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EDUCAÇÃO SUPERIOR PÚBLICA NO BRASIL: acesso como direito de todos ou mérito de poucos? 1 Isabela Ribeiro Villares Nascimento 2 Cláudia Araújo de Lima 3 RESUMO: O presente artigo tem por objetivo analisar como o Estado tem atuado na criação e gestão de políticas para elevação do nível de escolaridade da população jovem (18 a 29 anos), se essas políticas asseguram o acesso à educação superior e quais os limites e possibilidades desse acesso conformar-se como um direito humano universal no Brasil. Apoia-se no pensamento de Norbert Bobbio (2004) para discussão dos direitos humanos e fundamentais e das pesquisas científicas nacionais que tratam o tema. Como resultado, apresenta a Lei n.12.711/2012 (Lei de Cotas) como principal política destinada a ampliar as possibilidades de ingresso de milhares de jovens negros, pardos, deficientes e pobres nas instituições públicas de ensino superior. Sem perder de vista que a política de cotas não resolve por completo a condição de privação histórica de acesso à educação e à cultura que atinge a maioria da população jovem brasileira, é possível destacar a referida lei como dispositivo que protege o direto humano à educação dos sujeitos vulneráveis socialmente, por fatores étnico-raciais ou socioeconômicos. Palavras-chave: Direitos Humano; Educação Superior; Políticas de Ações Afirmativas. 1 Estudo desenvolvido no âmbito da disciplina Educação e Direitos Humanos, do Mestrado em Educação (UFMS/Campus Pantanal). 2 Mestranda, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Campus do Pantanal. Bolsista pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Capes/CNPq. Especialista em Psicopedagogia pela Faculdade Frassinetti do Recife (FAFIRE). Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). 3 Professora adjunta permanente da Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Doutora em Ciências na área de Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz. Graduada em Pedagogia pelo Centro Universitário de Brasília. Mestre em Integração de Pessoas com Deficiência pela Universidade de Salamanca/Espanha. Mestre em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz. Anais do XIV Congresso Internacional de Direitos Humanos. Disponível em http://cidh.sites.ufms.br/mais-sobre-nos/anais/

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EDUCAÇÃO SUPERIOR PÚBLICA NO BRASIL: acesso como direito de

todos ou mérito de poucos? 1

Isabela Ribeiro Villares Nascimento2

Cláudia Araújo de Lima3

RESUMO:

O presente artigo tem por objetivo analisar como o Estado tem atuado na criação e gestão

de políticas para elevação do nível de escolaridade da população jovem (18 a 29 anos), se

essas políticas asseguram o acesso à educação superior e quais os limites e possibilidades

desse acesso conformar-se como um direito humano universal no Brasil. Apoia-se no

pensamento de Norbert Bobbio (2004) para discussão dos direitos humanos e fundamentais

e das pesquisas científicas nacionais que tratam o tema. Como resultado, apresenta a Lei

n.12.711/2012 (Lei de Cotas) como principal política destinada a ampliar as possibilidades

de ingresso de milhares de jovens negros, pardos, deficientes e pobres nas instituições

públicas de ensino superior. Sem perder de vista que a política de cotas não resolve por

completo a condição de privação histórica de acesso à educação e à cultura que atinge a

maioria da população jovem brasileira, é possível destacar a referida lei como dispositivo

que protege o direto humano à educação dos sujeitos vulneráveis socialmente, por fatores

étnico-raciais ou socioeconômicos.

Palavras-chave: Direitos Humano; Educação Superior; Políticas de Ações Afirmativas.

1 Estudo desenvolvido no âmbito da disciplina Educação e Direitos Humanos, do Mestrado em Educação

(UFMS/Campus Pantanal). 2 Mestranda, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato

Grosso do Sul (UFMS), Campus do Pantanal. Bolsista pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de

Nível Superior Capes/CNPq. Especialista em Psicopedagogia pela Faculdade Frassinetti do Recife

(FAFIRE). Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). 3 Professora adjunta permanente da Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Doutora em

Ciências na área de Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz. Graduada em Pedagogia pelo Centro

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1 INTRODUÇÃO

A educação enquanto direito humano está respaldado em documentos e declarações

nacionais e internacionais. Na Constituição Brasileira de 1988, a educação é um direito

social (Art.6º), a ser garantido, principalmente, pelo Estado. Na Lei de Diretrizes e Bases

da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96), sua finalidade deve ser o desenvolvimento do

educando para o exercício da cidadania e preparo para o trabalho. O acesso ao ensino

básico deve ser garantido pela família, Estado e comunidade, em condições de igualdade e

gratuidade para todos. Entretanto, o ingresso no ensino superior, nível “mais elevados do

ensino, da pesquisa e da criação artística”, está condicionado “a capacidade de cada um” e

se efetiva em instituições públicas e privadas (BRASIL, 1996, ART.4º).

O acesso ao nível mais elevado de ensino está condicionado à capacidade econômica

e cultural individual e a inclusão igualitária dos cidadãos brasileiros a todos os níveis de

educação pública ainda não se configura como direito universal garantido por lei. De

acordo com o exposto, a universalidade da educação superior pública constitui-se em

necessidade humana, para elevação dos conhecimentos destinados à prática social

(BRASIL, 1996), e um desafio para o Estado, enquanto entidade gestora de políticas e

ações dedicadas à elevação da escolaridade de toda população, principalmente dos mais

pobres e daqueles advindos de escolas públicas.

Diante disso, o objetivo do estudo é analisar como o Estado tem atuado na criação e

gestão de políticas para elevação do nível de escolaridade da população jovem (18 a 29

anos), se essas políticas asseguram o acesso à educação superior e quais os limites e

possibilidades desse acesso conformar-se como um direito humano universal no Brasil.

Para alcance do objetivo foi realizado levantamento bibliográfico nos seguintes

bancos de produções científicas: SciELO e Portal de Periódicos Capes. Foram selecionados

13 artigos para discussão da temática. Além das pesquisas científicas, a discussão sobre os

direitos humanos e fundamentais do homem encontra apoio no referencial teórico de

Norbert Bobbio (2004).

O texto está dividido em duas partes: na primeira busca-se compreender a educação

superior como direito humano e social no âmbito da legislação; na segunda a partira da

análise das produções científicas, busca-se compreender quais políticas objetivam ampliar

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a oferta de educação pública superior e se essa ampliação impacta em diminuição das

desigualdades de acesso das classes populares ao ensino superior.

Ademais, apresenta a Lei n.12.711/2012 (Lei de Cotas) como mecanismo que

garante aos autodeclarados negros, pardos, indígenas, aos deficientes e estudantes oriundos

de escolas públicas reserva de 50% das matrículas por curso nas universidades federais e

institutos federais de educação, ciência e tecnologia. A Lei de Cotas destaca-se como

principal política destinada a ampliar as possibilidades de ingresso de milhares de jovens

das classes populares nessas instituições.

A política de cotas não resolve por completo a condição de privação histórica de

acesso à educação e a cultura que atinge a maioria da população brasileira, nem se

configura como uma política de universalização do ingresso nas instituições públicas de

ensino superior. Mas, engendra tentativas de reparação das desigualdades de acesso e

ampliação de escolaridade dos indivíduos mais desfavorecidos e vulneráveis socialmente.

Logo, configura-se como resultado das lutas pela quebra do ciclo de desigualdades e, tão

logo, como expressão concreta na defesa do direito humano à educação superior aos

segregados, historicamente, dos espaços acadêmicos: negros, pardos, indígenas, deficientes

e pobres.

2 A EDUCAÇÃO COMO DIREITO HUMANO E SOCIAL

A educação é o meio pelo qual o homem se apropria de toda produção histórica,

filosófica, cultural e científica. Compreende os processos formativos que ocorrem em

sociedade, dos quais os indivíduos são submetidos por existirem socialmente (LIBÂNEO,

2013). Para Bernard Charlot (2013), através da educação transmitem-se às crianças,

adolescentes, jovens e adultos os modelos de comportamento vigentes na sociedade. Trata-

se de “modelos de trabalho, de vida, de troca, de relações afetivas, de relações de

autoridade, de conduta etc.” (p.56).

Charlot (2013) salienta que a sociedade não é homogênea, mas formada por grupos

diferentes, com comportamentos peculiares, organização interna específica, normas e

ideais. Portanto, cada arranjo social persegue suas próprias finalidades e transmite sua

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forma de organização aos seus membros ou definem os limites dos demais elementos

dispostos socialmente. Neste sentido, a educação escolar, em seus diversos níveis e

modalidades, é uma via de transmissão dos modelos sociais vigentes, é socialmente

determinada e atua na formação humana dos indivíduos (CHARLOT, 2013; LIBÂNEO,

2013). Logo, por ser um patrimônio cultural e meio pelo qual o ser humano se adapta e

transforma a sociedade, o acesso à educação formal é um direito de todos.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 (2009) anuncia o ensino e a

educação como meios de promoverem os direitos humanos e as liberdades. No âmbito da

legislação brasileira, o direito à educação configura-se como direito social. Essa

especificidade inclui-se na gama dos direitos fundamentais, os quais foram conquistados

no século XX e integram a chamada terceira geração de direitos (FERRARO, 2008). De

acordo com Ferraro (2008), os direitos sociais estão fundados no princípio da igualdade e

são afirmativos, ou seja, determinam as ações do Estado na realização da justiça e das

condições de participação social.

Na Constituição Federal da República do Brasil, de 1988, os direitos sociais estão

previstos no Art. 6º, são eles: “a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o

transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância,

a assistência aos desamparados” (BRASIL, 1988). Vê-se que a educação encabeça a lista

dos direitos sociais, pois é o meio fundamental de desenvolvimento das capacidades

humanas, adjudicando ao Estado obrigação de assegurar aos cidadãos, enquanto serviço

público, o acesso à formação nas instituições educativas. Entretanto, essa obrigação não se

estende a todos os níveis e modalidades.

No Art. 205 da Constituição (BRASIL, 1988), a educação é afirmada como “direito

de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração

da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da

cidadania e sua qualificação para o trabalho”. No que diz respeito ao dever do Estado (Art.

208), será efetivado mediante a oferta gratuita e obrigatória de educação básica para os

sujeitos de 04 (quatro) a 17 (dezessete) anos de idade, inclusive para os que não tiveram

acesso na idade certa.

Apesar de a educação estar prevista na lei como um direito social (BRASIL, 1988,

Art. 6º), a ser ofertado obrigatória e gratuitamente pelo Estado (Art. 208), no ensino médio

há menção a progressiva universalização do ensino gratuito, não propriamente a gratuidade

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universal (BRASIL, 1988, ART. 208, inciso III). No que se refere à educação superior, o

“acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística”, ocorre

“segundo a capacidade de cada um” (Idem, inciso V) e pode efetivar-se em instituições

públicas e privadas. A este nível a gratuidade, ou intenção de universalização desta, não é

mencionada na Lei Magna (BRASIL, 1988).

A legislação institui o acesso ao ensino obrigatório e gratuito somente à educação

básica. Além disso, o configura como um direito público subjetivo, passível de

responsabilização, nos termos da lei, da autoridade competente em caso do não

oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público (BRASIL, 1988, §1º & § 2º). O

mesmo não ocorre quanto ao ensino superior, pois não há a responsabilização do Estado

para com os cidadãos no deslocamento do ensino básico para o superior público, com o

prolongamento de tempo de estudos. Desta forma, esse deslocamento está condicionado à

capacidade individual e é medido através das avaliações para ingresso nas instituições de

ensino universitário.

O ingresso nas instituições públicas e privadas de ensino superior relaciona-se às

condições socioeconômicas e culturais de cada indivíduo. A partir do filtro das seleções, as

instituições de ensino aderem àqueles que tiveram mais oportunidades de preparo para o

ingresso, o qual exige contato com a cultura, a ciência, as artes e os conhecimentos usados

como critérios de classificação. No mote dessa questão, não há igualdade nas condições

iniciais de acesso, uma vez que as condições econômicas do público concorrente às vagas

são difusas e atuam como peso na determinação do prolongamento do tempo de estudo.

Por essa via, as seleções tendem a distanciar milhares de jovens do espaço acadêmico, da

formação para a vida e para o trabalho, materializando o direito à educação como mérito de

poucos e não como direito de todos.

A Lei Constitucional não define a especificidade de atuação do Estado na garantia da

obrigatoriedade de ampliação do ensino superior público. Isso reverbera na isenção do

Estado da responsabilidade de afiançar a todos o direito social à educação superior, além

de abrir possibilidades para o enfraquecimento de políticas e ações voltadas à ampliação do

número de vagas nesse nível de ensino.

Os fatores pontuados são a porta de entrada para a expansão do segmento privado em

detrimento do público, com o progressivo enraizamento do ideal capitalista que vincula a

venda de serviços em educação à mercadoria. Como consequência, os desprovidos de

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recursos financeiros são segregados do acesso ao ensino, à pesquisa, à criação artística nos

graus mais elevados, à qualificação para o trabalho e o exercício da cidadania. À medida

que os jovens em situação de pobreza não conseguem financiar os estudos superiores, e

tampouco competir por uma vaga em instituição pública de ensino, a falta de

posicionamento do Estado, na criação e gestão de políticas destinadas à diminuírem as

desigualdades de ingresso ao nível superior, acentua a exclusão de milhares de pessoas

dos processos de formação humana e científica.

A ampliação da educação superior como um direito humano passa pela

democratização do acesso às instituições de ensino como um dever do Estado. No entanto,

para que tal ampliação se materialize é exigido de toda sociedade um amplo

reconhecimento dessa etapa como “condição necessária para o aperfeiçoamento da pessoa

humana, ou para o desenvolvimento da civilização” (BOBBIO, 2004, p.16). Na definição

de Bobbio (2004), os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos

históricos e nascem, gradualmente, em meio às circunstâncias e movimentos de lutas. Para

o jurista, no âmbito das sociedades, os direitos humanos não são desejáveis, apesar de sua

desejabilidade, pois “não foram ainda todos eles (por toda a parte e em igual medida)

reconhecidos” (BOBBIO, 2004, p.12). A falta de reconhecimento está relacionada à

estrutura social capitalista, pois a privação de um direito gera lucro a quem o oferece em

forma de serviços, como no caso da educação superior privada.

O direito à educação superior e tudo o que esta agrega em formação humana,

científica e tecnológica necessita ser reconhecido em definição tautológica, ou seja, como

direito que cabe ao homem enquanto este é humano e histórico, e reconhecido mediante as

lutas e considerações do benefício, na garantia do direito, para o conjunto da humanidade

(BOBBIO, 2004). Essa visão consciente ainda é um desafio para toda a sociedade

brasileira e vem sendo ampliada através das políticas afirmativas, que possuem como

principal objetivo diminuir as disparidades materiais no ingresso aos cursos superiores.

Como exemplo de aparato normativo e político dessa natureza, enfatizar-se-á no estudo a

Lei nº 12.711/12 (Lei de Cotas), a qual se destina a ampliar as condições de acesso à

educação superior para as pessoas pertencentes às classes sociais populares, negros,

indígenas, pardos e deficientes nas instituições federais de ensino.

À luz do referencial citado, é possível inferir que as políticas afirmativas atuam no

reconhecimento e empoderamento dos sujeitos privados do acesso à cultura, aos saberes

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elaborados pelo conjunto da humanidade e à formação profissional. Por isso, advoga-se, no

âmbito desse estudo, que o ingresso e permanência no ensino superior necessitam ser

estendido a todos, em prol do desenvolvimento humano do sujeito e, também, econômico,

científico e tecnológico do país.

2.1 A EXPANSÃO DO ENSINO SUPERIOR NO BRASIL E AS POLÍTICAS

AFIRMATIVAS

As metas e estratégias para o ensino superior são traçadas com vistas no

aperfeiçoamento das políticas e ações estatais que conduzem a melhoria da qualidade do

ensino, à formação para o trabalho e a promoção humanística, científica e tecnológica do

país (BRASIL, 1988, Art. 214, incisos III – V). A este propósito, a Lei de Diretrizes e

Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996), estabelece no seu Art. 1º, que:

Art. 1º A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida

familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e

pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas

manifestações culturais.

[...]

§2º A educação escolar4 deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática

social.

No atual Plano Nacional de Educação (PNE 2011 – 2020), uma de suas premissas é

“expansão de oferta de educação superior, sobretudo pública, por meio da ampliação do

acesso e permanência na instituição educacional”. Como meta para atingir o objetivo da

expansão, propõe-se elevar no prazo de dez anos, “de forma qualificada a taxa bruta de

matrícula na educação superior para 50% e a taxa líquida para 33% da população de 18 a

24 anos” (PNE 2011 – 2020, meta 12). No documento oficial, a educação aparece como

fator de desenvolvimento humano e econômico, capaz de gerar impactos nos valores e

modos de organização social, além de suscitar novas possibilidades de mobilidade

financeira e social para os indivíduos que alcançam os níveis mais elevados de ensino.

O ensino superior brasileiro é, historicamente, reservado a uma pequena parcela da

sociedade, considerada privilegiada por ter seus direitos assegurados e representados na lei

4 O sentido atribuído à educação escolar estende-se aos vários níveis de educação, inclusive à superior.

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e na prática social. De acordo com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de

Domicílios (Pnad, 2015), 52% da população jovem, com até 25 anos, tem apenas o ensino

fundamental completo; 26,4%, dos sujeitos nessa faixa etária, consegue concluir o ensino

médio e somente 13,5% chega ao ensino superior. Ao inserirem-se em espaços de

formação acadêmica, os sujeitos possuem o direito de usufruir dos conteúdos da cultura e

desenvolver-se socialmente. Mas, no caso da realidade dos jovens brasileiros,

principalmente advindos das classes populares, a maioria está fora dos espaços

acadêmicos. Essa tendência emana do processo de privação de acesso à educação e a

elevação cultural e econômica sofridos ao longo de muitas gerações.

Os indivíduos que prolongam o tempo de estudos compreendem os pertencentes aos

grupos sociais privilegiados social e economicamente, os quais possuem os meios de

assegurarem o acesso e permanência nos cursos e instituições de educação superior. No

âmbito da educação superior pública, o “resultado deste processo foi uma grande elitização

do perfil dos alunos”, em especial nos cursos mais concorridos, onde ainda é muito

pequena a presença de pobres, afrodescendentes, indígenas e pessoas com deficiências, em

relação à população total (PINTO, 2004, p. 727).

As últimas décadas, principalmente a partir de 1990, foram marcadas por intenso

processo de mudança na estrutura do Estado e das políticas públicas. As mudanças atuaram

na implementação de projetos e políticas educacionais de ampliação dos sistemas de ensino

superior, principalmente nos países periféricos, ao molde da lógica neoliberal. O discurso

professado sobre a educação nesse segmento valora sua oferta como mercadoria. Emanam

dessa premissa as iniciativas de expansão e diversificação das instituições privadas de

ensino e a retração nos investimentos destinados às instituições públicas (MANCEBO,

VALE & MARTINS, 2015; SGUISSARD, 2015).

Nesse contexto, intensificou-se no Brasil o “processo de transformação de um direito

ou “serviço público” em serviço comercial ou mercadoria”. No desenvolvimento das

estratégias de intensificação do capital, por via da oferta de serviços em educação, “se

estanca a expansão da educação superior pública federal e reduzem-se os recursos a ela

destinados de 0,91% para 0,54% do PIB de 1995 a 2003” (SGUISSARD, 2015, p.871,

874).

O acesso à universidade pública tem relação com o direcionamento das políticas

educacionais. Apesar do estancamento nos investimentos, os países periféricos são

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exigidos a cumprirem metas, instituídas pelos índices internacionais, que elevem o tempo

de escolarização da população. Diante dessa justificativa, optou-se, no Brasil, pela

ampliação acelerada do segmento privado de ensino. Entre 1995 e 2010, houve um

crescimento de oferta “no número total de matrículas da ordem de 262,52%” no ensino

superior. No entanto, esse crescimento não significou a democratização do acesso, pois

nota-se maior número de matrículas nas instituições particulares, na ordem de 347,15%, do

que na rede pública, cujo aumento foi de 134,58%” (MANCEBO, VALE & MARTINS,

2015, P.35).

A diferença na expansão dos setores público e privado encontra fundamento na

tendência privatizante da educação superior, engendrada pela mobilização do capitalismo

financeiro, a partir da oferta de serviços educacionais de duvidosa qualidade. A dilatação

da oferta de vagas, matrículas e cursos nas universidades públicas federais resulta da

política de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI). (MANCEBO,

VALE & MARTINS, 2015; SGUISSARD, 2015; MANCEBO, SILVA JÚNIOR &

SCHUGURENSKY, 2015).

A ampliação da rede pública de ensino superior, principalmente universitário, emana

em novas possibilidades de acesso, mas a outra face dessa política é o baixo financiamento

para manter a qualidade dos cursos e dos processos de ensino (SILVA JÚNIOR, LUCENA

E FERREIRA, 2011). Apesar da dilatação do sistema ensino superior brasileiro, esta ainda

apresenta-se limitado, pois

só alcançou 16% da população entre 18 e 24 anos em 2013, nível muito abaixo

de países como Argentina, Uruguai e Chile, onde mais de 30% da população

nessa mesma faixa de idade consegue ingressar no ensino superior

(MONT’ALVÃO, 2015, p.132).

Além disso, expansão não significa equidade e democratização de acesso à educação

de qualidade e, tampouco, causa impacto significativo na adesão das classes populares nas

universidades, uma vez que

o possível efeito de inclusão, que proporciona o acesso de uma proporção

maior da população geral, não necessariamente leva a uma redução geral

das desigualdades de acesso, já que canaliza o acesso de grupos sociais

distintos de acordo com o tipo de instituição e acaba por minimizar o

impacto da expansão geral do sistema (MONT’ALVÃO, 2015, p.131).

Em análise às tendências de desigualdades de acesso ao ensino superior no Brasil nas

últimas três décadas, Mont’Alvão Neto (2014) destaca ter havido melhoria na cobertura do

sistema escolar fundamental e médio e isso impactou em aumento das possibilidades da

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população menos abastarda entrar no ensino superior. Para o pesquisador, somando-se a

esses fatores, a implementação de programas como Reestruturação e Expansão das

Universidades Federais (Reuni), o Universidade para Todos (Prouni) e as políticas de ação

afirmativa oferecem um suporte adicional na diminuição das desigualdades de acesso,

principalmente dos estudantes de origem socioeconômica desfavorecida, mas não resolvem

a dívida histórica de oferta de educação superior que o Estado tem para com a população

(MONT’ALVÃO NETO, 2014).

Santos (2012), em análise às políticas de ação afirmativa e à Lei n 12.711/12 (Lei de

Cotas), constata que na última década as “cotas ultrapassaram a condição de uma mera

demanda, alcançando o status de política pública” (p. 307), com significado simbólico de

marco histórico das lutas que refletem os interesses dos segmentos excluídos do lugar

social que é a universidade pública. Na forma de política pública, além disso, reflete um

compromisso explícito do Estado brasileiro na defesa desses sujeitos representados pela

lei.

O processo de formulação da política, desde as ações afirmativas concentradas até a

criação da lei, passou por etapas de aperfeiçoamento e reconfiguração no locus das

universidades públicas. As primeiras iniciativas de reserva de vagas para estudantes foram

motivadas pela constatação, no ano 1997, do baixo índice de concluintes negros (1,8%) e

pardos (2,2%), entre 18 e 24 anos, em cursos de graduação no Brasil. Concluiu-se com

isso, que havia impedimento de acesso aos estudos por causa da cor e condição social,

apresentados estatisticamente, e a necessidade de medidas de impedimento de perpetuação

desse ciclo (SANTOS, 2012; SOUZA, 2012).

Neste sentido,

mesmo não existindo legislação em âmbito nacional que obrigue todas as

instituições do país a adotarem algum tipo de PAA5, estas políticas já são uma

realidade desde 2002. Foram iniciadas no estado do Rio de Janeiro, que aprovou

leis aplicáveis à Universidade do Estado do Rio de Janeiro–Uerj e à

Universidade Estadual do Norte Fluminense–Uenf. Outra unidade da federação

que fez algo semelhante foi o Mato Grosso do Sul, que em 2003 aprovou

legislação própria. Ancorada na sua autonomia, também em 2003, a

Universidade do Estado da Bahia (Uneb) aprovou em seu Conselho Universitário

a adoção das cotas, situação parecida ocorreu na Universidade de Brasília (UnB).

De maneira singular, aos poucos as medidas de ações afirmativas nas IES

passaram a se concretizar. Desde então, um número significativo de IES passou a

adotar algum tipo de PAA, seja por força de leis dos respectivos sistemas, o que

poderíamos caracterizar como tendo sido de fora para dentro, seja por meio de

iniciativas gestadas nas e pelas próprias IES, embasadas na autonomia

universitária (SANTOS, 2012, p. 293).

5 Abreviação de Política de Ação Afirmativa

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A Lei das Cotas nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, regulamentada pelo Decreto nº.

7.824 e Portaria MEC nº 18, de 11 de outubro de 2012, é a medida mais recente de ação

afirmativa. Isso significa que é um dispositivo que protege o ingresso dos estudantes

autodeclarados negros, pardos, indígenas e deficientes físicos, e aqueles que concluíram

integralmente o ensino médio em escola pública, em instituições federais de educação

superior, com reserva de vagas por concurso seletivo (SANTOS, 2012). A aplicabilidade

da Lei de Cotas ocorre da seguinte forma:

Art. 3o Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o

art. 1o desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos,

pardos e indígenas e por pessoas com deficiência, nos termos da legislação, em

proporção ao total de vagas no mínimo igual à proporção respectiva de pretos,

pardos, indígenas e pessoas com deficiência na população da unidade da

Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo da Fundação

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE;

Parágrafo único. No caso de não preenchimento das vagas segundo os critérios

estabelecidos no caput deste artigo, aquelas remanescentes deverão ser

completadas por estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio

em escolas públicas (BRASIL, 2012).

No caso específico dos estudantes de escolas públicas, prevê-se que o preenchimento

das vagas deve ser reservado aos “oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5

salário-mínimo (um salário-mínimo e meio) per capita” (Idem, Art. 4º, Parágrafo único).

Os critérios renda e escolarização em instituição pública são requisitos específicos que

visam minimizar o impacto das desvantagens econômicas dos estudantes e de

escolarização básica e ampliar as possibilidades de acesso à educação pública superior.

De acordo com Souza (2012) as políticas afirmativas constituem-se como reformas

profundas ocorridas nas universidades públicas na última década. Para o autor, essas

políticas ao utilizarem a discriminação positiva para negros e pardos, exclusivamente,

justificam a necessidade de sua implementação “face ao negligenciamento ocorrido nas

políticas de Estado no período que se seguiu à abolição” (p.703). Ressalta, ao fazer uma

breve digressão histórica, que o Estado possui dívida com a população negra de acesso à

escolarização, à qualificação profissional e ao mercado de trabalho. Pois, após a abolição e

com a migração de europeus para o Brasil, os antigos escravos não obtiveram as mesmas

oportunidades de acesso à escola, à alfabetização, treinamento para o trabalho urbano e de

acesso a terra. Porquanto, os efeitos em educação se deram na persistência do

analfabetismo em gerações sucessivas, com reflexos no capital cultural das famílias e na

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economia familiar, formando uma massa de pessoas socialmente vulneráveis. Como

consequência, assinalou-se um ampliado hiato educacional entre negros, pardos e brancos,

o qual necessita, de alguma forma, ser corrigido (SOUZA, 2012).

Ao discorrer sobre a igualdade formal e a política como meio de diminuição das

desigualdades reais, enfrentadas por negros e pardos, mas também pela classe popular,

ressalta:

A igualdade formal requer que o tratamento seja apenas igual para todos. Aqui, o

problema requer igualdade de oportunidades, partindo-se da necessidade de

corrigir diferenças iniciais, sendo para tal aceitável uma discriminação positiva.

Note que a igualdade de oportunidades pode referir-se às condições iniciais, ao

desempenho e aos resultados. No caso das ações afirmativas, trata-se de ampliar

as chances de ingresso dos negros/pardos na universidade através de

discriminação positiva, que compense os efeitos das condições adversas

enfrentadas por gerações anteriores de negros/pardos (SOUZA, 2012, p.705).

A política busca uma solução de correção das desigualdades nas disputas pelas vagas

nas universidades ao compreender a discrepância entre os ensinos ofertados para os

diferentes grupos sociais, nas escolas públicas e privadas, como problemas estruturais. Por

essa questão, utiliza-se do critério da classificação étnico-racial e condição socioeconômica

como fator de desempate na concorrência pelas vagas reservadas pelas cotas. Mas, por

outro lado, deixa de atender os estudantes que cursaram o ensino médio em escolas

particulares de baixa qualidade e invisibiliza a discussão sobre a precariedade do ensino

nessas escolas. Compreende-se que a mudança da situação é lenta, “exigindo mais de uma

geração para superar esses efeitos negativos” e políticas específicas de reparação social

(SOUZA, 2012, p.708).

As compreensões acerca das políticas de cotas geram opiniões controversas e até

pouco fundamentadas sobre seus objetivos. O estudo sobre a representação dos estudantes

universitário da UNESP (campus de Presidente Prudente/SP) sobre alunos cotistas,

realizado por pesquisadores da Universidade Estadual Paulista e Universidade de Genebra

(MENIN, SHIMIZU, SILVA, CIOLDI & BULSCHINI, 2008) revelou que a maioria dos

403 entrevistados apresentou rejeição às políticas de cotas, pois ficou evidente a existência

de conflitos de valores entre o mérito pela concorrência da vaga (via seleção) e pela

compensação (via vestibular mais benefício da cota), destinada a determinados grupos.

Para a maioria dos entrevistados inclui-se como justo o oferecimento de curso pré-

vestibular gratuito aos negros e desfavorecidos economicamente e como injusto a garantia

de reserva de vagas pelo critério da cor da pele, colocando-o como questionável num país

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miscigenado como o Brasil.

É notório que a ideia colocada expõe a afirmativa de que o oferecimento de cursos

preparatórios para a seleção vestibular os coloca em posição de igualdade na competição

pela vaga. No entanto, esse argumento deixa de abarcar a falta de políticas e oportunidades

de acesso à escola(rização) e educação de qualidade, sofrida por várias gerações de negros,

pardos, podre etc. Ademais, deixa de abarcar a compreensão estatística de que, a cada

censo, “a população negra é a que menos tem tido acesso à educação, sobretudo à superior,

e onde se concentram os maiores índices de pobreza e miséria, quando comparada com a

população branca (MENIN, SHIMIZU, SILVA, CIOLDI & BULSCHINI, 2008, p. 559).

De acordo com os indicadores do documento Síntese de Indicadores Sociais (SIS), de

2015, no ano de 2004, 16,7% dos estudantes com 18 a 24 anos, autodeclarados pretos e

pardos, frequentavam o ensino superior. Em 2014, esse índice cresceu para 45,5%, embora

tenha elevado os índices da população branca de 47,2%, em 2004, para 71,4%. Esses

números fazem referência ao total de matrículas no ensino superior público e privado, não

se restringe ao ensino universitário. No entanto, é possível concluir que a elevação da

escolarização de estudantes pretos e pardos é consequência de ações voltadas

democratização dos espaços de formação superior acadêmica, sendo uma delas a política

de cotas.

Apesar desses impactos, é preciso destacar que a política de cotas não resolve por

completo a condição de privação histórica de acesso à educação e a cultura que atinge a

maioria da população brasileira, nem se configura como uma política de universalização do

ingresso nas instituições públicas de ensino superior. Mas, engendra tentativas de

reparação das desigualdades de acesso e ampliação de escolaridade dos indivíduos mais

desfavorecidos e vulneráveis socialmente. Visto isso, busca contemplar o princípio da

igualdade ao adotar “parâmetros protetivos mínimos dos direitos fundamentais”

(SANTOS, 2012, p.291).

Essa política não se desenvolveu e se mantém fora das disputas e conflitos em torno

da sua legalidade. A ampliação do consenso de validade necessita mobiliza-se a partir da

capacidade humana de planejamento dos destinos da comunidade futura de todos os

homens a partir da oferta universal de educação para formação humana e profissional de

todos os indivíduos. Mas, esse universalismo é uma conquista gradual e que passa a ser

realizado na abertura dos caminhos da teoria à prática (BOBBIO, 2004).

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3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na atual sociedade, marcada pela disputa e acúmulo de capitais, o conhecimento é

considerado elemento fundamental na mobilidade social e econômica. Partindo dessa

concepção, sua distribuição não é igualitária, mas atua na distinção entre os sujeitos. No

mote dessa questão, a educação formal, meio pelo qual o homem produz sua humanidade e

se socializa, não é distribuída igualmente para todos.

Por ser a educação um direito humano e social, conserva-se como matéria

fundamental ao desenvolvimento cognitivo e material do homem. Enquanto resultado da

produção histórica, os conhecimentos transmitidos através da educação formal, nos seus

vários níveis e modalidades, são acúmulos das culturas de muitas gerações. Logo, é

patrimônio de todos e um direito universal, a ser garantido prioritariamente pelo Estado -

entidade, ao menos teoricamente, protetiva dos direitos dos cidadãos.

No entanto, ao institucionalizarem os conhecimentos, produz-se também a ideia de

comercialização desses e a educação formal passa a produzir-se como riqueza cultural,

disponível para os “permitidos” a terem acesso aos meios de sua difusão. Neste sentido,

agregam-se valor simbólico aos conhecimentos e aos espaços que distribuem esses

conteúdos da cultura, assim como segregam os sujeitos privados do acesso a esses saberes

e transformam a educação e os espaços educativos em mercadorias e espaços de disputas.

As instituições educativas, principalmente de ensino superior, são afetadas pela lógica do

capital na distribuição da riqueza imaterial.

As universidades públicas tem como função atuarem na produção e difusão dos

conhecimentos científicos mais avançados. Essas instituições e sua estrutura estão imersas

nas contradições que se apresentam na totalidade da sociedade, pois enquanto entidade

destinada a atuar na propulsão da produção científica, humanística e tecnológica, na

formação humana dos indivíduos e na modificação da sociedade, está também sujeita a

operar como filtro social e com isso, por consequência, perpetuar a elitização institucional

e do alunado, por meio do acesso como mérito de poucos e não direito de todos. Por isso,

ao considerar tais contradições e a fim de tornar a universidade brasileira mais

democrática, criaram-se as políticas afirmativas, com objetivo de ampliar as chances de

negros, pardos, indígenas, deficientes e pobres no ingresso nas instituições de ensino

superior, através da reserva a serem disputadas por esse grupo.

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Na legislação vigente, não há a intenção de universalização da educação superior e a

cada ano diminuem-se os investimentos estatais destinados à manutenção das instituições

públicas, das ciências e a permanência dos estudantes mais vulneráveis economicamente.

Além disso, em razão da mobilização do capital financeiro, por via da expansão da rede

privada de ensino superior e das políticas neoliberais, a retração dos investimentos

públicos em educação significa um amplo sucateamento do sistema, repercutindo na vida

de milhões de brasileiros que desejam acessar o ensino gratuito. O fator da gratuidade é

elemento fundamental no prolongamento dos anos de estudos.

Atualmente as concepções sobre o papel da universidade na sociedade brasileira são

difusas e estão imersas no mesmo processo de mercantilização da educação, pois as

políticas de diminuição das desigualdades ainda são vistas como vantagens para uns e

demérito para outros. Ou seja, concebem as disputas pelas vagas como legítimas em meio

às desvantagens culturais e econômicas que afetam milhares de jovens das classes

populares.

Considera-se a Lei das Cotas nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, política de ações

afirmativas, como uma expressão das lutas pela democratização do acesso à universidade e

aos conhecimentos produzidos em seu interior. Embora não seja uma política universal,

possui força de lei na defesa do direito dos grupos historicamente privados à educação e

pressiona o Estado na movimentação de ações que visem à justiça social. Portanto, no

escopo desse artigo, a lei de cotas é expressão concreta na luta pela diminuição dessas

desigualdades, embora não atue na correção das disparidades educacionais iniciadas no

ensino básico, atua como mecanismo de proteção ao direito de ingresso ao ensino superior

público. Portanto, a lei de cotas opera na ampliação do direito humano à educação, à

formação para o trabalho e o exercício da cidadania, fundamental ao desenvolvimento do

homem e de toda sociedade.

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