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Alícia Maria Almeida Loureiro O ENSINO DA MÚSICA NA ESCOLA FUNDAMENTAL: UM ESTUDO EXPLORATÓRIO Belo Horizonte Mestrado em Educação da PUC/Minas 2001

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  • Alcia Maria Almeida Loureiro

    O ENSINO DA MSICA NA ESCOLA FUNDAMENTAL: UM ESTUDO EXPLORATRIO

    Belo Horizonte Mestrado em Educao da PUC/Minas

    2001

  • 2

    Alcia Maria Almeida Loureiro

    O ENSINO DA MSICA NA ESCOLA FUNDAMENTAL: UM ESTUDO EXPLORATRIO

    Dissertao apresentada ao Curso de Ps-Graduao em Educao da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Educao. Orientadora: Profa. Dra. Ana Maria Casasanta Peixoto

    Belo Horizonte Mestrado em Educao da PUC/Minas

    2001

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    Dissertao defendida e aprovada, em 20 de dezembro de 2001, pela banca examinadora constituda pelos professores

    ____________________________ Ana Maria Casasanta Peixoto

    _____________________________ Sandra Loureiro de Freitas Reis

    __________________ Wolney Lobato

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    Dedicatria

    A meus pais, Amauri e Ansia, pelos exemplos de amor e dedicao.

    A meus filhos Izabela, Juliano e Cristiano, pela compreenso e alegria de viver.

    A meu esposo Marcus Vincius, pela generosidade e confiana depositadas.

    A meus irmos Angela, Amauri, Aramis e Amilcar, pela torcida calorosa.

    A todos que, como eu, amam e acreditam que o ensino da msica merece um lugar na escola, lugar da alegria compartilhada.

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    Agradecimentos Aos professores do mestrado, pelo carinho, amizade e empenho que trouxeram

    novos conhecimentos e a possibilidade para a realizao desse trabalho. professora Maria Inz Salgado de Souza, pelos momentos iniciais deste trabalho. Aos colegas do mestrado, pelos momentos de companheirismo partilhados. Tida Carvalho, pelo cuidadoso trabalho de reviso ortogrfica. Ao Hlcio, pela dedicao no trabalho da formatao desse trabalho. Rosana, pelo trabalho de transcrio das fitas. Soraia, pela colaborao na normalizao bibliogrfica. Maria Luza, pela sntese deste trabalho para o francs. Valria, secretria do mestrado, pelo carinho e pacincia sem limites. Regina Lcia, pela amizade e apoio que amenizaram os momentos difceis

    durante esse percurso. tia Lais, pela confiana e colaborao no incio desse trabalho. Neuza Loureiro, pela convivncia e amizade, que geraram fora e incentivo. Ao prof. Srgio Rafael do Carmo, Diretor da Superintendncia de Desenvolvimento

    de Recursos Humanos da SEE/MG, pela gentileza no envio, em sua totalidade, do Projeto Msica na Escola.

    Aos professores Sandra Loureiro de Freitas Reis e Wolney Lobato, pelo tempo dedicado leitura e apreciao desse trabalho.

    A todos os amigos, que de forma direta ou indireta, contriburam para a realizao desse sonho.

    Agradecimento Especial A professora Ana Maria Casasanta Peixoto, competente orientadora, pela pacincia

    e empenho dedicados durante o Curso de Mestrado em Educao, na Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais.

  • 6

    Dessa forma, o ensino da msica e tambm, em muitos casos, sua ausncia tem um papel exemplar, por revelar que, onde a escola desiste, abandona o terreno, as disparidades de desempenho so terrivelmente mais violentas; ento que se sente necessidade de justific-las com base num substrato natural. (...) Um ensino renovado da msica em toda a durao e em todos os tipos de escola tornar-se-ia, ao contrrio, exemplar, estabelecendo que todos so capazes de sentir uma emoo artstica e ter uma prtica artstica, mesmo se, como nas outras matrias, diferentes indivduos progridam por caminhos diferentes.

    Georges Snyders

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    S U M R I O RESUMO ...................................................................................................................................................

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    RSUM ...................................................................................................................................................

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    ABSTRACT................................................................................................................................................

    13

    1 INTRODUO....................................................................................................................................... 15

    1. Aportes terico-metodolgicos................................................................................................................ 27 2. Perfil da amostra...................................................................................................................................... 33 3. Forma de apresentao............................................................................................................................. 35 2 A EDUCAO MUSICAL NA ESCOLA FUNDAMENTAL: UMA INCURSO HISTRICA

    36

    3 O DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA EM EDUCAO MUSICAL NO BRASIL...............

    75

    3.1 Antecedentes da pesquisa em educao musical................................................................................... 75 3.2 O desenvolvimento da pesquisa em educao musical......................................................................... 81 3.3 A importncia da pesquisa em educao musical e a sua relao com as demais reas da msica...... 86 3.3.1 A educao musical e as sub-reas da msica.................................................................................... 86 3.3.2 Relao com outras reas do conhecimento....................................................................................... 95 3.3.3 A pesquisa em educao musical: perspectivas atuais...................................................................... 97

    4 A EDUCAO MUSICAL NO ENSINO FUNDAMENTAL BRASILEIRO: DA ABORDAGEM TERICA PERCEPO DE ATORES..............................................................

    108

    4.1 Valores e justificativas: o sentido e o significado da educao musical............................................... 108 4.1.1 Na abordagem terica......................................................................................................................... 108 4.1.2 Na percepo de atores....................................................................................................................... 126 4.1.3 Educadoras musicais........................................................................................................................... 127 4.1.4 Professoras/Diretora............................................................................................................................ 131 4.2 Outros aspectos que devem ser considerados na educao musical...................................................... 137 4.2.1 A msica no currculo do ensino fundamental................................................................................... 138 4.2.1.1 Na abordagem terica...................................................................................................................... 138 4.2.1.2 Na percepo de atores.................................................................................................................... 145 4.2.1.3 Educadoras musicais........................................................................................................................ 146 4.2.1.4 Professoras/Diretora......................................................................................................................... 152 4.2.2 A educao musical como prtica educativa no cotidiano escolar..................................................... 157 4.2.2.1 Na abordagem terica...................................................................................................................... 157 4.2.2.2 Na percepo de atores.................................................................................................................... 171 4.2.2.3 Educadoras musicais........................................................................................................................ 171 4.2.2.4 Professoras/Diretora......................................................................................................................... 178 4.3 O papel e a formao do educador musical........................................................................................... 183 4.3.1 Na abordagem terica......................................................................................................................... 184 4.3.2 Na percepo de atores....................................................................................................................... 194 4.3.3 Educadoras musicais........................................................................................................................... 194 4.3.4 Professoras/Diretora............................................................................................................................ 203 5 CONSIDERAES FINAIS.................................................................................................................

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    6 CONCLUSO.........................................................................................................................................

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    7 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS..................................................................................................

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    ANEXOS.....................................................................................................................................................

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    RESUMO

    O trabalho em foco pretende provocar e suscitar, em quem possa l-lo, a percepo indispensvel e necessria para o entendimento do processo e da dinmica do fenmeno musical dentro das instituies escolares de ensino fundamental. Dessa forma, este trabalho torna-se relevante para ns, uma vez que o nosso interesse pela educao como um todo e, em particular, pela educao musical, nos estimula a uma reflexo sobre o momento atual da prtica musical na escola de ensino fundamental de nosso pas.

    A abordagem do tema atravs da confluncia de dois caminhos: o da pesquisa bibliogrfica e o da pesquisa de campo - essa realizada junto a especialistas na rea e a professores de msica em escola fundamental da rede pblica - possibilitou-nos o entendimento de uma ao educativa musical praticamente inexistente dentro do contexto escolar. A reflexo terica, a partir do material escrito sobre Educao Musical, revelou-nos uma acentuada desarticulao entre o falar sobre msica e o fazer musical, o que acabaria por apontar, sob a tica de atores envolvidos no trabalho de campo, para o uso e funes inadequados da prtica musical, em desarmonia com a realidade do aluno e dissonante com o contexto sociocultural brasileiro.

    O trabalho est dividido em trs captulos. No primeiro, estudamos o caminho percorrido pela msica na educao escolar e na formao do indivduo ao longo da histria.

    No segundo captulo, partindo da questo da Educao Musical como rea de conhecimento, abordamos os antecedentes da pesquisa em Educao Musical no Brasil e como esta rea da Msica vem se desenvolvendo, principalmente a partir de 1980, data da criao do primeiro Curso de Mestrado em Msica no pas.

    O terceiro e ltimo captulo constitui um estudo dos principais elementos que compem a Educao Musical. Assim, refletimos sobre o ensino da msica principalmente como prtica educativa nas sries iniciais da escolaridade. Assim, suas funes e significados, a questo curricular e metodolgica e a formao do professor, fazem parte dessa anlise.

    Este trabalho, que no pretende propor qualquer metodologia para o ensino da msica, busca, unicamente, um melhor ensino e uma ampliao da apropriao do conhecimento musical para crianas e jovens que freqentam as escolas, em todos os nveis de escolaridade bsica, dentro do atual sistema educacional brasileiro.

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    Finalmente, a pesquisa, longe de ter carter definitivo e conclusivo, se prope apenas a defender a possibilidade de o ensino da msica constituir-se como um saber escolar necessrio e importante para a cidadania, enriquecendo as experincias individuais e coletivas, tornando-se essencial para a realizao plena do ser humano.

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    RSUM Ce travail a comme but de provoquer et de susciter chez le lecteur la perception

    indispensable et necessaire la comprehension du processus e de la dynamique du phnomne musical dans les instituitions scolaires de lenseignement fondamentale.

    Ainsi, il devient important pour nous, puisque notre intrt pour leducation en as totalit et en particulier pour leducation musicale nous stimule une rflexion sur le moment actuel de la pratique musicale lcole de lenseignement fondamental de notre pays.

    Labordage du thme faite travers la confluence de deux chemins: celui de la recherche bibliographique et celui de la recherche sur champ, realise auprs des specialistes dans ce domaine aussi des professeurs de musique dans lcole fondamentale du secteur public, nous a possibilit la comprehension dune pratique ducative musicale pratiquement inexistente dans le contexte scolaire.

    La rflexion thorique, partir du materiel crit sur lEducation Musicale nous a rlv une forte desarticulation entre le parler sur la musique et le faire du musical ce Qui viendrait signaler, sur loptique des auteurs engags dans le travail du champ pour lusage et fonctions inadapts de la pratique musical, en desaccord avec la realit de llve et dissonant avec le contexte socio-culturel brsilien.

    Le travail est defini en trois chapitres. Dans le premier, nous avons tudi le chemin parcouri par la musique dans lducation scolaire et dans la formation de lindividu tout au long de lhistoire.

    Dans le deuxime chapitre, partant de la question de lEducation Musicale como sujet de connaissance, nous avons abord les premiers chercheursen Education Musicale au Brzil et comment la recherche en musique sy dveloppe surtout partir de 1980, date du premier Cours de Matrise en Musique dans le pays.

    Le troisime et dernier chapitre est constitu dune tude des principaux lment qui composent lEducation Musicale. Ainsi, nous avons rflechi sur lenseignement de la musique, surtout dans la pratique ducative au dbut de la scolarit: ses fonctions et signifiants, la question du curriculum et de la mthodologie, la formation de lenseignant y font parti.

    Ce travail nenvisageant pas la proposition daucune mthodologie pour lenseignement de la musique, a comme seul but llargissement des connaissances en musique

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    aux enfants et adolescents de tous les niveaux scolaires considrs de base par le systme ducatif brsilien, travers un enseignement plus efficace.

    Enfin, sans avoir la pretention ni de dfinir, ni de conclure, cette recherche ne fait que proposer la dfense de la possibilit de lenseigment musical comme um savoir scolaire necessaire et de grande importance pour les citoyens qui auraient leurs experiences individuelles et collectives enrichies, ce qui en eux la pleine ralisation de ltre humain.

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    ABSTRACT This project in focus intends to stir up and provoke, in who may read it, the

    indispensable and necessary percepcion for the understanding of the process and the dynamic of the musical phenomenon inside the elementary educational institutions. This way, this work becomes relevant to us since our interest in education as a whole and in particular in musical education stimulates us to reflect about our current moment related to the musical usage in the elementary school in our country.

    The themes approach embodies the confluence of two ways: the bibliographical research one and the field research one, developed whit the assistance of specialists in the area na music teachers in the public elemetary school, made possible the understanding that the musical educational practice is almost non-existent within the school context. The theoretical reflection based on the written material about musical education revealed us na extreme disconnection between talking about music and the making of music which would end up, through the eyes of agents involved with the field work, pointing to the musical practives inappropriate use and function, in disharmony with students reality and dissonant with the Brazilian social-cultural context.

    This work is divided into three chapters. In the first one, we study the musics trajecotry in school education and in the formation of the individual along the history.

    In the second chapter, based on the matter of musical education as na area of knowledge, we broach the preceding results of the research in nusical education in Brazil and how this area has been developing, mainly from 1980 on, date of the creation of the first master course in musical area in the country.

    The third and last chapters constitute a study of the main elements that compound the musical education. We reflect about the teaching music mainly as na educational practive in the first grades in school. Its purpose and meanings, the school curriculum matter, the methodology and teachers formation take part in this analysis.

    This project doesnt untend to propose any methodology for the music teaching but wants exclusively a better teaching and to enlarge the acquisition of musical knowledge by children and young learners who attend schools, in all levels of basic education in the present Brazilian educational system.

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    Finally, this research distant from having a definite and conclusive character, only proposes to defend the possibility of constituting teaching music as a necessary school knowledge which is important for the citizenship, enriching the individual and collective experiences and becoming essential to the human beings absolute fulfilment.

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    1 INTRODUO

    O meu interesse pela Educao Musical surgiu desde a poca em que, no antigo Conservatrio de Msica, hoje Escola de Msica da Universidade Federal de Minas Gerais, eu era aluna de graduao do Curso de Msica-Piano. Antes mesmo de concluir o curso, j me iniciava no magistrio, lecionando as primeiras aulas particulares de piano, as quais se estenderam por muitos anos. Paralelo ao curso de Piano, cursei Psicologia em uma instituio particular em Belo Horizonte para, em seguida, concluir os cursos de Licenciatura em Msica e Especializao em Educao Musical, ambos na Escola de Msica da Universidade Federal de Minas Gerais, e o curso de Especializao em Psicologia Escolar na Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais.

    Na minha trajetria lecionei no ensino infantil, fundamental, mdio e superior. Esse percurso foi ainda enriquecido por outras experincias bem significativas. Em 1993, tive a oportunidade de lecionar msica para as crianas internas da FEBEM (Fundao Estadual do Bem-Estar do Menor), de Belo Horizonte.

    Com crianas na faixa de 7 a 14 anos, no incio, resistentes e desconfiadas, foi desenvolvido um trabalho de vivncia musical atravs do canto coral. A maioria dessas crianas e adolescentes freqentava a escola regular durante o dia (alguns pela manh e outros tarde) e, noite, eram recolhidos em seus alojamentos ( havia o alojamento feminino e o alojamento masculino, porm dentro de um mesmo prdio).

    Nossos encontros ocorriam duas vezes por semana, com durao, aproximadamente, de uma hora cada um. Trabalhava em parceria com o maestro Andersen Viana (idealizador do projeto) e, mais tarde, com o maestro Cludio Simes, que eram responsveis pela regncia do coro, enquanto o acompanhamento musical ficava sob minha responsabilidade, utilizando-se de um teclado que, por si s, j era fonte de estmulo e motivao para aquelas crianas.

    Alm do trabalho musical, algumas interferncias eram necessrias e pertinentes no que dizia respeito educao destas crianas, no sentido amplo da palavra. Freqentemente pedamos que nos entregassem pedras, pedaos de pau, estiletes feitos com cabos de garfo ou colher, do mesmo modo que eram solicitados, por exemplo, a abotoarem a camisa ou tirar os ps de cima das mesas. Nos primeiros contatos, mostravam-se agressivos e hiperativos,

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    aparentemente difcil de serem controlados; entretanto, com o tempo, pudemos perceber que estvamos diante de crianas e adolescentes extremamente carentes e que, sob uma agressividade aparente, se escondia um ser humano aberto a uma boa conversa e a alguns minutos de ateno.

    Com o tempo, fomos ganhando confiana e credibilidade e, dessa forma, o trabalho foi se desenvolvendo e mostrando resultados. Usvamos, preferencialmente, msicas do repertrio folclrico, pois nele encontrvamos canes curtas, de fcil apreenso, alm da riqueza rtmica e meldica, importantes para a construo do conhecimento musical e a valorizao da nossa cultura.

    Em pouco tempo tnhamos um grupo que freqentava assiduamente os nossos encontros, embora no houvesse a obrigatoriedade de freqentar as aulas. Alm disso, a cada encontro, deparvamos com crianas recm-chegadas ou, sentamos a ausncia de outros, ou porque fugiram ou porque haviam retornado s suas casas.

    O certo que, apesar das dificuldades, o trabalho prosseguia e os resultados comearam a surgir. Com a utilizao da msica, a princpio, como estratgia de aproximao, o receio e a tenso foram sendo substitudos pela amizade e confiana recprocas.

    Com o apoio da diretoria pedaggica na ocasio, foi possvel providenciar uniformes e sapatos para todas as crianas, sem dvida um outro fator de satisfao para os participantes do Coro Pedaggico da FEBEM. Algumas apresentaes foram realizadas, dentro e fora da Instituio, inclusive junto Orquestra Jovem do Palcio das Artes, na capital mineira.

    Se, no incio do trabalho, encontramos apreenso e desconfiana, naquele momento j havia uma maior aproximao entre as crianas e os educadores. O mais importante foi a crena no trabalho e na possibilidade de reintegrao social e na valorizao do indivduo, resgatando a cidadania e recuperando a auto-estima. Era preciso superar as dificuldades, pois muitas daquelas crianas carregavam consigo uma histria de vida marcada pela violncia, desrespeito e abandono familiar e social.

    Durante um ano e meio, um processo de musicalizao foi desenvolvido com o objetivo principal de proporcionar a interao e a comunicao das crianas com a msica, buscando estimular a percepo, expresso e aquisio dos significados dos cdigos musicais e sociais. Este trabalho s foi interrompido porque, na poca, o Estado alegou falta de verbas para a sua continuidade.

  • 17

    Mais adiante, em 1996, fui convidada para lecionar msica numa escola, tambm em Belo Horizonte, cuja clientela atendida era formada por alunos portadores de necessidades especiais. Por mais de trs anos trabalhei nessa escola, com alunos desde a primeira srie do ensino fundamental at a segunda srie do ensino mdio.

    Dentro do processo didtico-pedaggico que buscamos desenvolver, a nfase estava no estabelecimento de uma ponte que permitisse a comunicao entre o aluno e a msica. Fazer do trabalho de Educao Musical uma fonte de enriquecimento pessoal e de prazer, despertando no aluno suas potencialidades e ajudando-o a desenvolver o sensorial e o afetivo, o fisiolgico e o espiritual foi o nosso objetivo.

    Durante o processo de construo do conhecimento musical, partimos do pressuposto de que melhor aprender, construir ou adquirir novos conhecimentos se for atravs do prazer, da estimulao e da vivncia. Com uma clientela bastante diversificada, tanto no aspecto clnico, quanto no sociocultural, o ponto de partida foi conhecer a realidade de cada aluno. Diferenas e dificuldades foram respeitadas, entretanto, estava assegurada a igualdade no acesso linguagem musical e oportunidade de receberem uma educao musical comprometida com a realidade e individualidade de cada um.

    Podemos afirmar que, de um modo geral, sempre estiveram motivadas durante o trabalho desenvolvido. Se antes encontramos indiferena, estranheza em relao s aulas de msica e proposta de trabalho apresentada, ao final do perodo, a maioria destes alunos mostrava-se motivada e interessada, superando nossas expectativas.

    Foi possvel, ento, criar e estabelecer laos fortes com a msica, o que gerou, dentre tantas realizaes pessoais e coletivas, a formao de um grupo fixo para atividade do canto coral, que contou com o apoio de familiares bem como da direo da escola. Vrias apresentaes foram realizadas, dentro e fora do contexto escolar, dentre elas, duas apresentaes junto com a Orquestra Jovem do Palcio das Artes, casa de espetculos na capital mineira.

    Entretanto, o meu interesse pela educao musical aumentou quando, ainda aluna do curso de Licenciatura em Msica, pude perceber que era bastante reduzido o nmero de alunos matriculados neste curso e, conseqentemente, seriam poucos os professores em condies de atuar no sistema regular de ensino. O estranhamento sentido naquele momento se

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    agravou quando, em 1994, fui lecionar Prtica de Ensino de Msica na Faculdade de Educao da Universidade Federal de Minas Gerais.

    Embora tivesse lecionado em escolas de diferentes nveis, a realidade mostrava a dificuldade de encontrar escolas do ensino fundamental e/ou mdio, quer pblicas ou privadas, onde a disciplina Msica estivesse inserida em seus currculos escolares, fato que dificultava a realizao do estgio obrigatrio para a concluso do Curso de Licenciatura.

    A situao com a qual nos deparamos mostrava que, embora a Msica fizesse parte minimamente do currculo, integrando, juntamente com as Artes Plsticas e o Teatro, a disciplina Educao Artstica, criada pela Reforma de Ensino, atravs da Lei n 5692/71, ela no se encontrava na proposta curricular da maioria das escolas.

    Foram as evidncias da desvalorizao da Msica no interior das escolas, mais os longos anos de experincia docente como professora de msica que me levaram a procurar o curso de mestrado e a desenvolver um estudo sobre o ensino da msica, mais especificamente, sobre suas possibilidades e perspectivas como disciplina atuante dentro dos atuais currculos escolares no Brasil.

    prtica comum nas escolas, principalmente nas sries iniciais, ouvir msica na entrada e sada do perodo escolar, no recreio, e ainda, de forma bastante acentuada, nos momentos de festividades que obedecem um calendrio com datas a serem comemoradas pela comunidade escolar.

    A busca de novas estratgias e metodologias que pudessem otimizar a prtica da msica em sala de aula foi uma constante durante o meu percurso como educadora. A sua presena durante o processo de ensino-aprendizagem nos levou procura de respostas ou explicaes que pudessem atenuar as situaes confrontadas.

    Neste sentido, podemos afirmar que a msica est presente no cotidiano escolar de nossas crianas e jovens. Ela est presente em todo e qualquer lugar, pois vem ocupando cada vez mais espaos no cenrio social da vida contempornea. Porm, embora a msica esteja presente no cotidiano da escola, questes precisam ser esclarecidas para entendermos o porqu da ausncia do ensino sistemtico da msica e o lugar que vem ocupando no cenrio educacional brasileiro.

  • 19

    Com o avano da tecnologia e com a rapidez da informao possvel conviver com diferentes formas de expresses artsticas, seja atravs da mdia ou pela participao ao vivo, em eventos culturais que ocupam os espaos, continuamente, em nossas cidades.

    Importa frisar que os fatos e as informaes no param de acontecer, porm vem tirando de nossas crianas e jovens o tempo necessrio para a sua assimilao ou rejeio por via da crtica ou da reflexo. Da mesma maneira que as informaes so aceitas e assimiladas, estas so rejeitadas ou passam despercebidas, pois esto merc do momento, das circunstncias e de modismos.

    Levando-se em conta essa nova maneira de apreender e assimilar a realidade, uma reflexo sobre a atual prtica pedaggica musical pode ajudar a esclarecer o valor da Educao Musical dentro do contexto institucional. Pode, ainda, destacar a importncia de estabelecermos uma relao pedaggica com crianas e jovens que propicie a sua aproximao e o gosto pelo fazer musical. Precisamos considerar as experincias, necessidades e linguagens de cada um. Por outro lado, devemos estar abertos s novidades, sem contudo desprezar o que precisa ser preservado.

    Alunos desinteressados, com pouca concentrao e baixo comprometimento, apresentando superficialidade em suas relaes com o ensino-aprendizagem precisam ser incitados a experimentar formas de apreenso da linguagem musical, mesclando estilos e procedimentos, proporcionando maior abertura para o dilogo e o fazer musical, aliando experincias e vivncias com as possibilidades do encontro com o novo.

    Ao lado disto, minha prpria experincia, trabalhando com a msica em projetos especiais destinados a crianas de risco e a crianas portadoras de necessidades especiais, mostraram o potencial da msica no processo de integrao social e de construo da identidade.

    Programas como estes em que participei, vm ganhando corpo na sociedade. A reportagem publicada no Jornal Folha de S. Paulo, Caderno Cotidiano, do dia 11 de setembro de 2000, de responsabilidade de Fernanda Krakovics, sob o ttulo Msica ajuda na alfabetizao de crianas diz, em seu primeiro pargrafo, que

    a msica cada vez mais usada para alfabetizar, resgatar a cultura e ajudar na construo do conhecimento de crianas carentes. Projetos que envolvem a msica na integrao social se espalham por todo o pas e so exemplos de sucesso.

  • 20

    Segundo a Assessora de Comunicao do Unicef (Fundo das Naes Unidas para a

    Infncia), em Braslia, Florrance Bauer, a msica atrai a criana, serve de motivao, deixa-a mais atenta e um instrumento de cidadania, contribuindo para a elevao de sua auto-estima. A isso se deve o grande nmero de projetos de educao atravs da msica no Brasil e seu sucesso.

    Ainda na mesma reportagem, a diretora de cultura da Did Escola de Msica, em

    Salvador, Vivian Queiroz, diz que a rotina das oficinas de percusso, teclado, bateria, canto e instrumentos de corda desenvolve nas crianas e adolescentes, sem que eles percebam, valores como disciplina e integrao. Segundo Vivian, a msica est presente, desde muito cedo, no cotidiano das crianas e, por isso, elas (as crianas) tm uma sensibilidade musical impressionante, em grande parte porque acordam e dormem ouvindo msica.

    Outra iniciativa de educao atravs da msica acontece na escola Centro Educacional Daru Malungo, na cidade de Recife. L, alm das aulas de percusso e de outras oficinas culturais, so oferecidas aulas de alfabetizao onde o mtodo de ensino, porm, baseado na msica.

    Segundo a diretora Vilma Carijs, aqui o a de atabaque, e no de avio, o b de berimbau e o c, de caxixi. Tambm utilizamos como texto letras de msica. Acredita que, desta forma, facilita a aprendizagem dos alunos por fazer parte da vida deles.

    H um outro projeto, intitulado Msica na Escola, parceria da Secretaria Municipal do Rio de Janeiro com o Conservatrio de Msica Brasileira, que tambm trabalha a msica em classes de alfabetizao. Esse projeto envolve os professores da rede municipal de ensino que, depois de freqentarem oficinas de capacitao em que tm aulas de voz, construo de instrumentos e cultura popular, aplicam o que aprenderam em salas de aula.

    Segundo o educador musical Srgio Henrique Alves de Andrade, a msica no est na escola como uma atividade recreativa, mas sim na construo do conhecimento. Ele v como primordial no projeto, o resgate cultural, e ressalta que

    as crianas geralmente no tm acesso msica popular, diversidade de ritmos. Quando levamos isso para a sala de aula, elas se interessam.

  • 21

    Alm destas trs iniciativas que acreditam e vm na msica a possibilidade de reintegrao social e construo do conhecimento, a reportagem enumera outros nove projetos espalhados por vrios pontos do pas. Entretanto, vale ressaltar, so projetos isolados e que visam, principalmente, crianas carentes e/ou de risco. Isso no significa que projetos como esses no possam servir de exemplo e de parmetro para uma poltica educacional mais comprometida com a educao infantil e o ensino fundamental e que pudessem ser disseminados para todas as escolas do ensino fundamental e mdio de todo o pas.

    Outro projeto que se utiliza da msica como complementao da atividade pedaggica desenvolvido na Escola Estadual Sandoval de Brito, que funciona dentro da rea da Fundao Helena Antipoff, na cidade de Ibirit, em Minas Gerais.

    Iniciado em abril de 2000, com vinte alunos com dificuldades de aprendizagem e de comportamento, o trabalho de educao musical no foi menos difcil do que outros mas, segundo Sara Maciel de Assis, uma estudante de Msica da UFMG, j pode contabilizar uma srie de avanos.

    Em reportagem ao Escola Sagarana, n 4, p.10, de outubro de 2000, Informativo da Secretaria de Estado da Educao de Minas Gerais, Sara conta que j tem um grupo de percusso com doze meninos e um coral j em formao, ganhou o respeito de todos eles, lidera o grupo e observa avanos de cada um no aprendizado, pois as notas vermelhas j desapareceram.

    Sara conta tambm que sua estratgia inicial de aproximao foi utilizar as msicas que faziam parte do repertrio cotidiano das crianas. Hoje, segundo ela, as crianas j esto abertas para ouvir msica chinesa e conhecer um pouco da cultura de outros povos, alm de executarem msicas populares, folclricas e at clssicas.

    Com histrias de vida ligadas violncia e abandono, Sara optou pelo trabalho do Olodum, pois imaginou que o ritmo e as batidas fortes poderia ser uma alternativa para canalizar a agressividade, direcionando-a para a criao e a arte. Agora, diz Sara,

    os meninos dirigem sua agressividade contra o bumbo, esgotam a energia negativa fazendo som, ocupam a cabea, aprendem a ouvir, atuam em conjunto, cooperam entre si.

  • 22

    Considera-se e reconhece-se que h uma enorme carncia de atividades musicais adequadas s crianas nas escolas da rede pblica do Estado de Minas Gerais e que tal situao se deve pouca ateno dispensada educao musical nos cursos de formao de professores para o ensino fundamental e ainda que, como conseqncia, a msica no faz parte dos currculos escolares de maneira efetiva e, quando ocorre, restringe-se apenas reproduo mecnica de msicas veiculadas pela mdia ou msicas ditas pedaggicas, que reproduzem melodias com letras adaptadas a situaes de momento e gestos estereotipados.

    A partir deste reconhecimento e com esta viso da situao atual do ensino de msica nas escolas, em janeiro de 1997, a Secretaria de Estado da Educao de Minas Gerais mostrou-se empenhada em implantar, gradativamente, o ensino da msica nas escolas pblicas da rede estadual.

    Sob o ttulo Projeto Msica na Escola tal proposta coloca que a razo que justifica o ensino de msica nas escolas oferecer a todas as crianas, qualquer que seja sua aptido, a oportunidade de lidar com a msica e seus elementos, prprios de todo ser humano: audio, expresso rtmica e meldica, sensorialidade, emotividade, inteligncia ordenadora e criatividade.

    E, ainda na sua justificativa, vem afirmar que a musicalizao visa,

    atravs da vivncia e compreenso da linguagem musical, sua organicidade e articulaes, abrir canais sensoriais, facilitando a expresso de emoes e consolidando a formao da personalidade.

    Elaborado por um grupo de professores-msicos, esta proposta apoiou-se em aspectos fundamentais de propostas pedaggicas j consagradas de educadores como Kodaly, Dalcroze, Willems e Orff, alm de outras, mais recentes, como as de Schafer, Gainza, Paytner e Swanwick que, como as demais, so de autoria de educadores estrangeiros. Contou ainda com a experincia profissional dos membros da equipe.

    Diante do desafio de levar o ensino da msica a todas as crianas, e mediante o grande nmero de escolas da rede pblica estadual, o projeto previu a implantao de um Piloto que atenderia, a princpio, um grupo de escolas de Belo Horizonte.

    O processo de seleo considerou as caractersticas scioculturais diferenciadas, a partir de pesquisa conjunta realizada pela PLAMBEL e Fundao Joo Pinheiro. Foram

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    contempladas vinte escolas, de diferentes regies de Belo Horizonte, envolvendo no s as mais tradicionais, como tambm aquelas de recente formao, possibilitando, dessa forma, a evidncia das particularidades e diversidades sociais e culturais

    A prioridade do Projeto Msica na Escola foi musicalizar professores de 1 ciclo do ensino fundamental

    por acreditar que a vivncia da msica e a apreenso da linguagem musical so fundamentais no momento da alfabetizao, favorecendo o contato com a dimenso abstrata, com as formas simblicas de codificao/ decodificao e a estruturao de conhecimentos.

    Este trabalho junto s professoras regentes nas quatro primeiras sries do ensino

    fundamental buscou oferecer-lhes uma formao bsica e capacitao para que pudessem atuar como agentes musicalizadores em suas prprias classes.

    Este Curso de Musicalizao, composto de trs nveis apoiou-se, estrategicamente, num plano didtico e num conjunto de materiais-suporte especialmente construdo para esse fim.

    Os dois primeiros nveis tiveram durao total de dois semestres, ministrados em 1997 e 98, com carga horria de 60 h/a e 40 h/a, respectivamente; o terceiro, com durao de 1 ano, transcorreu num total de120 h/a.

    O primeiro nvel teve como alvo a Formao Musical dos professores, atravs da estimulao do processo de vivncia de cada um, com nfase na memria, na potencialidade expressiva e no processo de conhecimento musical.

    O nvel 2, de Orientao Didtica e Superviso, teve como objetivo propor planejamentos didticos a serem trabalhados nas aulas do projeto e aplicados, em seguida, pelas professoras em suas salas junto aos alunos. Nesse nvel intermedirio, as professoras alfabetizadoras ministram aulas em suas respectivas escolas, sob superviso dos professores e monitores de msica e buscam a transferncia e apropriao progressiva de responsabilidade didtica.

    Completando o Curso de Musicalizao, o nvel 3 objetivou um maior aprofundamento e capacitao dos professores alfabetizadores, atravs da integrao da vivncia musical com a prtica didtica.

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    Esta fase foi direcionada apenas para professores regentes selecionados nos nveis anteriores.

    Estes professores obtiveram um contrato especial para um segundo turno de trabalho, que lhes possibilita atender cada um mais 14 turmas de alunos, distribudas em escolas estaduais de Belo Horizonte. Isto viabiliza o oferecimento de uma aula semanal de atividades musicais (de 50 minutos de durao) para 1.008 turmas, atendendo aproximadamente 30.000 alunos (Kater et al., 1998, p.117).

    O Projeto Msica na Escola, buscando dar suporte ao processo de formao e

    capacitao musical, possibilitou, ainda, formao musical especfica a 40 supervisores que trabalham com turmas do Programa de Acelerao da Aprendizagem, a realizao de Atividades de Aperfeioamento (cursos, seminrios, oficinas), alm de elaborar e confeccionar um conjunto de materiais didticos de apoio para os professores alfabetizadores.

    Com a finalidade de ver multiplicadas as aes do projeto a nvel estadual, com a implantao gradativa do ensino de msica nas escolas pblicas estaduais, o projeto Msica na Escola incluiu em sua proposta de trabalho, os 12 Conservatrios Estaduais de Msica, vinculados Secretaria de Estado da Educao, como instncias multiplicadoras.

    Coube a cada um dos Conservatrios, por intermdio de uma equipe de professores, a exemplo do ocorrido na regio metropolitana de Belo Horizonte, treinar professores alfabetizadores da rede pblica, da prpria regio.

    Em parceria com a Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais, realizaram 40 oficinas de Cultura/Educao Musical, 3 Seminrios de Educao Musical com a finalidade de

    estimular a reflexo sobre os tpicos fundamentais da educao e aprimorar e intensificar as questes relativas educao musical e proporcionar atualizao de formao e trocas de experincia entre todos os participantes de Belo Horizonte e dos 12 Conservatrios.

    Para o Secretrio da Educao de Minas Gerais, Murlio Hingel, preciso que

    haja uma aproximao entre os Conservatrios e as escolas pblicas. Eles tm que ser agncias de desenvolvimento no campo da msica, tm que se abrir comunidade (Escola Sagarana, n 4, p.10, Outubro de 2000). com esse objetivo que a Secretaria da Educao vem

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    realizando encontros e reunies tcnicas entre os conservatrios estaduais de msica instalados em Minas Gerais.

    Segundo pesquisa coordenada pelo diretor da Superintendncia de Desenvolvimento de Recursos Humanos da Secretaria de Estado da Educao de Minas Gerais, Srgio Rafael do Carmo, o estado de Minas Gerais tm 12 Conservatrios, com 25.761 alunos e 864 professores.

    H Conservatrios com sede prpria, outros alugados, alguns muito bem instalados, outros menos, mas todos tm condies para realizar um trabalho exemplar, afirma o Secretrio Murlio Hingel.

    J atendendo ao objetivo da SEE de MG, o Conservatrio Lorenzo Fernandez, da cidade de Montes Claros, que hoje atende 3.800 alunos diretamente, pretende chegar a 21.000 alunos indiretamente. Segundo a diretora Rachel Tupynamb, o dia-a-dia de busca de alternativas metodolgicas para se trabalhar com o mximo de pessoas possvel. No momento, 17 escolas da cidade participam de projetos que levam os profissionais do Conservatrio s escolas, as escolas ao Conservatrio e o Conservatrio s ruas da cidade.

    Um projeto como este afirma a importncia do ensino de msica no mbito da escola regular e, de igual modo, vem apontar que na prtica h uma carncia de propostas e de realizaes no s na rede pblica de ensino, como em todas as instituies de ensino de escolaridade bsica.

    A princpio parece-nos que todo procedimento para a implantao de projetos como este est condicionado a um momento poltico especfico o que, na maioria das vezes, no consegue se manter por mais de uma administrao pblica, o que vem gerar descontinuidade, a desvalorizao da disciplina e, consequentemente, o vazio musical dentro do contexto escolar.

    A importncia da msica na formao da cidadania se torna mais importante neste momento em que a

    a globalizao, em sua tendncia a tudo igualar, vem rompendo as tradies e derrubando fronteiras. No sendo possvel escapar sua lgica, inserida nas redes da informtica, que arquitetam nossas vidas, no havendo outro remdio seno navegar nas guas globais, indispensvel contar com uma bssola e uma ncora. A bssola: a informao, o conhecimento tanto a nvel individual, como coletivo, a educao. A ncora saber quem somos para no nos perdermos (Peixoto, 1998, p.6).

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    A msica, enquanto experincia cultural vivenciada por nossas crianas, possui um enorme potencial neste sentido.

    Dentro deste quadro, levando-se em considerao os Parmetros Curriculares Nacionais e o novo perfil de cidado que hoje se espera, o momento de redefinio do ensino de msica.

    Segundo os PCN (...) As oportunidades de aprendizagem de arte, dentro e fora da escola, mobilizam a expresso e a comunicao pessoal e ampliam a formao do estudante como cidado, principalmente por intensificar as relaes dos indivduos tanto com seu mundo interior como com o exterior. (PCN, Arte, Introduo, 1998, p.19).

    Desta forma, uma anlise fundamental para se redimensionar o papel da msica na escola e buscar as condies necessrias para que possa vir a ter um papel e um valor significativo no processo de educao escolar.

    Uma das questes que envolve este trabalho saber, com clareza, o que consideramos como educao musical e qual o seu papel na educao formal dos indivduos.

    Desde que o ensino de msica deixou de ser obrigatrio nas escolas (com o fim do Canto Orfenico e, mais tarde, a sua incluso na Educao Artstica) esta rea de conhecimento vem sendo desprestigiada, ou mais do que isto, excluda do currculo escolar.

    Atualmente, sabemos que poucas escolas incluem em seu currculo a disciplina Msica. Quando h, o que encontramos o uso excessivo da prtica do cantar. Canta-se demais, de modo inconsciente e mecnico e, o que ainda pior, sem levar em considerao a realidade do aluno, levando-o, cada vez mais, a distanciar-se do prazer do fazer musical.

    Portanto, para que tal situao possa ser invertida acreditamos ser necessrio, a priori, trabalhar o contedo musical dentro de uma viso de currculo mais humanista, onde possamos envolver e desenvolver musicalmente o aluno, considerando sua vivncia e experincia, valorizando suas habilidades e potencial criativo e integrando, sempre que possvel, o contedo musical aos demais contedos desenvolvidos por outras reas artsticas e s demais disciplinas do currculo.

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    Por essas razes, buscamos, ao longo do curso de mestrado, elementos que nos ajudassem a compreender as razes da desvalorizao da msica em nossas escolas, o por qu de sua ausncia enquanto disciplina e a desenvolver o presente estudo sobre a Educao Musical na escola fundamental, suas possibilidades e perspectivas enquanto disciplina.

    Para que o ensino de msica chegue a ser um veculo de conhecimento e contribua para uma viso intercultural e alternativa frente homogeneizao da atual cultura global e tecnolgica, necessrio partir de uma idia clara, concreta, que viabilize aes conectadas vida real. A intencionalidade dirigida e coerente com o universo dos alunos pode levar integrao de capacidades, modos pessoais de pensar, sentir e agir na busca do conhecimento global, novas experincias e vivncias. 1. 1 Aportes terico-metodolgicos

    Buscar o sentido e o significado da educao musical no ensino fundamental levou-me a abordar o objeto atravs da confluncia terica, tomando como base, principalmente, a produo dos pesquisadores envolvidos com a Associao Brasileira de Educao Musical (ABEM) e a Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Msica (ANPPOM), com o trabalho de campo, onde quatro professoras e uma diretora de uma escola da rede estadual de ensino do Estado de Minas Gerais foram entrevistadas sobre o ensino de msica na escola fundamental, sua concepo e percepo, a partir de seu envolvimento no Projeto Msica na Escola, da Secretaria de Educao do Estado de Minas Gerais, no perodo de 1997-1998. Decidimos tambm ouvir duas professoras de msica, especialistas em Educao Musical, por julgarmos importantes suas experincias e prticas docentes para a anlise em questo.

    Para ns, so duas realidades significativas, o discurso e a prtica, uma vez que percebemos uma dissonncia entre o ensino da Arte (Msica), que est institudo e garantido legalmente, com o fazer e ensinar msica, enquanto disciplina, dentro do contexto escolar mais restrito, ou seja, dentro das salas de aula.

    O quadro bastante desolador do ensino da msica na escola fundamental, com pouqussimos professores de msica atuando de forma efetiva e educativa, e com milhares de alunos distantes do contato prazeroso e relevante do fazer musical, levou-nos a refletir sobre esta prtica e sua complexidade dentro do cotidiano escolar.

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    O nosso testemunho enquanto educadores musicais, interessados e motivados a entender a atual situao institucional do ensino de msica quase ausente e desvalorizada no nosso entender nos levou a formular os seguintes objetivos norteadores do nosso estudo:

    1. o sentido e o significado da educao musical; 2. os aspectos a serem considerados na educao musical enquanto disciplina nas

    escolas de ensino fundamental; 3. A formao e a prtica pedaggica do professor de educao musical.

    A partir destes objetivos, surgiram questes fundamentais, como:

    1. Qual o sentido e o significado da educao musical? 2. Que aspectos devem ser considerados na educao musical? 3. Qual o lugar que a educao musical ocupa no atual currculo do ensino

    fundamental? 4. Quem o educador musical? Qual o estado atual da sua formao

    pedaggica? 5. Quais as possibilidades e limites para a educao musical enquanto disciplina nas

    escolas de ensino fundamental?

    O ensino da msica como disciplina inserida no currculo da escola fundamental apresenta-se hoje como uma rea de conhecimento onde a diversidade de funes e a variedade de abordagens impede a construo de uma prtica educativa democrtica, abrangente e formativa.

    Diante da realidade brasileira, a educao musical a nvel de ensino fundamental no apresenta uma caracterstica prpria, um direcionamento que lhe d a identidade de saber escolar, com possibilidades de acesso irrestrito prtica musical, onde se articulam experincias adquiridas tanto fora quanto dentro do sistema escolar de ensino. A educao musical requer novas propostas, novas possibilidades de interveno educativa, pois nessa fase da escolaridade que se d a formao e o desenvolvimento de habilidades importantes para o desempenho futuro do indivduo.

    Essa situao de marginalidade levou-me a explorar, dentro da perspectiva educativa, o ensino da msica como um campo de conhecimento onde as relaes entre

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    ideologia, valores e prticas sociais incorporam uma concepo de arte que refletida dentro de uma instituio como a escola.

    Inicialmente, buscamos o apoio da literatura diversificada para entendermos as razes histricas do ensino musical, enfatizando nossa anlise nos momentos e acontecimentos mais importantes, como o movimento do Canto Orfenico, ocorrido nos anos 30, a reforma de ensino que transformou e diluiu, na dcada de 70, o ensino de msica na disciplina Educao Artstica e, por fim, uma anlise do atual momento da prtica musical na escola fundamental.

    Neste primeiro momento, ainda na pesquisa bibliogrfica, foi providencial a leitura especfica sobre a educao musical brasileira, entendida aqui como rea de conhecimento, com a inteno de discutir como as investigaes tericas tm dado e podem dar subsdios para a educao musical na contemporaneidade. Estabelecemos o dilogo com pesquisadores da rea da msica, o que nos possibilitou relacionar os acontecimentos relevantes no contexto social mais amplo com a atual realidade do ensino da msica, principal foco deste estudo.

    Numa segunda etapa, verificamos como se d a prtica musical cotidiana nas escolas, apontando elementos importantes que podem viabilizar, atravs de uma reflexo mais profunda, um dilogo mais caloroso entre os enunciados terico-metodolgicos e uma real e significativa ao pedaggica musical na atualidade.

    Para a realizao deste estudo foram consultados um total de 200 artigos publicados no perodo de 1988 a 2001, em peridicos selecionados com base nos critrios de expressividade e especificidade, levando-se em considerao a relevncia da instituio divulgadora e sua circulao nacional. Foram tambm consultados livros de pesquisadores brasileiros, no apenas da rea da Educao Musical, mas tambm de pesquisadores que tratam da educao no sentido mais amplo, considerando a sua significao para o estudo em questo, dentro da realidade educacional do pas.

    Os temas mais enfatizados nos artigos foram: a Universidade e a pesquisa em Educao Musical, o ensino de Msica no Brasil, a Educao Musical como disciplina na escola de ensino fundamental, o papel e a formao do professor de Msica, teoria e prtica em Educao Musical, currculo para o ensino da msica na escola fundamental, cultura e interdisciplinaridade, processos cognitivo-musicais. Percebe-se que os estudos esto voltados para uma rea bastante abrangente, o que vem demonstrar que h, atualmente, de maneira geral,

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    um interesse com aspectos amplos e variados da Educao Musical, revelando a preocupao entre pesquisa e transformao social, o conhecimento cientfico e o saber escolar.

    Em linhas gerais, a consulta do material produzido sobre a Educao Musical enfatiza a necessidade de articulao entre teoria e prtica. Ademais, focaliza e revela em seu contedo as dimenses acadmicas, culturais e sociais para referenciar a ausncia de polticas pblicas educacionais e que, conseqentemente, vem gerando o silncio musical que impregna a escola bsica.

    A anlise da situao do ensino de msica na escola fundamental foi feita a partir de pesquisa realizada numa escola da rede pblica estadual de Belo Horizonte. Situa-se em um bairro da periferia, cuja clientela atendida de baixa renda. Essa escola, fundada em 1968, conta atualmente com duzentos e oitenta alunos, da 1 a 4 sries do Ensino Fundamental, distribudos em onze salas. Funciona em dois turnos, manh e tarde. O corpo docente formado por quinze professoras, sendo que onze so regentes de classe, trs so agentes funcionais (esto fora da sala de aula e sua funo de auxiliar os professores regentes como, por exemplo, na confeco de material didtico, nas atividades festivas, etc.) e uma eventual (entra na sala de aula para substituir outra professora).

    Sua escolha se deu em decorrncia de trs fatores: o primeiro, por atender proposta inicial desse trabalho, ou seja, a de entender, no momento atual, o ensino da msica na escola de nvel fundamental e, para tal, precisaramos de uma escola onde o ensino da msica estivesse presente, embora com menor intensidade que na poca de sua participao no projeto. O segundo fator, que nos pareceu relevante, deve-se incluso dessa escola no projeto Msica na Escola, uma tentativa do governo do Estado de Minas Gerais de retornar com o ensino da msica nas escolas pblicas estaduais. De um total de dezesseis escolas da regio metropolitana de Belo Horizonte, sorteadas para participar da primeira etapa do projeto Msica na Escola, denominada de Projeto Piloto, no perodo de 1997-98, a escola em questo foi a nica, na poca da pesquisa de campo, que ainda reunia em seu corpo docente a maioria dos professores que participou desse projeto. Segundo a diretora, por ocasio da participao da escola no projeto, todas as professoras, sem exceo, foram incentivadas e liberadas para participarem do projeto. Na poca, a escola contava com dezoito professores, e a participao foi total, inclusive com a presena da diretora. Um terceiro fator levou em conta a possibilidade de relacionarmos uma concepo de educao musical apresentada em uma proposta criada por um grupo de

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    educadores artstico-musicais, com uma base terica bem fundamentada, com a viabilidade dessa prtica atravs da capacitao de professores regentes para um trabalho de musicalizao nas quatro primeiras sries do ensino fundamental.

    Vale ressaltar que do total de dezoito professoras regentes em exerccio na escola, todas participaram da projeto Msica na Escola, sendo que seis ainda permanecem na escola, inclusive a diretora que, atualmente, cumpre seu segundo mandato (2000/2003). Esse foi um fator determinante na escolha.

    De acordo com a proposta apresentada Secretaria de Estado da Educao de Minas Gerais, o projeto tem como meta

    a implantao de um processo contnuo de interao entre a alfabetizao e a educao musical, nos quatro primeiros anos do ensino fundamental. Esse processo ter sua culminncia no quinto ano escolar, quando os estudantes podero se aprofundar em seus conhecimentos e prticas musicais (Projeto Msica na Escola Proposta de prestao de servios, Belo Horizonte/MG, fev. 1997).

    Desde a implantao da Lei 5692, de 1971, o ensino das Artes ainda se depara com

    o problema da formao e preparao de professores para atuar nos diversos nveis da escolaridade bsica. Os professores de Educao Artstica, que por fora da lei tiveram uma formao polivalente, pouco puderam contribuir para consolidar o ensino da msica nas escolas pblicas, tornando-a, desta forma, uma prtica irrelevante com caractersticas de atividade festiva e recreativa.

    Atualmente, mesmo com a obrigatoriedade do ensino da arte em todos os nveis da educao bsica, a situao ainda no mudou. Parece-nos que, com um nmero bastante reduzido de professores formados e habilitados em Educao Artstica e em Licenciatura/Msica no haveria condies de atender demanda da rede pblica de ensino.

    Esse projeto, que buscou implantar o ensino de msica nas escolas pblicas da rede estadual, capacitando professores alfabetizadores e de educao artstica para o trabalho de educao musical, com aplicao, nas escolas, dos conhecimentos adquiridos pelos professores durante a fase de treinamento; visando planejamento da irradiao gradativa do projeto para toda a rede estadual, e, ainda, contando com a integrao dos conservatrios estaduais ao

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    projeto, visando a formao de professores de msica que atuaro em suas regies no teve melhor sorte.

    Embora tenha atingido parte dos seus objetivos, ou seja, implantar gradativamente o Planejamento Global, elaborado em 1997, para o ensino de msica nas Escolas Pblicas Estaduais, por meio dos professores alfabetizadores da rede pblica estadual e, como previa o Mdulo II, por meio de treinamentos intensivos de professores nos Ncleos Especiais de Educao Musical, implantados nos 12 (doze) Conservatrios Estaduais de Msica, esse projeto no atingiu o seu objetivo maior, voltar com o ensino da msica nas escolas pblicas da rede estadual de ensino.

    Nossa inteno no foi generalizar a participao desses professores no projeto ante a totalidade dos professores e escolas participantes, mas sim contribuir para o entendimento e esclarecimento da situao do ensino da msica, enriquecendo a temtica em questo.

    As entrevistas ocorreram em horrios de aulas especializadas, horrio livre para o professor regente. O local escolhido foi a sala dos professores onde, vez ou outra, ramos interrompidos por outro professor ou aluno que entravam na sala, at mesmo porque desconheciam a minha presena na escola.

    Os educadores musicais foram escolhidos devido sua atuao em escolas de msica, responsveis pela formao do futuro educador musical. A inteno foi buscar nesses profissionais, atravs da larga experincia com a educao musical, o entendimento do porqu o educador musical formado pelas escolas de msica no chegam s escolas. Essa situao , no mnimo, intrigante. Entrevist-los, assim como analisar a produo terica, tinha uma finalidade: buscar e captar o que h de comum e de diferente nos discursos.

    No houve qualquer dificuldade para agendar as entrevistas com esses profissionais. Desde o primeiro contato mostraram-se simpticos e disponveis em colaborar com o estudo em questo, ressaltando a sua importncia e contribuio para a rea de conhecimento da msica. Os encontros ocorreram nos domiclios dos entrevistados, em clima informal, muito devido ao convvio de muitos anos como parceiros na Escola de Msica da UFMG e de outros encontros.

    Abordando o objeto a partir de uma fundamentao terica, a preocupao inicial encontrou-se na sistematizao do conhecimento, dos conceitos para facilitar uma comunicao lcida e efetiva do trabalho. Outra preocupao presente neste trabalho foi o respeito ao interlocutor, autores e entrevistados, cuja histria de vida est, direta ou indiretamente,

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    relacionada problematizao do ensino de msica na escola de ensino fundamental. Para um melhor entendimento e coerncia do texto, servimo-nos do uso das aspas para citao de autores e transcrio das entrevistas, respeitando o anonimato do entrevistado.

    O caso dessa escola e a maneira como esta e seus professores lidam com a msica e as articulaes com a produo terica evidenciaram que o ensino da msica ainda est impregnado de prticas conservadoras, onde predomina o ensinar cantando, um cantar bem distante da realidade dos alunos e da realidade sociocultural como um todo. 1.2 Perfil da amostra

    As professoras regentes so formadas em nvel de 2 Grau habilitao Magistrio. Esse curso destina-se a preparar professores para lecionar nas quatro primeiras sries do ensino fundamental. Sua formao polivalente, centrada nas disciplinas que constituem o ncleo bsico do currculo (Portugus, Matemtica, Cincias, Geografia e Histria).

    Em algumas escolas, o currculo inclui algumas atividades relacionadas msica, embora associadas recreao. Na maioria das escolas de ensino fundamental, sua atuao se reveste desse carter multidisciplinar, o que no ocorre na escola investigada onde, a partir da 3 srie, observa-se uma especializao, ficando as disciplinas Portugus, Geografia e Histria a cargo de uma professora, e Cincias e Matemtica sob a responsabilidade de outra.

    A centralidade ocupada pelo ensino da leitura e da escrita na escola fundamental determinou que no Projeto Msica na Escola, elas fossem designadas como professoras alfabetizadoras quando, de fato, essa figura no existe nos quadros do magistrio pblico.

    Dessas professoras, apenas uma possui formao universitria, sendo bacharel em Pedagogia, com habilitao em Superviso. Essa professora tambm especialista em Inspeo Escolar.

    Todas elas possuem larga experincia em sala de aula (entre dez e vinte anos). Trs atuam na escola a um longo tempo (entre seis e doze anos), atuando sempre na regncia. Apenas uma se encontra na escola apenas h um ano, exercendo a funo de professora eventual.

    Nenhuma delas possua algum preparo formal para atuar na educao musical, embora duas tivessem alguma experincia, adquirida na organizao de corais na Igreja ou em

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    outra escola. A msica est presente no cotidiano de todas elas. Dessa forma, embora nenhuma arranhe qualquer instrumento, uma canta no coral da Igreja, outra a utiliza como pano de fundo para outras atividades:

    eu ouo mais msica do que assisto televiso... porque a msica, voc pe no rdio e vai fazendo alguma coisa (Professora A).

    E, apesar do excesso de trabalho e das dificuldades financeiras, sempre que possvel assistem a shows:

    O ltimo que eu fui, foi o do Milton Nascimento e do Caetano Veloso, no Palcio das artes. Foi timo. Um show de duas horas e meia que ningum viu passar (Professora A). U, a ltima vez foi no ms passado, a gente foi no teatro, no Casanova. E essa semana agora, este final de semana, a gente vai no Kart, na Pampulha, sabe. um show musical. (Professora C).

    Uma delas tem na msica um projeto para o futuro:

    J falei, quando eu aposentar eu quero cantar no coral da Igreja (Professora A).

    As preferncias musicais variam muito, vo desde msica erudita at a folclrica,

    passando pela popular (nesse quadro se destaca a sertaneja), e pela religiosa. O projeto Msica na Escola, apesar de ter sido imposto, foi bem recebido pelas

    professoras, sendo que nenhuma delas manifestou qualquer reao ao fato de ter partido de cima para baixo, pelo contrrio, ele foi considerado prazeroso. Com a mesma naturalidade que aceitaram o projeto, assistiram o seu fim: ...o governo mudou, o projeto acabou. (Professora D), uma vez que j esto habituadas descontinuidade das polticas pblicas para o setor educacional.

    Apesar de verem com pesar mais essa interrupo: ... foi uma pena (Professora D), no demonstraram qualquer indignao em relao a esse fato. Embora tenham notcia da presena da msica nos PCN, no relacionam o Projeto Msica na Escola s novas diretrizes em relao ao currculo. Ele foi recebido como uma estratgia para o combate violncia na escola, tendo por isso atingido as escolas da periferia, ...pr tirar a agressividade, pr colocar as crianas mais calmas (Professora D), e como recurso para aumentar a produtividade do

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    ensino, pr ajudar na alfabetizao, o que constitui uma marca da administrao Mares Guia (Professora B).

    Com a mesma naturalidade que assistiram a seu incio e a seu trmino, aguardam que o governo tome novas iniciativas para garantir a presena da msica na escola.

    O perfil dos aqui denominados educadores musicais bem diferente, pois tm formao especfica em Msica, possuindo doutorado e produo cientfica na rea. Atuam na formao de professores, em nvel superior, no mbito de uma universidade pblica federal; participam de entidades ligadas cultura, gozando de renome na rea. 1.3 Forma de apresentao Tendo em vista a preservao de sua identidade, as integrantes da amostra foram assim identificadas: 1. Professoras regentes letras A, B, C, D 2. Professora regente, atualmente no exerccio de direo Diretora 3. Educadoras Musicais nmeros I e II

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    1 A EDUCAO MUSICAL NA ESCOLA FUNDAMENTAL: UMA INCURSO HISTRICA

    Sem dvida, tudo o que fazemos, deve assentar sobre os alicerces da tradio, pois muito do criado por nossos antepassados continua sendo vivel, mas no ser simplesmente talhando pedras de runas de nosso passado que conseguiremos o material de que necessitamos para a construo da cultura planetria em preparao

    (Hans J. Koellreutter, 1993).

    A msica vem desempenhando, ao longo da histria, um importante papel no desenvolvimento do ser humano, seja no aspecto religioso, seja no moral e no social, contribuindo para a aquisio de hbitos e valores indispensveis ao exerccio de cidadania.

    A palavra msica vem do grego Mousik e designava, juntamente com a poesia e a dana, a Arte das Musas. O ritmo, denominador comum das trs artes, fundia-as numa s. Como nas demais civilizaes antigas, os gregos atribuam aos deuses sua msica, definida como uma criao e expresso integral do esprito, um meio de alcanar a perfeio.

    A paixo dos gregos pela msica fez com que, desde os primrdios da civilizao, ela se tornasse para eles uma arte, uma maneira de pensar e de ser. Desde a infncia eles aprendiam o canto como algo capaz de educar e civilizar. O msico era visto por eles como o guardio de uma cincia e de uma tcnica, e seu saber e seu talento precisavam ser desenvolvidos pelo estudo e pelo exerccio. O reconhecimento do valor formativo da msica fez com que surgissem, neste pas, as primeiras preocupaes com a pedagogia da msica. Assim, a msica requer uma instruo que ultrapassa o carter puramente esttico; torna-se uma disciplina escolar, um objeto de mestria, proporciona a medida dos valores ticos, torna-se uma sabedoria.

    Pouco a pouco, mousike passou a abranger tudo o que concernia ao cultivo da inteligncia, assim como gymnastike resumia tudo quanto se referisse ao desenvolvimento fsico. Receber uma educao musical no significava, portanto, aprender a tocar piano, violino, ou fagote, mas estudar a fundo todas as artes liberais, a escrita, a matemtica, o desenho, a declamao, a fsica e a geometria, saber cantar num coro e tocar perfeitamente pelo menos um instrumento.

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    Para os gregos, a educao era concebida como a relao harmoniosa entre corpo e mente e seu objetivo era preparar cidados para participar e usufruir dos benefcios da sociedade. Na viso dos gregos, a educao possua uma funo mais espiritual do que material. Seu principal objetivo era a formao do carter do sujeito e no apenas a aquisio de conhecimentos. Por isso, buscavam uma educao plena, vinda de dentro do aluno e baseada no apenas nos livros, mas na experincia de vida de cada pessoa. Nessa perspectiva, a educao se constitua no estudo da ginstica e da msica. Pela msica e pela ginstica, buscava-se o equilbrio entre a mente e o corpo, buscava-se um universo equilibrado ginstica para o corpo, msica para a alma. Proporcionando, uma e outra, a purificao da alma (mente) e do corpo, estas disciplinas assumem, nesse quadro, o carter fundamental na formao daqueles que seriam os guardies do conhecimento.

    Acompanhando o desenvolvimento do pensamento grego, a disciplina msica se expandiu e passou a incorporar a poesia e as letras. Poeta e musicista constituam-se numa mesma pessoa.

    A poesia, o drama, a histria, a oratria, as cincias, e a prpria msica estavam includos na extenso do termo msica. Os poemas, compreendidos e memorizados, eram entoados com acompanhamento da lira. Portanto, mais importante do que a destreza tcnica era o saber improvisar um acompanhamento em harmonia com o pensamento expresso no trecho recitativo. Por ser ensinado com msica (o ritmo facilitava a memria), o ensino era atraente, agradvel (Bauab, 1960, p.58-59).

    A Grcia desenvolveu, dentre outras coisas, um dos elementos mais importantes do

    pensamento musical: o raciocnio matemtico. Esta relao entre a matemtica e a msica se deve ao matemtico Pitgoras, que ampliou suas descobertas para a dimenso da acstica sonora. Segundo Pitgoras, matemtica e msica eram parte uma da outra, e nessa relao estava a explicao para o funcionamento de todo o universo. A msica ento considerada fonte de sabedoria, sendo considerada indispensvel educao do homem livre.

    As idias de Pitgoras exerceram considervel influncia sobre o pensamento grego, servindo de fundamento s doutrinas de Plato. Para este pensador, a primeira coisa a fazer formar espiritualmente o homem na sua plenitude, entregando-lhe em seguida o cuidado de velar pessoalmente pelo seu corpo (Jaeger, p.547, Livro Terceiro, 1986). Segundo o filsofo, a

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    msica pode introduzir no esprito do ser humano o sentido de ritmo e de harmonia, pois uma pessoa corretamente educada na msica, pelo fato de a assimilar espiritualmente, sente desabrochar dentro de si, desde a sua mocidade e numa fase ainda inconsciente do desenvolvimento, uma certeza infalvel de satisfao pelo belo e de repugnncia pelo feio. Alm disso, a educao musical vista por Plato como pr-requisito ao conhecimento filosfico, que sem a base da cultura musical ficaria flutuando no ar (Jaeger, p. 546, Livro terceiro, 1986). Por isso ele reconhece a primazia da msica sobre as outras artes, uma vez que, a seu ver, so o ritmo e a harmonia os que mais fundo penetram no ntimo da alma, e os que dela se apoderam com mais fora, infundindo-lhe e comunicando-lhe uma atitude nobre (Jaeger, p.546, Livro Terceiro, 1986).

    O efeito sedutor da msica encarado com receio pelo filsofo. Segundo Reis (1993, p. 58),

    a msica poderia exercer sobre o homem poder malfico ou benfico, por imitar a harmonia das esferas celestes, da alma e das aes. Com seu encanto sedutor, poderia conduzir perniciosamente o homem, atravs de um complexo de emoes no recomendvel, como tambm teria condies de realizar o inverso, contribuindo, de modo eficaz, para a educao da juventude. Da, a necessidade de se colocar a msica sob a administrao do Estado, sempre a servio da edificao espiritual humana, voltada para o bem da polis, almejada como cidade justa.

    Para se garantir que a msica possa cumprir o importante papel que dela esperado

    na formao da juventude no basta que ela fique aos cuidados do Estado. Seria preciso ainda uma ateno especial aos mestres da msica, considerados mestres especiais, responsveis pelo desenvolvimento dessa disciplina.

    Nesse processo, alguns cuidados faziam-se indispensveis. Em primeiro lugar, a msica no deveria ser praticada de modo desinteressado, mas de forma a tornar mais suave e atraente o ensino, muitas vezes rido, da matemtica, da histria e de outras disciplinas. Sua seleo deveria ser adequada idade dos discpulos, iniciando-se pelas canes (berceuses), passando depois para os hinos guerreiros e religiosos. Para os jovens entre 14 e 16 anos, Plato aconselhou a prtica de apenas dois gneros de msica: a msica violenta e adequada guerra, e a tranqila, propcia prece e concentrao. Depois dos 16 anos, at o resto de suas vidas, os indivduos continuariam a freqentar apenas os cantos corais e os jogos comunais.

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    Alm de bem selecionada, a msica deveria ser bem dosada, uma vez que em demasia poderia se tornar prejudicial ser simplesmente atleta quase ser um selvagem e ser meramente msico dissolver-nos e abrandar-nos alm do conveniente (Plato, A Repblica, cit. Bauab, 1960, p.68).

    O ensino da msica se desenvolvia em nveis, de acordo com a idade dos alunos. Dos 7 aos 14 anos, fase inicial dos estudos, a educao ficava a cargo dos mestres especiais e seu contedo previa ginstica e msica, compreendendo conhecimentos de poesia, histria, drama, oratria e cincia. A maior parte do tempo era destinada ao ensino da msica, que inclua a aprendizagem dos fundamentos da Teoria Musical, Princpios do Som e de sua grafia e as leis que regem a construo meldica e rtmica.

    O segundo nvel da educao musical iniciava-se pouco antes dos 20 anos e terminava aos 30 anos de idade. Nessa etapa, as disciplinas astronomia, gramtica, aritmtica e msica compunham o "Quadrivium" , ou estudos das disciplinas cientficas. O conhecimento musical nessa fase, mais terico, pode ser entendido como o estudo do Ethos musical.

    Para concluir a educao musical, havia um terceiro nvel, que se estendia por mais cinco anos, levando o aluno ao estudo da dialtica. Estudava-se Filosofia apenas aqueles que se revelassem mais capazes para uma educao mais apurada, os demais seriam militares.

    Com a invaso do Imprio Romano no mundo grego este quadro se altera, pois a sensibilidade, as emoes e o sentimento de humanidade, caractersticas dos gregos, no se adequavam formao dos soldados romanos, que eram educados para serem duros, rgidos, disciplinados e severos. O povo romano foi, por natureza, guerreiro e rude. Por muito tempo, seus ideais e propsitos restringiam-se conquista do mundo e ao domnio dos povos conquistados. Entretanto, sob a influncia grega, as artes e as letras comearam a florescer em Roma.

    Com o tempo, por influncia da cultura helenstica, a educao musical vai ganhando espao entre os romanos passando, porm, a ser estudada como cincia, como um saber cientfico, privilegiando seu aspecto terico, em detrimento do conhecimento prtico. o incio do rompimento da viso integrada da msica, ou seja, da ciso entre a msica com a mente e msica com o corpo. Segundo Beyer (1999, p.25),

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    a cultura romana aceitava muito mais a modalidade do conhecimento musical como saber cientfico, porm rejeitava a modalidade desse conhecimento como saber prtico.

    Durante a Idade Mdia, a Igreja Catlica demonstra grande interesse pela msica incluindo-a nos cultos cristos, pois acreditava que a msica fosse capaz de exercer forte influncia sobre os homens. A Igreja encorajou o estudo e o ensino da msica como uma disciplina terica inserida no domnio das cincias matemticas, por isto ela se situa ao lado das disciplinas aritmtica, geometria e astronomia.

    Os representantes da Igreja prestaram um valioso apoio investigao e ao ensino musical. Fundaram capelas, colgios, academias, bibliotecas, conjuntos polifnicos e instrumentais estimulando a formao de compositores, cantores, concertistas e musiclogos. A schola cantorum, criada e dirigida por S. Gregrio Magno, desenvolveu o ensino do canto como recurso de exaltao paixo religiosa. Nela, padres e missionrios aprendiam a msica religiosa catlica, que deveria ser levada a todos os lugares do mundo.

    Gregrio Magno, papa de 590 a 604, deu ordenao definitiva ao rito, portanto, ao canto litrgico. Elaborou dois livros, intitulados Antiphonarium e Cantatorium, que continham os melhores cantos e os novos hinos, segundo a ordem das festas e cerimnias, e que deveriam servir de norma a toda Igreja Catlica.

    Em sua homenagem, estes cantos, expressando a palavra de Deus, receberam o nome de canto gregoriano ou cantocho. Nessa perspectiva, as canes, emitidas a uma s voz e compostas a partir de uma nica linha meldica, assumem o carter de orao cantada, smbolo da f crist.

    At por volta do ano 1000, a msica. mondica e religiosa, era utilizada no s para efeito de ser ouvida, mas tambm para dar ao culto religioso um clima consonante, valorizando mais o cantor do que o musicus. O primeiro, associado ao saber musical do bem modular o som, d prioridade atividade do corpo, trabalha a prtica musical, servindo aos cultos cristos; o segundo enfatiza o saber musical que fala de nmeros, continua buscando as relaes entre a msica e as disciplinas cientficas, priorizando como ideal o funcionamento da mente. Para uma educao musical voltada para a prtica, era nas escolas em mosteiros e em catedrais que se aprendiam salmos, notas, canto e gramtica.

    De acordo com Beyer (1996, p.226),

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    isto ocorre em virtude da importante funo que a msica desempenha nos cultos cristos. A Igreja centraliza todas as relaes da vida dos indivduos na poca, e considera-se que a msica seja capaz de influir fortemente sobre as pessoas. Assim, os cultos apiam-se amplamente sobre o recurso musical. Nesta perspectiva, a msica como prtica possui muito maior funcionalidade do que a terica (...). Embora seja prtica, no h um fim performtico na msica.

    Durante a Idade Mdia, a msica recupera a sua natureza de linguagem expressiva

    de sentimentos humanos. Foi a fase de expresso, sem finalidade performtica, restabelecendo-se a dialtica da msica, pautada no ideal grego, como cincia e como arte. Ocorre o renascimento da melodia, e com ela as primeiras manifestaes polifnicas, ou seja, surgem as primeiras tentativas para cantar a duas ou mais vozes, simultaneamente, em livre unio com o contraponto e a harmonia.

    Ao lado da polifonia religiosa, cujos cantos religiosos se distinguiam pela seriedade e transcendncia, desenvolvia-se a msica popular, de carter modal e profano. Apesar da oposio da Igreja, surgem os trovadores cortesos e os menestris populares. A cano trovadoresca, com acompanhamento musical, composta por nobres msicos, cavaleiros durante as grandes cruzadas, expressava sentimentos de amor e saudades, alm dos feitos hericos das guerras.

    Segundo Andrade (1944/87, p.60), ... havia desde muito na Europa continental uma espcie de cantadores estradeiros, classe rebaixada, vivendo de ciganagem, praticando por toda a parte feitiaria, crimes e doce msica. Eram os Histries (Jograis, Menestris), tocadores de instrumentos populares como a Viela (Fiedel), a Rabeca, o Tambor basco, flautas, Cornamusa. Crescidos em importncia quando os trovadores apareceram e principiaram se utilizando deles como acompanhadores, os menestris chegaram a possuir escolas musicais chamadas Escolas de Menestria.

    De acordo com este autor (1944/87, p.62),

    mui provavelmente por influxo da quotidianidade musical profana que os menestris davam s cortes e castelos, que os nobres, sem nada que fazer, principiaram inventando cantigas tambm (sc. XI a XIII). Estes foram os Trovadores (Troubadours, Trouvres) da Frana, e da Alemanha (Minnesaenger), a cujo exemplo se formou o trovadorismo

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    europeu, fixador de lnguas, influenciador de msica, primeiro reflexo tnico das naes na msica do Cristianismo.

    O humanismo renascentista tenta recuperar os valores da cultura greco-romana,

    neles buscando inspirao para o movimento de libertao do homem e da razo humana, que acompanhava a expanso cientfica e geogrfica, o florescimento do comrcio e a ascenso da burguesia. Floresce, ento, um novo esprito e uma nova cultura marcada pelo individualismo e pelo antropocentrismo, abrindo caminho ao cultivo das cincias, letras e artes.

    Neste clima de efervescncia cultural, protestos no mundo catlico vieram perturbar a vida religiosa. A msica religiosa ganha novo impulso com a Reforma Protestante.

    Liderada por Lutero, a Reforma Protestante tem razes intelectuais no humanismo. Ao conferir ao homem a responsabilidade pela sua f, e ao ver na leitura da Bblia a fonte dessa f, o protestantismo defende a necessidade de colocar todos os fiis em condies de salvar suas almas mediante sua leitura. Neste sentido, Lutero apela para as autoridades pblicas, insistindo na necessidade da criao de escolas. A educao preconizada por Lutero visava, basicamente, catequese do povo. Em funo de sua importncia nos cultos religiosos, a msica ocupa lugar de destaque nas escolas protestantes. Nelas, as crianas aprendiam no s a cantar, mas recebiam noes de escrita musical.

    Para reagir difuso do protestantismo, a Igreja Catlica toma uma srie de medidas visando deter a heresia e angariar novos adeptos. Neste momento, destaca-se a criao da ordem dos jesutas que, ao contrrio das demais congregaes religiosas, dedicou-se catequese, atravs do plpito e das escolas.

    Para fazer face investida protestante no campo da educao, os jesutas criam escolas, destinadas educao da juventude leiga. Seus colgios, primorosamente organizados, ofereciam uma educao nos moldes exigidos pela sociedade da poca, formando o homem culto, o homem letrado, conhecedor dos clssicos e capaz de falar e escrever em latim, mas submisso ao rei e ao papa.

    A msica foi um dos principais recursos utilizados pelos jesutas no processo de escolarizao da juventude europia, com vistas formao do bom cristo. Alm de constituir uma disciplina, estava presente no currculo das escolas, enriquecendo as festas e os cultos religiosos. Graas influncia dos protestantes e dos catlicos, sobretudo dos jesutas, a

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    educao musical nas escolas at o final do sc. XVIII foi praticada com fins estritamente religiosos.

    A viso da msica livre dessa finalidade surge em Pestalozzi e Froebel. Herdeiros de Rousseau, eles defendem uma educao baseada no respeito natureza humana, s suas necessidades e interesses. E enfatizam a importncia da sensibilidade no desenvolvimento da razo. A experincia vista por eles como pr-requisito para a aprendizagem. Por isso, ambos defendem um ensino baseado em mtodos intuitivos que, colocando o aluno em contato com a realidade, desenvolvia-lhes o senso de observao, anlise de objetos e fenmenos da natureza e a capacidade de expresso. A nfase sensibilidade no processo de construo do ser humano abre caminho para uma educao musical mais voltada para a prtica que para a teoria, ensejando a construo de materiais didticos com essa finalidade.

    Pestalozzi e Froebel iniciam assim um movimento de oposio tradio secular, dominante no ensino da msica, que se concretiza no sculo XX, com os trabalhos de Orff, Dalcroze, Kdaly, Willems, Gainza, Martenot, Schafer. Esses autores, tomando como base as idias de Pestalozzi e Froebel, propem uma nova metodologia para o ensino da msica onde o fazer musical , a explorao sonora, a expresso corporal, o escutar e perceber consciente, o ato de improvisar e criar, a troca de sentimentos, a vivncia pessoal e a experincia social oportunizariam a experincia concreta antes da formao de conceitos abstratos.

    Essa nova proposta para o ensino da msica ressalta a importncia da prtica livre experimental, em detrimento da transmisso de conhecimentos do professor para o aluno, fazendo emergir a valorizao do processo natural de desenvolvimento artstico-musical. a ao do sujeito sobre o objeto. O reflexo dessas propostas metodolgicas afetaram inicialmente o status quo dos tradicionais conservatrios de msica. Objetivando trazer modernizao na maneira de musicalizar crianas, preocupando-se com as diferenas individuais dos alunos, tais propostas foram encontrar espao, no Brasil, nos centros alternativos para o ensino da iniciao musical, criados sob os auspcios de Liddy Chiaffarelli e Antnio S Pereira, em final da dcada de 30.

    O ensino da msica no Brasil remonta aos primrdios do processo de colonizao, iniciando-se com a vinda dos jesutas. Essa ordem religiosa surge na Europa em meio s lutas religiosas deflagradas pela Reforma Protestante. Constituindo-se numa legio em defesa da Igreja Catlica, os jesutas elegeram a educao como uma de suas armas de combate heresia.

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    Chegando ao Brasil em 1549, abriram as primeiras escolas e aqui se estabeleceram. Por dois sculos os inacianos foram praticamente os detentores do sistema educacional vigente na Colnia. Seguiram a marcha da expanso colonizadora portuguesa em todas as direes, fundando misses, abrindo escolas. Estas, muitas vezes, precediam o desenvolvimento da localidade, quando no surgiam com elas.

    A primeira misso dos jesutas, em terras brasileiras, foi a catequese dos indgenas, conforme atestam os documentos da poca, como a carta do Pe. Aspilcueta Navarro, de 28 de maro de1550:

    Aprouve a Deus que chegassem os padres mandados da, e esperamos que faam grande fruto com os selvagens como fariam outros se tivessem muita caridade e castidade de par com as foras temporais para suprir as necessidades de tantos. As letras so o menos necessrio, bem que, entre os cristos e entre os mesmos gentios conversas, sejam as letras precisas para a soluo de casos diversos que entre eles se do. (Rodrigues, Francisco. Histria da Companhia de Jesus na Assistncia de Portugal. Porto, 1931, p.287).

    A evangelizao dos nativos exigiu dos jesutas uma atuao diferente da que

    desenvolviam nos colgios europeus, que acolhiam a elite da sociedade europia da poca e ofereciam o que hoje poderamos chamar de ensino mdio.

    Entre os recursos utilizados destaca-se a msica, em funo da forte ligao dos indgenas com essa manifestao artstica. Eram eles msicos natos que, em harmonia com a natureza, cantavam e danavam em louvor aos deuses, durante a caa e a pesca, em comemorao a nascimento, casamento, morte, ou festejando vitrias alcanadas.

    Segundo o relato do viajante Jean de Lry, chegado ao Brasil em 1557, Essas cerimnias duraram cerca de duas horas e durante esse tempo os quinhentos ou seiscentos selvagens no cessaram de danar e cantar de um modo to harmonioso que ningum diria no conhecerem msica. Se, como disse, no incio dessa algazarra, me assustei, j agora me mantinha absorto em coro ouvindo os acordes dessa imensa multido e sobretudo a cadncia e o estribilho repetido a cada copla: H, he ayre, heyr, heyrayre, heyra, heyre, uh. E ainda hoje, quando recordo essa cena, sinto palpitar o corao e parece-me a estar ouvindo (Mignone, 1980, p. 45).

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    Ligada a rituais de magia, religio, a msica revelava-se atravs da expanso instintiva do som, da cadncia rtmica, porm mostrava a simplicidade na melodia e nos instrumentos musicais. Sua aprendizagem ocorria atravs de suas prticas nos rituais e na comunicao com as divindades veneradas. Os padres jesutas dela tambm se apropriaram. Trabalhando na catequese e aculturao dos indgenas, eles usaram a msica para comunicar sua mensagem de f, ao mesmo tempo em que buscavam uma aproximao com o habitante nativo.

    De acordo com Beyer (1994, p.102), os jesutas trouxeram ao elemento indgena um repertrio vigente naquela poca na Europa. Ou seja, os jesutas educaram os indgenas musicalmente para o desempenho musical destes nas missas.

    Para os jesutas, as manifestaes artsticas dos silvcolas nada mais eram que rituais

    de magia. Assustados com seu carter pago, os inacianos desenvolveram um intenso trabalho visando sua eliminao. Atravs do cantocho e dos autos pequenas peas teatrais de teor moral e religioso que os ndios encenavam cantando, danando e acompanhando com instrumentos musicais, os jesutas conseguiram destruir a msica espontnea e natural dos nativos, fazendo com que essa perdesse, gradativamente, suas caractersticas. O pouco que escapou da obstinao civilizatria dos jesutas foi assimilado pela msica popular dos nortistas e nordestinos.

    A importncia atribuda msica na catequese fez com que ela integrasse o currculo das Escolas de Ler e Escrever. Segundo Serafim Leite, no Seminrio dos rfos, criado em 1759, os jesutas ensinavam alm da gramtica e do latim, msica e cantocho. Para isso, chegaram a criar uma cartilha musical, denominada Artinha, usada pelos mestres nas aulas de iniciao musical, ao mesmo tempo em que se processava a alfabetizao, datando dessa poca o tratado do solfejo intitulado Escola de Canto de rgo, do baiano Caetano de Melo de Jesus.

    Outra manifestao da presena da msica nas escolas e nas festividades desenvolvidas pelos jesutas so, como j foi mencionado, os Autos. J na inaugurao do Colgio dos Meninos de Jesus, em 1553, foi levado o Auto Mistrios de Jesus, o primeiro drama sacro a ser encenado no Brasil. Seu autor, Jos de Anchieta, chega ao Brasil em 1553, na companhia de mais dois padres e quatro irmos. Viajando por todo o territrio brasileiro, criou

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    nas aldeias por onde passou as Escolas de ler, contar e tocar alguns instrumentos. Aprendendo a falar a lngua dos ndios chegou a escrever uma gramtica na lngua tupi-guarani, intitulada Arte de Gramtica da lngua Mais Usada na Costa do Brasil. Teve o cuidado de traduzir para o tupi as oraes e textos teis catequese, alm de escrever e musicalizar peas teatrais para serem representadas pelos ndios. Escreveu e dirigiu a primeira pea de teatro encenada no Brasil. Estas peas, de carter educativo, chamavam-se AUTOS e tinham como objetivo difundir a moral e a religio. Apesar de no ser msico, Anchieta se interessava pela msica, uma vez que os seus AUTOS eram cheios de cantos e incorporavam manifestaes da cultura indgena, como por exemplo o boi-ta-t.

    medida em que uma elite de brancos e mestios aqui ia se formando, os jesutas iniciam um novo modelo de educao, nos moldes do desenvolvido na sociedade europia, ou seja, uma educao