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matraga, rio de janeiro, v.20, n.33, jul/dez. 2013 212 ELEMENTOS ARGUMENTATIVOS NA COMPOSIÇÃO DO GÊNERO “CARTA DO LEITOR”* Gerson Tavares do Carmo (Universidade Estadual do Norte Fluminense) RESUMO O presente trabalho ocupa-se da reconvocação dos elementos da retórica clássica presentes nas obras de Aristóteles e Quintiliano, com destaque para o entimema, bem como do uso desses elementos como conhecimento necessário para o proces- so de ensino e aprimoramento da escrita argumentativa de estu- dantes de pós-graduação na produção de um gênero específico: a carta do leitor. A metodologia empregada neste artigo teve natureza qualitativa, com o propósito de construir um instru- mento para análise de cartas argumentativas produzidas em um experimento realizado num curso de pós-graduação. Dentre as cartas produzidas por doze pós-graduandos, foram escolhidas cartas de uma mestranda de psicologia como ilustração da apli- cação do instrumento. Nesse sentido, foram apresentados a essa estudante os elementos da retórica clássica, assim como a dispo- sição e o funcionamento destes na produção do gênero em ques- tão, partindo do entimema como elemento central. Simultanea- mente, foram analisados exemplares do gênero carta do leitor enviados à Revista Carta Capital, a fim de reconhecer neles a presença desses elementos e analisar de que maneira estes se combinam e contribuem para tornar o texto argumentativo ob- jetivo, claro e persuasivo. Ao final de cada encontro, a partir da leitura de matérias da revista, a estudante passou a produzir cartas semelhantes às enviadas para a seção do leitor, com o propósito de empregar os elementos reconvocados vistos até ali. A experiência mostrou que o uso desses elementos foi capaz de contribuir para a melhoria da prática da escrita argumentativa dessa aluna. PALAVRAS-CHAVE: Carta do leitor - entimema - retórica - ensino da argumentação.

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ELEMENTOS ARGUMENTATIVOS NA COMPOSIÇÃODO GÊNERO “CARTA DO LEITOR”*

Gerson Tavares do Carmo(Universidade Estadual do Norte Fluminense)

RESUMOO presente trabalho ocupa-se da reconvocação dos elementosda retórica clássica presentes nas obras de Aristóteles eQuintiliano, com destaque para o entimema, bem como do usodesses elementos como conhecimento necessário para o proces-so de ensino e aprimoramento da escrita argumentativa de estu-dantes de pós-graduação na produção de um gênero específico:a carta do leitor. A metodologia empregada neste artigo tevenatureza qualitativa, com o propósito de construir um instru-mento para análise de cartas argumentativas produzidas em umexperimento realizado num curso de pós-graduação. Dentre ascartas produzidas por doze pós-graduandos, foram escolhidascartas de uma mestranda de psicologia como ilustração da apli-cação do instrumento. Nesse sentido, foram apresentados a essaestudante os elementos da retórica clássica, assim como a dispo-sição e o funcionamento destes na produção do gênero em ques-tão, partindo do entimema como elemento central. Simultanea-mente, foram analisados exemplares do gênero carta do leitorenviados à Revista Carta Capital, a fim de reconhecer neles apresença desses elementos e analisar de que maneira estes secombinam e contribuem para tornar o texto argumentativo ob-jetivo, claro e persuasivo. Ao final de cada encontro, a partir daleitura de matérias da revista, a estudante passou a produzircartas semelhantes às enviadas para a seção do leitor, com opropósito de empregar os elementos reconvocados vistos atéali. A experiência mostrou que o uso desses elementos foi capazde contribuir para a melhoria da prática da escrita argumentativadessa aluna.PALAVRAS-CHAVE: Carta do leitor - entimema - retórica -ensino da argumentação.

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Gerson Tavares do Carmo

Introdução

Como contribuir para que estudantes do ensino médio, e mes-mo estudantes do ensino superior, se tornem capazes de defender ourefutar, por escrito, argumentos, de maneira objetiva, clara e persua-siva? É esta pergunta que norteia todo este trabalho. Não é raro escu-tar esses mesmos estudantes se queixarem de dificuldades na hora deredigir, quer sejam os denominados “textos de opinião” (artigo deopinião, crônica esportiva, carta do leitor, entre outros), quer sejamos denominados “textos acadêmicos” (fichamento, resumo, resenha,entre outros).

Quando ouvidos, esses estudantes apontam como problema –exceção feita às particularidades de cada gênero – não só não saber oque dizer, mas não saber por onde começar o texto, e como distribuirao longo dele as ideias, à medida que elas lhes surgem. Ou seja, quei-xam-se de, por não saber onde encontrar as ideias necessárias e comofazer a distribuição delas no texto, não se fazerem compreender, in-clusive por eles próprios. Surge, daí, a seguinte indagação: uma dascausas da dificuldade de “colocar ideias no papel” não seria o desco-nhecimento generalizado do que caracteriza um texto argumentativo,isto é, seus elementos constitutivos?

Diante do problema da dificuldade na prática da escritaargumentativa, mesmo entre estudantes com mais de dez anos de es-colaridade, a dúvida transformou-se na seguinte hipótese: o uso cons-ciente dos elementos reconvocados da retórica clássica para a produ-ção textual auxilia na superação das dificuldades referentes à escrita.

O percurso deste trabalho procurou compreender dois trata-dos da retórica clássica, escritos por dois ilustres pensadores daAntiguidade, a saber: Retórica, de Aristóteles (séc. IV a. C.), e Insti-tuições Oratórias, de Quintiliano (séc. I d. C.), na intenção de encon-trar, nessas obras, elementos empregados supostamente para evitarou solucionar problemas no processo de produção do textoargumentativo, à época, e reconvocá-los com o propósito de empregá-los na solução de problemas que enfrentamos hoje.

Dessa forma, este estudo tem como objetivo geral realizar umaintervenção pedagógica de ensino da escrita argumentativa a partirdo gênero carta do leitor por meio da reconvocação dos elementosda retórica clássica, em especial o entimema. Como objetivos especí-ficos, pretende-se: a) demonstrar teoricamente a centralidade do

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entimema na produção do texto argumentativo, no gênero carta; b)comparar conjuntos de cartas produzidas em cada etapa de produ-ção; e c) avaliar a evolução das produções textuais de modo a verifi-car se a demonstração teórica apresentada corresponde a uma de-monstração prática nas cartas do leitor em sua última etapa.

Quanto à escolha do periódico, optou-se pela Revista Carta Ca-pital1, porque, além de publicar na íntegra as cartas selecionadas paraa seção do leitor, intitulada “Cartas capitais”, ela premia mensalmente amelhor carta enviada, considerando a “argumentação inteligente e con-cisa”. Trata-se de uma garantia de que tais cartas podem ser aproveita-das como corpus privilegiado para a análise com os estudantes.

Este artigo está organizado de modo a estabelecer associaçãoteórica entre a retórica – em especial o entimema – e a carta doleitor. O instrumento metodológico foi construído a partir das orien-tações de Leach (2002) e da análise em si das cartas selecionadas paraobservar-lhes a evolução e, portanto, identificar os resultados da in-tervenção pedagógica realizada. Estes são sintetizados nas conclu-sões deste estudo.

O entimema e a carta do leitor

Há vinte e cinco séculos, logo na abertura da sua Retórica –“poderosa síntese, apoiada numa investigação sistemática, que abran-gia todos os tratados anteriormente publicados” (MARROU, 1966, p.310) – Aristóteles (séc. IV a.C.) hasteou o entimema como elementocentral do discurso argumentativo. Isso ocorreu antes mesmo de apre-sentar uma definição para “retórica” como “faculdade de observar,em cada caso, o que este encerra de próprio para criar a persuasão”(ARISTÓTELES, 2011, p. 44) –, o que só é feito no início do segundocapítulo da mesma obra.

O entimema, do grego antigo “ideia, pensamento” (PLATIN,2008, p. 51), é, pois, considerado por Aristóteles “a substância dapersuasão”, ou a corporificação do que é possível compreender atual-mente por “argumento” (COSTA, 2008, p. 34). Em Retórica, o filósofodefine esse tipo de argumento a partir de duas outras obras atribuídasa ele, Analíticos Anteriores e Analíticos Posteriores, em que trata do‘silogismo analítico’ / ‘lógico’. Ambos têm estreitas semelhanças, aponto de o filósofo assegurar que “o entimema é um tipo desilogismo”, e que, por consequência,

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[...] aquele que está melhor capacitado a perceber como e a partirde que elementos um silogismo é produzido disporá igualmente damelhor habilidade para o manejo do entimema quando conheceradicionalmente os objetos de que tratam os entimemas e as dife-renças que o distinguem dos silogismos lógicos (ARISTÓTELES,2011, p. 42).

Para o filósofo grego, diferentemente do silogismo analítico, oentimema (ou “silogismo retórico”) pode assentar-se sobre premissasnecessárias, “ao passo que a maior parte delas terá apenas um carátercontingente” (ARISTÓTELES, 2011, p. 49). Em outros termos, paraele, o silogismo analítico caracteriza-se por fundamentar-se sobreevidências, enquanto o entimema, não apenas sobre evidências, masprincipalmente sobre a opinião geral.

No que diz respeito ao emprego do entimema e do silogismológico, Aristóteles (2011) declara que se trata de empregar o meioapropriado aos fins do discurso argumentativo, ou seja, à persuasão.Nesse caso, o entimema figura como “[...] o mais eficaz dos meios depersuasão” (ARISTÓTELES, 2011, p. 42).

O gênero sobre o qual este artigo se detém é a “Carta do leitor”.Definido como “geralmente de opinião (argumentativo)” (COSTA, 2008,p. 54), caracteriza-se por ser

[...] um texto utilizado em situação de ausência de contato imedi-ato entre remetente e destinatário, que não se conhecem (o leitore a equipe da revista/jornal, respectivamente), atendendo a diver-sos propósitos comunicativos: opinar, agradecer, reclamar, solici-tar, elogiar, criticar, entre outros. É um gênero de domínio público,de caráter aberto, com o objetivo de divulgar seu conteúdo, possi-bilitando, assim, ao público em geral sua leitura (BEZERRA, 2002,p. 210).

Acerca dos “diversos propósitos comunicativos” arrolados aci-ma na definição de Bezerra (2002), é possível acolhê-los comohipônimos de “opinativo”, e, portanto, de “argumentativo” (SAVIOLI;FIORIN, 2001).

Para Aristóteles (2011, p. 212), “o assunto global da retóricatange unicamente ao que se relaciona com a opinião”. Por esse moti-vo, defende-se aqui a reconvocação dos elementos da retórica clássi-ca, como o entimema, para a produção da “Carta do leitor”, visto quetanto esta quanto aquele se dedicam à mesma matéria.

É possível considerar a argumentação do território propício ao

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entimema, conforme observava Aristóteles. Porém, antes de avançarno que se refere ao funcionamento do entimema e sua manifestaçãona carta do leitor, é necessário destacar qual concepção de argumen-tação norteia este trabalho, uma vez que esta é fundamental na com-preensão da importância do entimema para a prática da escritaargumentativa e do discurso em geral.

Primeiramente, faz-se necessário convocar dois importantesautores que tratam da argumentação: Perelman e Olbretchs-Tyteca,considerados responsáveis pelo processo de reabilitação das ques-tões próprias da retórica, no século XX. Para os autores,

O objetivo de toda argumentação [...] é provocar ou aumentar aadesão dos espíritos às teses que se apresentam a seu assenti-mento: uma argumentação eficaz é a que consegue aumentaressa intensidade de adesão, de forma que desencadeie nos ouvin-tes a ação pretendida (ação positiva ou abstenção) ou, pelo menos,crie neles uma disposição para a ação, que se manifestará no mo-mento oportuno (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1999, p. 50).

Nesse sentido, pode-se considerar possível que, assim como foio objetivo da retórica, segundo Aristóteles, o objetivo da argumenta-ção, segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (1999), concentre-se napersuasão e não no estabelecimento da verdade (o que não significa omesmo que ‘fazer crer no que é falso’).

Sobre a importância do entimema na produção da carta doleitor, uma vez que aquele se constitui ‘elemento central do processoargumentativo’, e esta se manifesta marcadamente argumentativa, tor-na-se importante compreender como se dá tal processo na produçãodo gênero em destaque. De acordo com Aristóteles (2011, p. 250),

O discurso comporta duas partes, já que é necessário indicar oassunto tratado e, em seguida, proceder à demonstração. Aliás, éimpossível, uma vez que esteja indicado o assunto, omitir-se àdemonstração, tanto quanto proceder a essa demonstração sem terpreviamente anunciado o assunto. Com efeito, ao demonstrar, de-monstra-se alguma coisa somente se a anuncia visando demonstrá-la. A primeira dessas é a exposição, ao passo que a segunda é aargumentação, é a nossa distinção entre questão e demonstração.

Compreende-se, portanto, o entimema como a parte central do discursoe composto de duas partes necessárias: a proposição e a demonstração.

Quintiliano (séc. II d. C.), no primeiro tomo da obra intituladaInstituições Oratórias, apresenta também o entimema segundo forma-

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to semelhante, porém laconicamente: “[...] chamão o Entymema assimo mesmo argumento, isto he, a razão que trazemos para provar, coma sua enunciação” (BARBOZA, 1836, p. 275).

Com o intuito de perceber como se dá o entimema e suas partesna carta do leitor, Fisher (2008), professor de lógica da Universidadede East Anglia, Inglaterra, o chama de “método geral para análise deargumentos”, no livro A lógica dos Verdadeiros Argumentos. Na obra,o autor trata do método desenvolvido para ajudar seus alunos a “iso-lar e avaliar argumentos de textos escritos e [...] ajudá-los a elaborar,eles próprios, bons argumentos” (FISHER, 2008, p. 7). O método con-siste na identificação da ‘conclusão principal’ (porquanto, trata tam-bém da ocorrência de “conclusões intermediárias”) de um argumentoe, em seguida, das razões que a fundamentam, por meio da “Perguntade Asseribilidade”: “Que argumento ou indício me daria justificaçãopara asserir a conclusão C? (O que teria eu de saber ou acreditar parater justificação para aceitar C?)” (FISHER, 2008, p. 33).

Antes de empregar o método elaborado por Fisher (2008), éimportante ver o que ele compreende por argumento. Para o autor,argumento é o mesmo que “cadeia de raciocínio” (FISHER, 2008, p.1), e “raciocinar ou argumentar a favor de algo consiste em oferecerfundamentos ou razões a favor de conclusões, e as razões são apre-sentadas a fim de sustentar, justificar, estabelecer, provar ou demons-trar a conclusão” (FISHER, 2008, p. 24, grifos do autor). Em seguida,o autor retoma as mesmas concepções acima, ao declarar que “todosos argumentos também incluem a apresentação de fundamentos ourazões a favor da sua conclusão. Uma razão é geralmente apresentadacomo verdadeira e como uma razão a favor de uma conclusão”(FISHER, 2008, p. 25, grifos nossos).

Se por um lado o autor, que é um professor de lógica, fia-se nasnoções de verdadeiro e falso no tratamento do argumento, nada men-cionando a respeito do provável; por outro, parece aproximar-se doque é denominado aqui entimema, e, portanto, da própria retórica.Fisher (2008) admite que “a conclusão, algumas vezes, não consta doargumento”, e também que “as razões acabam por vezes não apare-cendo em um argumento apesar de se pressupor que essas razõesfazem parte do argumento” (FISHER, 2008, p. 28). Essas característi-cas fazem a concepção de argumento afastar-se do que se compre-ende por silogismo lógico e o aproxima do entimema, conformeapresentado neste trabalho (ARISTÓTELES, 2011, p. 48).

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Não obstante, podemos alegar que o mérito de Fisher (2008)reside em empregar o “mecanismo” do silogismo lógico na tentativade compreender argumentos verdadeiros, isto é, entimemas.

Assim, parece útil tal método, pois o que Fisher (2008) propõefazer no sentido da identificação do argumento, a partir das suasetapas, ou seja, da conclusão e suas razões, não se diferencia tanto doque Aristóteles e Quintiliano propunham fazer, há mais de vinte sé-culos, no que diz respeito à produção do discurso argumentativo.

Assim, considera-se possível empregar o método de Fisher(2008) na identificação e análise das etapas do argumento no gênerodiscursivo carta do leitor. Isso possibilita notar neste gênero a pre-sença física do argumento, o que destaca seu caráter argumentativo.Nesse sentido, tal método é tributário das operações retóricas empre-gadas na produção do discurso argumentativo, que parece iniciar-secom o delineamento do argumento a partir da causa, o que se podesentir nos tratados dos dois pensadores da Antiguidade mencionados.

Na obra intitulada Antiga Retórica, Barthes (2001, p. 49), aoabordar “a distribuição canônica das partes da technè”, compara aretórica a uma “rede de montagem”, a que chama “máquina retórica”:“Na ‘máquina’ retórica, o que se coloca no início, mal emergindo deuma afasia nativa, são matérias brutas de raciocínio, fatos, um ‘tema’;o que se encontra no fim é um discurso completo, estruturado, total-mente armado para a persuasão”.

As “partes da technè” a que se refere Barthes (2001) constituemas etapas de produção do discurso operacionalizadas por essa “má-quina”, e correspondem, na retórica antiga, às cinco operações a se-guir: a inventio, a dispositio, a elocutio, a actio e a memo.

Para Ducrot e Todorov (2007), a distribuição dessas operaçõesnão é apresentada na Retórica de Aristóteles (embora seja possíveldefender que essa distribuição já se encontrasse ali sugerida), mas emum tratado, ligeiramente posterior à obra do mestre do Liceu, cujotítulo e autoria não revelam. Os mesmos autores apresentam as cincooperações assim:

1) inventio: assuntos, argumentos, lugares, técnicas de persuasãoe de amplificação; 2) dispositio: arranjo das grandes partes dodiscurso (exórdio, narração, discussão, peroração); 3) elocutio: es-colha e disposição das palavras na frase, organização do porme-nor; 4) pronuntiatio: enunciação do discurso; 5) memória:memorização (DUCROT; TODOROV, 2007, p. 80).

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Neste artigo, a ênfase recai na reconvocação dos elementos daretórica antiga (que podem ser compreendidos a partir de agora como“atos de estruturação progressiva”) preconizados por Aristóteles eQuintiliano. Portanto, na tentativa de aplicá-los na prática de umgênero específico – a carta do leitor –, não se pode deixar de consi-derar as particularidades do gênero em análise como, por exemplo, a‘concisão’. As cartas dos leitores concorrem umas com as outras porespaço no periódico. No caso da Carta Capital, este é um dos critéri-os da revista para a seleção da melhor carta do mês: a argumentaçãointeligente e concisa é decisiva no julgamento.

A partir das ideias de autores clássicos como Aristóteles eQuintiliano, é possível constatar que a produção do discurso – que seinicia desde a fase de investigação da causa e inventariação das pro-vas, apresentada como inventio e que parece abranger o que atual-mente se entende como “planejamento” do texto –, não se dá de “cimapara baixo”, ou do começo para o final, como se processa a leitura,mas sim “de dentro para fora”. Já a dispositio constitui-se como aoperação norteadora do arranjo dessas etapas, segundo a maneiracomo elas se devem apresentar no discurso pronto.

Procedimentos metodológicos

A experiência, realizada durante os encontros do grupo de pes-quisa “Escrita: poder e subjetividades” do Programa de Pós-Gradua-ção em Cognição e Linguagem (PGCL), da UENF, levou à consolida-ção de um instrumento de planejamento de ensino para o aperfeiçoa-mento da escrita argumentativa de doze estudantes de pós-graduaçãona produção da carta do leitor.

É importante citar as especialidades dos alunos participantesdo grupo de pesquisa, tendo em vista a necessária consciência de quecertamente o nível de escolaridade, bem como suas especialidades,influenciou os resultados da intervenção, no sentido de um entendi-mento mais rápido das proposições de atividades, experiências pré-vias com a escrita, a prática de socialização de opiniões, entre outros.Assim, participaram da intervenção: quatro pedagogas, três jornalis-tas, duas psicólogas, um advogado, um geógrafo, uma fisioterapeutae uma socióloga. A heterogeneidade do grupo contribuiu para a emer-gência de pontos de vistas diferenciados em cada etapa do trabalho,enriquecendo as discussões e os esclarecimentos de dúvidas. Entre-tanto, neste artigo, para que o conteúdo analisado não fique muito

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extenso, optou-se por comentar apenas as cartas de uma das alunas,denominada aluna “A”.

Inicialmente, foi apresentado o entimema como argumento cen-tral e ponto de partida do processo de produção do textoargumentativo. Em seguida, a cada encontro, foram apresentadas asoperações e etapas de produção do texto, bem como suas caracterís-ticas. Uma vez apresentados esses elementos, seguiu-se a identifica-ção deles em cartas do leitor enviadas para a Revista Carta Capital. Acada encontro, após avançar no tratamento desses elementos, bemcomo ressaltar as particularidades do gênero (quem o produz, comque finalidade é produzido, para quem é produzido, onde circula,entre outros), os estudantes eram orientados a produzir suas própriascartas, com base em matérias da revista, a fim de tentarem utilizar oselementos apresentados até ali.

Assim, o estabelecimento da situação retórica das cartas a se-rem analisadas; a identificação dos tipos de discurso persuasivo con-forme empregados pela retórica clássica; a aplicação das três primei-ras das cinco operações da retórica, com ênfase no argumento en-quanto elemento central e gerador do discurso argumentativo; e arevisão e o aprimoramento da análise empregando as orientaçõesreflexivas foram momentos de produção das cartas do leitor, corpusconstituído para análise.

A metodologia empregada neste artigo teve natureza qualitati-va, com o propósito de construir um instrumento para análise dascartas de uma estudante de psicologia. Para tanto, foi utilizada a pes-quisa de Leach (2002) sobre análise retórica. Tal referênciametodológica, exclusivamente focada na produção de textosargumentativos, foi necessária para o aprofundamento desejado noprocesso de construção do objeto de pesquisa.

A primeira categoria de análise proposta é a exigência, que con-sidera a dimensão de tempo de um discurso específico persuasivo(kairos) e sua conveniência (phronesis). Ela leva em conta o contexto eas expectativas do auditório para que o discurso não soe extemporâneonem inapropriado diante dele. De acordo com esse autor, identificar “aexigência da retórica necessária do momento” situa a análise e garanteque a análise seja contextualizada (LEACH, 2002, p. 300).

A segunda categoria de análise proposta por Leach (2002) é opúblico. Esse critério permite identificar de que maneira o texto, sualinguagem e conteúdo tratam, selecionam, posicionam e mesmo “cri-

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am” seu auditório. Para esse autor, “embora o público nem semprepermaneça necessariamente preso ao texto, este, retoricamente, trataseu público de maneira tal que pode ser discernida na análise” (LEACH,2002, p. 300).

O terceiro critério é o da teoria das estases. Com base nas três“estases” ou gêneros da retórica clássica, ele ajuda a classificar umdiscurso argumentativo conforme as características delimitavam aque-les primeiros. Caso determinado discurso argumentativo procure de-fender uma causa passada como “verdadeira”, como se estivesse emuma tribuna diante de um júri, esse discurso pode ser classificadocomo judiciário. Caso ele tente estabelecer o melhor rumo a seguir,imaginando-se frente a uma assembleia a quem cabe decidir sobrequestões futuras, esse discurso pode ser classificado como deliberativo.Caso ele avalie determinado acontecimento recente ou um indivíduocontemporâneo numa solenidade, com o propósito de louvar ou cen-surar, esse discurso pode ser classificado como epidítico. Leach (2002)defende que muitos discursos persuasivos participam de mais de umaestase, daí a utilidade dessa classificação.

A quarta categoria de análise é a da invenção (inventio), e tema ver com o processo de investigação e inventariação empreendidopelo autor ao longo da produção do texto. Nesse processo, seu autordeve procurar estabelecer, para si e para o público, a proposiçãoprincipal do argumento, sua causa em relação a seu auditório, suasfundamentações e outras questões necessárias para cada etapa admiti-da no texto. Esse critério permite identificar se o autor percorreu comaproveitamento essas questões, a partir do tratamento conferido ao ar-gumento central e suas etapas subsequentes (LEACH, 2002, p. 301).

A quinta categoria consiste na disposição (dispositio) e exploraa organização do texto em etapas. Tal critério identifica se a distri-buição das etapas admitidas nele, a partir do argumento ali presente,segue a ordem preconizada pela retórica. Ele permite ainda identifi-car de que maneira a organização do texto e seu argumento se relacio-nam de modo a produzir a persuasão clássica (LEACH, 2002, p. 303).

A partir dessa categoria, com o propósito de procedermos auma análise mais detalhada, elaboramos as subcategorias exórdio,narração, confirmação e epílogo, que julgamos permitirem identifi-car se tais etapas foram admitidas, no texto, e se, por sua vez, respei-tam suas etapas operacionais.

A sexta categoria apontada por Leach (2002) é o estilo. Para

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esse autor, “é importante considerar o estilo como uma parte intrín-seca ao discurso, como uma dimensão complexa da relação entreforma e conteúdo” (p. 303). Segundo ele, estilo e contexto relacio-nam-se. Por isso, essa categoria é útil para identificar os tipos deregistro empregados, as formas de pessoalização e impessoalização,as figuras de linguagem, bem como o efeito persuasivo que essasatitudes podem desencadear.

Processo de produção e de análise de cartas doleitor

Do total de vinte e nove cartas de doze alunos, foramselecionadas quatro cartas de uma aluna como ilustração da aplica-ção do instrumento. Ciente dos objetivos da pesquisa, ela assinou oTermo de Consentimento Livre e Esclarecido. Por questão de sigilo, aaluna será denominada de “A”.

Para a apresentação da análise, primeiro inserimos as cartasproduzidas por “A” (Quadros 1, 2, 3 e 4). Em seguida, foram tecidoscomentários sobre a evolução da produção escrita da aluna.

Quadro 1 – Carta: “Complexo de vira-lata” (AMORIM, 2011)

Caro Celso Amorim, ao ler seu artigo “A obsessão e o complexo devira-lata” certas questões se fizeram, a meu ver, necessitadas de ummaior desdobramento.A primeira delas é um famoso “complexo deinferioridade brasileiro” muito recorrente quando nos deparamoscom questões internacionais. Crescemos com a repetição de que oBrasil é um país de terceiro mundo, com altos índices de pobreza eanalfabetismo, situação que nos provoca grande vergonha quandocomparados aos países de “primeiro mundo”. Talvez seja esta aorigem de nosso receio em “não nos meter em assuntos que nãosão de nossa alçada” como tão bem colocou no final do artigo.Entretanto esta aparente baixa autoestima gerou um efeito com-pensatório de se valorizar o que é errado de se tirar vantagem dooutro, ou seja, o famoso “jeitinho brasileiro” tão conhecido empiadas comumente difundidas. O brasileiro, que se acha tão pe-queno diante do contexto mundial, usa seu complexo de vira-latacomo um direito à exceção, como se o fato de termos nascidoneste país subdesenvolvido nos desse o direito de conseguirmos oque queremos de qualquer maneira – o que é culturalmente valo-rizado em nosso país – e como se o mundo nos devesse algo, jáque somos tão “injustiçados” de aqui termos nascido.

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Como segunda e última questão ressalto que este quadro final-mente está mudando, o povo agora se valoriza pelo crescimentofinanceiro, pela Copa, pela Olimpíada, pelos filmes etc. Enfim, aautoestima está crescendo pelos motivos certos, e talvez nossoquadro internacional também.

Quadro 2 – Carta: “Todo poder à Fifa” (CARVALHO, 2011)

As exigências da Fifa para a Copa de 2014 no Brasil estão levan-tando polêmicas. Sendo a primeira um importante órgão interna-cional, aproveita-se disso para confrontar as políticas nacionaisbrasileiras, seja em nome do lucro, seja em nome de umperfeccionismo afrontoso.O preocupante atraso nas obras para a Copa, muitos causados porsuperfaturamento ou problemas com licitações, é reforçado comas exigências da Fifa e de patrocinadores da Copa, o que acarretaem encarecimento do custo final e falta de qualidade dos projetos.Um dos principais embates correntes se refere ao Brasil não acei-tar liberar bebidas alcoólicas nos estádios, bem como não abrirmão da meia-entrada para idosos, estudantes e deficientes – ambasas ações são previstas por leis municipais e estaduais.Reivindicando o ganho dos patrocinadores, marcas de bebidas al-coólicas, e o ganho próprio, centrado na questão dos ingressos,“sua majestade” a Fifa, desrespeita políticas internas de países sededeste importante evento mundial. Resta saber se em nome destemegaevento, o Brasil deixará em segundo plano seus valoressocioeconômicos e morais, a fim de satisfazer os caprichos da Fifa.

Quadro 3 – Carta: “O Frei e o Aborto” (MARTINS, 2011)

A interessante matéria sobre o Frei Julian Cruzalta e seuposicionamento a favor da descriminalização do aborto – quevem gerando grandes desamores por parte dos colegas eclesiastase dos fiéis – nos traz novamente o polêmico tema do aborto e dodomínio da igreja nas mentes e corpos das pessoas, principal-mente das mulheres.A igreja que, desde a inquisição, se intitula a autoridade capaz dedecidir sobre a vida e vontade dos sujeitos, tem como tradição aculpabilização da mulher, já que esta seria a responsável por todaa humanidade ter sido expulsa do paraíso. Este ser (a mulher), apriori inferior e culpada, também é uma assassina ao escolher adireção que dará à sua vida e ao seu corpo. Porém, omite-se queos direitos desta mulher já foram assassinados antes, quando a

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educação, a prevenção e as políticas públicas não chegaram a ela.Qual não deve ter sido a surpresa das entidades católicas quandoum dos seus levanta-se para defender as mulheres, bem como opressuposto mais básico de uma sociedade minimamente reflexi-va: educação em lugar de repressão. Admirável é a conduta deJulian Cruzalta, mas em um país tão católico, onde religião, polí-tica e leis frequentemente se aproximam, nosso prognóstico não édos melhores. Entretanto as mudanças já começaram, a igreja quese prepare daqui para frente.

Quadro 4 – Carta: “E o crime compensa” (MAIEROVITCH, 2011)

Este artigo nos mostra a triste combinação que reina em nossopaís: desonestidade de políticos e governantes somada à impunida-de e a falha na execução das leis, uma receita que permite a alimen-tação simultânea de seus ingredientes já que a impunidade acabaalavancando a desonestidade.Muitos questionam se o “costume” de alguns engravatados em tirarvantagens econômico-financeiros do dinheiro público seriam umreflexo do chamado jeitinho brasileiro, um costume nacional – su-postamente – de conseguir coisas por vias nem sempre legais oubem vistas.Outros questionam se o mau exemplo de nossos governantes influ-enciam o comportamento do brasileiro. Entretanto o questionamentomais adequado seria para quem a lei funciona ou não, para quem aimpunidade reina, para quem a lei é mais branda ou mais grave.Vale refletir sobre a tradição do crime de “colarinho branco”, sobreos ricos e nobres que, enquanto réus, incrivelmente veem tudo ter-minar em pizza. Assim, tendo em conta que o status do réu irárefletir invariavelmente em seu julgamento, o movimento que deveser feito é o de igualar os cidadãos perante a constituição, fazer comque a justiça, ou seu oposto, ocorra em frequência igual a todos ossegmentos da população, não privilegiando a quem tem maiorescondições de oferecer propinas ou favores.

Análise das cartas do leitor

A análise das cartas da aluna “A” permitiu a observação de quea produção competente do gênero carta do leitor exige que, antes detudo, o autor seja um leitor competente. Para ser competente, de fato,na produção desse gênero é preciso que o autor da carta seja capazde reconhecer o que a define enquanto gênero argumentativo. Nessesentido, é preciso que compreenda não apenas a dinâmica do contex-

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to de produção da carta (por quê, por quem, para quem, com quepropósito e quando ela é escrita), mas também a dinâmica do própriotexto, que é a dinâmica interna da própria carta. Ou seja, é precisoque o autor compreenda que ela se constrói a partir de um argumentoprincipal, estruturante de todo o texto, sem esquecer que esse proces-so de produção é desencadeado, por sua vez, pela identificação econfrontação de argumentos presentes na matéria a que a carta pro-cura responder. Logo, a produção competente da carta do leitor exi-ge uma leitura competente da matéria, na tentativa de saber qual é oargumento principal e demais argumentos defendidos ali.

No que diz respeito às cartas analisadas, é possível afirmar quea aluna “A”, na carta produzida (Quadro 1), não realizou uma leiturasuficientemente competente da matéria que deflagrou a carta, o arti-go de opinião “A obsessão e o complexo de vira-lata”, escrito porCelso Amorim. Desse modo, a carta do Quadro 1 parece apresentaruma compreensão confusa e equivocada do que é tratado no artigo,pois identifica como comum a todo brasileiro uma característica queé atribuída pelo articulista a um grupo específico: a elite brasileiraque, segundo ele, “insiste em ver o Brasil como um país pequeno”(AMORIM, 2011, p. 7). Isso faz com que a carta não atenda ao primei-ro critério de análise, que é o de exigência, por não convir tratarcomo geral uma característica que é apresentada como particular.

No entanto, ao longo das três cartas seguintes (Quadros 2, 3 e4), à medida que se familiariza com a carta do leitor enquanto gêneroargumentativo e se aproxima dos elementos da retórica clássica apartir do entimema – compreendido como argumento e elementodesencadeador do processo de produção do texto –, a autora venceesse obstáculo inicial.

O segundo critério é o de público e está diretamente associadoao anterior. Isto é, uma vez que o autor sabe identificar “a exigênciada retórica necessária do momento” a partir da compreensão efetivada matéria deflagradora da carta, ele é capaz de saber também quepúblico tem diante de si – e até que ponto pode, por meio da lingua-gem, selecionar, posicionar e “criar” esse público. Por não atender aocritério de exigência, na carta do Quadro 1, a aluna acabou dirigin-do-se a um público que não correspondia ao objetivado pelo artigo.Além disso, acabou dirigindo-se a um público contrário àquele preten-dido pelo próprio articulista, aparentemente sem se dar conta disso.

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Nas demais cartas (Quadros 2, 3 e 4), é possível identificar umacompreensão por parte da autora da carta no que se refere à “criação”do público. Na carta do Quadro 3 – que responde à matéria de RodrigoMartins, “O frei e o aborto” –, apesar de não empregar um vocativoespecífico, a autora parece dirigir-se a um público específico forma-do pela totalidade das mulheres, alvo secular de uma sociedade se-xista e impiedosa, e formado também por membros da Igreja, quehoje veem a instituição forçada a adaptar-se a mudanças sociais. Nes-sa carta, a compreensão do critério de público é satisfatória, o quecontribui para uma argumentação mais persuasiva.

No terceiro critério, intitulado teoria das estases, cabe a com-preensão de que o gênero carta do leitor pode abranger um julga-mento, uma deliberação e um elogio (ou censura), capaz de fazer oautor percebê-la mais claramente como um gênero argumentativopersuasivo. Mesmo que a carta do Quadro 1 não tenha atendido aosdois primeiros critérios, nela se manifestam as características previs-tas no terceiro, uma vez que ali é possível reconhecer o ataque a umcomportamento atribuído – ainda que equivocadamente – a todo obrasileiro até hoje, o que caracteriza o gênero persuasivo judiciário,bem como a censura a esse comportamento, caracterizando o gêneropersuasivo epidítico. É válido afirmar a compreensão de que as ca-racterísticas de cada um dos três gêneros persuasivos da retórica clássicapodem predominar, e mesmo se combinar. No gênero carta foi assi-milado desde o início pela aluna “A”.

A respeito do quarto critério, denominado inventio, a aluna“A” apresenta um perceptível avanço no que se refere à compreensãode que, para quem escreve, saber que proposição pretende defender eque outras proposições são capazes de defender esta primeira é fun-damental. Ou seja, é de grande valia que o autor saiba o argumentoprincipal do texto que pretende escrever. À medida que se dá esteavanço, parece que a aluna “A” passa a ler mais atentamente a matériaque deflagrou a carta, a fim de recorrer àquela como fonte para a“inventariação” do que pode servir como fundamentação ao argu-mento a ser defendido. Nesse sentido, é possível ainda perceber que aautora passa a recorrer a outras fontes no intuito de encontrar pro-posições que fundamentem seu argumento. Assim, o aspecto maisafirmativo da compreensão da inventio como primeira operação retó-rica na produção de um texto é o de saber que, como a argumentaçãoestá sempre presente em qualquer texto, o autor deve, portanto, ser

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capaz de saber qual o argumento principal do texto que pretendeescrever, antes mesmo de escrevê-lo.

Em relação ao quinto critério, a dispositio, há uma compreen-são que parece acompanhar as alunas participantes da pesquisa deque o texto argumentativo deve distribuir-se em três etapas: começo,meio e fim. Ou, em outros termos: introdução, desenvolvimento econclusão. Essa divisão faz lembrar aquela preconizada nos manuaisde retórica clássica, mas há, entre a primeira e a segunda, diferençasfundamentais. Uma delas é a de que, conforme os manuais da retóricaclássica, são quatro as etapas em que se distribui o texto argumentativo.À primeira e à última etapa, predominantemente passionais, cabe “emol-durar” a segunda e a terceira, que compõem o “bloco demonstrativo”do texto, lugar onde se encontra o argumento principal. A compreen-são desta estrutura como recomendável, mas não obrigatória, é per-cebida no avanço da carta do Quadro 1 à do Quadro 4, na proporçãoem que seu texto passa a ter as ideias não apenas mais bem distribu-ídas ao longo dele, mas essa distribuição implica a produção de umtexto argumentativo mais persuasivo. Isto é, a distribuição das etapasnas cartas da aluna “A” parece procurar garantir ao texto, além deobjetividade e clareza, uma estruturação que pretende preparar oleitor para a adesão ao argumento principal veiculado por ele, ouseja, para a persuasão.

No que compete ao sexto critério, intitulado estilo, estecorresponde ao tratamento destinado à linguagem usada na produçãodo texto a fim de criar ou aumentar a adesão dos leitores ao argu-mento ali defendido. Ao longo da produção das cartas, a aluna “A”parece começar a apoderar-se dos recursos de estilo, como a metáfo-ra, ajustando-a ao público que procura “criar” para sua carta, e arepetição, sem que esta figure como uma redundância, mas como umrecurso persuasivo, de maneira a empregá-los nos momentos (etapas)mais apropriados, segundo os clássicos. É possível perceber tambéma tentativa dessa autora de alternar a primeira e a terceira pessoa, afim de se aproximar e se afastar do leitor para tornar a carta ora mais,ora menos impessoal.

Conclusões

Menos que recuperar uma tecnologia de vinte e cinco séculosno que diz respeito à escrita argumentativa persuasiva, este artigopretendeu provocar o contato com um recurso discursivo secular-

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mente conhecido e laboriosamente construído, destruído ereconstruído, desde Córax e Tísias, no século V a.C., na antiga Sicília,até hoje em dia – haja vista os recentes esforços em recuperar, tradu-zir e reeditar obras ou mesmo fragmentos sobre o tema. Se não sepode reivindicar para este estudo o mérito de uma imersão aprofundadana questão, reivindica-se, ao menos, o registro de tê-la exposto diantede estudantes que, em oito semanas, descobriram, ou simplesmente,confirmaram que a busca pelo domínio da escrita de modo a despertara atenção de interlocutores, alcançar a sua solidariedade e provocar aadesão às suas ideias é uma empreitada que atravessa milênios.

Assim, considerando a hipótese de que o uso consciente doselementos reconvocados da retórica clássica para a produção textualauxilia na superação das dificuldades referentes à escrita, é possívelafirmar que o objetivo de se criar um instrumento foi alcançado nestapesquisa. De acordo com o que se pôde observar, o que é capaz detornar um texto argumentativo persuasivo, ou mais persuasivo, é ouso consciente dos elementos reconvocados da retórica clássica. Emoutros termos, a partir do momento em que a estudante de psicologiasoube qual era o argumento a ser defendido, os textos argumentativospor ela produzidos – ou seja, as cartas – passaram, em sua maioria, aser desenvolvidos de modo a que todas as etapas em torno da discus-são (etapa na qual se encontra o argumento) se voltassem para aadesão dos interlocutores à proposição ali defendida.

No que se refere à centralidade do argumento, compreendeu-seque a produção do texto argumentativo acontece simultaneamente de“dentro para fora” e de “cima para baixo”. Ou seja, ao mesmo tempoem que o ato da escrita prevê um texto com “início, meio e fim”, aconsciência de que a escrita é um ato argumentativo persuasivo fazcom que o autor do texto encaminhe o seu leitor ou ouvinte a aderira uma proposição específica, para a qual todo o texto deve convergir.Embora a carta do leitor, devido às contingências impostas ao pró-prio gênero, seja um texto breve, foi importante para os estudantescompreender que tudo o que “entra” no texto deve convergir para aadesão à proposição central dele.

De tudo o que se pode concluir da breve experiência proporcio-nada por esta pesquisa, é que talvez um caminho possível, no sentidode possibilitar a estudantes de diferentes classes sociais uma aprendi-zagem efetiva da escrita argumentativa, seja o recuo estratégico. Isto é,recuar para avançar. Um recuo no espaço e no tempo. Talvez seja pre-

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ciso revisitar os clássicos, reconvocá-los, recuperar o que se perdeunas dobras do tempo. Quem sabe não se encontre entre mestres comoAristóteles e Quintiliano o “elo perdido” para a compreensão das limi-tações e deficiências do ensino-aprendizagem da escrita atual.

ABSTRACTThis paper deals with the recall of classical rhetoric elementsin Aristotle and Quintilian’s doings, highlighting theenthymeme as well as the use of these elements as necessaryknowledge for teaching and improving post graduate studentargumentative writing in the production of a specific genre:the reader’s letter. The methodology used in this paper wasqualitative, with the purpose of building a tool for the analysisof argumentative letters produced in an experiment that tookplace in a post graduate course. Among the letters producedby twelve postgraduate students, it was sellected the oneswritten by a master’s degree student in Psychology as anillustration of the instrument. Accordingly, this student wasintroduced to the classical rhetoric elements, as well as thearrangement and operation in the production of these kind inquestion, starting from the entimema as a central element.Simultaneously, specimens of the genre reader’s letter sent tothe Carta Capital magazine, were analyzed to recognize inthem the presence of these elements and to analyze how theycombine and contribute to the making of the objective, clearand persuasive argumentative text. At the end of each meeting,from reading the magazine subjects, the student went on toproduce similar letters to those sent to the reader’s section,with the purpose of employing the elements reconvened seenso far. This experience has shown that the use of these elementswas able to contribute to improving this student practice ofargumentative writing.KEYWORDS: Reader’s letter - enthymeme - rhetoric -argumentation teaching.

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NOTAS

* Este artigo é parte das discussões feitas pelo grupo de pesquisa / CNPq“Escrita: poder e subjetividades”, desenvolvida sob a orientação do professorGerson Tavares do Carmo, no Programa de Pós-Graduação em Cognição eLinguagem (UENF). Colaboraram na sua elaboração Bruno José AragãoPereira e Karine Lôbo Castelano, mestres pela Universidade Estadual doNorte Fluminense.1 Carta Capital é uma revista semanal publicada pela Editora Confiança, SP,tendo Mino Carta como editor chefe.

Recebido em: 31/05/2013.

Aceito em: 31/07/2013.