizado. Todavia, tais entidades estavam desacreditadas pela população. Na verdade, apesar da imensa estrutura para oferecer equipamentos de utilidade públi­ca, havia uma grande ineficácia diante dos problemas que surgiam e a po­pulação convivia com uma desastrosa situação sanitária em face dos espa­ços construídos e de suas transformações.

Diante desses problemas, foram criadas administrações locais, eleitas para tentar melhorar a situação sanitária do país. Novas leis surgiram deter­minando a unificação do controle e fiscalização de água, esgoto, limpeza urbana e pavimentação. No decorrer do século XIX, o Estado foi deixando para trás uma postura meramente fiscalizadora e começou a assumir, gra­dualmente, a realização e o controle dessas atividades. Foi o início da reali­zação de medidas urbanísticas pelo Poder Público inglês.9

Na França, os problemas não foram muito diferentes dos acima citados no caso inglês. A desordenação urbana trouxe problemas de saúde pública, como os de origem sanitária, chegando a provocar epidemias de cólera na primeira metade do século XIX. Tornaram-se necessárias providências de caráter múltiplo e coordenado.

Na Itália, a legislação urbanística moderna surgiu no século XVIII, im­pulsionada por dois fatores: problemas sanitários (responsáveis por altos ín-

8 Ibidem, p. 20.

9 BENÉVOLO. Leonardo. As origens da urbanística moderna. 2. ed. Lisboa. Presença. 1987. p. 99 (Coleção Dimensão, n. 10).

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10 ELEMENTOS DE DIREITO URBANÍSTICO

dices de mortalidade infantil) e o processo de industrialização europeu. A nova organização do trabalho rompeu o equilíbrio entre campo e cidade, criando o fenômeno da concentração urbana. No século XIX, o proletariado recém- surgido vivia em condições subumanas na periferia das cidades, o que fez com que o Poder Público reagisse tentando melhorar as condições de vida na cidade.

A legislação urbanística, datada dessa época, é fragmentada e esparsa. Ape­nas em 1865 surgiu a Lei n. 2.359, que dispôs sobre instrumentos urbanísti­cos, como plano e desapropriação, indicando a necessária presença do Poder Público para organizar a ocupação e o uso do solo urbano. Em 1942 surgiu a Lei n. 1.150, de caráter urbanístico, que apresentou os fundamentos da matéria.10

As primeiras normas urbanísticas datam do século XIX também na his­toria alemã, como a Lei de Desapropriação, de 1874, e, posteriormente, a Lei de Reparcelamento, de 1902. Contudo, uma visão mais abrangente sobre urbanismo só emergiu após o fim da Segunda Guerra Mundial, impulsio­nada pela necessidade de resolução dos problemas gerados com a destrui­ção ocorrida na guerra. Em 1960 surgiu a Lei Federal de Ordenação Urba­nística. Foi a primeira norma jurídica, em caráter federal, que estruturou os instrumentos e os elementos de Direito Urbanístico, atribuindo aos muni­cípios a competência para resolverem seus problemas urbanísticos e ofere­cendo instrumentos adequados para tanto.11

3.2 No Brasil

No caso brasileiro, sempre houve legislações esparsas de caráter urba­nístico. Exemplo disso são as Ordenações Filipinas, que, entre outros assun­tos, trataram de matéria edilícia, organização urbana e atribuíram compe­tência às autoridades locais para tratar dos assuntos urbanos.12 Contudo, não havia uma consciência sobre a necessidade de unidade e convergência

lü SALVIA. Felippo; TERESI. Francesco. Diriuo urbanístico. 5.ed.Verona, Cedam. 1992, p. 3-9.

11 OROZCO. Joaquín Hernández (Trad.). Op. cit., p. 11.

12 SILVA. José Afonso da. Op. cit., p. 15; DALLARI. Adilson Abreu. Desapropriações para fíns urbanísticos. Rio de Janeiro, Forense, 1981, p. 15.

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URBANIZAÇÃO, URBANISMO E O SURGIMENTO DO DIREITO URBANISTICO 11

dessas leis no período colonial, até porque os núcleos urbanos tinham uma estrutura bastante simples e, de maneira geral, bastavam leis sobre armamen­to e alinhamento dando um caráter regular e embelezando as cidades e vilas.

Quanto à limpeza das cidades, a Câmara de Salvador, no estado da Bahia, traz um exemplo de como o tema preocupava seus legisladores. Fontes de água da cidade já recebiam proteção: em 1696, quem lavasse roupas nas bicas era multado em 6 mil réis. A partir de 1785, o Legislativo proibiu os enterros “de negros e necessitados" próximos às fontes de água de Salvador. Em 1859, a recomendação era “punir corporalmente" os escravos flagrados jogando entulho nas ruas. Segundo o historiador Cid Teixeira (jornal O Es­tado de S. Paulo, em 24/9/2000, p. A-20), essa preocupação ecológica foi trazida ao Brasil pelos portugueses, porque na Península Ibérica, nos sécu­los passados, havia um “rigorosíssimo controle na utilização das fontes de água'*. Lembra que na Europa os crimes dessa natureza eram punidos com rigor. “Dava até degredo para os infratores.”

No século XIX, surgiu a primeira norma jurídica urbanística que trata­va de desapropriação. A Constituição do Império, de 1824, já garantia o direito de propriedade, que tinha um caráter quase absolutamente privatista, não fosse o estabelecimento do instituto da desapropriação.

O município, desde a primeira Constituição Republicana, ocupou lu­gar de destaque na ordenação urbana, competindo-lhe legislar segundo seu peculiar interesse. Em 1934, a Constituição possibilitou o surgimento da fun­ção social da propriedade, por meio da leitura implícita de suas normas:

Art. 113.... item 17 - é garantido o direito de propriedade, que não poderá ser

exercido contra o interesse social e coletivo, na forma que a lei determinar,

assegurando a defesa prévia e justa nos casos de desapropriação por necessidade

de utilidade pública.

Na década de 1960, alguns atos administrativos em âmbito federal ten­taram implementar uma política nacional de habitação e de planejamento territorial.13 Apenas em 1967 a Constituição Federal tratou, de forma im-

José Afonso da Silva discorre a respeito, descrevendo toda a evolução de atos e normas brasileiras em Direito urbanístico brasileiro, c/f.. p. 60.

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12 ELEMENTOS DE DIREITO URBANÍSTICO

plícita, a possibilidade de instituição de um planejamento urbano, repartindo as competências não só entre as unidades federativas (União e Estados-mem- bros), mas incluindo a capacidade legislativa do município nessa organização. À União coube editar leis de desenvolvimento urbano e estabelecer planos nacionais; aos estados coube a regulamentação de problemas regionais, como a região metropolitana; e aos municipios foi determinado estabelecer normas urbanísticas a respeito do uso e da ocupação do solo urbano e de suas edifica­ções, instituindo planos urbanísticos, em especial o Plano Diretor.11

14 SAULEJÚNIOR, Nelson {cooró.). Novas perspectivas do direilo urbanístico brasileiro. Porto Alegre, Fabris. 1997, p. 90-1.

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Capítulo

FUNÇÕES DA CIDADE

I. CARTA DE ATENAS

As funções da cidade, descritas como elementos fundamentais no estudo do urbanismo e do Direito Urbanístico moderno, foram definidas em 1933, durante o IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, em Ate­nas.1 O item 77 da Carta de Atenas indica as seguintes funções: habitação, trabalho, recreação e circulação. Essa Carta se transformou em um verdadeiro código de princípios para os urbanistas, sendo reescrita por Le Corbusier.2 Este renomado arquiteto previu a supressão do traçado das cidades baseado em ruas e quadras. Propôs a implantação de zoneamento seletivo e a divisão de áreas com base nas quatro funções. Suas idéias influenciaram urbanistas de diversos países e as funções da cidade acabaram por se consagrar como nor- teadoras de planejamento urbano.

1 LE CORBUSIER. Planejamento utbano. São Paulo. Perspectiva, 1971. p. 42.

2 Na verdade. Le Corbusier era o pseudônimo do arquiteto francês de origem suíça Char­les Edouard Jeanneret (1887-1965).

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14 ELEMENTOS DE DIREITO URBANÍSTICO

Diante da definição dessas quatro funções, houve um esforço para ten­tar entender o que elas realmente significavam para a coletividade e para os indivíduos.

Os agrupamentos humanos desenvolvem e buscam suprir necessida­des extremamente semelhantes, por mais diversos que sejam seus tipos. Socie­dades industriais desenvolvidas ou subdesenvolvidas, agrárias ou urbanas, antigas ou recentes, o certo é que. de alguma forma, mesmo considerando fatores extremamente específicos da localidade (geografia, clima, vocação econômica da região etc.), tais funções sempre estão presentes. Contudo, dependendo da forma como estas funções se relacionam entre si, com os indivíduos e com a coletividade, pode-se ter resultados extremamente dis­tintos, piores ou melhores.3

Na época da declaração da Carta de Atenas, normas de cunho urbanís­tico já estavam sedimentadas nos países ocidentais e o urbanismo evoluía da preocupação sanitária e estética para a função social do uso do solo, ou seja, a necessidade da coletividade considerada perante o uso e a ocupação do solo. A desorganização das cidades, proveniente da então recente Revolu­ção Industrial, agravou-se diante do adensamento, trazendo problemas novos para elas, tais como o tráfego, a especulação imobiliária e uma população eco­nomicamente desfavorecida com fixação extremamente frágil. Este segundo fenômeno causou sérios distúrbios nas cidades, principalmente com rela­ção à moradia, conforme explica Adilson Abreu Dallari:

Face ã especulação imobiliária, o trabalhador passa a residir cada vez mais

longe de seu local de trabalho, o que lhe acarreta sacrifícios adicionais em ter­

mos de horas de descanso e despesas com transporte, agravando o pauperismo

existente e todas as mazelas que lhes são inerentes.4

3 Le Corbusier escreve sobre as escolhas das condições de vida e diz que. dependendo delas, trarão ou não “alegria de viver". Exemplos de más condições: tumulto e desor­dem; falta completa de condições da natureza. Exemplos de boas condições: ordem e limpeza; supressão de longos transportes diários de pessoas. Op. cit.. p. 110-11.

4 DALLARI. Adilson Abreu. Op. cit.. p. 16.

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FUNÇÕES DA CIDADE 15

Se este é o panorama nas regiões metropolitanas e ñas graneles cida­des, deve servir de alerta para as cidades de pequeno e médio porte, pois mes­mo que jamais alcancem seu porte metropolitano, elas poderão, em face da desorganização geral, pública e privada, sofrer os problemas que lhe são típicos.

De qualquer forma, as funções da cidade foram definidas segundo sua utilização (finalidade) e sua articulação com as outras funções, buscando equi­líbrio e praticidade na rotina das pessoas. Segundo Le Corbusier,5 as funções deveriam ser materializadas por meio de unidades definidas pelo critério da utilização, a saber:

• unidades de habitação: refere-se à moradia e seus prolongamentos:

• unidades de trabalho: abrange as oficinas, as manufaturas, os escritó­rios etc.;

• unidades de cultura do espírito e do corpo: igrejas, templos, clubes, praças etc.

• unidades agrárias: os espaços que reúnem fatores materiais e espiri­tuais de um renascimento camponês (anexas à continuidade urbana);

• unidades de circulação: unem todos os elementos, dando-lhes a vida (pedestres e automóveis).

Contudo, o renomado arquiteto fez uma sábia ressalva com relação à busca da eficiência na articulação dessas funções. Elas devem ser definidas em razão de prioridades. “A prioridade não é glorificação técnica, mas, ao contrário, sua colocação a serviço e em favor dos homens.” Por exemplo: na China, a prioridade é andar de bicicleta: no Brasil, a prioridade é o automó­vel. Porém, para esse autor, o importante é entender que a prioridade pode ser interditar o céu de uma cidade, “uma vez que um céu silencioso e livre constitui um bem para o homem"0. Significa dizer que as sociedades devem

5 LE CORBUSIER. Op. cit., p. 62.

6 Ibidm.

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16 ELEMENTOS DE DIREITO URBANÍSTICO

se sentir completamente livres para organizarem-se, diante da definição de suas prioridades. Na verdade, deve-se concluir com esta colocação que a definição das funções da cidade na citada Carta de Atenas não ocorreu em face do processo de escolha técnica e sim por meio da experiencia e obser­vação das necessidades humanas.

A Constituição Federal brasileira, no seu art. 6o, determina como di­reito social, entre outros, o trabalho, a moradia e o lazer. Das funções clássi­cas da cidade, o morar e o trabalhar é que, em geral, ordenam e determinam seu desenvolvimento. É extremamente particular à localidade qual dessas duas funções irá prevalecer em cada caso. Muitas pessoas se organizam em razão de sua moradia. Possuem uma casa que não querem deixar e se es­forçarão para desenvolver suas vidas em torno dela. Outras se determinam pelo local de trabalho. Vão aonde o trabalho estiver.

*

Muitas vezes, as cidades possuem vocações natas. E o caso de cidades litorâneas, históricas, de águas termais, ou que possuem outros atrativos, que têm no turismo sua principal fonte de renda, gerando empregos e atraindo investimentos, às vezes sem fazer esforço. Nesses casos, o lazer é a principal fonte de renda da localidade. Outras cidades se transformam em pólo eco­nômico ou tecnológico (regional, estadual e até internacional) e os esforços dos setores público e privado estarão voltados para o reforço dessa área eco­nômica. Assim, o Poder Público priorizará a melhoria da circulação em tor­no dessas empresas ou bairros.

Percebe-se, também, a existência de‘ cidades-dormitório”. São, em geral, núcleos urbanos que abrigam pessoas que trabalham em outro município. Às vezes, são municípios vizinhos a uma cidade maior, com melhor oferta de emprego e com remunerações melhores, que acabam atraindo a população dos municípios circunvizinhos. Outras vezes, pessoas cansadas da vida esta­fante de uma cidade grande, procuram cidades menores para melhorar sua qualidade de vida, porém sem deslocar seu ambiente de trabalho, já que tais municípios menores têm uma economia desaquecida.

A circulação das pessoas pela cidade ocorrerá, de um lado, motivada pela necessidade de essas pessoas se deslocarem do trabalho para suas casas e para usufruírem os serviços e produtos de que necessitam e, de outro, pela forma como o Poder Público organizará esta circulação (as vias, o tráfego, o

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FUNÇÕES DA CIDADE 17

transporte em geral). Somados a estes elementos, há os espaços de lazer, que podem ser inúmeros, com diversas atividades em locais variados, devendo guardar nexo com a região em que estão situados e com a população que os desfrutará. Diante dessas considerações, será feita uma breve análise de cada uma das funções no contexto atual da sociedade brasileira.

2. HABITARPerante o Direito Moderno, o direito à moradia está considerado den­

tro dos Direitos Humanos.7 Percebe-se, no direito à moradia, a real possibili­dade de realização da família, de auto-estima e de cidadania. Além disso, é fator de inter-relacionamento, estimulando a cordialidade e a fixação do cidadão. Está relacionado, também, à liberdade de escolha de residência (lo­cal e tipo) e à segurança da fixação de seus moradores (despejos e remoções forçadas, privacidade, higiene ambiental).8

No direito pátrio existe uma divisão de competências constitucionais sobre essa matéria entre as instâncias federativas. À União caberá instituir diretrizes para a habitação (art. 21, XX), legislar privativamente sobre desa­propriação (art. 22, II) promover programas de construção e moradia e me­lhorias das condições habitacionais e de saneamento ao lado dos municí­pios, estados e do Distrito Federal (art. 23, IX) e editar normas gerais sobre Direito Urbanístico (art. 24,1). Os Estados-membros podem instituir políti­ca habitacional própria, principalmente voltada para as áreas metropolita­nas. Aos municípios, além do já citado art. 23, IX, caberá promover o ordenamento territorial, mediante o planejamento e controle de uso, o par­celamento e a ocupação do solo urbano (art. 30, V III), além de legislar sobre tudo que seja de interesse local (art. 30,1).

À Constituição Federal guarda grande interesse à necessidade de se es­tabelecer moradia, tendo esse tema sido nela inserido pela Emenda Consti­tucional n. 26, de 14.2.2000 como direito social, no art. 6o, ao lado da saúde,

T Veja Declaração Universal dos Direitos Humanos - art. XXV; Declaração sobre Assenta­mentos Humanos, seção III (8) e Capítulo II (A-3). Vancouver. 1976; Agenda 21, ca­pítulo 7. Rio de Janeiro. 1992 (Fonte: SAULE JÚNIOR. Nelson (coord.). Direito à ci­dade. São Paulo. Max Limonad. 1999).

* SAULE JÚNIOR. Nelson (coord.). Op. cit. p. 77.

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18 ELEMENTOS DE DIREITO URBANÍSTICO

educação, trabalho e outros direitos, obedecendo às diretrizes dos tratados internacionais. Assim, para a viabilização desse direito, o art. 7°, IV, dispõe que o salário mínimo deve atender, entre outras necessidades, à da moradia.

Todavia, a Constituição Federal não delimita a realização do direito à moradia nessa relação bilateral que se estabelece entre as competências do Poder Público e aquele que quer realizar seu direito. No Título V II (Da Or­dem Econômica e Financeira), Capítulo II (Da Política Urbana), determina-se que, entre os deveres e os direitos do Poder Público e do proprietário do imóvel urbano, haja a elaboração de diretrizes gerais, de Plano Diretor e da ordenação do uso do solo, a satisfação da função social da propriedade ur­bana (equação sobre interesses particulares e necessidade social sobre o mes­mo espaço), distribuindo por toda a comunidade local a responsabilidade de usar seu imóvel de acordo com as necessidades sociais locais.

Pretende-se com isso extinguir, por exemplo, a especulação imobiliária na medida em que se desestimule o não-uso da propriedade mediante a aplicação de sanções (art. 182, § 4o). Contudo, as restrições ao uso da pro­priedade não poderão aniquilar o direito que o proprietário tem sobre seu imóvel de dar a destinação que lhe interesse. A leitura do art. 5o, XXII, e XX III, deve ser feita na coalizão dos interesses dos proprietários e da socie­dade em que se inserem.

Os arts. 183 e 191 estabelecem o usucapião para moradia tanto na área urbana como na área rural após cinco anos de posse mansa e pacífica. Este instituto traz possibilidades para a regularização fundiária de situações precá­rias (jurídica, social e economicamente), por isso recairá sobre cortiços, fave­las, Ioteamentos clandestinos e outras moradias típicas da cidade real-infor- mal, porém jamais em terras pertencentes ao Poder Público.

Com relação a esses tipos precários de moradia, os cortiços são os mais antigos. No caso do estado de São Paulo, desde o século XIX o Poder Público se preocupou com eles, por serem considerados insalubres e perigosos. A legislação da época (Código Sanitário do Estado de São Paulo, de 1894) proibiu sua existência no centro da cidade, onde viviam as elites.9 Mais tar­de, em 1934, o Código de Obras do Município de São Paulo manteve esta

,J VAZ. José Carlos. Mais casas com novas leis. Revista Polis. São Paulo. n. 24,1996, p. 45.

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FUNÇÕES DA CIDADE 19

posição, influenciando a elaboração da legislação de várias outras cidades.10 Esta postura de não aceitar o uso do imóvel por várias famílias privilegiou a construção de moradias unifamiliares, isoladas e com relativo espaço inter­no na habitação.

Quanto às favelas, sua origem no Brasil deu-se em face do alto custo do transporte coletivo, que, somado à maior oferta de emprego e serviço no centro das grandes cidades, estimulou a fixação da população de baixa ren­da nos vazios urbanos centrais. Posteriormente, elas foram formadas na área periférica, reforçando a falência da política habitacional brasileira.11 Em ge­ral, suas formações ocorrem com invasões de áreas inadequadas para a ocu­pação humana.12

Se no início desse fenômeno a remoção dos habitantes desse tipo de ocu­pação ocorria de forma violenta, na década de 1980 ocorreram políticas públi­cas para remoção administrada (também mal sucedidas em face da resistência dos favelados e de alternativas inadequadas oferecidas pelo Poder Público).

Apenas recentemente algumas administrações começaram a reconhe­cer os direitos dos favelados quanto ao acesso ao solo urbano e à moradia (regularização de favelas). Porém, de modo geral, não existe, nessas ações, uma justificativa adequada do ponto de vista da teoria do direito, fazendo com que os programas de legalização não encontrem respaldo teórico, jurí­dico e filosófico consistente.13

lfl O Código de obras Arthur Saboya. consolidação aprovada pelo Ato n. 663. de 10 de agosto de 1931 publicado por Escolas Profissionaes Salesianas, São Paulo, em 1935. no art. 293 define cortiço: "Entende-se por cortiço o conjunto de duas ou mais ha­bitações que se comuniquem com as vias públicas por uma ou mais entradas co­muns, para servir de residência a mais de uma família”.

11 FERNANDES, Edésio. A regularização de favelas no Brasil: problemas de perspectiva. In: SAULE JÚNIOR, Nelson (coord.). Direito à cidade, cit., p. 129.

12 Betina Treiger Grupenmacher e Cristina Del Pilar P. Busques fazem a seguinte dis­tinção: favela = tomada gradativa, mansa e pacífica de terra alheia. Invasão = ocupa­ção violenta, em massa, organizada. Quando ocorre em terra particular, pode-se falar cm omissão do Estado. Publicado (Favelas, invasões e modalidades de lotea- mento. Iir. DALLARI. Adilson Abreu: FIGUEIREDO. Lúcia Valle (coords.). Temas de direito urbanístico 2. São Paulo, RT, 1991, p. 62).

13 FERNANDES. Edésio. Op.ciL p. 44.

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20 ELEMENTOS DE DIREITO URBANÍSTICO

Em vista da ineficiência do Poder Público, grupos da sociedade civil têm se organizado no uso e na ocupação do solo, e tornando para si a tarefa de se auto-organizar. O surgimento de “condominios fechados" (horizon­tais/verticais), bolsões de segurança, ruas fechadas e edge cides,H são exem­plos a serem citados. Todavia, constituem um segmento de casos “felizes", pois são o resultado da iniciativa de uma classe econômica mais abastada, com condições de arcar com as despesas de infra-estrutura. É um custo a menos para o Poder Público, que faz concessões legislativas e administra­tivas para viabilizar estes projetos particulares de organização territorial. Isso tem acontecido principalmente para organizar moradias.

Na ponta oposta dessa estrutura existem os Ioteamentos clandestinos e irregulares, além de favelas, cortiços e ocupações de áreas públicas de uso co­mum. Nesses espaços não existe uma organização prévia à ocupação, ou até mesmo corretiva, elaborada por seus ocupantes/moradores. Há simplesmen­te a ocupação de um espaço. Quando muito, um estelionatário vende lotes que não possui em locais inadequados para habitação.

Pode-se dividir essas ocupações em três modalidades, sob o ponto de vista do ocupante/morador: a) tentativa de ter seu próprio imóvel, cons­truído dentro de suas possibilidades (favelas e Ioteamentos); b) necessidade de ter um teto qualquer para se abrigar, numa situação absolutamente frágil (invasões de prédios públicos ou privados, formação de cortiços); c) por fim, a simples ocupação de um espaço qualquer para tentar garantir, ao menos, o direito de estar em algum lugar, o direito de ficar em qualquer lugar (embaixo de pontes e viadutos, em praças).

No primeiro caso, pode-se fazer a seguinte leitura da realidade: aqueles que se esforçam para ter uma moradia, mesmo por vias irregulares, não são brindados com infra-estrutura mínima para seu cotidiano, como ilumina­

14 Edge cities (ou cidades de contorno) são comunidades suburbanas em que as pessoas não apenas vivem à sombra de uma cidade maior, mas também possuem meios adi­cionais de criar riqueza fora da influência direta da cidade central. Esses locais criam sua própria infra-estrutura administrativa, corporativa ou varejista, tornando-se epi­centros menores dentro de uma megalópole maior. Tal padrão suburbano chamou a atenção cerca de 3 décadas atrás, com os primeiros agrupamentos de comércio de alta tecnologia e complexos residenciais ao longo da Rota 128. nos arredores de Boston. Disponível em: http://www.nethistoria.com/ultimas/2000/ultimal25.shtml.

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FUNÇÕES DA CIDADE 21

ção regular, saneamento, creche, posto de saúde, ponto de ônibus ou cor­reio. Por estarem em situação irregular, o Poder Público reluta em ofertar tais equipamentos com receio de consolidar a ilegalidade por força de sua conivência. Assim, parece mais conveniente deixá-los à própria sorte.

No segundo caso. por haver ocupação de área urbana, dotada de estru­tura, em geral no centro da cidade ou próximo a ele, tais pessoas usufruem desses equipamentos. Quando são os de uso coletivo, comum, como postos de saúde, ônibus e rede de saneamento, sua utilização, por parte dessa popu­lação, consegue ser absorvida pela comunidade local sem maiores proble­mas. Porém, quando há a individualização da oferta, para que esses consi­gam ter acesso aos serviços públicos, o fazem por meio de irregularidades como “gambiarras" elétricas, roubo de água do vizinho ou da rede pública. Mesmo assim, existem serviços a que não conseguem ter acesso. Dos servi­ços que necessitam da indicação de endereço, por exemplo, essa camada da população vê-se excluída. É o caso das creches e escolas. Também se trans­forma, com freqüência, em um agravante para conseguir emprego, tendo em vista que o endereço foi obtido de forma irregular.

Quanto ao último caso, tais pessoas estão à mercê de tudo e de todos. Lutam pelo direito de ficar. A luta pelo ter ainda não lhes alcançou.

A existência de casa própria estrutura a vida familiar, resguardando-a contra os desrespeitos, os medos e a violência que caracterizam a vida nas ruas. A precariedade de moradia, quando não a inexistência, expõe a família e os indivíduos a toda sorte de preconceitos e violência, por meio da qual aprenderão a se relacionar com a sociedade.

Assim, a constatação da situação atual do acesso à moradia, pelos brasi­leiros, é de total precariedade. A especulação imobiliária desenfreada, com conivência e/ou omissão do Poder Público, a falta de programas de cons­trução de moradia popular eficiente, os imensos "vazios urbanos", a falta de estímulo à fixação do homem no campo são alguns dos fatores que expli­cam a realidade brasileira nesse setor.

3. TRABALHAROs espaços de trabalho devem oferecer condições indispensáveis de

higiene e ajudar a suscitar a alegria. O ambiente no qual se trabalha não

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22 ELEMENTOS DE DIREITO URBANÍSTICO

pode ser uma opressão, uma punição. Para Le Corbusier,15 o trabalho era visto sob o ponto de vista da ocupação do solo. Percebendo a desorganiza­ção existente nas cidades, agrupou em três setores básicos os trabalhos dos homens: a) oficinas = manutenção ou conserto, depende de zonas de habita­ção (encanador, serralheiro,eletricista, marceneiro); b) criação de produtos = situar-se-ão em pontos de vida urbana intensa (costura, moda, encaderna­ção, joalheria, relojoaria, fundição etc.); c) escritórios = devem ter ambiente saudável, instrumental necessário de fácil acesso (comunicação, correio, aces­so físico) e tendem a agrupar-se na mesma região.

Atualmente, a essa visão territorial do espaço laborai acrescenta-se o aspecto ambiental, pois se observa a necessidade de proteger o traba­lhador de situações de perigo e de insalubridade. além de tornar agradá­vel o momento do trabalho. É fato que as empresas fazem isso pensando na produtividade (funcionário feliz produz mais), pois sua finalidade é o lucro. Contudo, não se deve desmerecer tais iniciativas, porque são salutares aos cidadãos.

Com relação às disposições jurídicas sobre os espaços de trabalho, elas existem na medida em que seja necessária proteção especial aos tra­balhadores (em locais barulhentos, poluídos) ou perigosos (com materiais explosivos, por exemplo). Essa legislação, entretanto, visa o indivíduo (tra­balhador) e não o contexto, a coletividade, e se dá no âmbito das relações de trabalho. O aspecto da exteriorização desse ambiente, de sua inserção em dado local, é abordado apenas em leis de zoneamento, por tipos de atividades exercidas (indústria, serviços, comércio), mas que também não fazem a conexão entre o ambiente ocupado pelo espaço de trabalho e o bem-estar do trabalhador. Apenas no âmbito do Direito Ambiental esse aspecto tem sido desenvolvido.

4. CIRCULARAntigamente, a instalação e a fixação das pessoas em um lugar ocorria,

em geral, pela facilidade com que podiam desenvolver e circular o fruto de

15 LE CORBUSIER. Op. cit., p. 118-9.

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FUNÇÕES DA CIDADE 23

seu trabalho. Assim, a facilidade de circular era fundamental na hora de decidir onde se fixar. Na verdade, essa idéia central ainda é pertinente. O que mudou foram as formas e os meios de as mercadorias e os serviços circu­larem (avião, fax, internet).

A circulação das pessoas pode ocorrer como atividade instrumental ou final. No primeiro caso, as pessoas se deslocam porque querem chegar a outro lugar, em geral ao trabalho e em casa, e a locomoção é a maneira de as pessoas se transferirem, mas não é seu objetivo. Na segunda hipótese, a cir­culação ocorre porque é a atividade profissional da pessoa. Os motoristas ilustram bem essa situação; dependendo do emprego que possuam, circu­larão com carros, ônibus, peruas, vans, motos, bicicletas, caminhões. É fina­lidade dessas pessoas, e de certas atividades, a circulação.

Para Le Corbusier,16 as unidades de circulação tinham a função de dis­sipar a confusão entre as velocidades naturais (o passo do homem) e as ve­locidades mecânicas (automóveis etc.) por meio de uma classificação ade­quada. A distância e o tempo que transcorrem para a locomoção (tempo, distância) levarão ao agrado ou ao desconforto dos indivíduos. O desres­peito a essa equação gera despesas, gasta tempo e desgasta a pessoa, desem­bocando em um novo tipo de escravidão (a despesa só pode ser coberta com mais trabalho, que gastará mais do seu tempo, que gerará mais despesa, e assim por diante).

Não são só as grandes cidades que sofrem com o transporte. As cidades pequenas e médias, em geral, não possuem uma oferta de transporte públi­co coletivo adequada às necessidades de seus habitantes. Poucos ônibus, com trajetos aleatórios e sem sincronismo entre a frota, atrapalham a vida do trabalhador nessas localidades. Em cidades de 50 mil, 100 mil habitantes é normal gastar mais de uma hora (às vezes duas horas) para chegar ao traba­lho ou em casa. Diferentemente dos grandes centros, o problema não ocor­re por lentidão no trânsito ou excesso de passageiros, mas em razão da falta de oferta compatível com as necessidades dos habitantes. Dessa forma, quem pode escolher um transporte que acesse mais facilmente seu destino

16 Ibidem, p. 81.

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24 ELEMENTOS DE DIREITO URBANÍSTICO

assim o fará. Peruas, vans e carros particulares aumentam a cada dia tam­bém nas pequenas e médias cidades.

Nas grandes cidades, a opção pelo tipo de transporte é muito vaga. Ela existe apenas teoricamente. Em 1954, a Companhia Metropolitana de Transportes Coletivos (CMTC) de São Paulo transportava cerca de 90% de todos os passageiros, principalmente em ônibus. Na década de 1970, com o crescimento econômico, a classe média, então emergente, emigrou do transporte oferecido pelo Poder Público para aquele que lhe seria pró­prio, o transporte particular. Nessa época, investimentos públicos se fixa­ram em infra-estrutura. Em 1987, os veículos particulares já respondiam por cerca de 47% das viagens motorizadas.17

Assim, além de a política brasileira de trânsito ter sido sempre basea­da em veículos motorizados, o Poder Público privilegia largamente o trans­porte motorizado individual em detrimento do transporte coletivo e o faz por meio de instalação de vias largas, acesso direto às edificações18 e ope­rações “tapa-buraco”. O espaço do pedestre raramente recebe esta atenção (calçadas largas, operação "tapa-buraco" e afins). Em São Paulo, há ape­nas 4 km de ciclovias distribuídas em cinco rotas que se encontram basi­camente em parques, indicando claramente a função do lazer e não uma opção como meio de transporte.19

Essa desordenação gera caos nas grandes cidades, com congestionamen­tos constantes que desgastam toda a população. Tais congestionamentos, por sua vez, aumentam a poluição atmosférica e sonora, além da visual, piorando a qualidade de vida nessas cidades e a saúde da população. Portanto, a função da circulação muitas vezes fica comprometida devido à falta de pla­nejamento, investimento e incentivo às diversas formas de transporte.20

17 JACOBI. Pedro: MACEDO. Laura Valente. Consciência cidadã e poluição atmosférica na região metropolitana de Sào Paulo-RMSR reflexões e propostas. Cepal e Procamp/ USP. 2000. p. 4.

18 VAZ. José Carlos. Op. c/f.. p. 45.

19 A cidade de São Paulo abriga 25% da frota nacional; são desperdiçadas cerca de 2.4 milhões de horas por dia no tráfego, resultando em um déficit de 6 bilhões de dó­lares americanos (JACOBI, Pedro: MACEDO. Laura Valente. Op. cií., p. 9-10).

20 MEIRELLES. Uely Lopes. Direito municipal brasileiro. 6. ed. Sào Paulo. Malheiros. 1993. p. 402.0 autor distingue circulação de trânsito. A primeira hipótese refere-se

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FUNÇÕES DA CIDADE 25

5. LAZER0 tempo destinado ao lazer não estava na lógica da racionalização do

tempo, instituída pelo capitalismo industrial do século XVIII na Europa, do século XIX nos Estados Unidos ou no início do século XX no Brasil. Tra­balhava-se por volta de 5 mil horas/ano, correspondendo a 16 horas/dia, de segunda-feira a domingo.

Protestos veementes surgiram da Igreja, pela quebra de feriados litúr­gicos. Nessas épocas, trabalhava-se a partir dos dez anos de idade até a mor­te. Foi apenas em 1917 que. no Brasil, lutou-se pelo lazer no fim de semana, o que foi considerado anárquico por diversos segmentos da sociedade, por propiciar um tempo livre para ser gasto, possivelmente, de forma subversiva ou imoral, segundo os padrões da época.

Nos tempos atuais, o lazer se transformou em direito social constitu­cionalmente assegurado no art. 6o. Também há previsão de sua viabilização no art. 7o, IV, por isso o salário do trabalhador deve ser suficiente para ga­rantir-lhe direito a algum tipo de lazer.

Todavia, a abordagem desse tema é ampla e complexa. De certa forma, pode-se caracterizar oferta de lazer sob a ótica de quem dele usufrui e sob a ótica de quem oferece ou promove:

Na ótica do indivíduo:

• Liberdade de escolha - o lazer deve ser opcional, sendo certo que só cumpre sua finalidade se a pessoa opta por se entreter de uma certa forma. Portanto, é paradoxal haver uma lei que obrigue à diversão.

• Prazer - está relacionado com o critério acima, pois a pessoa terá seus próprios parâmetros, fazendo escolhas que lhe proporcio­nem momentos de descontração alegria, ou sensações que lhe dêem prazer.

à limitação urbanística, podendo ser permissiva (o particular deixa transitar o Po­der Público em sua propriedade particular para verificação e proteção de seu domí­nio) ou negativa (a Administração Pública limita ou impede a circulação em suas vias e logradouros). Já o trânsito sofre limitações que se baseiam na segurança indi­vidual ou coletiva, para melhorar o fluxo em determinados locais.

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26 ELEMENTOS DE DIREITO URBANÍSTICO

• Liberação - entre outras funções, cumpre ao lazer uma tendência de quebrar a rotina.

• Individualidade - cada pessoa sente seu momento de lazer de forma muito própria. Assim, é objetivo do lazer preencher essa expectati­va de individualização, que só será conseguida se os itens acima des­critos se somarem a este.

Na ótica do Estado:

• Integração social - o lazer não é passivo. Deve-se escolher entre pra­ticar, assistir e/ou estudar o segmento escolhido. Isso gera uma ne­cessidade de interação que o Poder Público pode orientar, educar e dirigir para finalidades sociais diversas. A Constituição Federal, em seu art. 217, § 3o, determina: "O Poder Público incentivará o lazer, como forma de promoção social'’. Essa promoção pode ser dirigida, por exemplo, à integração familiar, infantil, dos deficientes físicos, além de possibilitar trocas culturais, folclóricas, artísticas e desportivas.

Na verdade, o Poder Público no Brasil costuma classificar o lazer em esportivo, recreativo e cultural. Joffre Dumazedier,21 criador da sociologia do lazer, propõe classificá-lo em atividades físicas, manuais, intelectuais, ar­tísticas e sociais.

A promoção de atividades de lazer propicia a intervenção na dinâmica do grupo, podendo reestruturar comportamentos distorcidos, nefastos ou vi­ciados, que prejudicam o próprio individuo e/ou a coletividade. Nesse sen­tido, a redução da jornada de trabalho mediante folgas semanais e anuais cria tempo para essas atividades.

Tais folgas são “tempo artificial” de lazer, momento este imposto pela lei. A redução da jornada de trabalho acaba por ter conseqüências diversas. Há os que preenchem o “tempo livre" trabalhando mais, seja na função de­sempenhada corriqueiramente, seja desempenhando outra função (em ou­tro emprego, por exemplo).

21 DUMAZEDIER. Joffre. Lazer e cultura popular (vers une civilization du laisir). Trad. Maria de Lourdes Santos Machado. São Paulo. Perspectiva. 1976.

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FUNÇÕES DA CIDADE 27

Dos que nào optam por trabalhar no tempo livre, estudos mostram que, se essas pessoas moram na cidade, 80% desse tempo é gasto dentro de casa ou em função dela (alimentação, higiene, limpeza, sono, compras para a casa) : l

Em geral, o restante do tempo é gasto em ruas e bares (calçadões), cen- tros culturais e esportivos e no próprio local de trabalho. Na verdade, o lazer possui uma característica muito importante para toda a sociedade, que é a atividade econômica, com geração de empregos e circulação de riquezas.

Ocorre que, por fatores diversos, a sociedade atual tem voltado seu lazer para atividades que, prioritariamente, levam ao consumo. Esta prá­tica tem gerado diversos graus de frustração entre a população, excluindo, muitas vezes, a camada economicamente pobre das possibilidades de en­tretenimento urbano.

Na verdade, nào há uma política pública voltada para o lazer e isso ocor­re, inclusive, porque ela depende de uma boa política habitacional. A vida na cidade destrói o mecanismo de estrutura de família - refletindo seriamente no seu chefe (pai/mãe), em geral pelos problemas e dificuldades de mo­radia. Nesse sentido, o lazer pode se associar aos movimentos sociais urba­nos (mulheres, jovens, terceira idade, sem-teto) como forma de incluir estes segmentos no debate político-social. A isto se soma um resgate de digni­dade e cidadania da população carente.

22 CAMARGO. Luiz O. Lima. O que é lazer?São Paulo. Brasiliense. 1986. p. 61.

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CapítuloIII

TRANSFORMAÇÕES NO CONCEITO DE

DIREITO URBANÍSTICO

I . A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE DIREITO URBANÍSTICOAté o século XIX, a sociedade tinha uma visão privatista da propriedade.

Não se pode falar de um conceito de Direito Urbanístico na época, pois ele estava começando a se delinear em razão de algumas medidas que o Estado entendia como necessárias. Uma delas era a função decorativa, com cidades mais belas e harmoniosas.1 Outra dizia respeito à parte sanitária, pois a ur­banização trazia problemas graves à saúde coletiva, principalmente para as classes de menor poder aquisitivo.

Entretanto, diante das múltiplas formas de organização social que se desenvolveram durante o século XX, os Estados tiveram de buscar e propor soluções para estas diversas formas, fossem elas pequenos núcleos (urbanos ou rurais), cidades com vocação específica (industrial, de serviço, rural), cida-

1 LEAL, Rogério Gesta: HENNIG. Mônia Clarissa. Op. cit., p. 51.

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30 ELEMENTOS DE DIREITO URBANÍSTICO

des sazonais (turística), aglomerações urbanas, conurbações, microrregiões ou regiões metropolitanas. Todas essas estruturas trazem possibilidades de integração entre seus habitantes, cabendo ao urbanismo controlar, cor­rigir e prevenir problemas que deteriorem a qualidade de vida.2

Nesse contexto, a Carta de Atenas, de 1933, foi um documento essen­cial para definir proposições que persistem até hoje, como as funções bási­cas da cidade (morar, trabalhar, circular e divertir).

Toda essa relação da pessoa com seu meio passou a ser estruturada por meio de medidas estatais. O Estado, portanto, utilizando atribuições que lhe são tidas como próprias, agindo ou nào em conjunto com a inicia­tiva privada, deve cuidar para que todos os espaços habitados sejam or­denados e planificados, visando ao equilíbrio das relações e a qualidade de vida de seus habitantes. Entre essas medidas estatais, está a elaboração de nor­mas jurídicas urbanísticas.

A boa conformação das normas urbanísticas à localidade a que se des­tinam é fundamental, e sua eficácia só será conseguida pela análise da reali­dade e pelo planejamento do futuro.

Assim, o final do século XX consolidou uma visão publicista da pro­priedade, no sentido de que esta deve atender primeiro às necessidades so­ciais e depois às individuais, assegurando o direito à indenização se tais ne­cessidades sociais impedirem ou reduzirem muito a utilização da propriedade particular.

2. ELEMENTOS A SEREM CONSIDERADOS NA CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DO DIREITO URBANÍSTICO ATUALEntendemos o Direito Urbanístico como um ramo do Direito Público

que impõe, ao Poder Público, o planejamento pela normatização, a execu­ção e a fiscalização de ações que visem à ordenação dos espaços habitáveis, com o objetivo de coordenar a convivência entre as pessoas para melhor qua­lidade de vida.

2 DALLARI. Adilson Abreu. Op. cit.. p. 19.

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TRANSFORMAÇÕES NO CONCEITO DE DIREITO URBANISTICO 31

Dentro dessa abordagem, deve-se apontar algumas possibilidades dife- renciadoras de sua aplicação.

À atividade urbanística é tida como essencialmente pública, pois sua es­trutura é assim apontada pela Constituição Federal (por exemplo, o art. 30, V III, e o art. 182). Neste sentido, o Poder Público não pode se furtar a tomar a iniciativa de realizar as funções da cidade. Pode ocorrer, todavia, a participa­ção da sociedade na elaboração do plano, na propositura de projetos de lei e na execução de obras. Nestes casos, essas ações deverão estar em consonância com o interesse público e o Poder Público sempre deverá coordenar e fiscali­zar as etapas de realização do urbanismo. Na verdade, em face dos problemas financeiros que os municípios vêm atravessando, é até salutar estimular a par­ticipação da sociedade na ordenação de suas cidades.

À dificuldade de conformar o Direito Urbanístico não é um problema pátrio. Noutros países onde tal tema sempre foi tratado enfaticamente tam­bém se percebeu a complexidade de elaborar instrumentos que conseguis­sem conciliar vontades tão opostas: de um lado, o Poder Público, tentando verificar o bem comum, coletivo: de outro, o particular sentindo-se atingi­do em seus direitos e. portanto, não colaborando na perseguição das finali­dades urbanísticas. Em países federativos e de cultura latifundiária, tais pro­blemas se agravam imensamente, pois as instâncias públicas se dividem, desconcentrando o poder do Estado, e o proprietário é culturalmente prote­gido pela sociedade.

Sendo assim, o Direito Urbanístico é um produto das transformações sociais que vêm ocorrendo nos últimos tempos. Consiste em oferecer ins­trumentos normativos ao Poder Público, a fim de que possa atuar no meio social e no domínio privado para ordenar a realidade diante do interesse cole­tivo, com integral respeito ao princípio da legalidade. Seu objeto se amplia até incluir toda forma de sistematização do território, com o pressuposto essencial e inderrogável de uma convivência sã e ordenada dos grupos de indivíduos.

O Direito Urbanístico atual insere o estudo de interferências, pelo ser humano, no meio que o circunda, sob a coordenação e a fiscalização do Po­der Público, com o objetivo de equilibrar as relações das pessoas neste meio, satisfazendo as suas necessidades, porquanto provenientes das funções da

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32 ELEMENTOS DE DIREITO URBANÍSTICO

cidade. Portanto, considerando esta necessidade de equilibrar tais relações, a competencia para agir pode e deve extrapolar os limites da seara pública.

O particular pode agir, desde que motivadamente visando melhorar as relações estabelecidas num dado local, porém sempre sob a supervisão do Poder Público. Queremos dizer com isto que, na maior parte das vezes, a ati­vidade urbanística pode ser delegável ao particular, que se ocupará da orde­nação de espaços habitáveis com a fiscalização do Poder Público e a atuação múltipla, visando sempre ao equilíbrio e ao bem-estar do ser humano em seu meio.

Assim, o Direito Urbanístico tem como preocupação principal a ocu­pação dos espaços habitáveis e, nesse sentido, criou medidas específicas pa­ra que esta ocupação se dê da forma mais adequada e saudável possível. Na verdade, o Direito Urbanístico só se realiza plenamente se extrair dos fatos da realidade os subsídios para suas normas. Cada local tem sua realidade, e isto faz muita diferença para este ramo de Direito.

3. CONCEITO DE DIREITO URBANÍSTICOEntre as possibilidades que a ciênciajurídica nos oferece, os critérios téc­

nicos e científicos são uma forma, se não absoluta, ao menos segura de deli­mitar a natureza jurídica de um dado ramo.

Sob um aspecto geral, não se pode limitar o Direito Urbanístico à fun­ção exercida por um dos Poderes estatais (Judiciário, Legislativo. Executivo),excluindo desde logo um critério exclusivamente orgânico (subjetivo) para

*

sua conceituação. E certo que grande parte da realização das funções urba­nísticas ocorre com o envolvimento do Poder Executivo, mas tal critério é insuficiente para defini-lo, seja em razão da necessária participação do Po­der Legislativo, ou do Poder Judiciário, para dirimir controvérsias, seja em razão da necessária caracterização de seu objeto.

O critério material remonta ao início da formação do Direito Urba­nístico, no século XIX, no qual suas normas eram agrupadas pela mera coinci­dência de seu objeto (beleza, mas e vilas, problemas sanitários). A evolução do Direito Urbanístico trouxe princípios e institutos próprios que o ordena­ram de forma científica perante o Direito, trazendo unidade em seu contexto.

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TRANSFORMAÇÕES NO CONCEITO DE DIREITO URBANISTICO 33

Evoluiu para um critério substancial de modo a indicar que o objeto regula­do faz parte de um subsistema jurídico de características próprias.

Por fim, o critério teleológico também pode ser enfocado como dife- renciador do Direito Urbanístico, na medida em que a consecução das ativi­dades urbanísticas trará a realização de seu objeto.

Feitas essas considerações, pode-se definir o Direito Urbanístico como um ramo do Direito Público que tem por objeto normas e atos que visam à harmonização das funções do meio ambiente urbano, na busca pela qua­lidade de vida da coletividade.

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CapítuloIV

ELEMENTOS FORMADORES DO DIREITO URBANÍSTICO

PÁTRIO

I. COMPETENCIAS CONSTITUCIONAIS URBANÍSTICAS

I . I Competência diante do Estado Federativo brasileiro

A repartição federativa determinou autonomia às suas unidades, divi­dindo-as em quatro espécies: a) política (capacidade de escolher seus repre­sentantes); b) financeira (capacidade de promover e financiar a realização de suas políticas); c) legislativa (capacidade de elaborar suas próprias nor­mas); d) administrativa (capacidade de se auto-organizar). Portanto, União, Estados-membros, Distrito Federal e municípios possuem estas quatro au­tonomias que estão dispostas na Constituição Federal.

Ocorre que cada uma das unidades federativas assume uma função den­tro do Estado e. assim, o conteúdo das disposições constitucionalmente as­seguradas a cada uma será diferenciado.

O princípio que norteou essas diferenciações foi o da predominância do interesse. A União tem interesse geral; os Estados-membros. interesse re­gional; o Distrito Federal, interesse regional e local; e o municípios, Ínteres-

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36 ELEMENTOS DE DIREITO URBANÍSTICO

se local. Por certo que a este criterio da predominância do interesse soma-se o da territorialidade (restrição ao seu limite territorial).

Analisadas, desta forma, as competências constitucionais assumem uma estrutura verticalizada, porém não hierarquizada. Significa dizer que naque­las matérias nas quais deva haver normas federais, os Estados-membros, o Distrito Federal e os municípios devem respeitar as orientações gerais para, posteriormente particularizaren! seus interesses.

Contudo, a União não pode legislar sobre os interesses de determinados Estados-membros ou municípios. Não são poucas as confusões e distorções havidas diante do quadro de normas gerais federais. Elas ocorrem geralmente porque a União, além de editar estas normas gerais, também edita as normas particularizadoras para a instância federal. Assim, no mesmo texto legislativo pode haver orientações gerais para Estados-membros, municípios e Distrito Federal e orientações particularizadas para a própria União, enquanto unidade integrante da estrutura federativa.

Seguindo este mesmo raciocínio, a própria Constituição Federal, em seu texto, enumera taxativamente as competências da União Federal e adota um sistema dinâmico e exemplificativo para as competências dos outros entes federativos. Isto porque a Constituição Federal, além de ser o texto jurídico supremo de nosso país, exerce a função de Constituição da União Federal assim como a Lei Orgânica o faz para o município.

Aquilo que não estiver explícito como competência da União caberá aos Estados-membros, Distrito Federal e/ou municípios exercer. Esta equa­ção poderia se resolver com razoável tranqüilidade fosse o Texto Constitu­cional dotado de rigor técnico inquestionável, o que não ocorre. Competências privativas e exclusivas ora se eqüivalem, ora se distanciam e mesclam-se com as reservadas. Concorrentes, complementares e suplementares também são competências de difícil delimitação da forma como se apresentam. Resta a ve­rificação caso a caso, tentando preservar algum critério norteador para esta interpretação de definição de competências constitucionais.

Dentro da estrutura constitucional, a competência legislativa deve exis­tir para todos os entes federativos, ao menos dentro de sua capacidade de auto-organização, resguardando a predominância de seus interesses e den­tro de seus limites territoriais.

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ELEMENTOS FORMADORES DO DIREITO URBANISTICO PATRIO 37

Acresce-se a estes critérios o fato de a União ter suas competencias esta­belecidas de forma taxativa e não exemplifícativa (só pode agir dentro das com­petencias dispostas explicitamente) e de competir aos município tudo que seja de seu interesse local (art. 30,1). Resta a dúvida: o interesse local se so­brepõe ao regional e ao nacional? Parece que não, se tal sobreposição vier de competencias determinadas explicitamente pela Constituição Federal tanto aos Estados-membros quanto à União.

Resumidamente, essas sobreposições podem ocorrer diante de duas hi­póteses: sobre o mesmo assunto ou sobre assunto diverso. Sobre o mesmo assunto, a sobreposição, na verdade, nào ocorre, pois a repartição de inte­resses (nacional, regional e local) faz com que cada um atue nos limites de suas atribuições (por exemplo, arts. 23 e 24 da Constituição Federal). Assim, quando houver conflito de interesse, prevalecerá o interesse nacional sem­pre. Assim, o interesse local deverá sempre ser respeitado e a eventual diver­gência deverá ser composta dentro de uma expectativa de respeito à instân­cia municipal.

1.2 Competências urbanísticas

Todas as instâncias federativas possuem competências no tocante ao desenvolvimento urbano. A Constituição Federal de 1988 permeou, por seus enunciados, um grande número de competências urbanísticas distribuídas entre as unidades federativas.

As competências urbanísticas estão elencadas em diversos artigos da Carta Magna. Traçaremos, em rápidas linhas, a estrutura dessa divisão. Ob­servamos, contudo, que o total dos dispositivos referentes à matéria urba­nística está inserido em diversos Capítulos e Títulos, necessitando de uma leitura sistematizada para sua exata compreensão e extensão. Interessa-nos, no momento, indicar quais responsabilidades caberão a quais pessoas pú­blicas, indicação essa também consagrada pela doutrina.

A União tem suas competências determinadas pelo art. 21, XV III (pla­nejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, espe- cialmente secas e inundações), IX (diretrizes da política nacional de trans­portes) e XX (instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos). O primeiro inciso in-

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38 ELEMENTOS DE DIREITO URBANÍSTICO

dicado é pertinente à matéria urbanística, pois (ais calamidades tomam gra­ves proporções quando afetam núcleos urbanos, desestruturando sua roti­na e a de seus habitantes. Quanto à segunda e terceira indicações, essas dire­trizes apontarão, genericamente, formas, mecanismos e prioridades que os estados e municípios deverão seguir. São competências materiais, ou seja, de execução, portanto se determina que o Poder Executivo Federal estabele­ça políticas públicas voltadas para os assuntos acima transcritos. Poderá ser necessária a colaboração do Poder Legislativo Federal, promulgando nor­mas jurídicas que viabilizem a aplicação de tais políticas.

Também o art. 22 determina competências para a União, porém estas são exclusivamente legislativas, ou seja, sua elaboração caberá apenas ao Po­der Legislativo Federal. No tocante às competências urbanísticas deste ar­tigo, indicamos os incisos II (desapropriação) e IX (diretrizes da política nacional de transportes).

O art. 23 prescreve competências comuns a todas as unidades federati­vas (União, Estados-membros, municípios e Distrito Federal). Considera­mos tais competências como do tipo material, de execução, e não compe­tência legislativa. Assim, todas estas pessoas políticas não só podem como devem proteger bens de valor histórico, artístico e cultural (III); impedir a evasão, destruição e descaracterização de obras de arte e outros bens de gran­de valor (IV); promover programas habitacionais e de saneamento (IX), constituindo, esta proteção, em um dever jurídico. Isso propugnará por ações que intervenham em situações gravosas ou degradantes ao patrimônio aqui protegido. A omissão do Poder Público diante do desrespeito a este disposi­tivo poderá acarretar a responsabilidade do agente competente em agir.

O art. 24 define competências legislativas entre União, Estados-mem­bros e Distrito Federal, estabelecendo um complexo sistema de atribuições que se mesclam por complementações e substituições entre estas instâncias federativas. Desde logo se percebe a ausência do município neste rol, mas este assunto terá abordado mais adiante.

Uma das competências estabelecidas neste artigo é a concorrente. Esta competência supõe um desdobramento de interpretações com relação às atribuições nela descritas. Inicialmente, é possível afirmar que é uma com­petência que, de forma escalonada, atribui o mesmo assunto a mais de um

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ELEMENTOS FORMADORES DO DIREITO URBANISTICO PATRIO 39

ente federativo. Também se pode afirmar que esta atribuição nào gera “concorrência” entre os entes federativos, no sentido de que, sobre uma mesma disposição constitucional, haja competição e conflito de atribuições. Portanto, o termo “concorrência” é aqui entendido como a distribuição de atribuições diferenciadas sobre um assunto, entre as unidades federativas classificadas como competentes.

Dentro da estrutura descrita no art. 24 da Constituição Federal (com­petência concorrente), há o desdobramento em uma competência comple­mentar e uma competência suplementar. A satisfação deste artigo deve ocorrer da seguinte forma: a) a União editará normas gerais; b) na ausên­cia de normas gerais (inércia da União), os Estados-membros e o Distrito Federal podem editar as normas gerais que poderão perdurar até que se­jam editadas as normas gerais federais, quando estas deverão substituir aquelas (competência suplementar); c) os Estados-membros e o Distrito Federal, diante das normas gerais, legislarão mediante seus interesses, complementando-as.

Consagra o art. 24, entre outros temas, o Direito Urbanístico (I), a de­fesa do solo (V I), a proteção do patrimônio histórico, cultural e paisagístico (V II); a responsabilidade por dano a bens e direitos de valor artístico, his­tórico e paisagístico (V III). Assim como o Direito Tributário, o Financeiro, o Penitenciário e o Econômico, o Direito Urbanístico foi trazido para esta estrutura de competências mais descentralizada, diferente de outros ramos jurídicos que estão sob a regência privativa da União, conforme dispõe o art. 22,1, ao da Constituição Federal. Para a agilidade necessária ao Direito Urbanístico, parece-nos um ganho sua localização neste artigo, inclusive porque reforça a peculiaridade da territorialidade no seu trato.

O art. 25 elege os Estados-membros para decidirem sobre a criação de região metropolitana, microrregiões e aglomerações urbanas (§ 3"), man­tendo a tradição constitucional a respeito do assunto.

O art. 30 enumera competências diversas dos municípios, deixando cla­ros à sua leitura dois pontos principais:

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40 ELEMENTOS DE DIREITO URBANÍSTICO

a) em todo assunto que for peculiar, próprio do Municipio, este terá com­petencia para agir (Poder Executivo) e/ou legislar (Poder Legislativo);

b) a organização da cidade e a normatização desta organização é de sua competência exclusiva.

A realização desta ordenação deverá considerar alguns elementos que, necessariamente, auxiliarão na formação e na realização da urbanização, co­mo criar, organizar e suprimir distritos (IV ); organizar serviços públicos de interesse local, como o transporte (V) ; promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do par­celamento e da ocupação do solo urbano (V III); planejar sobre o uso e a ocu­pação do patrimônio histórico-cultural local (IX).

Acrescentamos a isto a competência suplementar municipal sobre as ins­tâncias federal e estadual. Neste sentido, a exclusão do ente municipal na dis­posição do art. 24 é aparente, pois quando União e Estado-membro não legislarem sobre matérias que interferem 110 interesse local, 0 município po­derá legislar suplementarmente dentro dos parâmetros estabelecidos nos parágrafos do art. 24.

Na verdade, a instância local é quem detém a competência material e legislativa para realizar a política urbana, conforme determina 0 art. 182 da Carta Magna. Significa dizer que 0 Poder Executivo municipal tem um papel de grande importância (insubstituível até) na realização e concretização da organização e adequação do espaço urbano dentro de princípios e diretrizes que tragam um desenvolvimento equilibrado e saudável para a população.

Com relação ao direito dos particulares, devemos indicar 0 art. 5o XXI e XX II, que garante 0 direito constitucional de as pessoas poderem ser pro­prietárias de imóveis e que estes imóveis deverão cumprir sua função social (imóvel rural, art. 186, ou imóvel urbano, art. 182 da CF). Vale dizer que, para que alguém possa manter seu direito sobre sua propriedade, deverá adequar seu uso ao que a lei entende como conveniente. A lei determinará padrões, índices e usos que 0 proprietário deverá seguir. Se assim não 0

fizer, mediante a fiscalização do Poder Público, este proprietário poderá ser punido pelo uso indevido de sua propriedade. Mas a função social da pro-

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priedade é mais que isso, é bem mais que o consagrado instituto de poder de polícia administrativo ou que uma limitação administrativa. A função social da propriedade impõe obrigações ao detentor do bem. de sorte que sua utilização seja adequada e conveniente à localidade em que se insere. Portanto, o proprietário de imóvel urbano é figura ativa na realização dos objetivos urbanísticos.

1.3 Município

0 município, como unidade político-administrativa, tem sua origem na República romana, na qual algumas comunidades, após serem conquis­tadas pelo exército, ganhavam, do Senado, certas prerrogativas com relação à sua autonomia.1 A hegemonia romana espalhou este modelo municipal pelo Ocidente, que, aos poucos, foi adquirindo contornos próprios em cada Estado.

Atualmente, o município é detentor de grandes responsabilidades po­líticas, acentuadas pelo processo da urbanização, que traz consigo imensas distorções, agravando as diferenças sociais e econômicas da população.

No Brasil, o município possui características muito próprias e marcantes: integra o quadro federativo do país, realizando-se por meio de autonomia fi­nanceira, legislativa, política e administrativa. Além disso, é constituído por um núcleo urbano, sede do governo municipal (cidade), e pela área rural.

Diante das condições agravadas que os núcleos urbanos têm apresen­tado, interessa, ao Direito Urbanístico, não só o estudo da ordenação das cida­des mas, todo e qualquer tipo de núcleo urbano, seja ele sede de governo muni­cipal ou não. Contudo, apesar da extensão do objeto de interesse do Direito Urbanístico, não é demais lembrar que o Poder Público municipal (Poder Le­gislativo e Poder Executivo) é que executará e concretizará os processos urba­nísticos, sejam estes na cidade ou fora dela.

O município deve ser considerado na totalidade de seu território para fiOns de Direito Urbanístico (Lei n. 10.257/01, art. 2o, V II). Na cidade, núcleo do município, todos os instrumentos poderão e deverão ser utilizados para a

1 MEIRELLES. Hely Lopes. Op. cit.. p. 25.

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plena realização dos objetivos urbanísticos. Nos eventuais distritos existen­tes dentro do territorio do município, também deverá haver tratamento urba­nístico, observando sua peculiaridade e sua fragilidade. Incluímos, também, a área rural, naqueles espaços onde se formam vilas ou pequenos aglomera­dos de casas, pois tais pessoas têm, como cidadãs e munícipes, o direito à oferta das funções da cidade e dos equipamentos públicos adequados às suas necessidades.

1.4 O problema da instituição de região metropolitana em um país federativo

0 crescimento das cidades, provocado pelo processo de urbanização da sociedade moderna, trouxe consigo o adensamento de muitas regiões que, por vezes, extrapolam o limite do município. A continuidade urbana, como tal fenômeno é chamado, criou algumas situações2 que têm implicações de or­dem política, jurídica, social e econômica. De ordem política porque, diante de problemas regionais, deverá haver esforço e cooperação de cada município na

2 Estas situações derivaram em espécies cujos conceitos emprestamos de José Afonso da Silva: região metropolitana é o "conjunto de cidades próximas, pertencentes à mesma comunidade sócio-econômica. polarizadas por uma cidade maior, sem necessidade de verificação de continuidade urbana". Microrregião consiste em um "agrupamento de Municípios limítrofes que apresente, entre. si. relações de interação funcional de natureza físico-territorial, econômico-social e administrativa, exigindo planejamento integrado com vistas a criar condições adequadas para o desenvolvimento e integração regional". Aglomeração urbana é “o agrupamento de Municípios limítrofes que apre­sentem intensas relações de integração funcional de natureza econômica e social, multiplicidade de ofertas de bens e serviços que atendem à própria região ou. even­tualmente, a outras regiões estaduais, formando, ou com tendência a formar, áreas de urbanização contínua entre dois ou mais Municípios". Direito urbanístico brasileiro, cit., p. 153.149 e 150. Joaquim de Castro Aguiar oferece o conceito de conurbação urbana: “uma conurbação. situação de fato, consistente na aglutinação de duas ou mais unidades urbanas, apresentando área territorial intensamente urbanizada e cons­tituindo-se em pólo de atividade econômica, com necessidades que exigem solução conjunta e não a nível local. |...| uma conurbação, já agora com toque do direito, desde que a lei complementar a estabeleça, não no sentido de criá-la. porque ela já existe, mas no sentido deque, partindo de uma realidade urbano-regional preexistente, lhe atribua regimejurídico especial de administração, relativamente às necessidades metropolitanas". Direito da cidade. Rio de Janeiro, Renovar. 1996. p. 220.

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perseguição de soluções comuns, porém, sem interferir jamais na autono­mia de cada um, inexistindo uma relação de hierarquia nesta situação mes­mo com a participação do governo estadual. De ordem jurídica porque, em face do princípio da legalidade, enfocado tanto na ótica do Poder Públi­co quanto na do particular, deverá haver legislação específica estadual e mu­nicipal para estabelecer as novas relações. Quanto à ordem social, se o esta­belecimento da região metropolitana possuir uma dinâmica harmoniosa da oferta de serviços comuns, com padrões semelhantes, poderá haver menos desequilíbrio entre a população afetada. Por fim, quanto ao aspecto econô­mico, a boa fluência de toda a região metropolitana pode trazer um desenvol­vimento similar em todo seu território.

Contrariamente, a irregularidade dos aspectos acima citados poderá acentuar o desnível econômico já existente (instalação de indústrias, postos de serviços e comércios, por exemplo, gerando emprego apenas em certas regiões).

O problema se potencializa diante da estrutura federativa existente no Estado brasileiro. A Constituição Federal vigente não resolveu nem encami­nhou para uma solução a dificuldade sobre a titularizaçâo desta instância intermediária entre o município e o Estado-membro. O art. 25 da Carta Mag­na estabelece a competência para o Estado-membro instituir região metro­politana, aglomerações urbanas e microrregiões, definindo a iniciativa para sua criação. Contudo, a elaboração e a execução da política e planejamento integrado que deve haver em espaços com tais peculiaridades não foram resolvidas. Na verdade, o fato de o município gozar de total autonomia, conforme dispõe o Texto Constitucional no art. 18, acentua este quadro, tornando inconstitucional qualquer iniciativa dos Estados-membros que imponha restrições ou obrigações aos municípios.

A doutrina pátria se debruçou sobre este problema diversas vezes. Hely Lopes Meirelles3 já apontava em seus textos que a instituição de região me­tropolitana é simplesmente uma divisão administrativa, podendo alcançar certa autonomia financeira. Deveria ser estabelecida, a seu ver, uma pessoa jurídica de direito público (autarquia), de direito privado (entidade paraes-

3 MEIRELLES, Hely Lopes. Op. cii. p. 75.

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tatal). ou um órgão do Estado (Secretaria de Estado, Departamento ou sob a modalidade de Colegiado ou Conselho).

Uma lei estadual poderia criar a entidade regional específica, apontan­do as funções públicas comuns a serem desenvolvidas de forma integrada pelo governo estadual. Dependeria da maturidade político-administrati­va dos municípios sua integração e participação na realização da região ora descrita.4

Neste cenário federativo, recai sobre as autoridades municipais a res­ponsabilidade de traçar uma política de cooperação entre os municípios da região. Contudo, diante do desacordo de alguns, nada poderá ser feito. Uma situação freqüente diz respeito ao município-pólo. Este se sente mais valori­zado por sua importância econômica e acaba impondo, aos municípios me­nores, que suportem vários de seus desequilíbrios.

Tais situações desconexas poderiam ser evitadas se houvesse, no Texto Constitucional, a previsão de que, mediante a instituição das formas descri­tas no art. 25, ao Estado-membro competiria organizar um conselho me­tropolitano composto pelos prefeitos, com finalidade deliberativa sobre os problemas comuns. Esta abordagem não feriria o pacto federativo, assim como também não o faz o instituto da intervenção (arts. 34 a 36), pois só a Constituição pode excetuar a própria Constituição, conferindo contorno próprio às suas disposições.

Diante da realidade jurídico-constitucional brasileira, a existência de re­giões metropolitanas é ficta e depende da boa vontade política dos envolvi­dos para obter alguma eficácia.

2. FUNÇÃO PÚBLICAA noção de função existe, no Direito Público, de maneira antagônica ao

princípio da autonomia de vontade existente no Direito Privado. Significa dizer que a função está, inexoravelmente, ligada à idéia de cumprimento de dever preestablecido, ao alcance de uma finalidade. Para que esta finalidade

J AMBROSIS, Clementina de. Regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e micror- negiões. In: FUNDAÇÃO PREFEITO FARIA LIMA. Estatuto da cidade. São Paulo, Cepam. 2001, p. 170.

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seja atendida, atribui-se poder ao sujeito competente. Portanto, o poder é um instrumento para atingir o cumprimento da função. Agrupar atividades pú­blicas sob o comando de uma função é Ihe dar um sentido e um regime ju­rídico próprio.

Não está explicitado em qualquer texto legal de forma clara e objetiva­da que a função pública seja um princípio jurídico. Porém, o entendimento de que o Poder Público deve buscar interesses coletivos ou de essência pú­blica é encontrado em toda a organização de seus poderes e, por conseqüên­cia, suas funções.

Assim, dizer que o Estado deva cumprir suas funções é o gênero, no qual a conformação do Direito Urbanístico à função pública é espécie. O exercí­cio de ordenar os espaços habitáveis de certo núcleo urbano, conferindo- lhes equilíbrio e harmonia na convivência de suas múltiplas formas, é mais uma especificação das diversas funções que o Estado possui.

Analisando por outro prisma, podemos afirmar que as conseqüências que determinam o urbanismo como função pública se refletem principal­mente na atualidade, quando o Poder Público vê-se compelido a se desfa­zer de seus serviços e atividades, passando-os para a iniciativa privada.

Se assim fizer, no tocante aos elementos do Direito Urbanístico, o Po­der Público jamais poderá se furtar a estabelecer normas jurídicas urbanís­ticas (função legislativa), nem deixar de fiscalizar eventuais atividades urba­nísticas delegadas a particulares até sua conclusão (função administrativa).

Além disso, mesmo depois de realizadas obras e intervenções urbanís­ticas, sempre competirá ao Poder Público a iniciativa de manter os espaços ordenados e buscar que todos cumpram o que foi estabelecido pelas nor­mas jurídicas urbanísticas.

3. PRINCÍPIOS DE DIREITO URBANÍSTICOIndicar os princípios da legalidade, da supremacia do interesse público,

da moralidade, da publicidade, entre tantos outros, faz com que todas as nor­mas de Direito Público sejam produzidas e executadas nas mesmas confor­midades, dando segurança jurídica ao Estado e à sociedade. Porém, não espe­cializa o tratamento a ser dado para certa matéria. Essa especialização, dentro

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do sistema jurídico, é de fundamental importancia para atribuir autonomia à matéria enfocada.

Os princípios gerais de Direito Público5 por certo devem ser conside­rados quando da análise de todos os ramos de Direito que o integrem. Princípios como o da publicidade, legalidade, moralidade, impessoalida­de e eficiência (Constituição Federal, art. 37) devem estar presentes em todas as ações que envolvam o Poder Público, assim como os princípios tidos por implícitos, tais como o da motivação, da razoabilidade e da proporcionalidade.

O que traz a unidade, a coesão para as normas de cunho urbanístico, bem como aos seus elementos e institutos, é a definição dos princípiosjurí- dicos. Quanto mais específicos estes forem, melhor ordenarão e organiza­rão este ramo.

A indicação de princípios próprios e exclusivos a certo ramo do Direito não é tarefa fácil. Muitos deles têm seu nascedouro em um dos princípios gerais do direito e ganham "roupagem nova", uma nova nomenclatura, com interpretação particularizada, mas, na sua essência, repetem os ensinamentos daquele que lhes deu origem. Outra ponderação a ser feita diz respeito à dificuldade de delimitar a interpretação e o alcance dos princípios entre si, pois ocorre um desdobramento interpretativo que, justamente, trará o nexo da resposta procurada. Por isso, muitas vezes, para explicar um princípio há necessidade de referir-se a outro.

O Direito Urbanístico francês, por exemplo, desenvolve seus princípios urbanísticos nas diversas etapas do desenvolvimento da atuação urbanísti­ca: princípios de regulamentação (normas, planos, procedimentos), de su­premacia das normas urbanísticas, de edificação (construir, demolir), e de conteúdo judiciário e administrativo.6

5 GORDILLO. Augustin. Princípios gerais de direito público. São Paulo, RT, 1977; SUNDFELD. Carlos Ari. Fundamentos do direito público. São Paulo, Malheiros, 2000. p. 152-86.

'' 11UBERT, Charles. Les principes de íurbanisme. Paris, Dalloz. 1993.

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No caso do direito brasileiro, a doutrina não é pacífica em classificá-los. José Afonso da Silva7 e Regina Helena Costa8 utilizam-se das lições de Antonio Canceller Fernandez para indicar a função pública, a conformação da proprie­dade urbana, o planejamento urbanístico ao custo da urbaniílcação e ajusta distribuição dos benefícios e ônus derivados da atuação urbanística como prin­cipios de Direito Urbanístico com possível aplicação em nosso direito pátrio.

Indicam, ainda, princípios constitucionais, tais como função social da propriedade, subsidiariedade e coesão dinâmica, como próprios do nosso sistemajurídico.

A nosso ver. os princípios próprios ao Direito Urbanístico são:

3.1 Função social da cidade

Entendemos esta expressão, consagrada no Texto Constitucional, no art. 182, como a síntese suprema do Direito Urbanístico. Ela resume a fi­nalidade última das atividades urbanísticas, quer sejam públicas, quer se­jam privadas. Traduz, em sua essência, a vocação do coletivo sobre o par­ticular, dá respaldo e sustenta o princípio da função social da propriedade: por isso que, mais que a propriedade, a cidade deve existir e servir a seus habitantes.

3.2 Função social da propriedade

O princípio da função social da propriedade não é novidade no mundo jurídico, de forma geral. Sobre ele a doutrina se debruça há muito tempo, tentando desvendá-lo e traduzi-lo em um conceito. Para saber qual é a fun­ção social que determinada propriedade deve ter ou precisa cumprir, é ne­cessário analisar toda legislação que a afete. Porém, não precisamos ir tão longe para ter uma noção segura de como isto deva ocorrer.

T Op. cit., p. 38.

8 Princípios de direito urbanístico na Constituição de 1988. /«. DALLARI, Adilson Abreu;FIGUEIREDO, Lúcia Valle (coords.). Temas de direito urbanístico 2. São Paulo. RT, 1991. p. 109.

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Não é demais salientar que os espaços urbanos são delimitados pelo exercício das funções tidas como essenciais para uma cidade, quais sejam: habitar, trafegar, trabalhar e divertir. A somatória destas funções e o adensa­mento populacional, além de a caracterização da atividade principal não ser a tipicamente agrícola (estabelecendo um critério negativo), mas sim ativida­des interventoras no meio ambiente, fazem com que este espaço, assim ca­racterizado, seja considerado urbano. Traça-se, portanto, um importante di­ferencial: a separação dos espaços rurais e dos espaços urbanos.

Todas as propriedades necessitam atingir de forma eficaz e plena sua fun­ção social, tanto a rural como a urbana. Ocorre que elas terão parâmetros di­ferentes para alcançar tal finalidade, pois seu contexto traz elementos pecu­liares a cada território. De qualquer forma, o Poder Público assumiu a função de determinar qual é o papel que cada imóvel deve exercer, independente­mente de este ser caracterizado como urbano ou rural.

Assim, podemos dizer que a função social da propriedade ocorre no equi­líbrio entre o interesse público e o privado, no qual este se submete àquele, pois o uso que se faz de cada propriedade possibilitará a realização plena do urbanismo e do equilíbrio das relações da cidade. Por certo que tais dispositi­vos, que interferem completamente no uso da propriedade, atingirão o seu conteúdo econômico, já que a função social determina o direito do proprie­tário no uso e na disposição de sua propriedade dispondo seu rendimento possível. Esta interferência no conteúdo econômico faz com que, muitas ve­zes, os proprietários de grandes espaços urbanos dificultem a ação do Estado nesta reorganização urbana voltada para o social.

Cabe esclarecer, todavia, que os dispositivos legais que permeiam o uso, o gozo e a disposição da propriedade são de origem mista, ou seja, seu regime jurídico provém de diversos ramos do direito. O Direito Civil traz, historica­mente, disposições com relação ao uso da propriedade pelo particular.

Em um primeiro momento, a propriedade podia ser usada como seu dono bem quisesse. Ser proprietário significava ser dono absoluto, livre de toda intervenção. Já em uma segunda fase, o proprietário poderia usar e dis­por de sua propriedade como melhor entendesse, desde que respeitasse al­guns parâmetros inspirados na boa convivência (por exemplo, direito de vi­zinhança) . Até este momento, o Direito Civil absorveu estas regras como suas,

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pois tratavam de propriedade particular com regras mínimas de conviven­cia. As relações urbanas, consideradas de forma coletiva e/ou difusa, não eram, até certo tempo, percebidas. Restringiam-se à esfera particular.

Já o Direito Público atinge este vácuo não alcançado pelo Direito Civil, nào no sentido de complementá-lo, mas sim porque novas relações se estabe­leceram em virtude do papel desempenhado pelo Poder Público. O interesse pelo equilíbrio da sociedade, da necessidade coletiva, estabelecendo formas de harmonizar a convivencia entre todos, é papel supremo e indelegável do Poder Público. Quanto ao Direito Tributario, por exemplo, este percebe, na propriedade, um objeto de seu interesse, dado que ela assumiu grande valor para todos (valor económico, social, familiar). Se esta propriedade está plena noseu exercício da função que lhe foi determinada pelo Poder Público, então terá um tratamento diverso do daquela propriedade que está distanciada de sua finalidade (Constituição Federal, art. 156, § Io, e art. 182, § 4o).

Questionar o papel que a propriedade possui na sociedade é necessá­rio para o amadurecimento das relações entre todos os tipos de pessoas. No nosso sistema jurídico atual, a função social da propriedade procura fazer justiça social no uso das propriedades, além de contribuir para o desenvolvimento nacional na medida em que as cidades albergam grande parte da população e o uso das propriedades interferirá brutalmente na forma com que as pessoas se relacionam.

Compete ao Estado indicar a função social da propriedade. Na esfera federal, esta competência se traduz na elaboração de normas gerais que in­diquem parâmetros e diretrizes para o Poder Público municipal. Quanto a este, o município deverá não só tecer com detalhes o regramento que orde­na o seu território como deverá elaborar planos de desenvolvimento urba­no estimulando, ou coibindo, a iniciativa privada a agir, além de vincular as ações e as verbas públicas em um sentido convergente ao da iniciativa priva­da. Quanto ao papel dos Estados-membros, percebemos que sua atuação, neste caso, é inexistente, pois feriria a autonomia federativa impor determi­nação estadual sobre o ordenamento do solo municipal.

Por fim, faz-se necessário abordar o papel do Poder Público na realização da função social, não como o tutor das necessidades públicas, mas como pro­prietário de imóvel urbano. Sendo proprietário ou, de qualquer forma, utili-

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zando imóveis e/ou o solo urbano, o Poder Público, em qualquer de suas esferas, deverá atender às exigencias da lei para realizar plenamente a fun­ção social de sua propriedade. Por certo que, em muitos casos, estas proprie­dades terão finalidade diversa da do particular, como é o caso de uma praça pública. Seria impossível admitir-se a não-utilização ou a subutilização deste espaço, forçando o Poder Público à edificação compulsória, se não por outra razão, ao menos pelo fato de uma praça estar cumprindo, na sua essência, uma finalidade pública, e esta se sobrepõe sempre às finalidades particulares. Porém, imóveis vazios, abandonados ou construídos fora dos requisitos le­gais, deverão não só se adequar às exigências normativas, mas também à destinação que a eles deva ser dada, conforme o estabelecido nos planos mu­nicipais, inclusive e principalmente. A positivação deste princípio ocorre por meio de diversos artigos do Texto Constitucional, como o art. 5o, XXIII; art. 170, III,art. 182, §§ 2oe 4o; arts. 184 e 186 (propriedade rural).

3.3 Coesão dinâmica

Este princípio implícito do Direito Urbanístico reflete o dinamismo e o resultado que suas ações buscam ter, sendo-lhe extremamente peculiar. As atividades urbanísticas procuram interferir, modificar, salvaguardar, resgatar, restaurar a urbe com a finalidade de melhorar a qualidade de vida local.

Assim, cada ação surge para atuar concretamente em certo espaço, tendo uma finalidade específica e outra mais genérica. Por exemplo, a restauração de um bem tombado tem sua finalidade específica no ato de restauração e em seu resultado, destacando seus elementos valorativos e a saúde de sua estrutu­ra. Este bem faz parte do contexto cultural de sua localidade, seja no aspecto histórico, seja no paisagístico ou outro, e o estímulo à cultura local resulta em respeito e auto-estima dos cidadãos. É a finalidade genérica.

Na medida em que a ação urbanística se resolver, ela terá mudado a realidade do objeto trabalhado (não havia a rua. agora há; a igreja estava ruindo, agora está bela) e, portanto, as ações urbanísticas posteriores terão de ser enfocadas segundo esta nova realidade.

O princípio da coesão dinâmica surge justamente para que as modifi­cações feitas pelas interferências urbanísticas sejam continuadas por ações

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que tenham pertinencia e nexo com o contexto. As mesmas prioridades, o mesmo enfoque deverá ser dado para as ações urbanísticas de um certo lo­cal em certo tempo. A dinâmica do planejamento é fundamental para a efi­cácia deste principio. Na medida em que certo plano seja aplicado, ele vai se desatualizando com relação ao seu objeto, justamente por transformá-lo. Assim, o plano deverá prever mecanismo de revisão e atualização de seu conteúdo. É a coesão dinâmica.

Contudo, não podemos nos furtar a abordar o princípio da legalidade*

diante deste enfoque dinâmico. E o princípio conformador do Estado de Direito. Garante segurança jurídica aos cidadãos por definir seus direitos e impor limites à atividade pública, estando assegurados na Constituição Fe­deral pelo art. 5o, II, e art. 37, capul, respectivamente.

Na verdade, o raciocínio norteador deste princípio consagra a autono­mia da vontade dos particulares, que só poderão ter seus comportamentos restringidos por meio de disposição legal, ou seja as leis consideradas nas disposições estabelecidas no art. 59 da Carta Magna. Por seu turno, o Poder Público além de só poder impor limites à atuação particular, por meio de normas jurídicas, apenas poderá agir mediante disposição legal, tornando todo o seu comportamento saudavelmente previsível.

A atuação urbanística, portanto, só poderá ser imposta por meio de lei, o que faz com que esta atividade urbanística necessite da participação per­manente do Poder Público para se realizar.

Além disso, a iniciativa destas normas jurídicas poderá partir do Poder Executivo, aumentando a necessidade de integração entre este e o Poder Le­gislativo. Como, em geral, as intervenções urbanísticas geram despesas, far-se-á necessário algum planejamento na sua elaboração para que sua realização possa ser viável. Em suma, o princípio da legalidade para o Direito Urbanís­tico gera uma série de conseqüências e atitudes necessárias para garantir a plena eficácia do princípio da coesão dinâmica.

3.4 Princípio da subsidiariedade

Já analisamos que a matéria urbanística deve ser tratada e resolvida no âmbito do Direito Público, pois sua atuação é essencialmente uma função

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pública, tendo em vista sua indissociabilidade do interesse coletivo. Porém, o que torna sua interpretação peculiar é o fato de que a esta função pública pode-se somar urna relativa negociação dos interesses coletivos urbanísti­cos. Isto pode se dar quanto às metas a serem traçadas e às ações a serem executadas (por quem, de que forma).

Necessariamente, o Poder Público deverá coordenar todo o processo de urbanismo oficial - esta é uma função pública. Ele deverá estar presente desde o processo de planejamento até a execução final de todas as interven­ções previstas, fiscalizando cada etapa de execução do plano. Ocorre que o particular pode participar das decisões de caráter urbanístico de cunho fi­nalista, ou seja, as determinações que atingem direta e concretamente o par­ticular, mas não aquelas que definem como e quando a Administração Pú­blica agirá.

Percebemos, portanto, duas formas de o particular participar e nego­ciar as ações urbanísticas: a) no desenvolvimento de um processo que o Po­der Público tenha iniciado (por exemplo: debates sobre o Plano Diretor); b) tomando a iniciativa de propor ações urbanísticas tais e quais em certa região da cidade. Entende-se que esta última forma, se estiver acompa­nhada da responsabilização pelos custos da operação e desde que esteja em conformidade com os dispositivos legais pertinentes, deve ser delega­da ao particular pelo Poder Público sem eximir-se da fiscalização necessá­ria e permanente.

O principio da subsidiariedade tem de se adequar aos parâmetros le­gais para poder ser aplicado, porém entendemos que a omissão do Poder Público ou sua recusa expressa a uma proposta de operação urbanística pe­lo particular e custeada por este fere o princípio da eficiência. À sociedade, o que interessa é que os serviços públicos sejam prestados e que estejam ade­quados, suficientes e proporcionais à sua necessidade. Não há nenhuma veda­ção constitucional à participação da coletividade no desenvolvimento urbano. O que precisa ficar claro, entretanto, é que esta possibilidade de negociação e participação pela sociedade nào pode desvirtuar a supremacia do interesse pú­blico sobre o privado.

Neste sentido, convém abordarmos o princíp io da supremacia do inte­

resse público sobre o privado, que, mais que de Direito Público, é um princípio

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geral de Direito, pois deve ordenar qualquer sociedade. Os atos do Poder Pú­blico, sejam eles quais forem, deverão perseguir o bem da coletividade, pois será por meio da segurança e harmonização da sociedade que se conseguirá realizar preceitos como cidadania, dignidade, isonomia etc. Por exemplo, se urna familia não consegue ter acesso à moradia própria, se não houver uma política e um planejamento por parte do Poder Público para este setor, difi­cilmente este problema, que na esfera familiar consome todas as atenções de seus integrantes, será resolvido de forma digna respeitando os cidadãos.

Mais que nunca, hoje o Estado precisa estar voltado para sua sociedade, identificando suas deficiências e necessidades para tornar possível a viabi­lização e a execução dos interesses individuais, ou seja, pelo equilíbrio do todo será possível alcançar a satisfação de cada um. Com preceitos princi- piológicos, os arts. Io e 3o da Constituição Federal impõem uma série de objetivos ao Poder Público que, como conseqüência, justificarão atos que restringirão os direitos individuais em nome da coletividade.

iNa esfera jurídica, o legislador trará o princípio da supremacia do in­teresse público sobre o privado no momento da elaboração da lei (por exemplo: lei municipal que fixa critérios sobre a função social da proprie­dade urbana). Também servirá de elemento vinculante a toda a Adminis­tração Pública quando de sua atuação, posto que seu não-cumprimento ensejará desvios de comportamento do administrador público, maculando o ato produzido em desconformidade com este princípio.

Para o Direito Urbanístico, este princípio sustenta suas normas e ações, tendo em vista que a tradição brasileira de visão privatista da propriedade dificulta a eficácia de suas normas. Assim, a existência de tal mandamento respalda o legislador e o administrador público na perseguição dos atos que busquem harmonia e qualidade de vida para a coletividade, mesmo que, para isso, tenha de restringir certos interesses individuais.

3.5 Princípio da repartição de ônus e distribuição de benefícios

Este princípio de Direito Urbanístico na verdade traduz o tratamento isonômico que deve ser dado a todas as pessoas atingidas por atividades urbanísticas. As intervenções urbanísticas existem para melhorar a quali-

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dade de vida local, portanto, suas interferências sempre resultam em bene­fícios para a coletividade. Se assim não fosse, tal ação tomar-se-ia ilegítima. Contudo, é possível que alguém tenha seu direito particular restringido em face das necessidades sociais, que. no entanto, valorizarão a região afetada.

Esta melhoria, em geral, se traduz economicamente em valorização imo­biliária, fazendo com que os proprietários sejam os beneficiados da atuação urbanística. Se tais proprietários particulares não auxiliaram no custeio das obras, é justo que deles seja cobrado um quantum proporcional à valorização ocorrida. A contribuição de melhoria é um exemplo que está previsto na Constituição Federal, art. 145, III, e no Código Tributário Nacional, nos arts. 81 e 82. Esta deverá ser criada por lei e sua cobrança será individualiza­da na proporção da valorização ocorrida em cada imóvel. Percebemos, con­tudo, a possibilidade de o proprietário, que terá seu imóvel valorizado, ser financiador da obra necessária. Neste caso, feitas as proporções devidas en­tre o gasto e a valorização ocorrida, é possível que não caiba sua cobrança de melhoria.

0 que não se consegue reverter, entretanto, é o efeito perverso que as ati­vidades urbanísticas têm. Segundo Adilson Abreu Dallari, estas atividades muitas vezes ocorrem em bairros pobres, com o objetivo de melhorar a qua­lidade de vida desses habitantes. Com a valorização da região (por exemplo, oferecimento adequado de equipamentos públicos), seus habitantes não con­seguem mais permanecer, pois, em regra, tudo fica mais caro. Esta repartição de ônus o Poder Público não consegue reverter, a não ser em um cenário, ideal no qual uma cidade fosse totalmente abastecida em suas necessidades;1

Entretanto, o Poder Público pode e deve frear a especulação imobiliá­ria. Pelo menos, poderá forçar o uso adequado do imóvel, inibindo a não-uti- lização ou subutilização e aguardando a valorização do imóvel, sob pena de ser atingido pelos dispositivos do art. 182 da Constituição Federal.

,J DALLARI, Adilson Abreu. O p. cit., p. 16.

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3.6 Planejamento

0 planejamento consolidou-se como instrumento necessário à ade­quada ordenação das cidades logo após a Primeira Guerra Mundial. O pla­no urbanístico deve traduzir metas para o setor público e privado, preten­dendo a transformação dos espaços, ou o estímulo a certas atividades, ou a manutenção de determinadas áreas para que, vista no conjunto, a cidade se equilibre nas suas múltiplas funções. Neste caso, o Poder Público pode uti­lizar diversos métodos para realizar o plano urbanístico: subsídios, incen­tivos ou sobrecargas fiscais, intervenções nas propriedades (construir ou nào construir), desapropriações, parcerias com a iniciativa privada, em geral, motivados no plano. Todos estes atos devem ser provenientes de norma jurí­dica específica de cunho urbanístico.

A atividade de planejamento deve ser permanente no Estado brasileiro e será por meio dela que este ordenará suas atividades e elencará priorida­des. O art. 174 da Constituição Federal traz esta determinação com alcance genérico, pois não indica o setor em que o planejamento se deve dar. Lê-se, desta generalidade, portanto, que o Estado deve sempre agir por intermédio da dinâmica do planejamento.

Esse artigo está inserido no Título V II - Da Ordem Econômica e Fi­nanceira, Capítulo II - Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica. Des­te contexto, podemos entender que o planejamento das ações públicas é necessário sempre que o Poder Público quiser interferir na ordem econô­mica e financeira. Assim, na medida em que a política urbana está inserida no Capítulo II deste Título, o Poder Público deve planejar suas atividades de cunho urbanístico.

4. DIREITO OBJETIVO E CIÊNCIA DO DIREITO - O OBJETO DO DIREITO URBANÍSTICOA este estudo, interessam as duas vertentes possíveis a serem conside­

radas sobre o Direito Urbanístico: como ciência jurídica e encarado na sua forma objetiva. O primeiro aspecto visa ao estudo das normas e princípios que compõem o Direito Urbanístico, procurando compreender o sistema que regula a atividade urbanística. Por sua vez, o Direito Urbanístico objeti-

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56 ELEMENTOS DE DIREITO URBANÍSTICO

vo é composto pelas próprias normas jurídicas e principios que regulam a atividade urbanística. Vale dizer que o direito objetivo é o objeto de estudo da ciencia do direito.

Portanto, se entendermos o conteúdo e a extensão das normas e princi­pios jurídicos atribuídos ao Direito Urbanístico, estaremos compreenden­do o objeto de estudo da ciencia jurídica. Parece-nos assim, neste momento, fundamental entender a finalidade principal do Direito Urbanístico objeti­vo, delineando, ao menos, parte de suas normas e de seus principios.

A dificuldade de se delimitar o objeto de um ramo jurídico não se res­tringe a um ramo novo, como o Direito Urbanístico. A doutrina francesa, por exemplo, tenta encontrar uma “idéia-chave” para o Direito Adminis­trativo para que baja lógica na organização e na estruturação desta discipli­na jurídica.10

De forma genérica, o objeto do Direito Administrativo compreende toda a matéria atinente à intervenção administrativa no dominio social e económico. Percebe-se, pela generalidade da colocação, que, na verdade, di­versos ramos do Direito Público se ajustam a este objeto. Porém, se adotar­mos um conceito de Direito Administrativo baseado em um critério mis­to (o que mantém sua amplitude interpretativa), teremos, segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro,11

por objeto os órgãos, agentes e pessoas jurídicas administrativas que integram

a Administração Pública, atividade jurídica nao contenciosa que exercem e os

bens de que se utiliza para a consecução de seus fins, de natureza pública.

Na verdade, parte da doutrina, ainda hoje, entende o Direito Urbanís­tico como parte do Direito Administrativo. Em geral, tal posição se baseia na análise de que os atos de caráter urbanístico são. em sua essência, refe­rentes ao poder de polícia. Essa concepção, chamada por José Afonso da

lü BANDEIRA DE MELLO. Celso Antônio. Cuiso de direito administrativo. 13. ed. São Paulo. Malheiros. 2000. p. 28.

11 DI P1ETRO. Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 12. ed. São Paulo. Atlas. 2000. p. 52.

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ELEMENTOS FORMADORES DO DIREITO URBANISTICO PATRIO 57

Silva de reducionista,12 originou-se nas intervenções urbanísticas que, ini­cialmente, limitaram-se à polícia das construções (início do século XX).

Quanto ao Direito Administrativo, sem dúvida ele é estrutural dentro do Direito Público por organizar e classificar as atividades provenientes do Poder Público (por exemplo, ato administrativo). Enquanto ciência, o Di­reito Administrativo auxilia os demais ramos do Direito Público na sua ex­tensão; porém, o Direito Administrativo objetivo não se confunde nem in­corpora os demais ramos da seara pública, tendo em vista a diferenciação de seus objetos e objetivos.

É possível falar em autonomia do Direito Urbanístico por ter ele objeto próprio e específico, que o diferencia de todo e qualquer outro ramo da ciência jurídica. Independe que alguns dos instrumentos utilizados tam­bém encontrem guarida em outros ramos do Direito Público, pois se estão sob sua égide, nada mais natural que seus ramos da ciência jurídica tenham semelhanças próprias de teoria geral, porém não lhes inibindo a particula­ridade de objetivos. Assim, não entendemos o Direito Urbanístico como um simples capítulo do Direito Administrativo.

Pelo enfoque do Direito Administrativo, tem-se a preocupação com os órgãos, agentes, bens e pessoas jurídicas que compõem a Administração Pública para a consecução do fim público (genérico). O bom funcionamento da estrutura orgânico-material é fundamental para a realização do Direi­to Administrativo.

Nem toda norma jurídica que reveste a atuação da Administração Pú­blica se insere no contexto do Direito Administrativo. Ao lado do Direito Administrativo, sinônimo da atuação pública, há a caracterização por meio da especialização, demanda e organização de normas jurídicas, que fizeram emergir, por exemplo, o Direito Econômico e o Direito Tributário como ramos autônomos, na mesma trilha que segue o Direito Urbanístico.

Portanto, o Direito Urbanístico, no seu aspecto objetivo, é a disciplina que regulamenta a atividade urbanística com o fim de organizar os espaços habitáveis, trazendo bem-estar à coletividade, destacando peculiarmente seu objeto sem confundir-se com qualquer outro ramo.

12 SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 42.

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Capítulo V

ATIVIDADE URBANÍSTICA COMO FORMA DE

REALIZAÇÃO DO DIREITO URBANÍSTICO -

COMENTÁRIOS À LEI N. 10.257/01

I. INTRODUÇÃOCom fundamento específico nos arts. 182 e 183 da Constituição Fede­

ral, a Lei Federal n. 10.257/01, também formalmente designada de "Estatuto da Cidade", foi promulgada após mais de dez anos em trâmite no Congresso Nacional.

Na verdade, todos esses anos nào foram gastos em calorosos e profi­cuos debates entre a Casa Legislativa e a sociedade. Boa parte deles foi con­sumida dentro das gavetas dos gabinetes parlamentares. Isto porque esta lei, que tem a finalidade de dispor sobre as diretrizes gerais da política urbana, possui instrumentos que podem alterar significantemente o conteúdo eco­nômico da propriedade imóvel urbana. Os debates e as resistencias políti­cas não recaíram sobre as diretrizes gerais, as competencias ou os objetivos, massim sobre os possíveis desdobramentos que os instrumentos urbanísti­cos podem ter sobre a propriedade imóvel urbana.

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60 ELEMENTOS DE DIREITO URBANÍSTICO

De maneira geral, o Estatuto da Cidade propugna por cidades susten­táveis1 e saudáveis, aliando políticas públicas, iniciativa privada e participação popular (gestão democrática da cidade). Diante da crónica falta de recursos, criam-se instrumentos para estimular o empreendimento particular por meio de contraprestação de interesse público, seja ela financeira ou urba­nística (outorga onerosa do direito de construir, transferência do direito de construir). Também há uma atenção especial para a tentativa de regulariza­ção fundiária da moradia da população economicamente desfavorecida (usucapião especial de imóvel urbano e concessão de uso especial para fins de moradia, que, apesar de ter sido vetada, foi objeto da Medida Provisoria n. 2.220/01).

Dos mais de trinta instrumentos listados no art. 4°, apenas treze mere­cem disposições mais específicas ao longo deste diploma legal. Dos instru­mentos não dispostos em seção própria, alguns têm sua origem no Direito Ambiental, outros no Direito Financeiro e outros no Direito Administrativo, e já são definidos por suas leis e doutrinas.

Outra consideração importante a ser feita refere-se às diretrizes gerais, estabelecidas no art. 2° deste instituto legal. Logo no inciso I, há a indicação de que, na cidade sustentável, deverá ser garantido o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao trans­porte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer. Ocorre que. no transcor­

1 O termo "sustentabilidade" e suas variantes têm sido usados nos últimos anos para tentar designar a busca pelo equilíbrio entre o desenvolvimento e a preservação da qualidade de vida de todos os seres. Assim, tal termo pode ser adequado ao consumo, ao desenvolvimento urbano, à instalação de indústrias, para citar alguns exemplos. Oficialmente, têm sido desenvolvidos debates em âmbito nacional e internacional a res­peito desta equaçào. É o caso da Agenda 21. que foi um programa adotado pela Con­ferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992, que se desdobrou em Agendas Locais, partindo da premissa de que nenhuma estratégia global funcionaria sem uma agenda coordenada para a ação local. Visa, tal docu­mento. ao planejamento e à execução de ações, buscando o desenvolvimento susten­tável, social. econômico e ambiental, por meio de gestão participativa. RODRIGUES, José Eduardo Ramos: PHILIPPI. Cintia: PH ILIPPI JÚNIOR. Arlindo. Patrimônio cul­tural: análise de alguns aspectos polêmicos. Revista de Direito Ambiental, São Paulo. RT. ano 6. n. 23.jan./mar. 2001. p. 284. Significa dizer que o Município está inserido, atualmente, numa ótica global que propõe que o equilíbrio do desenvolvimento atin­ja todos os setores e instâncias da sociedade.

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ATIVIDADE URBANÍSTICA 61

rer do texto legislativo, percebe-se o tratamento intenso e exclusivo do imó­vel particular urbano.

A realização de boa parte destas diretrizes relaciona-se muito mais com políticas públicas e fiscalização do que com restrições à valorização imobi­liária. Sem dúvida alguma a especulação imobiliária deve ser combatida, mas esta não resume nem concentra as causas da desordenação urbana. E sobre tais diretrizes, o Estatuto da Cidade, além de sua indicação no art. 2o, nada mais comentou.

De qualquer forma, esta lei é um verdadeiro desafio para o gestor pú­blico, pois, a partir dela, poder-se-á buscar minimizar as distorções existen­tes e equilibrar as relações na cidade.

2. ATIVIDADE URBANÍSTICAConsiderando que a atividade urbanística constitui a essência do Di­

reito Urbanístico objetivo, faz-se mister entendermos o que é, quais sào seus limites e objetivos.

De forma geral, melhor será colocar a expressão no plural, atividades urbanísticas, tendo em vista que estas se reportam a todas as ações destina­das a realizar o urbanismo e a urbanificação.2 Considerando que estas ações tomam formas diversas, por vezes complexas, a doutrina tem-nas agrupado por semelhanças em seus conteúdos. Todavia, embora esta divisão ocorra, ainda permanecem entre si interligadas, pois a execução de cada ato, isolada­mente considerado, não é suficiente para a realização da finalidade urbanís­tica. É necessária a visão global, a somatória dos atos para que transformem ou mantenham equilibradas as funções de determinada localidade. Este en­foque é reforçado por Hely Lopes Meirelles. que considera que “as medi­das urbanísticas não produzirão seus benéficos efeitos enquanto não se generalizar a sua atuação [...] Não se compreende urbanismo isolado [...) ’’.3

2 O professor josé Afonso da Silva esclarece que urbanismo é uma ciência que obje­tiva a organização dos espaços habitáveis {Direito urbanístico brasileiro, cit., p. 26). enquanto urbanificação é o processo deliberado para a correção da urbanização {esta sim. desorganizada e prejudicial). Op. cit.. p. 2.

3 MEIRELLES. Hely Lopes. Op. cit.. p. 378.

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62 ELEMENTOS DE DIREITO URBANÍSTICO

A doutrina não tem adotado um criterio claro a respeito destas divisões internas da atividade urbanística. José Afonso da Silva traduz em 'momen­tos distintos '1 as divisões encontradas na doutrina e também por ele elabo­rada. Tal expressão informa que deve haver etapas diferenciadas. Porém, nao se deve restringir esta classificação a uma interpretação temporal, pois o ob­jeto de cada etapa é distintivo dos demais, guardando sua peculiaridade.

Preferimos adotar um critério seqüencial, pois a dinâmica da realização urbanística prescinde de certa seqüência entre suas etapas: plano urbanísti­co; elaboração de normas jurídicas específicas; execução de atividade urba-

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nística e, dentro da execução, a utilização dos instrumentos urbanísticos. E o que veremos a seguir.

3. PLANO URBANÍSTICOÉ instrumento básico de atuação. Por meio dele, Administração Públi­

ca e a sociedade terão base para agir segundo suas próprias finalidades. Traz segurança para a iniciativa privada e responsabilidade para o Poder Público. Deve ser precedido de uma dinâmica de planejamento que, pelo levanta­mento de dados e índices, verificará as carências e necessidades, apontando soluções. Este resultado será traduzido em um documento que será o pla­no. Este processo de elaboração pode e deve envolvera população para defi­nição de metas mais realistas. É obrigatória a instituição da dinámica de planejamento para o setor público e indicativa para o setor privado, confor­me dispõe o art. 174 da Constituição Federal. Já o plano, em face do princi­pio da legalidade estabelecido na Constituição Federal, art. 5o, II, e art. 37, caput, deverá ser aprovado na forma da lei para que se torne imperativo perante todos.5 Tendo como pressuposto a necessidade de atuação genera­lizada e global para que haja eficácia na atuação urbanística, é imprescindí­vel a elaboração de planos urbanísticos para uma urbanificaçào real, na qual a Administração Pública possa planejar também os custos.

4 SILVA. José Afonso da. Op. cit., p. 31.

5 DI SARNO. Daniela Campos Libório. Planejamento urbanístico no direito brasileiro. São Paulo, 1996. Dissertação (Mestrado). Pontifica Universidade Católica. 1996.

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Para o sistema alemão, por exemplo, o planejamento é o princípio de toda atividade urbanística. A realização do planejamento depende de uma política de solo, com possibilidade de execução forçosa para fins urbanísticos e a compra e venda de terrenos no mercado. Para urbanificar a cidade, primeiro é necessário atuar sobre cada setor ou área (vias públicas, transporte, rede de serviços). O trabalho final da urbanificação é verificar se a concretização do projeto de edificação está em harmonia com o plano. Isto se chama ordena­ção de edificação. O plano de ordenação pode se sobrepor às edificações já feitas se for pelo bem do interesse público. Porém, necessitará de norma ju­rídica para dar base legal, além de prever indenização, se for o caso.6

No Brasil, a Constituição Federal, art. 182, § Io. dispõe que o Plano Diretor é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expan­são urbana no Município. Todavia, a Carta Constitucional não se restringe a esta única possibilidade, dispondo, seja explícita, seja implicitamente, uma série de planos que podem ser elaborados pelas unidades federativas para que realizem adequadamente o desenvolvimento urbano.

3.1 Planos explícitos

a) Federal: plano nacional de ordenação territorial e desenvolvimento econômico e social - art. 21, IX; plano regional de ordenação territorial e desenvolvimento econômico e social - art. 21, IX, b) Estadual: plano re­gional - art. 25, § 3o, c) Municipal: plano diretor - art. 182; plano parcial de ordenação territorial (uso do solo urbano) - art. 30, VIII.

3.2 Planos implícitos

a) Federal: plano setorial de desenvolvimento urbano (baseado no art. 21, XX e XXI, da Constituição Federal). b) Estadual: plano geral de ordena­ção territorial, c) Municipal: plano local (baseado no art. 30, IV, da Consti­tuição Federal).

fl OROZCO. Joaquín Hernández (Trad.). Op. c/f., p. 15.

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0 Estatuto da Cidade contempla o sistema de planos urbanísticos dis­postos explicitamente na Constituição Federal em seu art. 4o, I a III. Contu­do, detecta-se que urna das maiores deficiencias e dificuldades do Poder Público nacional é planejar e cumprir o plano estabelecido. Sobre este tema, esta lei apenas repete o conteúdo da Constituição Federal quanto a este as­pecto, deixando passar uma excelente oportunidade para estabelecer umadinâmica e uma hierarquia de planos urbanísticos que viabilizariam boa par-

*

te dos instrumentos urbanísticos ali existentes. E altamente improvável que uma cidade consiga realizar suas funções urbanas tendo uma abordagem tão reduzida de planos urbanísticos.

Ocorre que o sistema jurídico pátrio centrou na figura do Plano Dire­tor a estrutura de desenvolvimento da política urbana. Da forma como se encontra disposto, pode levar a alguns equívocos: a) os Municípios que não necessitem elaborar o Plano Diretor estariam desvinculados da elabora­ção de planos urbanísticos para ordenar o desenvolvimento local, acentuan­do a prática do imediatismo; b) se o Município elabora um Plano Diretor, poderia estar satisfeita a necessidade de elaboração de planos, a não ser que o Município fosse aplicar certos instrumentos urbanísticos que prescindem da elaboração de planos particularizadores.

Apenas a figura do Plano Diretor não é suficiente para detectar as neces­sidades e peculiaridades de toda a cidade. É necessário que ele seja comple­mentado por planos específicos, setoriais e/ou microrregionais que deter­minarão o perfil de cada localidade. O Estatuto da Cidade prevê, no art. 4o, III, além do Plano Diretor, a elaboração de plano plurianual (conforme disposi­ção constitucional, art. 165), planos, programas e projetos setoriais e planos de desenvolvimento econômico e social (conforme Constituição Federal, art. 43, § Io, II). Todavia, não explica nem aprofunda a dinâmica que se deva esta­belecer entre os planos urbanísticos, pois os capítulos seguintes da lei aqui discutida restringem suas disposições a alguns dos instrumentos, de forma pontual. A única exceção é o plano de operação urbana consorciada, disposto no art. 33 da Lei n. 10.257/01.

Todavia, a ausência de plano urbanístico não impede que o Poder Pú­blico elabore ações pontuais, porém a localidade desprovida de plano será refém do imediatismo, do improviso, da insegurança que a falta de planeja-

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mentó traz. A conseqüência é visível nas cidades brasileiras: são desordena­das, caóticas, desiguais e injustas. 0 custo social é profundo.

4. ELABORAÇÃO DE NORMAS JURÍDICAS ESPECÍFICASDesta etapa o Poder Público não pode se eximir. Deverá haver legisla­

ção específica para todas as limitações e intervenções que o Poder Público pretenda impor. É a etapa tradicionalmente mais usada na realidade mu­nicipal brasileira. Traduz-se em Códigos de Posturas Municipais, Lei de Uso e Ocupação do Solo, Leis de Zoneamento, Leis de Edificações e tantas quan­tas forem as leis necessárias para impor a ordenação do solo (Constituição Federal, art. 30, V III).

Se houver plano urbanístico, tais leis servirão para vincular relações e condutas realizando o plano. Serão de iniciativa do Prefeito Municipal e de­verão passar pelo processo legislativo, segundo a previsão da Lei Federal n. 10.257/01, Estatuto da Cidade, a lei específica para o parcelamento, edificação e utilização compulsória (art. 5o); o direito de preempção (art. 25); a outor­ga onerosa do direito de construir (art. 30); as operações urbanas consorcia- das (art. 32); a transferência do direito de construir (art. 35) e o estudo de impacto da vizinhança (art. 36).

Se estas leis não estiverem baseadas em um plano, seu conteúdo não terá grande vinculaçào com a necessidade da sociedade diretamente atingi- da, podendo-se criar distorções, injustiças ou vantagens indevidas. E o caso de alteração de lei de zoneamento para privilegiar empreendimento imobi­liário de grande impacto sem consultar a população interessada ou sem sa­ber se os equipamentos públicos disponíveis serão suficientes para garantir o adequado funcionamento de toda a localidade. Pode-se, com isto, criar gran­des congestionamentos, elevação excessiva dos ruídos, abastecimento de água insuFiciente, desestabilizando o convívio de toda uma região.

A elaboração de estudo de impacto de vizinhança, prevista nos arts. 36 a 38 do Estatuto da Cidade, fica vinculada à sua previsão legal, que disporá sobre os empreendimentos e atividade que necessitarão de sua elaboração. Se a lei excluir certo tipo de empreendimento ou se, mais ainda, ela simples-

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mente não for elaborada, não poderá ser exigido referido estudo, que, por sua essência, poderia evitar as situações acima descritas.

Com relação à necessidade de Plano Diretor para poder haver a es­truturação de uma política de desenvolvimento urbano, com leis específicas (como as acima citadas), a doutrina não é unânime. À Constituição Federal, quando dispõe sobre política urbana, nos arts. 182 e 183, não impõe a ela­boração do Plano Diretor para a política de desenvolvimento urbano. O ca- p u t do art. 182 prescreve apenas e tão-somente que as diretrizes gerais deve­rão estar dispostas em lei. O § Io deste artigo impõe a elaboração do Plano Diretor para cidades com mais de vinte mil habitantes e esclarece que tal instrumento é básico para a política de desenvolvimento e de expansão urbana. Em seguida, no § 2°, determina que a função social da propriedade será atendida se estiverem satisfeitas as exigências do Plano Diretor, vale dizer, não há realização da função social da propriedade se não houver um Plano Diretor que esclareça o papel a ser desempenhado por cada imóvel urbano.

Portanto, chega-se à conclusão de que, mesmo que a Constituição Fede­ral não tenha deixado clara a vinculação da elaboração de leis urbanas espe­cíficas com a existência de um Plano Diretor, o desenvolvimento urbano adequado e harmônico, compatível com as necessidades dos habitantes lo­cais, só será plenamente atingido se houver um diagnóstico da realidade, aliado à participação popular, que deverá definirás prioridades na cidade. E o resultado da compatibilização de todos os interesses deverá estar transcri­to em um plano urbanístico. Elaborar leis de cunho urbanístico, estando estas dissociadas deste processo, não contribuirá, em nada, para o equilíbrio do desenvolvimento urbano.

Por fim, resta saberse a natureza jurídica do próprio plano urbanístico é de lei ou não. Pode haver três tipos de planos urbanísticos, classificados se­gundo sua natureza jurídica: planos indicativos, planos imperativos e a for­ma mista.

O plano indicativo é aquele que não teve seu conteúdo submetido ao processo legislativo e, portanto, não se encontra sob a forma de lei. E um plano elaborado pelo Poder Executivo com ou sem a participação da popu­lação. Sendo assim, seu conteúdo, com relação ao particular, é meramente

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sugestivo, podendo indicar atividades, lugares, comportamentos dos pro­prietários que sejam adequados e benéficos para a comunidade, porém sem impor tais orientações. O Poder Público pode criar estímulos para que o par­ticular queira aderir a certos comportamentos. Caracterizado desta forma, este tipo de plano necessita estar respaldado por um grande compromisso político tanto da sociedade como do Poder Público, pois a não-obrigatorie- dade pode gerar a inércia e o descaso por um ou ambos os lados. Contudo, este plano poderá ser muito proveitoso se estiver inserido em um contexto político-social mais maduro, pois sua modificação e sua revisão são muito mais fáceis do que se estivesse sob a forma de uma lei, podendo criar o dina­mismo necessário a cada ocasião.

Outro tipo de plano é o imperativo, qual seja, aquele que foi submetido ao processo legislativo e se encontra na forma de lei. Tais planos impõem com­portamentos tanto para a sociedade como para o Poder Público, que gera para si, ao menos, o dever de fiscalizare orientar adequadamente a população. Este plano gera responsabilidades e as partes poderão ser cobradas pela omis­são ou pela ação inadequada. Pelo fato de ser uma lei, só poderá ser alterada por um processo legislativo, dificultando e atrasando a implantação, ou adequa­ção, de novas posturas urbanísticas. De certa forma, rompe a dinâmica pró­pria das atividades urbanísticas.

A terceira forma é a soma dos tipos indicativo e imperativo. O plano urbanístico tem parte de seu conteúdo aprovado sob a forma de lei, deixan­do a cargo do Poder Executivo sua complementação, por meio da elabora­ção de um decreto que o regulamente. Este tipo de plano pode ser muito salutar, pois garante uma linha básica de posturas e condutas por parte dos agentes envolvidos, responsabilizando-os, se for o caso, mas permitindo certa flexibilidade quanto à definição de elementos que podem ser transitórios ou incertos diante da aplicação do plano.

A Constituição Federal determina que deverão ser aprovados, sob a for­ma de lei, os seguintes planos: Plano Diretor (art. 182, § Io) e planos nacio­nais, regionais e setoriais de desenvolvimento (art. 48, IV). O Estatuto da Cidade impõe que o plano de operação urbana consorciada também esteja inserido em uma lei (art. 33). As Constituições Estaduais, bem como as Leis Orgânicas Municipais, também podem impor que outros planos urbanísti-

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eos tenham de ser aprovados sob a forma de lei. Entretanto, se nada constar nestas cartas jurídicas, ao menos os mencionados acima deverão ter a natu­reza jurídica de lei.

5. EXECUÇÃO DE ATIVIDADES URBANÍSTICAS POR MEIO DOS PLANOSTransformar e desenvolver as localidades com a finalidade do bem-es-

tar de seus habitantes, considerando a conservação, a manutenção e a pre­servação de valores e bens comunitarios imprescindíveis ao bem-estar,7 é a finalidade concreta da execução de atividades urbanísticas.

Esta etapa necessita, ao menos, ser precedida de leis para destinar verbas para obrase impor atuações que intervenham na propriedade particular. Po­rém, se, mais que lei, for elaborado um plano, poderão ocorrer quatro situa­ções: a) inexecução, b) execução parcial, c) alteração ou d) execução total de seu conteúdo. Tais situações refletirão diferentemente sobre o direito dos par­ticulares.

5.1 Inexecução

A inexecução total de um plano frustra todas as expectativas políticas e sociais, pois sempre há algum envolvimento da população em, pelo me­nos, parte do processo de elaboração do plano, quanto às expectativas de consolidar alterações benéficas para a qualidade de vida local. Como causas imediatas apontamos o levantamento insuficiente ou equivocado de dados, desencadeando propostas distorcidas em face da realidade. Pode haver a ocor­rência de um fato inesperado que altere completamente a situação da loca­lidade, por exemplo, uma enchente drástica que destrua ou danifique boa parte da cidade. Com certeza, todos os esforços se voltarão para a recons­trução da cidade, que será a preocupação prioritária. Outro exemplo é a signi­ficativa diminuição de arrecadação. Se um Município conta com certa arre­cadação proveniente de uma grande fábrica e esta, por sua vez, deixar de fazer parte deste Município, será necessária uma revisão de todo seu planejamen­

7 LEAL. Rogério Gesta: HENNIG, Mônia Clarissa. 0¡). c/f.. p. 62.

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to orçamentário, o que pode comprometer a execução de um plano urba­nístico. Esta situação não ocorre apenas quando a empresa se desloca, pois, algumas vezes, na verdade, ela permanece onde está e o que se altera é o tra­çado do Município. Com a emancipação de um distrito a Município, pode ocorrer de este ter em seu território justamente o sustentáculo financeiro do Município-mãe, levando-o este a um colapso financeiro.

Contudo, vemos que, em geral, a razão de inexecução total do plano urbanístico é política, o que indica um desinteresse total do Poder Executivo em realizar o plano.

5.2 Execução parcial

A execução parcial coloca em prática parte do plano urbanístico. Se estiver sob a forma de lei, submeterá o particular ao que ali está disposto, e sendo este sujeito de deveres e obrigações, também será, em contraparti­da, sujeito de direitos. Da parte que for executada, se atingir diretamente particulares que, com a aprovação do plano, agiram de determinada ma­neira, esperando a realização deste, se acarretar a estes prejuízo calculável, caberá indenização sobre este dano, desde que seja comprovável a relação entre o compromisso do plano e o dano ocorrido, devendo ser delimitável o quantum a ser ressarcido. Contudo, os planos indicativos não garantem nenhum ressarcimento ao proprietário que se sentir prejudicado, pois que suas disposições têm o caráter de meras sugestões de comportamento.

5.3 Alteração

Quanto à alteração, esta poderá ocorrer por meio de ato do Poder Executivo ou de emenda modificadora, no Poder Legislativo. Se for de competência do Poder Executivo alterar parte do plano, significa que atuará em razão de sua conveniência e oportunidade. Se estas modificações ocor­rerem pelo Poder Legislativo, alterarão as possibilidades de relação entre o particular e o Poder Público e novos direitos e obrigações poderão surgir. Em ambos os casos, não cabe indenização ao particular que se sentir pre­judicado, pois o Poder Público está fazendo alterações dentro de suas com­petências; é resguardado o direito de a Administração Pública alterar da-

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dos ou metas quando da execução de um plano, em face do principio da supremacia do interesse público sobre o privado.

As alterações, na verdade, são esperadas, desde que em forma de ajustes à nova realidade. Quando um plano urbanístico começa a ser executado, as cir­cunstâncias locais mudam e é possível haver necessidade de se alterar alguma disposição para que o plano obtenha pleno êxito. Essa necessidade de revisão do plano foi disposta, no Estatuto da Cidade, no art. 40, § 3o, determinando a revisão da lei que instituiu o Plano Diretor, ao menos, a cada dez anos.

Contudo, alterações com base em favoritismos políticos só servirão pa­ra descaracterizar a integralidade daquilo que foi planejado. A ação pública que beneficia alguém de forma irregular sempre prejudica, numérica e va- lorativamente, muito mais gente do que aqueles que foram beneficiados.

5.4 Execução total

A execução total é a realização de seu objetivo, a execução de atos e obras que induzam o ser humano ao estado de bem-estar. Entretanto, o plano é estático, espelha uma certa realidade, e, conforme vai sendo aplica­do, esta realidade se transforma; muitas vezes, atos previstos no plano ficam desatualizados diante de novas circunstâncias. Pode ser necessária, então, uma revisão. Assim, a execução total sem alteração do plano inicialmente concebido pode ser inviável, havendo necessidade de o plano se ajustar à medida que seus dados vão se desatualizando.

6. INSTRUMENTOSA realização da atividade urbanística passa, necessariamente, pela con­

secução de uma série de atos e procedimentos pontuais, adequados à reali­dade de cada espaço a ser mantido ou transformado.

A teoria geral do Direito Administrativo consagra parte desses ins­trumentos como uma restrição do Estado ao direito de propriedade ou uma intervenção sobre parte do domínio econômico. Ocorre que, para o Direito Urbanístico, o enfoque é mais complexo, tendo em vista a busca do bom uso de uma propriedade no seu contexto de urbanidade. Nesse senti­do, cumpre observar que se sobre uma propriedade recair certo ônus dife­renciado das demais propriedades, será justo que o Estado indenize tal

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proprietário. Contudo, disposições genéricas e abstratas, por mais que de­sagradem, não serâo passíveis de indenização.

Os instrumentos urbanísticos deverão estar previamente determinados em lei (se possível, antecedidos de um plano), pois sempre trarão obrigações ao particular, adequando seu comportamento e/ou sua propriedade.

A promulgação da Lei n. 10.257/01, Estatuto da Cidade, dispôs uma série de instrumentos, alguns já consagrados pelo Direito Urbanístico e ou­tros por ela criados. O art. 4o possui seis incisos propondo a seguinte clas­sificação: os três primeiros incisos tratam de planejamento e plano: o inciso IV, de institutos tributários e financeiros: o inciso V dispõe sobre institutos jurídicos e políticos e o inciso V I trata da previsão do uso do estudo prévio de impacto ambiental e estudo prévio de impacto de vizinhança.

A organização e a classificação dos instrumentos urbanísticos podem ter a finalidade de esclarecê-los, dando-lhes melhor eficácia. Neste sentido, uma classificação segundo o agente ativo da atividade urbanística e a base ter­ritorial a ser atingida pode trazer certa lucidez para sua viabilidade.

A classificação abaixo transcrita engloba basicamente os instrumentos urbanísticos descritos no art. 4U da Lei Federal n. 10.257/01, bem como pro­cura esclarecê-los:

6 .1 Dos instrumentos de natureza urbanística

a) Instrumentos públicos que visam a organização territorial global:

• Planos nacionais, regionais e estaduais de ordenação do territó­rio e de desenvolvimento econômico e social (I) - plano é o docu­mento que deve transcrever as metas e prioridades escolhidas. Todos os planos que forem elaborados em âmbito federal, nacio­nais ou que abracem uma região ou mais do país, necessitam pas­sar pelo processo legislativo (Constituição Federal, art. 48, IV ). Dos planos elaborados pela instância estadual, apenas os que se refe­rirem a região metropolitana, aglomeração urbana e microrregião deverão submeter-se ao processo legislativo (Constituição Federal, art. 25, § 3Ü). No mais, não há essa necessidade. Todos eles poderâo criar divisões e organizações espaciais que facilitem ou viabilizem a implantação de um programa de desenvolvimento. No entanto, deve-

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râo ter a cautela de nao interferir na autonomia dos Municipios. Por isso, teria sido de grande valia se o Estatuto da Cidade tivesse criado uma estrutura de relações entre os planos urbanísticos em que pudesse haver um intercambio de informações e uma soma­tória de interesses defendidos por todas as esferas. Se o plano fede­ral programa o desenvolvimento de uma regiáo por meio do in­centivo a determinado setor (turismo ou industria, por exemplo), indicando áreas estratégicas, com construção ou reparos de rodo­vias, com terminais de carga e subsidios, seria mais adequado que houvesse um plano estadual ordenando o seu territorio, nas dire­trizes que o plano federal dispôs, e que o Município elaborasse planos urbanísticos visando tais objetivos, com zoneamento e es­tudos previos de impacto, para saber as áreas mais viáveis para im­plantação dos projetos. Este é apenas um pequeno exemplo.

• Planejamento das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões (II) - dispor em lei que deva haver planejamento significa dizer que deverá haver uma dinâmica permanente, com recursos humanos e materiais que possam disponibilizar a elabo­ração ou revisão do plano a qualquer tempo, mantida pelo Poder Público competente (no caso, o estadual).

• Planejamento municipal, em especial, Plano Diretor (III, a) - aqui, o legislador misturou as duas etapas (planejamento e plano), tal­vez querendo dispor que ao Município também compete manter uma estrutura de planejamento urbano permanente e que, ao ela­borar seus planos urbanísticos, o Plano Diretor é a estrutura prin­cipal da concretização da política urbana.

• Os diversos tipos de zoneamento: ambiental, urbano, industrial, entre outros (III, c). Zoneamento consiste em criar repartições espaciais, conferindo possibilidade, ou proibição, de certos tipos de uso do solo. Alguns critérios podem ser criados, diferenciando os tipos de zoneamento, por exemplo, o zoneamento consideran­do a proibição de extração de vegetação nativa e proibição tam­bém da instalação de certos tipos de atividade para não prejudi­car esta vegetação. A forma mais simples e tradicional é repartir a

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área urbana de um Município em áreas residenciais, comerciais, de serviços, indústrias, além da forma mista, criando um número ra­zoável de variáveis. Alguns urbanistas criticam o zoneamento feito desta forma, por ser essencialmente excludente, ou seja, só estarào inseridas as informações oficiais a respeito da população e muitas cidades possuem um grande contingente de moradores e trabalha­dores não-oficiais, desconsiderados, portanto, deste instrumento. Todavia, pode ser um auxiliar de grande valia no contexto da reali­zação da política urbana. Deve entrar no sistema jurídico sob a forma de lei, e não cabe indenização ao particular que se sentir lesado por sua instituição.

b) Instrumentos da iniciativa pública ou privada que visam a organi­zação de área determinada:

• Parcelamento e reparcelamento (III, b) - o parcelamento é a ope­ração divisória de uma gleba, ou seja, de uma área que ainda não foi objeto de arruamento ou loteamento. Pode ocorrer tanto na zona urbana quanto na rural. A Administração Pública deverá exa­minar o local para vedar as áreas de preservação ecológica ou que não tragam condições de suportar as instalações sanitárias. O par­celamento pode ser de iniciativa pública ou privada. O reparcela­mento, por sua vez, ocorre para corrigir distorções do parcelamento em terrenos ainda não edificados.

• Desmembramento - subdivisão da gleba em lotes sem modifica­ção ou alteração de vias ou logradouros públicos (em geral para in­corporação a lotes já existentes).

• Loteamento - divisão de quadras em lotes, com frente para logra­douro público, transformando-os em unidades edificáveis (indus­triais, comerciais, residenciais). O plano de loteamento de uma área deve ser precedido de um plano de arruamento, dividindo o solo mediante a abertura de vias de circulação. Pode ser de iniciativa pú­blica ou privada. Entretanto, como os logradouros são públicos, não há que se falar em “ loteamento fechado”, uma prática que tem se espalhado pelo nosso país, poisa inconstitucionalidade de proi­bir o acesso e circulação das pessoas é flagrante. Parte da área usa-

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da para o loteamento deverá ser destinada a áreas livres. O plano de loteamento sempre deve estar submetido ao Plano Diretor ou, ao menos, adequado aos equipamentos e serviços públicos ne­cessários para sua instalação.

♦ Planos, programas e projetos setoriais (III, g) - com relação ao Poder Público, já sabemos que deve elaborar planos, programas e projetos para organizar sua atuação. Da mesma forma, o particu­lar pode desenvolver estes instrumentos urbanísticos para a área de seu interesse e submetê-los à aprovação do Poder Executivo Municipal.

• Instituições de zonas especiais de interesse social (V, /) - a preo­cupação com o déficit habitacional em nosso país, além do imen­so contingente que vive nas cidades, excluído do acesso a todos os bens e serviços ofertados à população, é o fulcro central destes dispositivos. Assim, dentro da programação urbanística de uma cidade, pode haver uma instituição deste tipo, criando condições mais favoráveis, capazes de reintegrar essas pessoas à sociedade. O § 2° deste artigo utiliza o termo “interesse social’' para designar o setor habitacional. Entretanto, não deve o Poder Público con­centrar-se, exclusivamente, neste setor, para que possa haver uma inclusão social mais completa.

c) Instrumentos com participação necessária do particular sobre umapropriedade ou área:

♦ Concessão de direito real de uso (V,g) - instrumento a ser aplica­do sobre imóveis públicos para os casos de "programas e projetos habitacionais de interesse social, desenvolvidos por órgãos ou entidades da Administração Pública com atuação específica nes­sa área ", podendo a concessão ser contratada coletivamente (VI, § 2°). Deverá haver registro público do contrato de concessão es­tabelecido, segundo o disposto na Medida Provisória 2.220, art. 15, que alterou a Lei n. 6.015/73, art. 167.

• Concessão de uso especial para fins de moradia (V, h) - também recai sobre terrenos de propriedade do Poder Público. Os artigos que dispunham sobre este instrumento urbanístico (15 a 20) fo-

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ram vetados pelo Presidente da República quando da promulga­ção desta lei. Entretanto, dois meses após, foi elaborada a Medida Provisória n, 2.220, dispondo sobre o assunto e concedendo-lhe re­quisitos similares aos que existem para a concessão de usucapião prevista no art. 183 da Constituição Federal (área urbana de até 250 metros quadrados, posse ininterrupta e sem oposição, para sua moradia ou de sua família e desde que não seja proprietário ou concessionário de outro imóvel, urbano ou rural). Visa, sobre­tudo, trazer alguma regularização para as áreas de favela. Como é difícil a individualização do espaço ocupado por cada moradia, pode ser instituído um condomínio entre os moradores vizinhos, viabilizando a delimitação da área e sua regularização.

• Direito de superfície (V, í) - regulamentado entre os arts. 21 e 24, este instrumento não é novidade em nosso sistema jurídico, ten­do existido entre nós até 1864 para, após, entrar em desuso.8 Tem a natureza jurídica de direito real e, apesar do nome, pode atingir não só a superfície como também o espaço aéreo e o subsolo cor­respondentes verticalmente ao solo em questão. Consiste, basica­mente, no direito que o proprietário passa a ter em negociar o uso destes três patamares, em conjunto ou isoladamente, sem se desfazer da propriedade. As possibilidades de uso deste instru­mento sào inúmeras, pois o que era "um" tornou-se ‘'três”. A con­cessão do direito de superfície, que deve ser feita mediante escri­tura pública, pode tomar o contorno que as partes assim pretenderem quanto ao tempo e ao custo. Quanto ao uso, se for sobre o uso do solo, basta seguir as determinações já existentes sobre a área (Plano Diretor, lei de zoneamento etc.). Se for sobre o espaço aéreo, o que existe são restrições, mas não há a necessi­dade de uma ação positiva, como cumprir a função social do es­paço aéreo. Da mesma forma, quanto ao subsolo incidem algu­mas restrições, mormente de cunho ambiental (contaminação, ruídos, vibração). Portanto, se por um lado este instrumento pode

8 AZEVEDO NETTO. Domingos'Theodoro de. Direito de superfície. 7/j: FUNDAÇÃO PREFEITO FARIA UMA. Estatuto da cidade. Sào Paulo. Cepam, 2001, p. 309.

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ser de grande valia para as novas necessidades urbanas, talvez surja um momento em que seja necessária a elaboração de um plano de uso e ocupação do subsolo e do espaço aéreo, conferindo-lhes o mesmo grau de aprofundamento legislativo que hoje existe para o uso do solo.

• Outorga onerosa do direito de construir e de alteração do uso (V, /?) - estão dispostos entre os arts. 28 e 31 da lei em análise. A outorga onerosa do direito de construir remete ao instituto do solo criado e ao direito de construir. No Direito brasileiro, o direito de construir está necessariamente associado ao direito de proprieda­de. Não pode, o Poder Público, aniquilar o direito de construir em qualquer propriedade particular. Se o fizer, pode ser caracteriza­da uma desapropriação com direito a indenização ao proprietário. O solo criado é a possibilidade de construir acima dos paráme­tros legais gerais estabelecidos pelo Poder Público. Pelo estabele­cimento do coeficiente de aproveitamento, o Poder Público po­derá indicar, no Plano Diretor, quais áreas urbanas podem ter edificações acima deste limite estabelecido. Portanto, aquele que quiser construir além do permitido deverá checar se seu terreno se encontra nas regiões onde são permitidos tais benefícios. A outorga onerosa ocorre na permuta entre o Poder Público e o beneficiário, permuta na qual aquele concede a este o direito de construir além do permitido mediante uma contrapartida (financeira ou de exe­cução de projetos urbanísticos em área previamente determinada). O Plano Diretor também fixará as áreas onde poderá haver al­teração do uso do solo (em face de seu zoneamento ou outro ins­trumento que restrinja o uso) nos mesmos moldes determinados para a outorga onerosa. A contrapartida devera ser sempre utili­zada, ou negociada, pelo Poder Público para urbanificar a cidade, de preferência em áreas com carências sociais e materiais mais profundas.

♦ Transferência do direito de construir (V, o) - estabelecido no art. 35, refere-se à possibilidade de o proprietário transferir para ou­tro imóvel, seu ou de terceiro, o potencial de edificabilidade nele

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existente. Ocorre que o art. 35 elenca três hipóteses para que pos­sa haver o direito de transferência: implantação de equipamentos urbanos e comunitários; preservação do imóvel que seja de inte­resse histórico, ambiental, paisagístico, social ou cultural; imóvel que sirva para programas de regularização fundiária. A implan­tação adequada deste instrumento, como de outros, não é fácil. Se o proprietário transferir todo o potencial de construção, exau­rirá seu potencial econômico, inutilizando seu uso e mantendo a propriedade. Se for o Poder Público, por meio de seu interesse legítimo, que se beneficiará da propriedade, não seria o caso de desapropriar o imóvel? Talvez a aplicação do direito de superfície, neste caso, seja interessante para que o proprietário mantenha seu imóvel, podendo negociar o uso do subsolo ou até do espaço aéreo. Leis municipais deverão regulamentar tudo para que se estimule, de forma adequada e socialmente harmônica, o uso de todos estes instrumentos.

# Operações urbanas consorciadas (V, p) - definidas no § Io do art. 32, são o único instrumento previsto que, além de uma lei munici­pal específica, devem ter um plano. Devem envolver toda a co­munidade afetada e precisa ser feita ampla publicidade no local onde a operação será implantada, pois pretende atuar fazendo transformações urbanísticas estruturais, com melhorias sociais e com valorização ambiental. Poderá haver alteração de uso e ocu­pação do solo, transferência do direito de construir, remodelação de vias públicas e quaisquer outros instrumentos urbanísticos que sejam necessários para a melhor urbanificação possível da área de­limitada. O custo desta operação, se não todo ao menos em parte, poderá advir dos certificados de potencial adicional de constru­ção que o Poder Público colocará à venda, para livre negociação, no mercado imobiliário, dando o direito, a quem tiver os certifi­cados, de renegociá-los ou de usá-los em alguma edificação nesta área e dentro dos parâmetros para ela estabelecidos.

• Usucapião especial de imóvel urbano (V. j ) - este instrumento tem seus dispositivos elencados do art. 9° ao 14.0 art. 9° e seus §§

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1° e 2° praticamente repetem os dispositivos constitucionais (art. 183 e § Io). É instrumento que visa a regularização da ocupação urbana desordenada que tanto afeta os ocupantes de favelas e ou­tros tipos de moradia precaria. Avançou a legislação infraconstitucional quando dispôs que este instrumento pode ser pleiteado por um condomínio estabelecido entre os ocupantes da área mínima legal, independentemente da fração ideal que res­tará a cada um. Todavia, resta uma dúvida no texto legal, pois logo no art. 9o o texto acrescenta que este instituto pode ocorrer não só em áreas de 250 metros quadrados como em edificações de igual metragem. Ora, edificações de 250 metros quadrados não são propriamente populares, e esse deslize pode propiciar solici­tações em grande desacordo com o intuito deste instrumento. É certo que existem muitas moradias de uso multifamiliar (corti­ços) mas talvez fosse melhor excluir tal expressão do texto legal, evitando distorções para sua aplicação.

d) Instrumentos cogentes sobre a propriedade privada:

• Desapropriação (V, a) - a desapropriação é o mais antigo instru­mento específico de ordenação urbana cogente sobre a proprieda­de privada. Atualmente, tomou contornos múltiplos que deriva­ram em diversas espécies. No âmbito do Direito Administrativo, a desapropriação é um instituto que pode ser aplicado por todas as pessoas políticas (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios) e deve estar motivada na utilidade pública, necessi­dade pública ou no interesse social, podendo ocorrer também por zona (inclusão de área contígua à desapropriada para posterior encaminhamento). Para estes casos, deve haver indenização pré­via, justa e em dinheiro, conforme dispõe a Constituição Federal, art. 5o, XXIV, e art. 182, § 3o. Todos esses tipos de desapropriação podem ser utilizados para fins urbanísticos,9 e o Poder Público municipal poderá reurbanizar toda uma área, inclusive revenden­do-a para que seja dada a devida utilização ao imóvel desapropria-

,J DALLARI. Adilson Abreu. Op. cit.. p. 112.

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do. A outra espécie de desapropriação é uma sanção ao proprie­tário que não dá a destinação adequada a seu imóvel, descumprindo a função social. Se isto ocorrer, poderá ensejar a retirada da pro­priedade de seu dono, que será indenizado com títulos da dívida pública, com prazo de dez anos para seu pagamento, garantindo- lhe o valor real da indenização e os juros legais (Constituição Fe­deral, art. 182, § 4o, III). O Estatuto da Cidade elencou o instituto da desapropriação, de forma genérica, no art. 4°, V, a, como ins­trumento urbanístico. Entretanto, no corpo da lei, encontram-se apenas disposições a respeito da desapropriação-sanção. O art. 8o regulamenta sua aplicação estipulando um prazo de cinco anos de cobrança de IPTU progressivo (que, por sua vez, só pode ser aplicado após o descumprimento da obrigação de parcelamento, edificação ou utilização compulsória) para, depois, proceder-se à desapropriação. Incorporado ao patrimônio público, o imóvel de­verá ter a destinação adequada em um prazo máximo de cinco anos (mesmo que este imóvel seja vendido ou concedido a terceiro). Em rápidas contas, o imóvel em questão terá a destinação em confor­midade com a lei em um prazo aproximado de treze a quinze anos.

• Servidão administrativa (V, b) - a servidão pode ser de Direito Público ou de Direito Privado e sua principal diferença reside no fato de que a servidão administrativa (pública) se presta a aten­der ao interesse público. O interesse público se sobrepõe ao parti­cular, fazendo com que o proprietário suporte a utilização da pro­priedade por prazo indeterminado e só sujeita a indenização se houver a comprovação de um prejuízo específico na propriedade. Para os fins urbanísticos, é mais um instrumento disponibilizado por nosso sistema jurídico pátrio,10 pois auxilia na implantação de vias subterrâneas ou elevadas para instalação de rede elétrica, de saneamento, bem como túneis ou pontes. Convém analisar a

111 José Afonso da Silva (op. cit.. p. 391) e Maria Sylvia Zanella Di Pietro (op. eit., p. 146- 50) enumeram várias possibilidades de uso da servidão pública, com finalidade ur­banística. que sào muito elucidativas.

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seguinte situação: se o proprietário negociar seu direito de super­fície sobre o solo, subsolo ou espaço aéreo, prejudicando a im­plantação de equipamentos públicos, poderia ser requisitado, neste caso, o direito de preempção ao Poder Público, de forma aná­loga à situação da venda do imóvel? É difícil responder a esta questão, considerando que, na prática, ainda não ocorreram si­tuações que nos permitam refletir melhor, mas fica o desafio permanente de aperfeiçoar os instrumentos que, por esta lei, fo­ram criados.

• Limitações administrativas (V, c) - instituto muitas vezes con­fundido com a servidão, a limitação administrativa exercita o ius im perium do Estado ao impor ao proprietário um nào fazer, res­tringindo o uso da propriedade. Derivada de lei, a limitação ad­ministrativa atinge todos os imóveis que se encontrem inseridos em seus pressupostos, atingindo um número indeterminado de propriedades. Desta feita, não gera o dever de indenizar, por parte do Poder Público.

• Tombamento (V, d) - é instituto próprio para a proteção que se pretende dar aos bens que tenham ganhado relevo especial para a sociedade em razão de alguma especificidade. A Constituição Federal dispôs sobre esta proteção e determinou que todo o Po­der Público é responsável por tais bens (art. 23, III e IV). O art. 24, VII, trouxe competência legislativa à União, aos Estados-mem­bros e ao Distrito Federal para disporem sobre a proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico e paisagístico, sendo que ao Município compete promover a proteção do patrimônio lo­cal, segundo o disposto em lei estadual e federal (art. 30, IX). No art. 216, o legislador constituinte se ocupou em relacionar no que consiste o patrimônio cultural brasileiro: cabe esclarecer que a forma que esses bens assumem pode ser a mais variada possível: desde imóveis até formas de expressão e dança, além da memória cultural. Se assim forem considerados, deverá haver um pro­cedimento para que um bem possa ser tombado que poderá atin­gir, ou nào, a totalidade do bem (por exemplo, o tombamento da fachada de um prédio). Está disposto no Decreto-lei n. 25/37 e pode

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ensejar até a desapropriação do bem para que o Poder Público possa preservá-lo mais adequadamente, desonerando o parti­cular.

• Parcelamento, edificação ou utilização compulsória (V ,;) - com base no art. 182, § 4°, I, da Carta Magna, estas são as primeiras sanções a serem impostas ao proprietário de solo urbano que não edificar, subutilizar ou não utilizar seu imóvel em conformidade com o Plano Diretor. Os arts. 5ft e 6° determinam o procedimento que deve ocorrer para aplicar tais imposições. O texto infralegal acrescenta a expressão "não utilizado", que não consta no inciso I do § 4Q do art. 182 referido, porém sem alterar a substância da compreensão que o dispositivo do Texto Supremo traz, pois a mes­ma expressão é utilizada no § 4- do art. 182. Percebe-se a intenção destes dispositivos de punir aquele que retém sua propriedade, muitas vezes sem manutenção ou uso, esperando a oportunidade de um bom negócio, ou seja, que a propriedade se valorize me­diante os investimentos que os outros (proprietários e Poder Pú­blico) fazem nas imediações. Em razão desse comportamento é que existem quarteirões inteiros decadentes, com as construções ruindo, ou um grande volume de imóveis prontos para o uso, porém fechados. Se isso continuar, após a aprovação do Plano Diretor o Poder Executivo municipal poderá aplicar uma das três hipóteses aqui analisadas para tentar fazer com que o proprietário se ajuste às necessidades imobiliárias coletivas. A tentativa legal é de punir o uso inadequado, porém acentuou a interpretação para a não-utilização ou subutilização. Entretanto, é plenamente possível haver utilização inadequada caracterizada pela superutiliza- çào do imóvel: volume excessivo de atividades que nele ocorram, número muito grande de pessoas que o habitem ou superuti- lização dos equipamentos públicos em razão de um conjunto habi­tacional novo que não projete corretamente o uso que se fará deles, entre muitos outros exemplos. Assim, situações como essas po­dem gerar desconforto e mal-estar entre os cidadãos, inclusive prejudicando a ordenação urbana de uma região. Contudo, pare­ce-nos que estes instrumentos, o parcelamento, a utilização e a

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edificação compulsoria, nào sào os adequados para o caso de superutilização, tendo em vista que haveria um adensamento su­perior àquele queja é problemático.

• Direito de preempção (V, n i) - estabelecido nos arts. 25 a 27, refe- re-se à preferencia que o Poder Público municipal pode ter na compra de imóvel urbano objeto de alienação onerosa entre par­ticulares. Para exercer este direito, o Poder Público deverá elabo­rar urna lei específica indicando as regiões que são de seu inte­resse de compra, indicando o motivo (art. 26). Na medida em que proprietários queiram vender seus imóveis, deverão, antes de efe­tuar a venda, oferecer o bem ao Poder Público municipal, que terá trinta dias de prazo para manifestar seu interesse em comprá-lo. Este prazo inclui, a nosso ver, apenas a manifestação explícita do Poder Público municipal em comprar o imóvel e nào em concluir o negócio em trinta dias. Por certo que já deve haver uma dotação orçamentária específica para estas compras, evitando maiores de­moras e prejudicando o proprietário. O transcurso deste prazo sem nenhuma manifestação do ente público gera efeitos muito claros: a negação do interesse do Poder Público em adquirir o imóvel e o di­reito de o proprietário aliená-lo a qualquer outra pessoa. Para o Po­der Público, este instrumento pode ser de grande valia na execução da ordenação urbana, inibindo ações especulativas, permitindo-lhe possuir um Banco de Terras (uma reserva fundiária)11 e protegendo bens passíveis de tombamento.

• Estudo prévio de impacto ambiental e estudo prévio de impacto de vizinhança (VI) - conhecidos como EIÀ e EIV, estes instrumen­tos possibilitam a atitude preventiva na ordenação urbana. Pre­visto no art. 225, § Io, IV, da Constituição Federal, o estudo prévio de impacto ambiental não se refere apenas ao meio ambiente na­tural, sendo perfeitamente possível e compatível com este instru­mento sua elaboração no meio ambiente urbano. O texto legal

11 AZEVEDO. Eurico Andrade. Direito de preempção. In: FUNDAÇÃO PREFEITO FA­RIA LIMA. Estatuto da cidade. São Paulo. Cepam. 2001. p. 186.

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informa que o EIA deve ser exigido quando houver instalação de “obra ou atividade potencialmente causadora de significativa de­gradação do meio ambiente", o que pode incluir qualquer área, de qualquer tamanho, em qualquer lugar, desde que haja a inserção de atividade humana que transforme o meio, com potencial risco de desequilíbrio local, regional ou na dimensão que for possível. Com relação ao estudo de impacto de vizinhança, este também deve preceder à instalação de empreendimentos e atividades em área urbana (arts. 36 a 38; previsto também para as operações urbanas consorciadas, art. 33, V). Lei municipal definirá quais são as atividades e empreendimentos que deverão elaborar tal estudo com o objetivo de analisar os riscos de nocividade para a qualidade de vida da população atingida. A princípio, um super­mercado não é uma atividade degradante para o meio, porém o estudo de impacto de vizinhança pode analisar aspectos para o caso específico que trarão um resultado diferente do hipotético. A ins­talação de um supermercado em uma rua estreita e central pode gerar um caos no tráfego da região, além de ruído, movimentação em grande parte do dia, causando uma série de distúrbios para a população local e ensejando a negativa por parte do Poder Público quanto a sua instalação.

e) Instrumentos tributários:

♦ Imposto predial e territorial urbano progressivo (IV, a) - baseado no art. 182, § 4o, II, da Constituição Federal, está descrito, no Es­tatuto da Cidade, no art. 7Ü. É uma sanção possível de ser aplicada após a imposição infrutífera do parcelamento, edificação ou uti­lização compulsória sobre um imóvel. O imposto deverá ser es­tabelecido em lei específica, com a previsão do valor das alíquotas progressivas a serem aplicadas durante os até cinco anos passíveis de sua cobrança, pois se o proprietário cumprir o parcelamento, edi­ficação ou utilização anteriormente impostos estará desonerado desta cobrança diferenciada. O valor máximo da alíquota não poderá ul­trapassar 15% do valor do imóvel, não podendo exceder a duas vezes o valor referente ao ano anterior. Se, eventualmente, a alíquota de

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15% for ultrapassada, deverá manter-se nesse patamar até que se esgo­te o prazo legal da cobrança do IPTU progressivo.

• Contribuição de melhoria (IV, 6) - este instrumento consta no Código Tributário Nacional, arts. 81 e 82, e foi criado para que o Poder Público pudesse equilibrar os custos urbanísticos da exe­cução de obras com a cobrança pela decorrente valorização imobiliária das obras. As intervenções urbanísticas sempre obje­tivam a melhoria da qualidade de vida da população no meio que a circunda. Por isso mesmo, a modificação benéfica das vias, edi­ficações e equipamentos públicos (como estação de metrô) traz grande valorização para a região. A contribuição de melhoria se­ria calculada em cima desta valorização. Contudo, seu mecanis­mo é complicado, dificultando sua aplicação correta. Uma alter­nativa para a excessiva valorização imobiliária decorrente de obra pública é a desapropriação por zona para posterior revenda. Par­te da doutrina entende ser este um mecanismo inconstitucional porque o Poder Público não pode desenvolver mecanismo de obtenção de lucro, pois esta não é sua finalidade. Ocorre que os recursos obtidos com a revenda do imóvel desapropriado nesta hipótese não têm a finalidade de lucro, mas sim de servir como elemento integrante da composição dos custos urbanísticos.

6.2 Dos instrumentos de natureza não-urbanística

a) Referentes à participação popular:

O Capítulo IV (arts. 43 a 45) do Estatuto da Cidade refere-se exclu­sivamente à gestão democrática da cidade e dispõe, de forma exemplifica- tiva, as formas de participação da sociedade, pois os Municípios poderão, além destas, estabelecer outras formas.

♦ Gestão orçamentária participativa (III, f) - descrita no art. 44, impõe que esta ocorra em âmbito municipal, com “a realização de debates, audiências e consultas públicas" sobre as propostas do plano plurianual. da lei de diretrizes orçamentárias e do orçamento anual como condição obrigatória para sua aprovação pela Câmara Mu-

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nicipal. Considerando que estes são instrumentos que abrangem toda a Administração Pública, as atividades urbanísticas, com seus custos, suas previsões de obras, de compras de imóveis, de desa­propriações e todo tipo de intervenção, podem ficara mercê des­te processo em face da complexidade das informações, que sem­pre devem ser decididas perante seu contexto e também em razão da falta de hábito de dar um tratamento especial à matéria.

• Assistência técnica e jurídica gratuita para as comunidades e gru­pos sociais menos favorecidos (V, r) - o Poder Executivo muni­cipal, em geral,já possui um corpo técnico e jurídico próprio. Para efetivar esta medida, será necessário: a) que haja um pessoal es­pecificamente designado para esta função, considerando que o pla­nejamento urbano deva ser permanente: b) que este pessoal te­nha acesso a todas as informações e decisões tomadas em âmbito urbanístico (leis, decretos, atos administrativos), bem como a suas constantes atualizações.

• Referendo popular e plebiscito (V, s) - meio próprio de manifesta­ção da decisão popular, poderá ser previsto para aqueles instru­mentos que necessitarem da elaboração de uma lei específica.

b) Referentes aos recursos públicos:

• Plano plurianual (III, cí) e diretrizes orçamentárias e orçamento anual (III, c) - dispostos na Constituição Federal, Título V, Capítu­lo II, Seção II (arts. 165 a 169), devem ser estabelecidos mediante lei de iniciativa do chefe do Poder Executivo. Para o Estatuto da Cidade, tais instrumentos versam sobre a atuação municipal (Pre­feito) e deverão ter participação popular durante sua elaboração. Lei municipal estabelecerá se esta participação ocorrerá na esfera do Poder Executivo ou do Poder Legislativo e será uma forma de a população fiscalizar se nos planos do Poder Público estão inseridas as preocupações e necessidades da população, já que, se não houver previsão orçamentária e de execução das obras, have­rá grande dificuldade em executá-las. Por isso, nada mais salutar que a população acompanhe e interfira no processo de elabora­ção do orçamento municipal.

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• Incentivos e benefícios fiscais e financeiros (IV, c) - este item ape­nas explicita uma faculdade que já compete ao Poder Público. Cria estímulos para que o particular, voluntariamente, aja em con­sonância com o planejado pelo Poder Público. Para aqueles que possuem uma capacidade econômica equilibrada, os incentivos e benefícios fiscais podem recair sobre alíquotas tributárias meno­res. por exemplo, enquanto para aqueles que se enquadram nos ‘economicamente insuficientes" poderia haver isenção tributária permanente ou temporária. Como benefício financeiro, um bom exemplo é o consórcio imobiliário previsto no art. 46. Para este caso, aquele cuja propriedade tenha sido objeto da imposição pre­vista no art. 5o (parcelamento, edificação ou utilização compul­sória) poderá requerer a transferência deste imóvel ao Poder Pú­blico, para que este realize as obras que forem necessárias, retornando ao antigo proprietário as unidades imobiliárias corres­pondentes ao valor do imóvel antes da intervenção urbanística, como pagamento. Se a hipótese for a de construir prédios popu­lares e beneficiar a população de baixa renda, este instrumento pode ser interessante. Porém, sua generalidade poderá dar mar­gem a interpretações que distorcerão sua aplicação (no caso da­queles que possuem alta renda).

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CapítuloVI

MEIO AMBIENTE URBANO

1. INTRODUÇÃOAs funções da cidade foram consagradas, durante o século XX, deli­

mitando, no urbanismo e no Direito Urbanístico, seus objetos de preocu­pação (lazer, moradia, circulação e trabalho) e a área de atuação (cidade).

Entretanto, as transformações sociais ocorridas durante este último século fizeram evoluir este enfoque. Houve acréscimo de valores, além da inserção de novos elementos na coordenação de espaços habitáveis. Meio ambiente e qualidade de vida, hoje, estão necessariamente no rol das preo­cupações do Poder Público e da sociedade.

Trataremos, neste capítulo, destas definições e procuraremos ade­quá-las à estrutura do Direito Urbanístico.

2. NATUREZA E MEIO AMBIENTEO ser humano sempre utilizou a natureza e dispôs do seu meio da for­

ma que lhe fosse mais conveniente e, em geral, trouxesse satisfação ime­diata. Contudo, nessas últimas décadas, houve uma profunda mudança de

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enfoque, originada em descobertas científicas, considerando a natureza co­mo passível de direitos e entendendo o ser humano como integrante da natu­reza. É o que esclarece Paulo de Bessa Antunes:1

(...] as raízes da compreensão de que a raça humana é parte integrante da natureza podem ser encontradas nos primordios da era moderna e. em grande parte, sào decorrências de descobertas científicas que foram os primeiros aba­los significativos na ideologia da confrontação entre o homem e a natureza. [...]. O reconhecimento do diferente e dos direitos equânimes que estes devem ter é um relevante fator para assegurar uma existencia mais digna para todos os seres vivos, especialmente para os humanos.

Assim. entender o ser humano como integrante da natureza é reconhe­cer urna necessidade de respeito mútuo para que se consiga atingir um equi­librio. Se o Direito sempre procurou normatizar a propriedade, a posse, o uso e o gozo de que as pessoas dispunham sobre o solo e a natureza em geral, com este enfoque o Direito tornou-se o instrumento adequado e necessário para traduzir estas novas necessidades, quais sejam, do direito que a própria na­tureza tem de ser protegida, do direito que o ser humano pode ter de usu­fruir da natureza e, na medida em que estes dois primeiros "direitos" forem atingidos (da natureza e sobre a natureza), alcançar-se-á o direito ao meio ambiente equilibrado e saudável.

A efetivação do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida, preconizado no art. 225 da Constituição Federal, só é possível na medida em que o ser humano respeita o meio am­biente e respeita a forma e o limite do uso que dele possa fazer. Este direito constitucionalmente assegurado é resultado de um comportamento social pelo qual o Poder Público, em todas as suas instancias, e a sociedade, de maneira geral, são responsáveis.

Ocorre que transferir tais anseios para o mundo jurídico não é fácil, ten- do em vista que o Direito se desenvolveu sobre o pilar do antropocentrismo e

1 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 3. ed. Rio de Janeiro. Lumen Juris, 1999. p. 23.

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estas novas abordagens trouxeram uma ruptura com esta estrutura. Foi ne­cessário elaborar conceitos jurídicos para expressões até então utilizadas apenas em linguagem metajurídica.

Expressão fundamental desta nova abordagem jurídica, o conceito de natureza pode ser descrito como “o conjunto de todos seres que formam o universo” e “essência e condição própria de um ser”. Estas duas definições escolhidas por Paulo de Bessa Antunes" resumem a totalidade de seres, seja uma vida ou todas elas conjuntamente consideradas.

Entretanto, falar de ambiente significa incluir, além de todos os seres vivos, tudo aquilo que os envolver e for necessário para sua sobrevivência, considerando, inclusive, o lugar, o espaço em que estão, adotando uma con­cepção bastante abrangente.

A definição de meio ambiente atualmente adotada no Direito brasilei­ro também engloba um repertório mais amplo que a definição de natureza. Mesmo tendo sido criticada como redundante por parte da doutrina,3 esta expressão fixou-se com um conceito jurídico. A Lei Federal n. 6.938/81 pres­creveu em seu art. 3o, I, o meio ambiente como um “conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que per­mite, abriga e rege a vida em todas as suas formas". O conceito do meio ambiente é, portanto, um conceito jurídico determinado.

3. AINTERSECÇÃO DA MATÉRIA AMBIENTAL PERANTE O DIREITO URBANÍSTICO

3.1 Considerações

O meio ambiente tem sido objeto de estudo por parte da ciência jurí­dica, estudo que recebeu a denominação de Direito Ambiental. Contudo, to­das as normas jurídicas referentes ao equilíbrio do meio ambiente serão de

2 Ibidem, p. 4.

3 SILVA, José Afonso da. Direito ambienta! constitucional. Sào Paulo. Malheiros, 1994. p. 1; FREITAS. Vladmir Passos de. Direito administrativo e meio ambiente. 2. ed. Cu­ritiba. Juruá, 1998, p. 13.

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interesse público, fazendo com que sua compreensão e interpretação ocor­ram na seara do Direito Público.

O Direito Urbanístico é ramo jurídico de Direito Público, por isso seu interesse sempre estará centrado na coletividade e as atividades urbanísticas serão, ao menos, fiscalizadas pelo Poder Público, resolvendo-se, basicamen­te, dentro da esfera municipal: o Poder Legislativo Municipal é quem deverá legislar a respeito dos interesses urbanísticos locais. Os problemas que ocor­rem localmente deverão ser resolvidos na esfera local.

Este raciocínio também se estende para as matérias ambientais, haven­do um critério espacial para determinação das competências ambientais se a Constituição Federal não determinar diferentemente. Por conseqüência, se a norma jurídica foi elaborada em certa unidade federativa, o órgão exe­cutor será o seu equivalente. Neste contexto, a inicial amplitude das maté­rias ambientais se reduz a apenas uma parte para que estas se ajustem aos limites do Direito Urbanístico.

Portanto, serão mostrados, a seguir, por meio da estrutura metodológi­ca proposta pela doutrina do Direito Ambiental, os pontos de intersecção entre o Direito Urbanístico e o Direito Ambiental.

3.2 Aspectos do meio ambiente

Perante a doutrina, o estudo do Direito Ambiental pode ser dividido em quatro aspectos: natural, artificial, cultural e do trabalho. O meio am­biente urbano é objeto de estudo do Direito Urbanístico e nele estão inseri­dos não só um, mas estes quatro aspectos do meio ambiente; se não, vejamos:

• Meio ambiente natural - abrange todas as formas de vida, o meio em que vivem e os elementos responsáveis pelo seu equilíbrio. A fauna, a flora, seus ecossistemas, o solo, a água e o ar com a função ecológi­ca que desempenham integram este aspecto.

A inserção do meio ambiente natural no Direito Urbanístico ocorre pela proteção ao meio ambiente natural inserido no contexto urbano. Essa proteção pode se dar isolando-o, permitindo acesso com uso limitado, proi­bindo o uso ou acesso e até estimulando o uso ou acesso adequados, com de­limitação por norma jurídica que proteja e resguarde certo aspecto ou o todo.

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• Meio ambiente artificial - abrange o meio ou os elementos que so­freram intervenção do ser humano, transformando seu aspecto ou essência, dando-lhes utilidade ante as necessidades do ser humano.

José Afonso da Silva-1 adota a noção do todo, do coletivo para definir o meio ambiente artificial, pois o autor agrega ao conjunto de edificações os equipamentos públicos. Se adotarmos esta noção de meio ambiente artifi­cial, todo seu conteúdo se integrará ao objeto do Direito Urbanístico.

Entretanto, se adotarmos postura mais extensiva, radicalizando a in­terpretação de meio ambiente artificial para todo o espaço que tenha sofri­do intervenção modificadora do ser humano, desagregando desta noção a idéia do conjunto em que se insere, podendo ser pontuada de forma isolada, então nem todo meio ambiente artificial será objeto de tratamento pelo Direito Urbanístico. Desta forma, o meio ambiente artificial pode-se ex­pandir territorialmente além do ambiente urbano. Para alguns juristas, es­tas expressões são equivalentes.

Adotamos esta última noção, na qual o meio ambiente artificial pode ser caracterizado em face das intervenções e transformações provocadas pelo ser humano mesmo que em locais não-urbanos, pois entendemos que uma estrada que “corte” uma floresta não deverá ser objeto de estudo do Direito Urbanístico e sim de normas jurídicas pertinentes à interferência do meio ambiente artificial no natural. Ao mesmo tempo, não conseguimos perce­ber como uma estrada dentro de uma floresta possa ser adequada dentro do meio ambiente natural. Na verdade, houve açâo modificadora pelo ser hu­mano. Modificou-se o uso daquele espaço pela intervenção humana. Assim, o meio ambiente artificial pode estar em qualquer lugar, e caracteriza-se por ser fruto de intervenção do ser humano que acarrete a transformação de essência e uso do meio.

Quanto às representações do meio ambiente artificial no meio am­biente urbano, podemos citar a construção, elaboração, transformação ou extinção de edificações ou obras em qualquer de suas formas pelo Direito consagradas.

4 SILVA, José Afonso da. Direito ambiental..., cit., p. 3.

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• Meio ambiente cultural - este aspecto se refere tanto ao meio am­biente natural como ao artificial, desde que tenha ganhado espe­cial relevo perante a sociedade. Sao elementos que adquiriram valor especial, podendo alcançar este significado diante da comunidade local, regional, nacional ou até internacional, recebendo um trata- mentó diferenciado perante a norma jurídica.

O art. 216 da Constituição Federal indica o que vem a ser o meio ambiente cultural, referindo-se ao patrimonio cultural nacional. Este ar­tigo conceitua e delimita seu objeto. A proteção deve advir de todas as unidades federativas (art. 23, III e IV), e como remedio processual a Carta Suprema indica o art. 5o, LXX III (ação popular),e o art. 129, III (ação civil pública).

A preservação do patrimonio cultural é de suma importância. O pas­sado nos serve de ponte entre o presente e o futuro ao ser recuperado pela memória. A memoria, mais que um repertorio funcional de dados, é um tra­balho de construção do passado. Tais dados serão conformados no conteú­do, alterando-o, detalhando-o, simplificando-o, o que trará representações consensuais perante a memoria grupai por meio de uma ideologia grupal. Por isso, a memória é transformada em instrumento de dominação ideoló­gica. Adapta-se a narração do fato ocorrido às conveniencias da atualidade. Há uma substituição de linguagem, da histórica para a formalística. Com isto, há perda da liberdade de pensar e agir.5

De qualquer forma, reconhecer elementos como próprios, através do tempo, traz identidade. Esta é uma noção de conteúdo histórico. O ambiente em que crescemos e vivemos é o espaço onde nossas lembranças reapare­cerão. Assim, o espaço urbano traz as referências de identidade de um gru­po social que somente serão compreendidas no ambiente histórico em que se produziram. Por isso devem ser categorizadas (valoradas) no território específico em que produzam tais sentimentos. Se assim for feito, uma pos­tura de respeito poderá ser vivenciada pelos cidadãos.

ú TOLEDO. Carlos José Teixeira de. Patrimônio cultural urbanístico: um estudo sobre a tutela jurídica da memória coletiva. Sào Paulo, 1997. Dissertação (Mestrado). Facul­dade de Direito. Universidade de São Paulo, 1997.

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MEIO AMBIENTE URBANO 93

0 tombamento de móveis e imóveis, a proteção de documentos, artes, traços culturais, tudo isto recebe, desde longa data, proteção legislativa, in­clusive com medidas judiciais que inibem, cerceiam ou interrompem atos descaracterizadores destes elementos valorados pela sociedade. A cultura traduz os valores da sociedade. Se esta sociedade transforma seus valores, sua cultura também sofrerá interferência. Cabe à iniciativa do Poder Públi­co detectar eventual ausência ou enfraquecimento dos valores necessários para a construção da cidadania responsável, estimulando, ensinando, infor­mando a sociedade sobre, por exemplo, fatos históricos ou atuais, atitudes que traduzam respeito, inibindo veementemente aquelas que contrariem os valores sociais de respeito à privacidade, igualdade, valor do trabalho, saúde, educação (informação), família.

• Meio ambiente do trabalho - na verdade, este aspecto é, em geral, um desdobramento do aspecto artificial que adquiriu relevo signifi­cativo, tendo em vista que o local do trabalho é o espaço em que o cidadão passa boa parte da vida. Por isso, deve ser um ambiente sau­dável e equilibrado para proteger o trabalhador.

A Constituição Federal destacou sua importância no art. 200, V III. Ape­sar de o meio ambiente do trabalho ser considerado distinto das relações estabelecidas pelo Direito do Trabalho, difícil é fazê-lo se considerarmos que ambos procuram neutralizar os aspectos periculosos e insalubres, vi­sando a um ambiente estimulador e saudável.

Parece-nos que a característica diferenciadora pauta-se pelo sujeito: ao meio ambiente do trabalho interessa que a coletividade esteja protegi­da, no Direito do Trabalho busca-se a proteção de cada indivíduo, do inte­resse particular de cada trabalhador.

A proteção da estrutura do ambiente do trabalho, bem como sua boa conexão com as outras funções da cidade (habitação, transporte e lazer), pode trazer o bem-estar e o equilíbrio nas relações de trabalho e demonstra a ligação com o Direito Urbanístico.

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4. MEIO AMBIENTE URBANODe certa forma, sempre que for abordado o Direito Urbanístico, es-

tar-se-á abordando algum aspecto do Direito Ambiental, porquanto aque­le sempre se refere ao meio em que as pessoas vivem e às relações nele estabelecidas.

A relação entre o Direito Urbanístico e o Direito Ambiental nào se refe­re à soma de dois conteúdos. Nào é síntese. Na verdade, é a qualificação que o urbanismo moderno recebe ao conformar a dinâmica de seus objetivos às necessidades atuais.

Observe-se, contudo, que nem sempre tais aspectos ambientais são ob­jeto de interesse do meio ambiente urbano: só o serão quando estiverem sendo considerados os núcleos urbanos. Significa dizer que sempre deverá estar presente o elemento humano, considerado na sua coletividade, com a ordenação dos espaços onde desenvolve suas atividades e a qualidade que se obtém das relações estabelecidas por meio destes elementos.

Portanto, estarão excluídas das considerações do meio ambiente urba­no pessoas que vivam isoladas da comunidade, bem como elementos e as­pectos ambientais que não estejam inseridos, pelo critério da territorialida­de, na vida urbana.

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CapítuloVII

REALIZAÇÃO E DEGRADAÇÃO DA QUALIDADE DE V ID A

I. QUALIDADE DE VIDA

A satisfação das necessidades do ser urbano acarreta modificações am­bientais significativas, em que os planejamentos urbano e ambiental devem se associar.

O mestre Hely Lopes Meirelles já ensinava que

a qualidade de vida dos moradores urbanos depende fundamentalmente dos

recursos da natureza, e muito em particular das terras, das aguas e das florestas

que circundam as grandes e as pequenas cidades, assim como as atividades exer­

cidas em seus arredores.1

Este enfoque separa, claramente, o meio ambiente natural, sua pre­servação e equilibrio, do meio ambiente urbano. Apesar de considerarmos

MEIRELLES, Hely Lopes. Op. cit., p. 381.

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duas partes de um todo, concordamos com o eminente jurista quando se refere à necessidade do respeito à natureza para a qualidade de vida dos cidadãos urbanos.

É instrumental o condicionamento do uso do meio ambiente a urna for­ma adequada que garanta ao ser humano a qualidade de vida assegurada por lei e identificado com o mesmo raciocínio da função social da propriedade por impedir abuso do poder (privado/público), visando o bem coletivo. Num certo aspecto, podemos afirmar que a obtenção de melhora na qualidade de vida está intimamente relacionada com a efetivação das normas de Direito Ambiental.

Qualidade de vida engloba muito mais que a mera sobrevivencia da espécie. Refere-se à vivencia em sua plenitude, na qual o ser usufrua de tudo que for necessário para, além da sobrevivencia física, obter a realização de suas finalidades. Assim, todos os seres vivos necessitam ser abastecidos por elementos que garantam sua vida: ar, água, alimentos, sol etc. Se tais ele­mentos existem e seus componentes estão em razoável equilíbrio, se a degra­dação e a poluição não alteraram substancialmente suas características, seu corpo físico sobreviverá. Entretanto, poderá estar vivendo com ausencia ou insuficiencia de qualidade.

A Constituição Federal, em seu art. 225, enuncia que todos tem direi­to a uma sadia qualidade de vida. Saudável é aquilo que possui saúde. Saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental ou social, não ape­nas a ausencia de doenças e enfermidades (NRB 9.896/93, p. 85). Ou, se­gundo a Organização Mundial de Saúde, é o estado de completo bem- estar físico, mental e social do ser, resultado de adequadas condições de alimentação, habitação, saneamento, educação, renda, meio ambiente, tra­balho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso à terra e posse dela e acesso a serviços de saúde. Destes treze itens, pelo menos seis estão relacio­nados com a política urbana, donde se deduz que, para que haja uma ofer­ta de sadia qualidade de vida para uma população, serão necessárias a estruturação e a realização de uma política urbana condizente com estes valores.

O Estatuto da Cidade possui dispositivos em seu texto que reforçam esta postura, a exemplo do seu art. Io, parágrafo único, que estabelece como

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REALIZAÇAO E DEGRADAÇAO DA QUALIDADE DE VIDA 97

objetivo precipuo o bem-estar dos cidadãos e o equilíbrio ambiental, além de inserir no Plano Diretor (art. 39) e no Estudo de Impacto de Vizinhança (art. 37) a realização da qualidade de vida da população afetada.

Os indicadores de qualidade de vida de uma cidade são sempre influen­ciados pela política e por visões distintas da realidade. O Poder Público po­derá intervir mais na medida em que seja responsável pela gestão dos ser­viços a serem considerados. Neste sentido, é possível estabelecer um certo grau de eficácia da gestão pública em face da qualidade de vida ofertada aos habitantes de uma cidade.

De qualquer forma, é importante assinalar que os indicadores de qua­lidade de vida não podem ser tomados como forma absoluta de explicação e, menos ainda, de comparação2 entre as cidades. Deve-se levar em conta cada situação com suas variáveis. Os instrumentos indicados no art. 4o do Estatuto da Cidade podem ser utilizados justamente para relativizar as dife­rentes circunstâncias de cada cidade ou até dentro da mesma cidade.

Como instrumentos específicos para bairros ou microrregiões, há, por exemplo, o tombamento, a desapropriação, o loteamento, o E1A, o EIV, con­cessão de uso especial, o direito de superfície, a outorga onerosa do direito de construir, o usucapião, além da elaboração de planos locais ou setoriais que visam harmonizar a parte com o todo (a cidade), como é o caso do plano de operação urbana consorciada.

Quanto aos instrumentos próprios para serem utilizados por toda a cidade, o Plano Diretor deve ser a grande referência de padrões e metas, estabelecendo proibições, mostrando tendências, obrigando a certas con­dutas, enfim, consagrando os valores locais para que se alcance a qualida­de de vida urbana. Na medida em que haja participação popular nestas definições, a possibilidade de eficácia no planejamento urbano será muito maior.

Cabe ao Poder Público verificar as carências e as dificuldades de sua so­ciedade. As necessidades da população de baixa renda dizem respeito a itens primários da sobrevivência, como precariedade de moradia, dificuldade de

VAZ, José Carlos. Mais casas com novas leis. Revista Polis, São Paulo, n. 24,1996, p. 68.

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transporte devido à ausencia de veículo, carência na estrutura de saneamento e de oferta de energia elétrica, dificuldade de acesso à informação com pre­juízo de direitos fundamentais, entre outros. Já o critério para verificar a qualidade de vida da população economicamente mais abastada passa pela satisfação da aquisição e uso de bens de consumo.

Além da relativização da realização da qualidade de vida nas camadas sociais, os diferentes tipos de cidade também modificam a forma de reali­zação deste valor. Por exemplo, numa bela cidade litorânea, quente durante todo o ano, o mar, a temperatura, o ar, a pesca e os turistas farão com que mesmo a população de baixa renda tenha razoável qualidade de vida (terá lazer permanente, com a praia e seus esportes, terá trabalho informal na orla, com pouca variação climática). Este panorama é muito diferente do da população que vive na periferia das grandes cidades, sem lazer, com clima instável (enchentes, estiagem) e excesso de gente, que traz insegurança, des­conforto e violência.

As grandes cidades, as metrópoles, geram graves distúrbios sociais, que destroem as relações entre as pessoas que nelas vivem. Como entender o que é qualidade de vida urbana para uma metrópole? Será que a autonomia da ordenação em cada região melhoraria esta situação?

A dinâmica de uma região metropolitana possui peculiaridades que não se encontram nas cidades em geral. O intercâmbio de problemas e ca­rências sociais costuma sobrecarregar o Município-pólo, provocando, por exemplo, falta de vagas nos hospitais e colapso da infra-estrutura ofertada. Contudo, os Municípios circunvizinhos sofrem com os excessos produzi­dos pelo Município-pólo, por exemplo, a destinação dos resíduos sólidos, o volume de trânsito e seus inconvenientes. Muitos destes pequenos Municí­pios procuram desenvolver uma rotina separada do ritmo da metrópole. Portanto, tentar localizar pontos de convergência, sociais e políticos para que haja um compromisso formal de melhorar a qualidade de vida nessas regiões é muito difícil. Os interesses são diferentes e até opostos. A metró­pole, como grande geradora de economia, quer os pequenos Municípios à sua disposição.

Esta dinâmica afeta diretamente as camadas mais pobres da população que, em face da segregação residencial, se aloca nas periferias com problemas

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ambientais e estruturais gravíssimos. O resultado é a migração pendular,3 que ocorre há muito tempo, e é inegável dizer que a capacidade econômica do indivíduo modifica, em muito, a leitura sobre os problemas da cidade. A população de babea renda é sempre empurrada para regiões ambientalmen­te desfavoráveis e com pouca, ou nenhuma, infra-estrutura de equipamentos públicos. Porém, o emprego ofertado a esta camada da população, em geral, é em pólos industriais ou comerciais, forçando a migração intra-urbana de baixa qualidade.

No lado oposto, os locais que possuem maior qualidade ambiental e/ou infra-estrutura urbana são ocupados pela população de maior poder aqui­sitivo. Aqueles que optam pela qualidade ambiental tornam-se migrantes pendulares porque querem residir naquele local nobre, exatamente o opos­to do que ocorre com a camada mais pobre.

A qualidade de vida urbana se concretizará na medida em que a oferta suficiente e a boa conexão entre as funções da cidade se antecipem às neces­sidades. Quando a qualidade de vida de um cidadão não seja fator de revol­ta de outro, que ameaçará o primeiro, fazendo com que a qualidade de vida deste decaia.

Percebemos que o Direito Urbanístico ordena os espaços habitáveis por meio de normas jurídicas e verificamos que seu objeto extrapola, em muito, a mera ordenação territorial, pois visa a convivência pacífica, digna e har­moniosa dos habitantes. Este ramo do Direito Público terá o objetivo de impedir gravame nas condições de vida naqueles aspectos que lhes forem pertinentes. Deverá corrigir distorções, estimular ações coletivas, valorizar ele­mentos que estimulam a dignidade da localidade, por intermédio da história, do ambiente e do trabalho.

Toda esta análise recai no princípio do desenvolvimento sustentável, que é o que atende às necessidades do presente sem comprometer a capaci-

Conforme Daniel Joseph Hogan, migrante pendular é aquele que mora em um mu­nicípio mas trabalha ou estuda em outro. (Migração, ambiente e saúde nas cidades brasileiras. In: VIEIRA, Paulo Freire [org. ]. Dilemas socioambientais e desenvolvimen­to sustentável. 2. ed. Campinas, Editora da Unicamp, 1995, p. 152).

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100 ELEMENTOS DE DIREITO URBANÍSTICO

dade das gerações futuras de atenderem também às suas.'1 Considerando que grande parte da população mundial vive em cidades, a vida saudável que proclama este princípio será desenvolvida na urbe e, portanto, conseguida principalmente por meio de uma visão urbanística integrada ao respeito ao meio ambiente.

2. DEGRADAÇÃO DA QUALIDADE DE VIDA

2.1 Características

A atividade humana sempre traz transformações no meio ambiente, po­dendo ser positivas ou negativas. As alterações negativas deverão ser men­suradas a fim de verificar o grau de prejuízo ocorrido para que se caracterize a necessidade de uma tutela específica que redundará no ressarcimento ao pre­judicado. Assim, a atividade humana, mesmo quando é degradante, pode ser tolerada pelo sistema jurídico. Para isso, o Poder Público deverá elaborar índices de tolerância que os seres vivos deverão suportar em prol desta ati­vidade danosa. Este também é o posicionamento de José Afonso da Silva, para quem nem toda poluição é condenável, mas apenas aquela cuja altera­ção provocada influa de maneira nociva ou inconveniente na qualidade de vida.5 Assim, as alterações, quando toleráveis ou normais, não devem me­recer contenção ou repressão.

Mensurar o que é ou não tolerável é o grande desafio do Poder Público, pois a flexibilização de índices poderá resultar em graves desequilíbrios. A Lei Federal n. 6.938/81, art. 3o, II, não facilita esta equação, oferecendo um conceito muito genérico de degradação da qualidade ambiental: “alteração adversa das características do meio ambiente”. Este mesmo artigo traz a de­finição de poluição e suas possibilidades de caracterização.

Entendemos a degradação como um gênero, no qual as diversas formas de poluição são espécies, ao lado do desmatamento e da deterioração. De­gradar significa privar de graus, rebaixar-se. Se este “rebaixamento” ultra-

' SÁ, Elida. Nosso futuro comum. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1988, p. 9-10.

SILVA, José Afonso da. Direito ambiental..., cit., p. 12.

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REALIZAÇAO E DEGRADAÇAO DA QUALIDADE DE VIDA 101

passar os parâmetros legais e for resultado de ação ou omissão humanas, caracterizará atitude ilícita, passível de responsabilização, inclusive cabendo ressarcimento do prejudicado na medida em que se consiga mensurar o dano causado. Portanto, o dano é o prejuízo causado a algo ou alguém.

2.2 Considerações sobre a caracterizacão da degradação do meio ambiente urbano

A degradação só será objeto de norma jurídica sancionatória se estiver adequada às seguintes características: a) for resultado da ação humana; b) de­rivar em alteração adversa do bem atingido; c) a alteração deve infringir o parâmetro estabelecido para aquela ação. Entretanto, a caracterização de uma situação degradante no meio ambiente urbano não se resume a estas carac­terísticas. Deve-se ponderar outras circunstâncias.

O princípio da precaução aplicável às normas de Direito Ambiental bus­ca valorizar uma postura preventiva diante de ações que possam trazer risco de dano ambiental. Para o Direito Urbanístico, a aplicação deste princípio em atos isolados torna-se difícil, em face da complexidade da comprovação do risco. O estudo de impacto ambiental e o estudo de impacto de vizinhança têm a função de criar os parâmetros específicos para o empreendimento ana­lisado, verificando possíveis danos na sua implementação. Também a atitude planejadora que o Poder Público (neste caso, o municipal) deve ter abraça esta postura preventiva, e se determinados comportamentos estiverem proi­bidos ou forem obrigatórios no plano urbanístico aprovado por lei, seu des- cumprimento pode ensejar sanção mesmo que não tenha havido um dano mensurável.

Será no plano urbanístico (principalmente no Plano Diretor) que os va­lores e as características de qualidade de vida deverão estar delineados. Se assim estiverem, o descumprimento ao plano será entendido como uma ati­tude degradante para a qualidade de vida urbana.

2.3 Violência urbana

Não são todos os crimes, ameaças ou atos de violência gerados dentro do espaço urbano que podem ser enquadrados como “violência urbana”.

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102 ELEMENTOS DE DIREITO URBANÍSTICO

Crimes passionais, de causa política ou religiosa, por exemplo, não consti­tuem, a princípio, tipos que se inserem dentro da violencia urbana. Aqui cabe uma distinção. A “violência e a criminalidade não são sinônimos. A violência é o constrangimento físico e moral, a criminalidade é a expressão dada pelo conjunto de infrações, é o conjunto de crimes em tempo e lugar determinados”.6

Violência urbana, porquanto seu conteúdo seja genérico, refere-se aos atos e crimes praticados cujo fundamento, próximo ou remoto, esteja as­sociado aos elementos que constituem a cidade. A degradação da qualidade de vida urbana é objeto e, às vezes, fundamento, da violência urbana. Citare­mos, a seguir, algumas manifestações de violência urbana:

• Desrespeito às leis ambientais e urbanísticas - conforme aborda­mos no item anterior, a degradação urbana é, por si só, a materia­lização de um ato de violência contra a cidade e sua coletividade, pois provoca desequilíbrio no meio em que foi praticado. Como exemplo citamos a picliação de patrimônios diversos, a destruição de patrimônio cultural, a violação de normas edilícias, a poluição, entre muitas outras formas que, no somatório geral, deturpam e distorcem a postura daqueles que convivem em ambientes degra­dados, acabando por achar normal viver neste tipo de meio e com­portar-se de forma a acentuar este quadro. São atitudes ilícitas que, muitas vezes, extrapolam a esfera civil e administrativa, caracteri­zando também tipos penais. O desrespeito às leis ambientais foi tema da tese de doutorado de Marília Gomes Campos Libório, na qual concluiu que este comportamento decorre dos seguintes fatores: a) a interiorização de valores e de proteção não foi caracterizada por meio de processo educativo (consciência heterônoma, só obedece às regras se houver expressão externa para seu cumprimento); b) fis­calização do Estado insuficiente (humana, técnica e material, além da falta de recursos financeiros, morosidade e falta de informação dos agentes públicos); c) complexo aparato normativo impedindo sua

POSTERLI, Renato. Violência urbana: abordagem multifatorial da criminogênese. Belo Horizonte, Inédita, 2000, p. 22.