educação matemática na contemporaneidade: desafios e

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Sociedade Brasileira de Educação Matemática Educação Matemática na Contemporaneidade: desafios e possibilidades São Paulo SP, 13 a 16 de julho de 2016 PALESTRA 1 XII Encontro Nacional de Educação Matemática ISSN 2178-034X Entre jogos de luzes e de sombras: uma agenda contemporânea para a educação matemática brasileira 1 Antonio Miguel 2 “É verdade que só um, entre cem, consegue ganhar, mas que me importa isso?” Um jogador Dostoievski (2004) Eu gostaria, antes de mais nada, de agradecer os colegas que integram o comitê científico, a comissão organizadora, e a coordenação dos eixos temáticos do XII ENEM por me terem concedido o privilégio de fazer esta fala de abertura. Quero saudar também os mais de 3000 participantes deste evento: professores, estudantes e pesquisadores de todo o país, que vêm tomando a educação matemática como foco de suas preocupações e que, a partir de hoje, dão início a mais um dos já incontáveis fóruns públicos nacionais, estaduais e municipais nos quais se debate educação matemática, em nosso país, nos últimos 40 anos. Após 28 anos que nos separam da fundação da Sociedade Brasileira de Educação Matemática, é inegável o êxito do movimento no sentido da institucionalização da educação matemática no Brasil, quer como um campo autônomo legítimo de conhecimento, quer como um campo autônomo de investigação acadêmica. O I ENEM também ocorreu aqui na cidade de São Paulo, um ano antes da fundação da SBEM. E a primeira coisa que me ocorreu, quando comecei a preparar esta minha fala foi a de revisitar a fala do professor Ubiratan D’Ambrosio 3 , na sua conferência de abertura do I ENEM. Ubiratan D'Ambrosio 1 Texto apresentado oralmente na conferência de abertura do XII Encontro Nacional de Educação Matemática (XII ENEM), no dia 13 de julho de 2016, no Centro de Convenções Frei Caneca na cidade de São Paulo. 2 Docente do Departamento de Ensino e Práticas Culturais da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP-SP). E-mail: [email protected] 3 Foto acessada em http://www.prdu.unicamp.br/a-prdu/pro-reitores-anteriores/professor-ubiratan-dambrosio, em 10/07/2016.

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Educação Matemática na Contemporaneidade: desafios e possibilidades São Paulo – SP, 13 a 16 de julho de 2016

PALESTRA

1 XII Encontro Nacional de Educação Matemática ISSN 2178-034X

Entre jogos de luzes e de sombras: uma agenda contemporânea para a educação

matemática brasileira1

Antonio Miguel2

“É verdade que só um, entre cem, consegue ganhar, mas que me importa isso?”

Um jogador – Dostoievski (2004)

Eu gostaria, antes de mais nada, de agradecer os colegas que integram o comitê científico, a

comissão organizadora, e a coordenação dos eixos temáticos do XII ENEM por me terem concedido o

privilégio de fazer esta fala de abertura. Quero saudar também os mais de 3000 participantes deste

evento: professores, estudantes e pesquisadores de todo o país, que vêm tomando a educação

matemática como foco de suas preocupações e que, a partir de hoje, dão início a mais um dos já

incontáveis fóruns públicos nacionais, estaduais e municipais nos quais se debate educação

matemática, em nosso país, nos últimos 40 anos. Após 28 anos que nos separam da fundação da

Sociedade Brasileira de Educação Matemática, é inegável o êxito do movimento no sentido da

institucionalização da educação matemática no Brasil, quer como um campo autônomo legítimo de

conhecimento, quer como um campo autônomo de investigação acadêmica.

O I ENEM também ocorreu aqui na cidade de São Paulo, um ano antes da fundação da SBEM.

E a primeira coisa que me ocorreu, quando comecei a preparar esta minha fala foi a de revisitar a fala

do professor Ubiratan D’Ambrosio3, na sua conferência de abertura do I ENEM.

UbiratanD'Ambrosio

1 Texto apresentado oralmente na conferência de abertura do XII Encontro Nacional de Educação Matemática

(XII ENEM), no dia 13 de julho de 2016, no Centro de Convenções Frei Caneca na cidade de São Paulo. 2 Docente do Departamento de Ensino e Práticas Culturais da Faculdade de Educação da Universidade Estadual

de Campinas (UNICAMP-SP). E-mail: [email protected] 3 Foto acessada em http://www.prdu.unicamp.br/a-prdu/pro-reitores-anteriores/professor-ubiratan-dambrosio, em

10/07/2016.

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PALESTRA

2 XII Encontro Nacional de Educação Matemática ISSN 2178-034X

Ela tinha por título: “A Educação Matemática na década de 1990: perspectivas e desafios”.

Fazia apenas dois anos que o nosso país havia saído de um período de 21 anos de ditadura militar. E o

professor Ubiratan, num vigoroso exercício de pensar projetivamente o futuro da nossa então

emergente área de educação matemática, nos dizia que a década de 1990 se mostraria a nós como

irreversivelmente marcada pela tecnologia e pelo “racionalismo científico”, do qual a matemática é a

representante por excelência. O professor Ubiratan via com temor a consagração estabilizadora desse

paradigma. E dizia, a meu ver com razão, que o racionalismo científico iria desafiar assustadoramente

não só esquemas religiosos, filosóficos e sociais, mas também, as relações comerciais, os modelos de

produção, as relações sociais, o comportamento dos indivíduos, penetrando inclusive em nossa própria

intimidade. Ele dizia também que as primeiras décadas do século XXI iriam assistir aos primeiros

efeitos de um modelo social globalizante instaurado pela avançada tecnologia de comunicação e por

um complexo modelo político de interdependência.

Após 29 anos, confirmando o temor expresso pelo professor Ubiratan, os efeitos desse

modelo, infelizmente impactam impiedosamente as nossas vidas e, sobretudo, as políticas de pesquisa

e de educação em nosso país. Para consolidar o seu desejo imperialista, a governamentalidade

neoliberal que se apossou de grande parte dos Estados Nacionais aciona o discurso do racionalismo

científico – e, por extensão, o discurso matemático – ao mesmo tempo como a sua mais precisa arma

de alto calibre e o seu escudo mais protecionista. É, portanto, neste cenário desolador,

lamentavelmente agravado, no caso brasileiro, pelo clima de retrocesso político e de instabilidade

democrática de nossas instituições que, também eu, vou procurar desenvolver o tema norteador deste

XII ENEM, trazendo ao debate, junto à nossa comunidade, uma agenda contemporânea para a

educação matemática brasileira. Trata-se de uma agenda de resistência ativa e reivindicatória que

suponho poder trazer alguma contribuição no sentido de se colocar a educação matemática escolar, a

pesquisa acadêmica em educação matemática e a formação de professores para a educação básica em

sintonia com um urgente projeto de democratização política, social, cultural e econômica de todas as

nossas instituições, dentre elas, a instituição escolar.

Mas, repensar o papel político da matemática e da educação matemática no mundo

contemporâneo requer um esclarecimento do uso que eu vou fazer da palavra “contemporâneo”. Tal

uso é semelhante àquele feito pelo filósofo italiano Giorgio Agamben4, em uma conferência intitulada

O que é o contemporâneo.

4 Foto acessada em: http://www.geledes.org.br/agamben-crise-de-legitimidade/ em 10/07/2016.

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PALESTRA

3 XII Encontro Nacional de Educação Matemática ISSN 2178-034X

GIORGIOAGAMBEN

Naquela sua fala, o filósofo nos sugeriu significar o contemporâneo não como um demarcador

cronológico convencional de divisão do tempo histórico que nos levasse a vê-lo como o conjunto das

realizações luminosas mais salientes e tipicamente singulares do tempo em que vivemos, em relação a

outros tempos. Em vez disso, Agamben nos sugere ver o contemporâneo como uma espécie de sombra

lançada por essas mesmas realizações luminosas em nosso próprio tempo histórico, e em todos os

outros.

Assim, para ele, contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele

perceber não as luzes, mas o escuro, sendo, portanto, capaz de aprender com as trevas, vendo-as como

a contrapartida das luzes que as engendram. Contemporâneo é quem não se deixa cegar pelas luzes do

século, mostrando-se também capaz de transformá-lo e de colocá-lo em relação com outros tempos.

Penso, então, que o desafio que está posto à nossa comunidade é de natureza bem diversa

daquele de se continuar investindo, sem um amplo debate interno, no enraizamento institucional e no

expansionismo produtivista de um projeto formativo e investigativo de natureza disciplinar. Pois isso

significaria deter-se na parte luminosa da contemporaneidade desse projeto, omitindo-se de investigar

o seu lado escuro. Depois de anos de investigação pessoal e coletiva, estou convencido de que o lado

escuro da contemporaneidade desse projeto científico-disciplinar autônomo é o seu próprio caráter

científico-disciplinar autônomo. E isso ocorre, pelo fato da gente ter-se deixado enfeitiçar por duas

persistentes imagens da matemática: como disciplina escolar e como corpo científico sistematizado de

conhecimentos.

Assim, outra tarefa não nos restou enquanto educadores matemáticos, senão a de fazer a

transposição didática de uma matemática vista como corpo científico sistematizado de conhecimentos

para crianças e jovens de nossas escolas que, em sua maioria não chegam à universidade. Por

extensão, outra tarefa não nos restou, enquanto pesquisadores em educação matemática, senão aquela

de investigar as maneiras de se otimizar essa transposição. Mas, na história, a matemática tem-se

mostrado de múltiplas maneiras:

como um conjunto de problemas práticos;

como um domínio especulativo ou místico-religioso de investigação de números e de

formas;

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PALESTRA

4 XII Encontro Nacional de Educação Matemática ISSN 2178-034X

como um corpo de conhecimentos abstratos e genéricos lógico-dedutivamente

organizados;

como um conjunto de conhecimentos empírico-indutivos confiáveis e aplicáveis;

como a ciência formal que investiga lógico-dedutivamente relações entre estruturas

abstratas;

como a ciência dos modelos para a investigação de fenômenos diversos;

como a ciência com a qual se ocupa a comunidade científico-profissional dos

matemáticos;

como um conjunto típico e culturalmente diversificado de práticas comunitárias;

como uma disciplina escolar.

Mas, a disciplina escolar “matemática” foi uma invenção recolonizadora de luzes modernas

então acesas pela constituição de Estados nacionais liberais ao longo do século 19. O primeiro ponto

de nossa agenda convida a gente a desconstruir a imagem da matemática como disciplina escolar,

imagem esta que vem orientando, de um modo ainda não radicalmente questionado, a maior parte das

ações de docência, pesquisa e extensão de nossa comunidade.

OPRIMEIROPONTODAAGENDA

DESCONSTRUÇÃODAMATEMÁTICACOMODISCIPLINAESCOLAR

Fazer essa desconstrução nos leva a reconhecer que matemáticas podem se mostrar a nós de

uma outra maneira no escuro do contemporâneo de nossa época. Para realizar essa desconstrução, vou

falar aqui em jogos. Em jogos simbólicos, isto é, em jogos nos quais jogamos com símbolos. E falar

assim já é um pleonasmo, porque só pode haver jogo onde houver signos, isto é, símbolos cujos

significados comunitariamente compartilhados só se constituem no ritual do jogo, sejam tais símbolos

gestos; sequências de ações corporais; sons; imagens; pensamentos; artefatos; marcas ou desenhos

numa folha de papel, na tela de um computador ou nas paredes de uma caverna pré-histórica.

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5 XII Encontro Nacional de Educação Matemática ISSN 2178-034X

Vou, portanto, falar em jogos simbólicos, do modo como deles nos falou o filósofo austríaco

Ludwig Wittgenstein5, em sua obra Investigações Filosóficas.

LudwigWi genstein(1889-1951)

Vou falar em jogos de linguagem como jogos de encenação corporal de signos, envolvendo

um ou mais jogadores, e situados no tempo e no espaço. Alguns exemplos de jogos de linguagem

seriam: andar de bicicleta, nadar, jogar futebol, falar uma língua, escrever uma carta, recitar um

poema, demonstrar um teorema, ensinar alguém a resolver uma equação, pintar um quadro, construir

um muro, dirigir um automóvel, recordar-se de um evento etc.

E falo aqui em jogos de linguagem porque é também assim o modo como a matemática vem

se mostrando e sendo praticada pelos próprios matemáticos de nosso tempo. Tomo como exemplo o

caso da denominada teoria dos jogos, um novo campo de pesquisa matemática que se constituiu, no

século 20, com base em um modo típico de se investigar problemas emergentes em diferentes campos

de atividade humana. E passo a falar dessa teoria com base no livro Teoria dos jogos de Morton Davis.

Tal teoria surge do casamento de interesses de investigação do matemático húngaro John von

Neumann6 - nos domínios da Lógica e dos fundamentos da matemática - e do economista vienense

Oskar Morgenstern7.

5 Foto acessada em https://blogdephilosophia.wordpress.com/2016/01/04/ludwig-wittgenstein-1889-1951/, em

10/07/2016. 6 Foto acessada em https://en.wikipedia.org/wiki/John_von_Neumann, em 10/07/2016. 7 Foto acessada em http://www.nndb.com/people/790/000119433/, em 10/07/2016.

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6 XII Encontro Nacional de Educação Matemática ISSN 2178-034X

JohnvonNeumann

1903-1957

OskarMorgenstern1902-1977

E surge a partir do momento em que ambos provaram o chamado teorema minimax que afirma

que em jogos de tabuleiros, é indiferente se alguém maximiza o ganho ou minimiza as perdas. Desde

então, o interesse pela teoria dos jogos perpassa vários campos de atividade humana, disciplinarizados

ou não. Dentre eles, a matemática pura, a economia, a ciência política, a psicologia, a sociologia, o

mundo dos negócios, a política internacional, o mundo das finanças e o campo bélico. Segundo o

próprio Morgenstern, o interesse por essa teoria se deve a suas múltiplas aplicações. Mas, o mais

importante é que ela nos mostrou um outro modo da matemática investigar logicamente os fenômenos

sociais. E esse modo se baseia na analogia que pode ser estabelecida entre o comportamento de cada

de fenômeno social e o modo como jogadores atuam, interatuam e tomam decisões nos denominados

“jogos de estratégia”.

Isso porque, argumenta o próprio Morgenstern, “nos fenômenos sociais, diferentemente da

natureza inanimada, os homens algumas vezes lutam uns contra os outros e algumas vezes cooperam

entre si, dispondo, para isso, de diferentes graus de informação acerca dos outros, e suas aspirações os

conduzem ao conflito ou à colaboração”. Nessa teoria, um jogo sempre é visto como um modelo

teórico do comportamento de um problema que emerge no interior de um campo de atividade

humana. É por isso que, a rigor, não há apenas uma teoria dos jogos, mas uma teoria para cada jogo

que se pretende jogar. E cada um desses jogos deve possuir jogadores que agem e tomam decisões,

sendo a palavra “jogador” usada num sentido amplo, de modo a abarcar uma pessoa, uma equipe, uma

empresa, uma nação etc.

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PALESTRA

7 XII Encontro Nacional de Educação Matemática ISSN 2178-034X

Uma teoria do jogo sempre abstrai os elementos significativos situados de um problema social

específico, a fim de investigá-lo de um modo abstrato análogo às propriedades de um jogo estratégico.

Mas, sob uma perspectiva wittgensteiniana, tal jogo abstrato constitui um outro jogo de linguagem

diferente daquele no qual o problema situado está configurado. Além disso, todo jogo no qual o

jogador intencionalmente se propõe a jogar com símbolos genéricos e abstratos precisa incluir, no

conjunto de regras que orienta o jogo, outras regras que, supostamente, deveriam ser seguidas por

jogadores de carne e osso que lidam com os seus problemas em outros contextos de atividade.

Uma dessas regras pressupostas é a de que os jogadores devem jogar um jogo estratégico. Isso

significa que eles deverão estar cientes de todas as estratégias a eles disponíveis para a tomada de

decisões. E também, de que deverão agir e tomar decisões em conformidade à melhor dessas

estratégias. Essa regra vale também, é claro, sobretudo para os jogos em que os jogadores devem

competir entre si.

Uma estratégia é uma descrição objetivamente completa de como uma pessoa deverá agir

diante do quadro de todas as possibilidades de ação que lhe estão disponíveis. Por exemplo, no jogo da

velha, caso o jogador que inicia o jogo deseje vencer o seu adversário – e ele precisa desejar isso – ou,

pelo menos, empatar o jogo, uma estratégia inequívoca que ele pode seguir é: em cada lance em que

não se veja ameaçado pela vitória do seu adversário, assinalar o quadrado desocupado situado na

posição mais alta da coluna situada à extrema direita. Assim, o jogo da velha é um jogo estritamente

determinado, uma vez que sempre existe uma estratégia ao alcance de um dos jogadores que, caso seja

acionada, lhe garantirá a vitória, independentemente de como se comporte o outro jogador.

Mas, cada jogo é um jogo! E a complexidade dos jogos variam não apenas em função da

quantidade de jogadores envolvidos, mas também, em função da natureza do jogo. Para a maior parte

dos jogos estratégicos complexos não há estratégia única que seja claramente preferível à outra. Não

há também um resultado único previsivelmente definido. Isso porque, os interesses dos jogadores

envolvidos podem se opor ou se mostrarem parcial ou totalmente comuns. Por exemplo, no jogo de

aterrisagem de um avião, tanto o piloto quanto os operadores da torre de controle devem cooperar

entre si a fim de que a aterrisagem ocorra com segurança. Já o jogo de negociação que se estabelece

entre um vendedor de automóveis e seu cliente é um exemplo de jogo parcialmente competitivo.

Assim, o propósito da teoria dos jogos estratégicos é o de proporcionar um quadro-referência

inequivocamente otimizado de opções, com base no qual os participantes do jogo possam tomar as

decisões com a maior probabilidade de obtenção de êxito, ou então, tomar decisões que, em cada caso

situado, melhor se adequariam aos propósitos de cada participante do jogo. Mas, antes do surgimento

da teoria dos jogos, e após a denominada segunda crise dos fundamentos da matemática, duas

implosões ocorreram no domínio da investigação matemática. Uma primeira, desalojou do domínio da

própria pesquisa em matemática as investigações que vinham ocorrendo no domínio da Lógica.

Após essa primeira implosão, a pesquisa em Lógica acabou estilhaçando o seu próprio

domínio de investigação em diferentes tipos autônomos de lógicas. Uma segunda implosão acabou

estilhaçando o próprio campo de pesquisa da matemática em inúmeras teorias locais autônomas

distintas. Após essas duas implosões, a teoria dos jogos, por ter tomado a noção de jogo como o

elemento analógico que permitiu a sua própria constituição, acabou sugerindo um novo modo da

própria matemática se mostrar na história. Esse novo modo foi sutilmente expresso pelo matemático

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húngaro Alfréd Rényi8, mediante o seguinte aforismo: “Um matemático é uma máquina que

transforma café em teoremas”.

Este aforismo de Rényi faz uma referência implícita ao matemático húngaro Paul Erdös9, que

era viciado em café.

PAULERDÖS(1913-1960)

8 Foto acessada em http://alchetron.com/Alfred-Renyi-738936-W, em 10/07/2016. 9 Foto acessada em http://www.math.ucsd.edu/~erdosproblems/About.html, em 10/07/2016.

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9 XII Encontro Nacional de Educação Matemática ISSN 2178-034X

Penso, porém, que ele nos revela o lado contemporâneo da matemática de nosso tempo. No

escuro de sua contemporaneidade, matemáticas não mais se mostram como um campo de investigação

com objetos ou conteúdos tipicamente definidos. À sombra de sua contemporaneidade, matemáticas se

mostram como máquinas de café, como máquinas simbólicas abstratas quaisquer. Ou, como eu prefiro

dizer, como um conjunto discreto e ilimitado de jogos normativamente regrados de linguagem, tais

como os seguintes, em que os jogadores são humanos ou máquinas agindo como humanos:

Um carteiro lê o CEP escrito numa carta e a faz chegar inequivocamente ao seu

destinatário10.

Você digita o endereço desejado no waze do seu celular e o programa te leva até lá,

sem erro11.

10 Imagem acessada em http://blog.correios.com.br/correios/?p=4592, em 10/07/2016. 11 Imagem acessada em http://quintoandar.fa7.edu.br/blog/web/waze/, em 10/07/2016.

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PALESTRA

10 XII Encontro Nacional de Educação Matemática ISSN 2178-034X

A partir de um conjunto de dados, uma companhia aérea planeja as rotas mais

provavelmente seguras e economicamente viáveis para os seus voos12.

12 Imagem acessada em http://not1.xpg.uol.com.br/linhas-aereas-brasileiras-passagens-servicos-e-vantagens/, em

10/07/2016.

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Um autômato controla o trabalho das colunas de destilação de uma refinaria de

petróleo.

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12 XII Encontro Nacional de Educação Matemática ISSN 2178-034X

FranciscodeAssisP.M.Renan-h p://inovacao.scielo.br/pdf/inov/v3n3/a23v3n3.pdf

Você insere o seu cartão, digita a sua senha e a máquina lhe dá exatamente a quantia

digitada13.

13Imagem: http://sonhoesignificado.blogspot.com.br/2014/05/sonhar-com-caixa-eletronico-significado.html, em

10/07/2016.

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13 XII Encontro Nacional de Educação Matemática ISSN 2178-034X

Maria tricota uma blusa14. Ela só consegue realizar essa prática cultural, porque faz as agulhas

operarem sobre a lã com base em regras que, se forem seguidas à risca e sem desvio, deverão orientá-

la, inequivocamente, a produzir uma blusa em conformidade ao design desejado.

14 Imagem acessada em http://www.ehow.com.br/tricotar-ponto-perola-como_156389/, em 10/07/2016.

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PALESTRA

14 XII Encontro Nacional de Educação Matemática ISSN 2178-034X

E se no final do processo, a blusa não tiver saído conforme planejada, Maria não irá desconfiar

da estratégia que a orientou, mas sim, de que o algoritmo não foi seguido com correção. É nesse

sentido que Maria e todas as outras pessoas ou máquinas de nossos exemplos jogam jogos

normativamente regrados de linguagem. Fazem matemática. Se Maria quiser inventar outro algoritmo

para produzir uma blusa em conformidade a um design original, ela vai ter que pesquisar outros

padrões, rabiscar desenhos, fazer experimentos. E ao proceder assim, ela estará jogando um outro jogo

normativamente regrado de linguagem, pois, agora, ela se põe a inventar outros padrões inequívocos

inéditos de tricotar blusas.

A prática cultural de tricotar blusas transmite a memória de práticas pré-históricas de entrançar

fibras de plantas visando a diferentes propósitos sociais. Tais práticas podem ser vistas como

matemáticas não porque nos remetam a noções de contagem, número, formas geométricas ou

conteúdos que hoje vemos como “matemáticos”, mas porque tais práticas podem ser vistas como jogos

normativamente regrados de linguagem, isto é, como jogos que pré-definem como um jogador deve se

comportar no jogo para que o seu propósito, também pré-definido, possa ser atingido com

probabilidade teórica pré-definida.

Para a gente se convencer de que os humanos e as máquinas de nossos exemplos fazem

matemática, isto é, encenam ações corporais em jogos normativamente regrados de linguagem, é

preciso que a gente tente se livrar de pelo menos duas crenças que, há séculos, vem sendo mobilizadas

pelo discurso filosófico ocidental. A primeira crença da qual temos que nos livrar é a da existência de

“saberes em si”. Pois, todo saber é sempre um saber fazer de humanos num jogo de linguagem. Só

saberá quem se propuser a jogar, quem se propuser a ser um jogador; a agir num jogo.

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PALESTRA

15 XII Encontro Nacional de Educação Matemática ISSN 2178-034X

A segunda crença da qual a gente tem que se livrar é a de que agir mecanicamente seria algo

aviltante, inferior ou indigno de humanos. Isso porque, se nós, humanos, não pudéssemos agir como

máquinas, nossas máquinas não poderiam agir como humanos. O agir maquinal é humano, demasiado

humano.

Máquinas - isto é, matemáticas - nada mais são senão o atestado do poder humano de produzir

jogos normativamente regrados de linguagem, isto é, jogos otimizados de controle. Assim, jogar tais

tipos de jogos, isto é, fazer matemática, é produzir ou se deixar governar pelas regras desses jogos, que

sempre visam atingir, com previsibilidade definida, propósitos pré-definidos diversos e socialmente

relevantes.

Entretanto, tais matemáticas-máquinas podem ser usadas ideologicamente para se reforçar

crenças e valores que levam à promoção de desigualdades e discriminações políticas, econômicas,

sociais e culturais; à segregação e desagregação sociais; ao atentado a valores e direitos humanos

fundamentais e a políticas de respeito e cuidado relativos à manutenção da diversidade cultural e da

diversidade de todas as formas não humanas de vida do planeta. São tais usos de jogos

normativamente regrados que nos dão acesso à região escura do contemporâneo da matemática de

nossa época. E a matemática que se avista no escuro se mostra como a ciência que investiga todas as

formas probabilisticamente inequívocas de biopoder e biocontrole que humanos podem exercer sobre

formas humanas e não-humanas de vida.

Nesse sentido, a teoria dos jogos estratégicos tem-se mostrado abstratamente útil, sobretudo a

jogadores – sejam eles instituições, Estados-empresas ou sujeitos-empresários de si – ávidos por

minimizarem, ou mesmo, anularem o poder de outros jogadores através da maximização dos seus

próprios poderes. E quando o jogador-empresa se apossa do Estado, o propósito do jogo é: o mínimo

para o social e o máximo para o capital. É esse o aspecto ideológico do teorema minimax da teoria dos

jogos estratégicos. Estas matemáticas-máquinas não mais se mostram aos humanos como um temível

monstro neo-frankensteiniano incontrolável, mas sim, como um neocontrole e um neopoder de

humanos sobre as suas próprias matemáticas-máquinas, visando ao desejo de um biopoder global

sobre os próprios humanos.

Até hoje, o analista de sistemas Edward Snowden15 está politicamente asilado na embaixada

da Rússia. Ele trabalhou na CIA e na NSA, a Agência de Segurança Nacional estadunidense,

administrando sistemas de vigilância global de comunicações.

15 Imagem acessada em https://en.wikipedia.org/wiki/Edward_Snowden, em 10/07/2016.

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PALESTRA

16 XII Encontro Nacional de Educação Matemática ISSN 2178-034X

EDWARDSNOWDEN

E está refugiado por ter denunciado a existência de um neocontrole global do campo das

comunicações pela NSA, através de matemáticas-máquinas usadas para fins de espionagens e controle

internacional do tráfego de informações, sob a alegação de auto-segurança da própria nação. O filme

Citizenfour16, isto é, Cidadão Quatro, de 2014, tematiza a trajetória de Snowden, protagonizada por

ele próprio, e dá destaque às suas revelações acerca de vários programas de vigilância global de

comunicações da NSA.

16 Imagem da capa do DVD do filme acessada em 10/07/2016, em http://www.imdb.com/title/tt4044364/.

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Educação Matemática na Contemporaneidade: desafios e possibilidades São Paulo – SP, 13 a 16 de julho de 2016

PALESTRA

17 XII Encontro Nacional de Educação Matemática ISSN 2178-034X

Citzenfour foi o pseudônimo eleito por Snowden para se comunicar sigilosamente com Laura

Poitras, a diretora do filme. Em uma cena confidencial do filme, ele justifica do seguinte modo por que

escolheu Laura para levar as suas revelações do escuro às luzes públicas:

Você me perguntou por que eu escolhi você. Eu não escolhi. Você escolheu. A vigilância

a que você tem sido submetida, que você tem vivenciado, significa que você foi

“escolhida” - um termo que vai significar cada mais para você quanto mais você aprender

sobre como funciona o moderno sistema de coleta de informações, através da

interceptação de sinais de comunicação entre pessoas ou máquinas. Por enquanto,

sabemos que cada fronteira que você atravessa, cada compra ou cada chamada telefônica

que você faz, cada torre de telefonia celular pela qual você passa, cada amigo com quem

você mantém contato, cada artigo que você escreve, cada site que você visita, cada linha

de assunto que você digita e cada pacote que você envia está também nas mãos de um

sistema cujo alcance é ilimitado, mas cujas garantias não são. A sua vitimização pela

Agência de Segurança Nacional significa que você está bem ciente da ameaça irrestrita

que a polícia secreta representa para as democracias.

Em outra cena, o Citzenfour revela que a NSA, em 2011, havia começado a construir o maior

repositório mundial para interceptar comunicações, diante do que, ele conclui: “Estamos construindo a

maior arma para a opressão na história do homem. No entanto, seus diretores se isentam da

responsabilidade”.

Em 2014, Snowden foi simbolicamente eleito reitor da Universidade de Glasgow, na Escócia,

vencendo três concorrentes. Em seu ato de agradecimento, ele fez o seguinte pronunciamento:

Somos lembrados por esta decisão ousada que a base de todo aprendizado é ousada, qual

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seja, a coragem de investigar, experimentar, perguntar. Se não contestarmos a violação do

direito fundamental de pessoas livres de não serem molestadas em seus pensamentos,

associações e comunicações - de estarem livres de suspeita sem causa -, teremos perdido

a base da nossa sociedade pensante. A defesa dessa liberdade fundamental é o desafio de

nossa geração, um trabalho que exige a criação de novos controles e proteções para

limitar os poderes extraordinários de Estados sobre o domínio da comunicação humana.

Esta fala do Snowden aponta para a necessidade da gente problematizar as práticas educativas

escolares. Porém, é quase impossível fazer isso, sem que a gente invista na desconstrução de políticas

curriculares disciplinares, centralizadas, unificadas e baseadas em conteúdos seriados,

hierarquicamente organizados e desconectados de práticas culturais. Simultaneamente a essa

desconstrução, é necessário que a gente invista na invenção de uma educação escolar indisciplinar. É

este o segundo ponto da nossa agenda.

SEGUNDOPONTODAAGENDAINVENÇÃODEUMAEDUCAÇÃOESCOLAR

INDISCIPLINAR

Por “invenção de uma educação escolar indisciplinar”, eu quero sugerir três coisas: 1) a

invenção de políticas curriculares baseadas na problematização não dogmática de práticas culturais; 2)

a invenção de políticas curriculares descentralizadas, diversificadas e comprometidas com a

democratização das práticas escolares.

Isso requer a abertura dialógica das práticas escolares para com todos os campos de atividade

humana, e não apenas para com o campo científico-acadêmico; 3) a invenção do educador escolar

indisciplinar visto como problematizador de práticas culturais ou de jogos de linguagem.

Nessa política curricular indisciplinar de mobilização cultural, tanto a matemática quanto as

demais disciplinas escolares devem participar de um modo desconstruído, isto é, enquanto conjuntos

discretos de práticas culturais ou jogos regrados de linguagem a serem problematizados como

quaisquer outros.

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No caso específico da matemática, vê-la como um conjunto discreto de jogos normativamente

regrados de linguagem amplia, de um modo inusitado e ilimitado, as práticas culturais a serem

problematizadas na escola. Amplia também o próprio domínio dos objetos de investigação acadêmica

da matemática e da educação matemática. Abre-nos ainda a possibilidade de democratizarmos as

histórias da matemática e da educação matemática e de se contá-las de outras maneiras. Isso porque,

tais histórias não mais tomariam os seus objetos, as suas instituições e os seus personagens

exclusivamente dos campos escolares e científico-acadêmicos de atividade humana, mas de quaisquer

outros em que jogos normativamente regrados de linguagem tenham sido jogados.

Democratizar é preciso pois, por força avassaladora e massificadora dos próprios processos de

escolarização moderna, produziu-se modos típicos e tipicamente limitados de se ver a matemática e a

educação matemática. Já os jogos normativamente regrados de linguagem são tão antigos quanto a

própria história dos diferentes usos humanos do corpo humano e, portanto, anteriores a quaisquer usos

da palavra matemática. Isso sugere quão cientificamente centrados, restritos, colonizados e racistas

são as nossas políticas educativas e investigativas envolvendo a matemática e a formação de

professores de matemática, bem como, o nosso próprio modo de contar a história cultural da

matemática.

A monumental obra do historiador inglês Martin Bernal intitulada Black Athena17, isto é,

Atenas negra, evidenciou o caráter racista da maior parte de nosso modo de contar a história das

civilizações.

Bernal argumenta que a reação cristã, a aparição do conceito de progresso, o incremento do

racismo e a invenção do helenismo romântico pelo idealismo alemão do século 18 foram quatro forças

que interatuaram para derrubar o que ele denomina o “modelo antigo”. Esse modelo era a crença

generalizada na Antiguidade de que grande parte dos conhecimentos produzidos pelos gregos antigos

17 Imagem em: https://www.amazon.com/Black-Athena-Afroasiatic-Civilization-Fabrication/dp/0813512778, em

10/07/2016.

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deveu-se à importação ou à influência direta dos contatos da civilização helênica com as culturas afro-

asiáticas, sobretudo, a egípcia e a fenícia.

Assim, dado o poder de alta longevidade memorialista da prática da escrita, associado ao

poder colonizador racista de se contar a história - também da matemática, da educação e da educação

matemática - de determinadas maneiras e não de outras, a nova tradição optou por considerar humanas

apenas determinadas formas ditas “científicas” de vida humana.

Uma política curricular indisciplinar propõe deslocar o foco da mobilização cultural escolar da

memorização de conteúdos para a problematização não dogmática de práticas culturais. Mas isso, nada

tem a ver com o relativismo ou o pluralismo do vale tudo, nem com o binarismo do “ou isso ou

aquilo” e nem com a neutralidade ético-política da abstenção de juízos de valores. Isso porque, a

problematização opera por desnaturalização, por desconstrução, por descolonização do olhar fixo,

instigando os estudantes a verem de outras maneiras a prática que está sendo problematizada.

Assim, o que se pode aprender com a problematização indisciplinar de uma prática extraescolar, não é,

nem uma doutrinação, nem uma modelação e nem um modo direto de se praticá-la, mas sim, um

esclarecimento amplo e aberto acerca das diferentes perspectivas contextuais sob as quais a prática em

foco se mostra e pode ser significada, compreendida, discutida, questionada. O jogo da

problematização não é, portanto, o jogo do ensino e da aprendizagem, mas sim o jogo da discussão e

do esclarecimento. Tal jogo não reivindica nem direitos de aprendizagem e muito menos uma escola

sem partido. E para entender melhor isso, é necessário que a gente desconstrua teorias ou perspectivas

psicológico-mentalistas da aprendizagem que nos acostumaram secularmente a ver a aprendizagem

escolar como internalização ou memorização contínua e sequencial de conteúdos. É este o terceiro

ponto de nossa agenda.

TERCEIROPONTODAAGENDADESCONSTRUÇÃO DE PERSPECTIVASP S I CO LÓG I CO -MENTA L I S T A S DAAPRENDIZAGEMESCOLARQUEVEEMAAPRENDIZAGEMCOMOINTERNALIZAÇÃOOU MEMORIZAÇÃO CONT ÍNUA ESEQUENCIALDECONTEÚDOS.

É preciso desmistificar todas as teorias ditas científicas acerca do ensino, da aprendizagem e da

educação. Nós aprendemos desde quando nascemos, em todos os contextos de atividade humana, e

isso, a não ser em casos isolados, não constitui qualquer mistério a ser explicado. A aprendizagem só

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se constituiu num problema a ser investigado cientificamente, a partir do momento em que se instituiu

a educação escolarizada dos conteúdos desligados das práticas, os currículos disciplinares

especializados, uniformizadores e compulsórios e, com isso, os problemas de não envolvimento e de

não aprendizagem.

Há um aforismo de Leibniz que diz que “a música é um exercício inconsciente da aritmética, em que o

espírito ignora que calcula”.

O que este aforismo sugere é que a gente pode aprender uma mesma prática de duas maneiras:

tendo-se ou não ciência de que estamos seguindo regras. Wittgenstein sugeriu algo semelhante. Para

ele, podemos aprender uma prática através do “estilo da pintura”, isto é, através da sua imitação

analógica, sem termos ciência de que seguimos regras. A outra maneira seria aprendê-la através de

imitação gramatical, isto é, acionando as regras requeridas por esta encenação. Por exemplo, por

imitação analógica, a gente pode aprender a tocar uma peça musical “de ouvido”, sem que o nosso

corpo sinta estar seguindo regras de composição de sons ou de uma linguagem musical. A mesma peça

poderia ser aprendida por imitação gramatical, seguindo partitura, cifras e demais regras. Neste caso,

aprender as regras e aplicá-las com correção é condição necessária para a execução da peça musical.

Mas, Wittgenstein distingue entre dois outros modos de se envolver com uma prática. O

primeiro é praticando-a diretamente, por imitação analógica ou gramatical. O segundo é envolvendo-

se indiretamente com essa prática, isto é, descrevendo-a verbalmente. Wittgenstein considera que

apenas no primeiro caso, isto é, por envolvimento direto, podemos de fato aprender uma prática. Não

podemos aprendê-la exclusivamente por envolvimento verbal indireto. A gente só pode aprender a

jogar futebol participando do jogo, observando e imitando diretamente os movimentos corporais de

outros jogadores.

É claro que a gente poderia também aprender algo sobre o futebol através de uma descrição

verbal indireta das suas regras e do modo de se praticá-lo. Entretanto, o que a gente aprende

verbalmente é apenas uma descrição verbal do futebol e não a jogar futebol. E mesmo que a

aprendizagem direta do futebol possa ser acompanhada de instruções verbais, e ainda que a gente

esteja ciente de estar seguindo as regras do jogo enquanto jogamos, aquilo que o corpo da gente

aprende quando participa diretamente do jogo é algo bem diferente daquilo que ele aprende por meio

de meras instruções verbais acerca do jogo. É, portanto, sempre diretamente – tendo-se ou não ciência

de estarmos seguindo regras – que aprendemos a jogar xadrez, a tocar um instrumento musical, a

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confeccionar um vestido, a conduzir um navio de um porto a outro, a realizar uma divisão em partes

iguais pelo algoritmo usual ou através de uma calculadora, a falar uma língua, a fazer um discurso, a

rezar, a fingir, a esbravejar etc. Assim, aprender é sempre aprender a jogar, e só podemos aprender a

jogar jogando. E o único modo da gente se certificar se João aprendeu uma prática como, por exemplo,

andar de bicicleta, é pedir-lhe para andar de bicicleta. Pedir-lhe para que fale ou escreva sobre tal

prática, ou então, para que ele defina equilíbrio físico e faça exercícios de dinâmica é o mesmo que

pedir-lhe para realizar outras práticas, quais sejam, a prática da fala, a da escrita e a da teorização do

equilíbrio físico, mas não a de andar de bicicleta.

É nesta sutil distinção que reside todo o equívoco de duas crenças otimistas da nossa escola

neoliberal: a primeira, que nos ilude com a possibilidade de transposição de aprendizagens verbais

indiretas de práticas escolares para campos extraescolares de atividade humana; e a segunda crença,

que nos ilude acerca da possibilidade de se avaliar objetivamente a competência de estudantes

realizarem práticas extraescolares através de provas orais ou escritas sobre conhecimentos, conceitos e

regras ensinados verbalmente. Tais crenças são ilegítimas porque os currículos escolares são listas

sequenciais de conteúdos disciplinares, e não práticas culturais extraescolares a serem aprendidas.

Vamos considerar, por exemplo, o tópico “localizar um ponto no plano cartesiano, dadas as suas

coordenadas”, ou então, o de “localizar um ponto na superfície terrestre, dadas a sua latitude e

longitude”.

Por mais que os estudantes se saiam bem ou mal na avaliação desses tópicos verbalmente

ensinados, não se pode dizer que eles tenham adquirido – ou que estejam impedidos de adquirir - a

competência para realizar quaisquer práticas diretas de orientação cartográfico-espacial em terra ou no

mar. Isso porque, tais tópicos são ensinados de modo desconectados de práticas náuticas, cartográficas

ou de outras quaisquer. E mesmo que não o fossem, tais práticas só poderiam ser tratadas de modo

verbal indireto.

É claro que problematizar práticas significa um imenso avanço no sentido de promoção de

uma política curricular indisciplinar na escola. Mas, também neste caso, não se pode dizer que os

estudantes se tornariam competentes para realizar práticas diretas de orientação cartográfico-espacial

em terra ou no mar. Isso porque, a aprendizagem direta de uma prática extraescolar não se realiza pela

transposição de sua aprendizagem verbal indireta na escola e vice-versa. Assim, uma criança pequena

aprende a falar significativamente bem a sua língua nativa sem ter ciência de que segue regras

fonéticas e gramaticais permissíveis de combinação significativa de sons dessa língua. Já um linguista

competente, mesmo aprendendo as regras de uma outra língua, pode não saber falar ou se comunicar

nessa língua.

Entretanto, os processos modernos de escolarização, por terem sido processos de

recolonização política, econômica e cultural, acabaram promovendo um modelo de educação escolar

individual, concorrencial, disciplinar, homogêneo, compulsório, etapista, seriado, meritocrático,

propedêutico, excludente e, supostamente habilitador à inserção qualificada no trabalho e na vida. E

daí, esse modelo teve que inventar uma política examinadora, supostamente objetiva e não

controversa, da aprendizagem e do mérito individuais. Para isso, o modelo objetivo de avaliação da

aprendizagem matemática foi ideologicamente elevado à condição de modelo normativo padrão de

aferição da aprendizagem escolar.

Esse uso ideológico da matemática foi um dos que produziram efeitos perversos mais

duradouros no sentido da produção de um avassalador regime auto-consentido de aculturação em

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massa, de homogeneização e recolonização cultural, e de produção de subjetividades globalizadas

auto-identificadas à racionalidade neoliberal. E tudo em nome da crença ilusionista que correlaciona

positivamente, por um lado, bom desempenho matemático escolar, talento individual e sucesso na

vida; e, por outro lado, alto nível de desempenho escolar em matemática e nível de desenvolvimento

econômico de uma nação.

Porém, contrariamente a essa crença, o propósito civilizatório que orientou os processos

modernos de escolarização em vez de erradicar, acabou incrementando assustadoramente a pobreza, a

violência, a corrupção, a desigualdade, a criminalidade, a desagregação social e familiar, a

desumanização, a concorrência e o individualismo. Entretanto, não é a escola que produz ou que

poderá extinguir as desigualdades e as discriminações sociais. É o Estado neoliberal que, ao fazer uso

ideológico do discurso matemático para justificar a exclusão escolar arbitrária de amplas camadas já

socialmente excluídas e discriminadas da população, que se mostra antidemocrático, neocolonial e

neorracista.

É por isso que soam patéticas as reivindicações da organização claramente partidária

denominada “Escola Sem Partido”. Tudo se passa como se um Estado neoliberal já não tivesse tomado

partido na definição das políticas públicas relativas à educação, dentre outras. Além do mais, é

impossível formar o cidadão descolonizado, sem problematizar de forma não-dogmática, na escola, os

propósitos, os valores, os efeitos de sentido e as relações assimétricas de poder que perpassam as

práticas culturais extraescolares, sejam elas, eticamente controversas ou não, criminalizadas ou não,

antidemocráticas ou não. Nesse sentido, uma “escola sem partido” é uma autocontradição, pura

abstração e uma “ponte para o abismo”. Já uma escola que problematiza as práticas extraescolares é

uma escola que adentra sem temer – e sem Temer - o lado escuro das luzes, que toma partido pelo

contemporâneo; pela democratização política, social e econômica ampla, geral e irrestrita de todas as

nossas instituições, de todas as nossas formas de vida.

Mas, para isso, é preciso que a educação matemática se engaje na luta mais ampla pela

desconstrução da racionalidade neoliberal, vista como uma ordem ético-política ideológica e

antidemocrática de governo. E que se engaje também na luta pela democratização radical da estrutura

e dos princípios nos quais se assenta a educação pública brasileira. É este o quarto e último ponto de

nossa agenda.

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QUARTOPONTODAAGENDAENGAJAMENTODAEDUCAÇÃOMATEMÁTICANA LUTA PELA DESCONSTRUÇÃO DARACIONALIDADE NEOLIBERAL, VISTA COMOUMAORDEMÉTICO-POLÍTICAIDEOLÓGICAEANTIDEMOCRÁTICA DE GOVERNO E PELADEMOCRATIZAÇÃORADICALDAESTRUTURAEDOSPRINCÍPIOSNOSQUAISSEASSENTAAEDUCAÇÃOPÚBLICABRASILEIRA.

Mais especificamente, o que este ponto reivindica é: 1) a desconstrução das políticas

educacionais neoliberais e, portanto, do discurso tecnicista ilusionista das habilidades e competências;

2) o fim da escola concorrencial, disciplinar, seriada, seletiva, meritocrática, propedêutica e de

currículos compulsórios comuns; 3) a gratuidade e universalização do acesso, da permanência e da

saída da escola básica; 4) a invenção da escola básica voltada à formação política do cidadão-

descolonizado, guardião dos valores de uma sociedade democrática; 5) o fim dos vestibulares para o

acesso às formações de nível superior e profissional; 6) a invenção da universidade e da formação

profissional socialmente referenciadas.

A racionalização do mundo a partir de lógicas empresariais tem sido um modo frequente de

caracterizar o neoliberalismo. Vê-lo como algo que vai além de uma política econômica ou de uma

ideologia, e que também necessita operar como uma biopolítica, é um ponto de vista defendido por

Pierre Dardot e Christian Laval, no livro intitulado A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade

neoliberal. Para esses autores, o neoliberalismo é uma racionalidade empresarial que tende a modelar

tanto a ação de governantes como a conduta dos governados, segundo o princípio universal da

concorrência.

Para eles, a estratégia básica acionada para a formação do “sujeito empresarial” consiste em se

procurar manter sob controle o universo dos próprios desejos do sujeito. E isso, com o propósito de

fazê-lo desejar o desejo do outro, isto é, o desejo de jogar o jogo mercadológico-concorrencial jogado

pelo empregador e vestir a camisa de sua empresa. Assim, o neossujeito empresarial é aquele que

permite converter-se num jogador compulsivo, ao inserir-se em um jogo estratégico de poder, no qual

ele concorre consigo mesmo.

No campo educacional, são duas as estratégia acionadas para o controle do desejo. Uma delas

consiste em naturalizar a ideologia do mérito entre professores, estudantes e famílias. A outra consiste

em normatizar, arbitrária e oportunisticamente, o que não pode ser normatizado. E isso, para se

produzir o efeito ilusório de que se você se mostrar um jogador competente, o seu desejo poderá ser

satisfeito. Assim, abusa-se normativamente do próprio poder normativo dos jogos normativamente

regrados de linguagem. E isso, é feito através da introdução, no jogo, da figura do jogador talentoso,

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habilidoso, competente, produtivo, autônomo, empresário de si que investe, que arrisca e que não

hesita em por a sua própria vida na roleta russa, de entregá-la ao livre arbítrio do acaso.

Embora a maior parte das instituições contribuam para a naturalização da ideologia do mérito,

é a escola que reza e pratica essa ladainha, dia a dia. E somos nós - professores que ensinam ou não

matemática, na escola básica ou na universidade – que, no exercício político de nosso poder

normativo, aparecemos para as crianças, jovens e adultos como os guardiões do portal das luzes e

como o braço direito da meritocracia. Em última instância, o que os estudantes acabam aprendendo é

como se tornarem jogadores compulsivamente competentes e competitivamente compulsivos.

No embate metafórico entre luzes e escuridão, Wittgenstein dizia que, quando um determinado

caminho por ele eleito para se abordar um problema se mostrava improdutivo, porém persistente, ele

costumava comparar a situação aparentemente sem saída em que se encontrava, à situação de um

inseto que fica voando em torno da luz, fixamente atraído por ela, e incapaz de livrar-se dela. Para o

filósofo, a descolonização do nosso modo fixo de enfrentar um problema não se efetiva nem pela

ciência e nem pela arte, nem pelo saber e nem pela sensibilidade. Ela se efetiva somente pela fé ou

confiança de que a aceitação do risco que nos coloca o acaso - quando decidimos considerar outros

modos se lidar com o problema - possa retirá-lo da sombra e trazê-lo à zona de total clareza e

luminosidade. E esta fé, que nada tem a ver com superstição, mas sim, com uma certa confiabilidade

na ‘generosidade’ do acaso, está expressa no seguinte aforismo do filósofo: “o verdadeiro pensador

religioso é como um equilibrista que dança sobre a corda. Ele caminha, aparentemente, quase que

apenas sobre o ar. Sua base é a mais estreita que se pode pensar. E, contudo, ele caminha realmente

sobre ela”.

Trata-se de uma confiabilidade resoluta semelhante àquela demonstrada pelo compulsivo

jogador Aleksei Ivánovitch, narrador do romance O Jogador de Dostoievski que, diante da falta de

propósitos com que intencionalmente levava a sua vida, dizia: “É verdade que só um, entre cem,

consegue ganhar, mas que me importa isso?”. Após gastar toda a fortuna que havia ganho na roleta de

um cassino parisiense e ficar com uma insignificante quantia que lhe permitiria apenas comer ou jogar,

Ivánovitch não hesita: decide jogar!

Dostoievski escreveu O jogador no século 19. Também neste século, no qual Wittgenstein

acreditava ter a humanidade se deparado com os limites da cultura ocidental, o filósofo e historiador

francês Jules Michelet18 disse que “toda revolução é um lance de dados”.

18 Acesso imagem: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jules_Michelet, em 10/07/2016.

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Todarevoluçãoéumlancede

dados

JulesMichelet(1798-1874)

Também no início daquele mesmo século, e antes de Michelet, o matemático francês Pierre

Simon Laplace lançou às luzes o seu Ensaio filosófico sobre as probabilidades19.

PierreSimonLaplace

(1749-1827)

Neste ensaio, ele submeteu teoricamente o acaso ao controle de um jogo normativamente

regrado de linguagem, com base no pressuposto de que o lançamento de um dado comum é um

experimento aleatório. Assim, ele acabou inventando o determinismo como a face oposta do acaso.

19 https://ia902702.us.archive.org/20/items/essaiphilosophi00laplgoog/essaiphilosophi00laplgoog.pdf, acesso do

texto. Acesso imagem: https://pt.wikipedia.org/wiki/Pierre_Simon_Laplace. Acessos em 10/07/2016.

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Também no século XIX, o poeta francês Stéphane Mallarmé20 “lançou ao ar” um poema

intitulado Um lance de dados jamais eliminará o acaso, finalizando-o com o verso: “todo pensamento

produz um lance de dados”.

StéphaneMallarmé(1842-1898)

Todopensamentoproduzumlance

dedados

Uncoupdedésjamaisn’aboliralehasard(1897)

Lanço, então, entre nós, o “dado” desta nossa agenda como uma possibilidade de pensamento!

Como uma possibilidade para se pensar que tomando partido, reivindicando e praticando, desde já, um

outro tipo de escolarização e, portanto, um outro tipo de mundo, é possível antecipar - e até mesmo

sentir - o sabor de outros mundos possíveis!

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20 Acesso imagem: https://pt.wikipedia.org/wiki/Stéphane_Mallarmé, em 10/07/2016.

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