educaÇÃo, leitura e transformaÇÃo …...leitura depende da educação formal, mas também da...
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EDUCAÇÃO, LEITURA E TRANSFORMAÇÃO SOCIOCULTURAL
Paulo Cesar Garré Silva1
Resumo O presente artigo analisa a importância da leitura para a transformação sociocultural de uma sociedade e da educação formal para a aquisição do habitus de leitura. A referida análise se fundamenta no pensamento de teóricos com Chartier e Bourdieu e em levantamento de dados da prática de leitura de estudantes de escola pública e conclui que há um baixo nível de leituras com pouca diversidade de textos; consequentemente, o habitus de leitura desses estudantes possui um baixo potencial de transformação social. Palavras-chave: Educação. Habitus de leitura. Transformação sociocultural.
Abstract This paper analyzes the importance of reading for the sociocultural transformation of a society and formal education for the acquisition of reading habitus. This analysis is based on the thought of theorists with Chartier and Bourdieu and on data collection from the reading practice of public school students and concludes that there is a low level of reading with little diversity of texts; Consequently, the reading habitus of these students has a low potential for social transformation. Keywords: Education. Habitus of reading. Sociocultural transformation.
I. INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objetivo analisar a importância da leitura para o
processo de transformação sociocultural e em que medida a educação formal está
contribuindo para a formação do habitus de leitura dos estudantes, instrumentalizando-os
para uma participação ativa nesse processo de transformação.
A leitura não é orientada apenas pela escola e realizada em sala de aula, ela
está relacionada com a busca de informações ou de interesse por um determinado
conhecimento ou mesmo como forma de prazer ou entretenimento. Daí não está
relacionada apenas com leitura de livros, forma mais tradicional de se compreender o
habitus de leitura, mas também de jornais e revistas. O nível de leitura dos estudantes não é
um indicativo que se explica por si só, mas tem relação com diversos fatores sociais, os
1 Professor da educação básica da rede pública de ensino, graduado em Filosofia e Letras, mestre em Educação
e doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Maranhão –UFMA. Email: [email protected]
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quais se constituem como referenciais para o entendimento do desenvolvimento do habitus
de leitura dos estudantes.
Não se pode negar que o nível de leitura é um forte indicativo cultual de uma
pessoa, uma vez que há uma relação entre a leitura e o desenvolvimento cultural, da
mesma forma se considera que há uma relação entre a leitura e a possibilidade de
intervenção em processos de transformação sociocultural.
Os dados da pesquisa foram coletados com aplicação de questionário a
estudantes do ensino médio de uma escola pública de São Luís, situada em bairro de classe
baixa e os dados foram analisados à luz de teóricos como Roger Chartier, Pierre Bourdieu,
entre outros. O artigo está dividido em dois tópicos principais: Leitura e transformação
sociocultural, onde se analisa, a partir do referencial teórico de Chartier e Bourdieu, a
importância da leitura para a transformação sociocultural de uma sociedade; no segundo, o
habitus de leitura dos estudantes e o seu potencial de transformação sociocultural, no qual
se analisa os dados da pesquisa de campo identificando os níveis de leitura dos estudantes
e sua potencialidade para impulsionar o movimento sociocultural.
II. LEITURA E TRANSFORMAÇÃO SOCIOCULTURAL
Aprender a ler não é um processo natural, mas cultural, geralmente não se
aprende a ler sem o auxílio da escola. Essa aprendizagem é basilar para o processo de
escolarização, sem o desenvolvimento dessa capacidade o processo de aquisição de
conhecimento se torna fragilizado. A aquisição do conhecimento não se restringe ao
ambiente escolar, como também não é exclusivo das pessoas alfabetizadas, porém há
limites e barreiras na aquisição do conhecimento para as pessoas não alfabetizadas. A
própria capacidade de ler se constitui como uma forma de conhecimento que possibilita o
acesso ao conhecimento produzido socialmente pela humanidade.
A leitura alfabética insere o ser humano no mundo das letras, num mundo de
significados. A educação formal está envolvida com esse mundo, seu sucesso está
relacionado com o desenvolvimento da capacidade do educando relacionar o conhecimento
aprendido na escola com o mundo em que vive, substantivando a sua leitura da realidade.
Dessa forma a leitura possibilita o acesso do ser humano à cultura e ao conhecimento
produzido pela humanidade e que está registrado nos textos.
Vemos aqui a possibilidade do registro histórico da própria natureza da educação escolar, que vai a par com o histórico que define a leitura e o leitor. A partir desta alfabetização mais ou menos funcional (porque deve se ajustar à mensagem religiosa ou à utilidade na vida cotidiana) se chega, ao longo dos séculos XIX e XX,
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à definição da leitura como acesso à cultura, a um mundo e obras que devem permear a mente e a ética (CHARTIER, 2001, p.77).
O conhecimento adquirido na escola é fundamental, mas não é suficiente para o
estudante fazer uma leitura de mundo mais ampla e aprofundada, é necessário entrar em
contato com textos que não fazem parte do currículo escolar para ampliar seu universo
cultural. A leitura exige do leitor um conhecimento básico para dialogar com o texto lido, ela
é um processo dialético entre o leitor e o texto, pois ao mesmo tempo que o leitor adquire
conhecimento no diálogo com o texto, o texto também ganha novas significações no
processo de leitura.
O texto não é um corpo morto, toda leitura é um processo de interação entre o
leitor e o texto. Alguns textos exigem mais do leitor que outros, há textos que exigem do
leitor senso crítico no processo de leitura, pressupõe-se que esse senso crítico seja
desenvolvido a partir da educação formal e de leituras realizadas pelo leitor, uma vez que o
processo de leitura é também dialógico, os conhecimentos adquiridos em leituras anteriores
subsidiam o leitor no seu processo criativo de construção de significados. “Ler será,
portanto, fazer emergir a biblioteca vivida, quer dizer, a memória de leituras anteriores e de
dados culturais” (GOULEMOT. In: CHARTIER (Org.), 1996, p.113), isto quer dizer que a
leitura é um processo que acontece de forma contextualizada, um processo de interação
entre leitor e texto subsidiado pelo conhecimento do leitor e o contido no texto. O leitor pode
dar novas significações ao texto lido, construindo novas perspectivas de leitura, ao mesmo
tempo que adquire novos elementos que ampliam ou modificam sua visão de mundo.
A leitura é sempre apropriação, invenção, produção de significados. Segundo a bela imagem de Michel de Certeau, o leitor é um caçador que percorre terras alheias. Apreendido pela leitura, o texto não tem de modo algum – ou ao menos totalmente – o sentido que lhe atribui seu autor, seu editor ou seus comentadores. Toda história da leitura supõe, em seu princípio, esta liberdade do leitor que desloca e subverte aquilo que o livro lhe pretende impor. Mas esta liberdade leitora não é jamais absoluta. Ela é cercada por limitações derivadas das capacidades, convenções e hábitos que caracterizam, em suas diferenças, as práticas de leituras. Os gestos mudam segundo os tempos e lugares, os objetos lidos e as razões de ler (CHARTIER, 1999, p.77).
Um mesmo texto não é lido da mesma forma, com as mesmas significações por
leitores diferentes, pois toda leitura é um processo de apropriação e invenção, porém a
apropriação e a invenção dependem do referencial de vida do leitor, ou seja, elas são
limitadas pela realidade objetiva na qual o leitor está inserido, sendo que há limitações de
ordem individual e de ordem sociocultural operando na apropriação e produção de
significados durante o processo de leitura. “Cada leitor, a partir de suas próprias referências,
individuais ou sociais, históricas ou existenciais, dá um sentido mais ou menos singular,
mais ou menos partilhado, aos textos de que se apropria” (CHARTIER, 1996, p. 20). Por
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outro lado, os textos lidos influenciam a percepção do leitor e sua compreensão de mundo,
que poderá ser modificada a cada leitura.
O habitus de leitura do leitor está relacionado à sua prática diária, que aos
poucos deixa de ser uma exigência formal para se tornar uma prática que ganha significado
social e cultural, por isso passa a ser uma forma de distinção sociocultural.
[...] o hábito, nas referências que eu utilizo, tem um sentido mais particular, que é o de interiorização; não a de uma prática, mas sim interiorização dentro do indivíduo do mundo social e de sua posição no mundo social, que se expressa por meio de suas maneiras de classificar, falar e atuar. É o conceito que Pierre Bourdieu utiliza frequentemente e é central na obra de Norbert Elias: o hábito social é o que um grupo humano compartilha em termos de um sistema de representações que fundamenta suas maneiras de classificar de se situar no mundo social, de atuar (CHARTIER, 2001, p.139).
O habitus de leitura não está isolado da prática sociocultural do leitor, não se
constrói um habitus sem uma prática contínua, da mesma forma que ele sempre tem um
valor significativo e distintivo para quem o adquire, dessa forma a construção do habitus de
leitura depende da educação formal, mas também da prática social e familiar, uma vez que
esses dois momentos são fundamentais para a construção de sujeitos leitores, quando não
há uma interação entre esses dois momentos o desenvolvimento educacional e sociocultural
do ser humano fica comprometido.
Há um conhecimento mais formal que deve ser aprendido na escola, porém é
necessário que o estudante tenha uma prática social e familiar que dialogue com o
conhecimento adquirido na escola. Caso contrário, passa a existir um conflito entre o
conhecimento escolar e as práticas familiares do estudante, caso que é mais visível entre
estudantes de famílias menos escolarizadas.
Portanto temos, de um lado, os ensinamentos da escola e, de outro, todas as aprendizagens fora da escola, seja a partir de uma cultura escrita já dominada pelo grupo social, seja por uma conquista individual, que é sempre vivida como um distanciamento frente ao meio familiar e social e, ao mesmo tempo, como uma entrada em um mundo diferente (CHARTIER, 1999, p. 105).
Mesmo que o meio social e familiar influencie fortemente a formação do habitus
de leitura, não se pode prescindir da escola como mecanismo de aquisição da prática da
leitura. “O fato de nosso ambiente estar hoje repleto de escrito não torna menos
surpreendente a possibilidade da leitura. Fenômeno cultural, portanto, e realmente pouco
natural: não podemos prescindir de um ensino para ter acesso à leitura” (BRESSON. In:
CHARTIER (Org), 1996, p. 34). A escola é fundamental para a formação do habitus de
leitura, uma vez que ela é responsável pelo desenvolvimento da capacidade de leitura dos
estudantes, da mesma forma a prática social também é importante, uma vez que quando a
leitura ensinada na escola faz parte do mundo social do estudante, torna-se mais fácil de
transformar-se em habitus.
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A leitura é um código cultural que permite o acesso a outros códigos. Há uma
diversidade de código à medida que existe uma diversidade sociocultural, por isso a leitura
abre portas de acesso a um universo cultural que sem ela é inacessível, daí a convicção de
Bourdieu na importância da leitura como fundamental para a realização plena do ser
humano: “Participo também da crença na importância da leitura, participo também da
convicção de que é muito importante ler e que alguém que não lê é mutilado” (BOURDIEU;
CHARTIER. In: CHARTIER (Org.), 1996, p.239), porém não é qualquer leitura que possibilita
o desenvolvimento sociocultural do leitor, ela deve ter legitimidade cultural para que
influencie positivamente na maneira de pensar e sentir do leitor.
Aqueles que são considerados não-leitores leem, mas leem coisa diferente daquilo que o cânone escolar define como uma leitura legítima. O problema não é tanto o de considerar como não-leituras estas leituras selvagens que se ligam a objetos escritos de fraca legitimidade cultural, mas é o de tentar apoiar-se sobre essas práticas incontroladas e disseminadas para conduzir esses leitores, pela escola mas também sem dúvida por múltiplas outras vias, a encontrar outras leituras. É preciso utilizar aquilo que a norma escolar rejeita como um suporte para dar acesso à leitura na sua plenitude, isto é, ao encontro de textos densos e mais capazes de transformar a visão do mundo, as maneiras de sentir e de pensar (CHARTIER, 1999, pp. 103-104).
A leitura que não possui uma forte legitimidade cultural não deve ser desprezível,
pois através dela pode-se construir uma via de acesso a uma leitura com maior legitimidade
cultural, uma vez que “seja popular ou erudita, ou letrada, a leitura é sempre produção de
sentido” (GOULEMOT. In: CHARTIER (Org.), 1996, p.107). Embora as leituras tenham
níveis de legitimidade cultural diferentes, todas elas são processos de produção de sentido,
o qual não está isolado da realidade e nem se constitui sem o diálogo com as leituras já
realizadas pelo leitor. Uma leitura com maior legitimidade cultural propicia um diálogo mais
qualificado entre o leitor e o texto e, consequentemente, eleva o desenvolvimento cultural do
leitor.
Por outro lado, como já foi dito antes, o texto também é beneficiado no processo
de leitura, uma vez que o leitor pode dar novas significações a ele, ampliando seu
significado cultural. Portanto, no processo de leitura tanto o leitor como o texto podem
adquirir maior riqueza cultural.
Ler é dar um sentido de conjunto, uma globalização e uma articulação aos sentidos produzidos pelas sequências. Não é encontrar o sentido desejado pelo autor, o que implicaria que o prazer do texto se originasse na coincidência entre o sentido desejado e o sentido percebido, em um tipo de acordo cultural, como algumas vezes se pretendeu, em uma ótica na qual o positivismo e o elitismo não escaparão a ninguém. Ler é, portanto, construir e não reconstruir um sentido. A leitura é uma revelação pontual de uma polissemia do texto literário (GOULEMOT. In: CHARTIER
(Org.), 1996, p.108).
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A leitura de um texto com maior legitimidade cultural amplia o horizonte do leitor,
sua capacidade de diálogo e pode influenciar na sua atuação diante da realidade operando
transformações sociais importantes. “Por meio do livro pode-se transformar a visão do
mundo social e, através da visão de mundo, transformar também o próprio mundo social”
(BOURDIEU; CHARTIER. In: CHARTIER (Org.), 1996, p.243), daí a importância da leitura
de livros e demais textos impressos ou digitais que tenham uma forte legitimidade cultural.
Através da leitura o leitor amplia seu conhecimento e, consequentemente, seu
horizonte de perspectiva porque a leitura amplia também a capacidade de diálogo do leitor,
que se torna mais apto em dialogar em diversas situações, pois a cada nova leitura ele
adquire novos códigos culturais que lhes possibilita dialogar em diversos ambientes culturais
e sociais interferindo nos processos de transformações socioculturais.
Também é verdadeiro que a cultura institucional nos predispõe a uma recepção particular do texto. Poderíamos utilizar aqui o conceito de horizonte de expectativa de Jauss e da Escola de Constança. Quer dizer que cada época constitui seus modelos e seus códigos narrativos e que no interior de cada momento existem códigos diversos, segundo os grupos culturais. [...]. Portanto, deve-se reconhecer que diversos modos de narrativa coabitam no mesmo espaço cultual e social. A posse dos códigos que os regem permite a leitura. Ela constitui o horizonte de expectativa, por outro lado, no sentido em que o entendo (GOULEMOT. In: CHARTIER (Org.), 1996, p.113).
A leitura é uma prática cultural que está relacionada à prática educacional,
sendo que o nível de escolaridade influencia diretamente no nível de leitura, mas não é só
isso, a qualidade dessa leitura, sua legitimidade cultura,l amplia o horizonte de expectativa
do leitor e sua potencialidade de atuação sociocultural, uma vez que a prática da leitura
possibilita a aquisição de uma maior diversidade de códigos sociais e culturais.
A aquisição dos códigos culturais qualifica o leitor para o diálogo no processo de
leitura e, ao mesmo tempo, a leitura permite o enriquecimento cultural do leitor. Há um
processo dialético entre a aquisição do código e a leitura, uma vez que quanto mais códigos
culturais o leitor possuir mais elevado será o seu diálogo com o texto lido e com o mundo
sociocultural no qual está inserido, possibilitando-lhe uma ação mais efetiva na
transformação deste mundo.
A leitura obedece às mesmas leis que as outras práticas culturais, com a diferença de que ela é mais diretamente ensinada pelo sistema escolar, isto é, de que o nível de instrução vai ser mais potente no sistema dos fatores explicativos, sendo a origem social o segundo fator. No caso da leitura, hoje o peso do nível de instrução é mais forte. Assim, quando se pergunta a alguém seu nível de instrução, tem-se já uma previsão concernente ao que ele lê, ao número de livros que leu no ano, etc. Tem-se também uma previsão concernente à sua maneira de ler. Pode-se rapidamente passar da descrição das práticas às descrições das modalidades dessas práticas (BOURDIEU; CHARTIER. In: CHARTIER (Org.), 1996, p.237).
A escolaridade é um indicativo do habitus de leitura dos habitantes de uma
sociedade, e a prática de leitura é um indicativo da potencialidade de transformação
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sociocultural dessa sociedade. Também é verdade que a leitura não pode ser avaliada como
potencial de transformação tendo em vista apenas seu aspecto quantitativo, deve-se levar
em conta também o aspecto qualitativo. Textos com maior legitimidade cultural operam
maiores transformações no leitor, consequentemente, possuem maiores potenciais de
impulsionar o leitor a interferir nos processos de transformações sociais.
Analisando os níveis de leitura dos estudantes de uma sociedade é possível
inferir a influência da educação formal no processo de construção do habitus de leitura
desses estudantes e, consequentemente, perceber a influência dessa escolarização nas
transformações socioculturais impulsionadas pelo acesso ao conhecimento que a leitura
propicia. Por isso, a importância de verificar os níveis de leitura dos estudantes e o potencial
de transformação sociocultural decorrente de seus habitus de leitura.
III. O HABITUS DE LEITURA DOS ESTUDANTES E O SEU POTENCIAL DE
TRANSFORMAÇÃO SOCIOCULTURAL
Não se pode pensar num processo de transformação sociocultural sem acesso
ao conhecimento, não se pode ter acesso ao conhecimento sem leitura, não se pode ter
acesso à leitura sem uma escola que ensine a ler, dessa forma, a educação, a leitura e a
transformação sociocultural são aspectos da realidade que se influenciam mutuamente. Daí
a análise dos níveis de leitura ser um fator importante para a compreensão do movimento de
transformação sociocultural que permeia uma sociedade.
A partir dos dados contidos na tabela abaixo é possível identificar os níveis de
leitura dos estudantes e inferir sobre o potencial de transformação sociocultural que é
inerente à aquisição de conhecimento propiciado pelo habitus de leitura.
Tabela 1 - Habitus de leitura dos estudantes do ensino médio diurno
Habitus de leitura dos estudantes do ensino médio
Série
Livros Revistas Jornais
Ler Não ler MA2
Ler Não ler Ler Não ler
Qtd % Qtd % Qtd % Qtd % Qtd % Qtd %
1ª 8 66,7 4 33,3 1,6 3 25,0 9 75,0 2 16,7 10 83,3
2ª 23 88,5 3 11,5 3,7 10 38,5 16 61,5 4 15,4 22 84,6
3ª 13 72,2 5 27,8 2,7 2 11,1 16 88,9 3 16,7 15 83,3
MG3 44 78,6 12 21,4 2,9 15 26,8 41 73,2 9 16,1 47 83,9
2 MA: Média anual de livros lidos pelos estudantes. Essa média foi obtida dividindo-se o total de livros lidos
pelos estudantes durante o ano, por o número de estudantes entrevistados. 3 MG: Média geral levando em consideração as três séries do ensino médio.
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A pesquisa com estudantes do ensino médio mostrou que mais de um quinto
deles não leem livros, quase três quartos não leem revistas e mais de quatro quintos não
leem jornais e que, em média, cada estudante lê quase três livros por ano. Como mostra a
tabela.
É de se esperar que neste grupo da população se encontre um nível mais
elevado de leitura que na população em geral, uma vez que estes estudantes representam
um grupo da população que, em tese, têm como profissão o estudo. Analisando os dados
observa-se que 66,7% dos estudantes da 1ª série leem livros e 33,3% não leem. A
porcentagem de leitores diminui para 25% em relação aos que leem revistas e 16,7% para
os que leem jornais.
Quando se analisa os dados da 2ª série, percebe-se que os índices de leitura se
elevam nas modalidades livro e revistas e decresce na modalidade jornais, sendo que
88,5% dos estudantes leem livros, 38,5% leem revistas e 15,4% leem jornais. Comparando
a 1ª série com a 2ª série, verifica-se crescimento do nível de leitura de livros e revistas dos
estudantes, porém na comparação com os estudantes da 3ª série, essa tendência de
elevação, conforme o nível de escolaridade, não se confirma em relação à 2ª série, e em
relação à 1ª apenas na modalidade leitura de livros.
Enquanto na 2ª série 88,5% dos estudantes leem livros, na 3ª série este índice
baixa para 73,7%; em relação à leitura de revistas o índice baixa de 38,5% na 2ª série para
11,1% na 3ª série, índice abaixo até mesmo da 1ª série, que é de 25%; em relação à leitura
de jornais o índice evolui de 15,4% na 2ª série para 16,7% na 3ª série, igualando-se ao
índice da 1ª série.
A escola não foi capaz de desenvolver o interesse pela leitura numa parcela
significativa dos estudantes, essa responsabilidade não é apenas da escola, mas existem
fatores que contribuem para essa passividade dos estudantes em relação à leitura, mesmo
que o interesse do estudante seja fundamental para o desenvolvimento do habitus de
leitura, ele não é decorrente única e exclusivamente da vontade do estudante, mas de
fatores que ultrapassam sua individualidade e que, ao mesmo tempo, constroem-na.
Quanto mais intensa, nos dois sentidos levantados, for a experiência de leitura, tanto maior serão seus benefícios para o sujeito. No entanto, para que isso aconteça, é necessário um movimento receptivo do próprio leitor ao texto, isto é, o ato de ler só funciona quando parte do interesse do leitor. Esse varia segundo diversos fatores pessoais e sociais, como o nível socioeconômico, o ambiente em que vive, o sexo, a faixa etária, a maturidade, as experiências de leitura anteriores, entre outros (AGUIAR, 2013, In: DALVI, Maria Amélia; REZENDE, Neide Luzia de; JOVE-FALEIROS, Rita (Orgs), 2013, pp. 158-159).
São vários fatores que influenciam na receptividade do texto pelo estudante, por
isso não se pode isolar os dados e concluir que o desinteresse pela leitura se explica por si
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só, é necessário contextualizar os estudantes que não leem ou que leem num nível
elementar e compreender os fatores que influenciaram para esse resultado, porém não se
pode deixar de considerar que escolaridade é um fator relevante para se analisar o habitus
de leitura, seja de estudantes ou de pessoas que já deixaram as salas de aula.
Entre as leis sociais que modelam a necessidade ou a capacidade de leitura, as da escola estão entre as mais importantes, o que coloca o problema, ao mesmo tempo histórico e contemporâneo, do lugar da aprendizagem escolar numa aprendizagem da leitura, nos dois sentidos da palavra, isto é, a aprendizagem da decifração e do saber ler em seu nível elementar e, de outro lado, esta outra coisa de que falamos, a capacidade de uma leitura mais hábil que pode se apropriar de diferentes textos (BOURDIEU; CHARTIER. In: CHARTIER (Org.), 1996, p.240).
A leitura não pode ser considerada apenas no aspecto quantitativo, mas também
no aspecto qualitativo, além da leitura em si, deve-se considerar a modalidade dessa leitura,
sua legitimidade cultural e sua capacidade de influenciar a prática social do leitor. A prática
escolar deve ser analisada a partir da prática de leitura dos estudantes, não apenas no nível
elementar, mas na capacidade de uma leitura mais hábil, que leva o leitor a se apropriar de
uma diversidade de códigos culturais.
Assim, os níveis de leitura também devem ser analisados em comparação à
modalidade e à diversidade dos textos lidos. Os estudantes da 1ª série leem em média 1,58
livros por ano, entre livros de filosofia, direito, literatura e religião, como se constatou; em
relação à leitura de revistas, predomina a leitura da revista Veja. Não há variedade de leitura
em relação a jornais, sendo lido apenas o jornal O estado. Além disso, observa-se que
apenas uma estudante se declara leitora de livros, revistas e jornais simultaneamente. No
que diz respeito a interferência escolar sobre a escolha ou direcionamento da leitura é
possível verificar alguns indícios a partir de algumas obras de literatura e filosofia, como O
mito da caverna, de Platão e Uma ideia toda azul, de Marina Colasanti, que não são
leituras com forte apelo popular e midiático, com isso conclui-se que são leituras que
possuem uma forte orientação escolar.
Sobre os estudantes da 2ª série, observou-se uma elevação do nível de leitura,
sendo que passou 1,58 livros/ano na 1ª série para 3,73 livros/ano na 2ª série. A diversidade
da leitura foi mais acentuada, pois há indicações de livros de filosofia, religião, ciência,
autoajuda, arte e literatura. No que se refere à leitura de revistas há mais diversidade, porém
é predominante a leitura da revista Veja, assim como na 1ª série; em relação à leitura de
jornais não se observou uma elevação do nível de leitura e nem predominância de um
jornal, a leitura foi distribuída entre os quatro jornais mais lidos em nível local (O Estado, O
Imparcial, Jornal Pequeno e Aqui MA). Ressalta-se também que apenas dois estudantes se
declararam leitores de livros, revistas e jornais simultaneamente.
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Nesta série, é possível perceber com mais eficácia a influencia do professor na
escolha e no direcionamento das práticas de leitura. Observou-se a recorrência da leitura de
livros clássicos da literatura brasileira e portuguesa como Dom Casmurro, de Machado de
Assis; O cortiço, de Aluísio de Azevedo e O primo Basílio, de Eça de Queiroz, denotando
a influência da escola/professor nas práticas de leitura dos estudantes. Isso demonstra a
importância da escola para a construção do habitus de leitura desses estudantes, que
conforme suas origens sociais e familiares não possuem influências significativas para o
desenvolvimento das práticas de leitura.
O nível de leitura da 3ª série foi 2,72 livros/ano, baixou um pouco em relação ao
da 2ª série, mas se elevou em relação ao da 1ª série. A diversidade de leitura de livros foi
baixa, em relação à leitura de revista continuou com a predominância da Veja e a leitura de
jornal se apresentou com certa variedade, com predomínio do jornal O estado. Observou-se
também a influência da escola/professor na escolha e no direcionamento da leitura, mas de
forma menos acentuada que na 2ª série, como exemplo são as leituras dos livros clássicos,
que geralmente não são de apelo popular e midiático, como Brás Cuba, de Machado de
Assis. Esse tipo de leitura tem uma forte influência na formação cultural do estudante, que
não é avaliada pelo professor.
A literatura lida em sala convida também a explorar a experiência humana, a extrair dela proveitos simbólicos que o professor não consegue avaliar, pois decorrem da esfera íntima. Enriquecimento do imaginário, enriquecimento da sensibilidade por meio da experiência fictícia, construção de um pensamento, todos esses elementos que participam da transformação identitária estão em ato na leitura (ROUXEL, 2013. In: DALVI, Maria Amélia; REZENDE, Neide Luzia de; JOVE-FALEIROS, Rita (Orgs), 2013, p. 24).
A leitura orientada pelo professor realizada em sala de aula ou fora dela, mesmo
cumprindo um requisito curricular, seus benefícios vão além do que é medido e avaliado
pelo professor, daí a importância do direcionamento da leitura para obras possuidoras de
legitimidade cultural, sejam elas clássicas ou contemporâneas, pois favorecem a construção
do imaginário do estudante, dando-lhe mais perspectivas de diálogos com a realidade e
consigo mesmo.
O baixo índice de leitura é um fator preocupante tendo em vista que a leitura é
fundamental para a aquisição do conhecimento produzido socialmente no decorrer da
história, essa leitura também possibilita um enriquecimento cultual que favorece a
construção de uma sociedade mais humana e solidária, pois ela interfere positivamente no
desenvolvimento sociocultural da pessoa que ler.
Uma leitura assim dialógica se faz por meio de um processo consciente em que ela, produtivamente, mostra-se como representação de consciência que busca quem é o sujeito que lê e o quê é o objeto lido, pois o ato de ler é mais um reflexo básico do
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hábito de ler. Nesse sentido, quanto mais se está habituado a ler, melhor se estabelece esse importante ato representando, dentre tantas, uma função social, aqui entendida como algo não definitivo nem perfeitamente acabado (TINOCO, 2013, In: DALVI, Maria Amélia; REZENDE, Neide Luzia de; JOVE-FALEIROS, Rita (Orgs), 2013, p. 143).
A leitura é um processo que não se encerra na escola, ela é um indicativo do
nível de consciência de uma sociedade, pois através dela se dialoga com o passado, o
presente e constroem-se expectativas para o futuro. Dessa forma, o habitus de leitura não é
algo que se constrói de forma definitiva em um determinado período da vida, é algo que se
constrói e reconstrói continuamente ao longo da vida, por isso a leitura não deixa de ser
imprescindível para o desenvolvimento sociocultural do leitor e da sociedade em que vive.
No entanto, os baixos índices de leitura verificados entre os estudantes
pesquisados, não destoa significativamente do universo dos estudantes de escola pública
do Maranhão. Esses índices são indicativos de que será necessário fortalecer as práticas de
leitura no ambiente escolar e social para que se possa deflagrar um processo consistente de
transformação sociocultural impulsionado pelo habitus de leitura que possibilita o acesso ao
conhecimento socialmente produzido pela humanidade.
IV. CONCLUSÃO
Espera-se que essa pesquisa contribua com a reflexão da prática educativa
relacionada com a formação do habitus de leitura dos estudantes, sendo que os dados
obtidos e analisados mostraram os baixos níveis e a pouca diversidade de leitura dos
estudantes da escola pública, por outro lado, mostrou a importância do habitus de leitura
para o desenvolvimento sociocultural do ser humano e da sociedade em que vive.
O desenvolvimento do habitus de leitura não se dá de forma natural e
espontâneo, é necessário práticas educativas que direcionem os estudantes para o
desenvolvimento de práticas de leituras. A escola é fundamental nesse processo, como
também a postura do professor em sala de aula, mas não conseguirão êxito se os espaços
escolares não forem espaços de leituras. Da mesma forma a escola não conseguirá êxito se
a cidade, através de sua gestão, não oferecer espaços públicos de leitura e de acesso à
cultura aos estudantes das escolas públicas, uma vez que seu ambiente familiar,
geralmente, não é um ambiente leitor.
Assim, a formação de um estudante leitor não é decorrente apenas de uma
prática pedagógica eficaz, mas de vários fatores socioculturais que são decorrentes de
políticas públicas fundamentais voltadas para a elevação dos níveis de leitura dos
estudantes e, consequentemente, para a construção de uma sociedade mais desenvolvida
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nos aspectos humanos, sociocultural e econômico, sendo que não se transforma uma
sociedade sem o acesso ao conhecimento produzido socialmente, que é acessível através
da leitura.
REFERÊNCIAS
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