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1 EDUCAÇÃO PARA A TRANSFORMAÇÃO: UM ESTUDO DA CATEGORIA CONSCIENTIZAÇÃO NA OBRA DE PAULO FREIRE Ana Paula Salvador Werri (UEM) [email protected] A preocupação central deste trabalho é compreender como se desenvolveu a categoria conscientização na teoria educacional freiriana. Com este estudo, pretendemos compreender a relação entre subjetividade e objetividade, bem como, o papel destinado a educação por Paulo Freire durante a elaboração de duas das suas mais importantes obras, Educação como prática de liberdade e Pedagogia do oprimido. O recorte foi efetuado, por entendermos que estas são obras de dois períodos subseqüentes, os quais guardam entre si diferenças que devem ser consideradas, tanto em suas determinações históricas, como nas diferentes influências teóricas que, conseqüentemente, resultaram em significados teórico-práticos diferenciados, mesmo mantendo suas bases filosóficas inalteradas. Com o desenvolvimento do presente trabalho, objetivamos contribuir para a elucidação dos fundamentos teórico-práticos deste renomado e polêmico educador brasileiro, à luz das condições históricas, nas quais o mesmo construiu sua obra e atuou como educador. A importância de estudar o pensamento de Freire pela abordagem histórica, reside em sua obra se constituir numa síntese do pensamento pedagógico de seu tempo, em que podemos observar a concatenação das teorias e discussões daquele momento em torno das idéias educacionais e pedagógicas 1 , representando o debate entre diferentes interesses políticos e sociais. As duas obras escolhidas para análise pertencem a dois momentos distintos, Educação como Prática de liberdade é o primeiro livro de Freire, escrito em 1 SAVIANI (1999) diferencia idéias educacionais, entendidas como fenômenos educativos derivados de concepções de homem e sociedade; das idéias pedagógicas, orientadoras da prática educativa propriamente dita.

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EDUCAÇÃO PARA A TRANSFORMAÇÃO: UM ESTUDO DA

CATEGORIA CONSCIENTIZAÇÃO NA OBRA DE PAULO FREIRE

Ana Paula Salvador Werri (UEM) [email protected]

A preocupação central deste trabalho é compreender como se desenvolveu a

categoria conscientização na teoria educacional freiriana. Com este estudo,

pretendemos compreender a relação entre subjetividade e objetividade, bem

como, o papel destinado a educação por Paulo Freire durante a elaboração de

duas das suas mais importantes obras, Educação como prática de liberdade e

Pedagogia do oprimido. O recorte foi efetuado, por entendermos que estas são

obras de dois períodos subseqüentes, os quais guardam entre si diferenças

que devem ser consideradas, tanto em suas determinações históricas, como

nas diferentes influências teóricas que, conseqüentemente, resultaram em

significados teórico-práticos diferenciados, mesmo mantendo suas bases

filosóficas inalteradas.

Com o desenvolvimento do presente trabalho, objetivamos contribuir para a

elucidação dos fundamentos teórico-práticos deste renomado e polêmico

educador brasileiro, à luz das condições históricas, nas quais o mesmo

construiu sua obra e atuou como educador. A importância de estudar o

pensamento de Freire pela abordagem histórica, reside em sua obra se

constituir numa síntese do pensamento pedagógico de seu tempo, em que

podemos observar a concatenação das teorias e discussões daquele momento

em torno das idéias educacionais e pedagógicas1, representando o debate

entre diferentes interesses políticos e sociais.

As duas obras escolhidas para análise pertencem a dois momentos distintos,

Educação como Prática de liberdade é o primeiro livro de Freire, escrito em

1 SAVIANI (1999) diferencia idéias educacionais, entendidas como fenômenos educativos derivados de concepções de homem e sociedade; das idéias pedagógicas, orientadoras da prática educativa propriamente dita.

2

1964 após o Golpe Militar, representa a primeira fase de sua produção2. Neste

livro Freire sintetiza sua elaboração teórica efetuada antes do exílio e

sistematiza seu método de alfabetização de adultos. A grande preocupação de

Freire neste momento era auxiliar na formação de um povo que se integrasse

aos problemas brasileiros e, assim, contribuísse para o seu desenvolvimento.

Pedagogia do Oprimido3 foi escrito entre 1967 e 19684, representa a segunda

fase de sua produção, neste momento Freire está num trabalho intensivo fora

do Brasil, onde pode rever seus escritos e refletir sobre as contradições

explicitadas pela ditadura militar e pelas diferenças sociais encontradas em

outros países. Esta obra é um marco de sua produção, pela adoção de um

referencial teórico mais próximo do marxismo e pela identificação das

diferenças antagônicas dos interesses entre opressores e oprimidos. A

pedagogia do oprimido vem imprimir um novo significado político a teoria

educacional freiriana.

Para compreender o significado da categoria conscientização nas duas obras

escolhidas faremos um estudo comparado entre elas, tentando identificar os

elementos teórico-práticos que as diferem. Inicialmente, apresentaremos as

bases filosóficas que fundamentam suas concepções de homem e sociedade.

Em seguida, demonstraremos como estas diferenças modificam a

compreensão da formação da consciência, o papel da educação e conseguinte

o da própria conscientização.

1- AS CONCEPÇÕES DE HOMEM E SOCIEDADE

A categoria “conscientização”, nosso objeto de investigação, está imbuída do

tipo de interpretação da realidade e das concepções de homem encerradas por

sua teoria. Portanto, se faz necessário a compreensão do seu referencial

2 A produção teórica de Paulo Freire pode ser dividida em três momentos: o primeiro, pelos escritos efetuados antes do Golpe Militar (1964); o segundo, corresponde ao exílio, quando trabalhou em diversos países do mundo e o terceiro, pelo retorno de Freire ao Brasil (1979), sua atuação como secretário de educação em São Paulo (1989-1991), até a sua morte (1997). 3 No decorrer do texto utilizaresmo EPL para o livro Educação como Prática de Liberdade e PO para o livro Pedagogia do Oprimido. 4 Editado somente em 1970 nos Estados Unidos.

3

teórico, para inserir a categoria em seu contexto de concepção,

compreendendo suas determinações e verificando qual o seu papel histórico.

Por este motivo analisaremos as diferenças que podem ter cada período, visto

que qualquer alteração teórica desencadeará numa resignificação da categoria

conscientização e de sua aplicação social.

No estudo da concepção de homem nas duas obras escolhidas, encontramos

uma matriz teórica básica construída em EPL, mas que não se altera em PO e

permeará toda a obra freiriana. A concepção de homem de Freire está imbuída

das idéias humanistas cristãs, existencialistas e personalistas, verificamos forte

influência de Monier, Marcel e Jasper, dentre outros pensadores. Em EPL

muitas das características destas correntes filosóficas podem ser facilmente

encontradas, como as que se seguem.

O homem, para Freire, é um ser de relações, aberto à sua realidade, que “não

apenas está no mundo, mas com o mundo” (FREIRE: 1982b, p. 39). A forma

como estabelece suas relações “com o mundo” é que o diferencia dos simples

contatos feitos pelos animais, os quais apenas se encontram “no mundo”. Para

o autor a diferenciação entre homem e animal é importante para que possamos

compreender o homem como sujeito das transformações e construtor de sua

história.

As relações da esfera humana, para Freire, guardam em si características

exclusivas, que enriquecem o processo de existencialização5, de tal forma, que

ao se relacionar com seu meio, não se acomoda a ele, mas sim, o transforma

segundo suas necessidades. Esta diferenciação entre o homem e o animal,

demonstra que somente este é totalmente determinado biologicamente; e que

aquele é dotado de habilidades que o tornam criador, numa constante relação

com a natureza. Portanto, o homem não apenas cria, mas interfere em sua

realidade concreta, modificando-a segundo seus interesses. Assim, o homem

5 É a realização da vocação ontológica do homem, ou seja, a vocação histórica do homem de ser sujeito. O ser humano em sua busca constante pela sua “completude”, se percebem como seres capazes de pensar e transformar sua sociedade e assim, tornarem-se seres “para si”.

4

revela sua dupla dimensão, a natural e a histórica, que é evidenciada no seu

poder criador e transformador (FREIRE: 1982b, p. 41).

Em Pedagogia do Oprimido Freire vai acrescentar ao homem a característica

de “ser inconcluso” que se constrói em suas relações e ações (FREIRE: 1987,

p.31). A “inconclusão” do homem se deve ao fato dele ter a vocação ontológica

de ser mais, o que se configura numa busca constante por seu

aperfeiçoamento, em sua construção efetiva como sujeito interferidor. Portanto,

o maior objetivo do homem é cumprir sua vocação de “ser mais”, lutando por

sua humanização. O processo de humanização é o caminho pelo qual

percorrem homens e mulheres na busca de se tornarem conscientes de si

mesmos, de sua forma de pensar e de agir, bem como, do desenvolvimento de

suas capacidades, de forma que se tornem “seres para si”. Ou seja, homens e

mulheres que tenham consciência da sua situação existencial, que sejam

capazes de pensar e transformar a sua realidade concreta.

Em EPL6 Freire fala do homem como um ser de relações, um sujeito cultural, o

qual cria, recria e transforma sua realidade. No entanto, ao fazê-lo, o autor trata

esta atuação do homem através do conceito antropológico de cultura,

diferenciando o mundo da natureza do mundo cultural. Freire neste momento

ainda não explicita teoricamente o elemento chave da ação transformadora do

homem, o meio pelo qual ele se faz sujeito em sua realidade – o trabalho. Em

Pedagogia do Oprimido (1987) e em Ação Cultural como Prática de Liberdade7

(1982b), Freire já não fala do homem em termos culturais, ele desenvolve a

idéia de homem histórico, o qual produz sua existência a partir do trabalho, tal

como podemos observar na passagem que se segue:

(...) os homens são seres da práxis. São seres do quefazer, diferentemente, por isto mesmo dos animais, seres do puro fazer. Os animais não “ad-miram” o mundo. Imergem nele. Os homens, pelo contrário, como seres do quefazer “emergem” dele e objetivando-o,

6 Na formulação teórica de concepção de homem, em EPL, Freire não fala do trabalho como mediador entre o homem e a natureza e entre o homem e os outros homens. No entanto, quando Freire relata a sua experiência educacional, na utilização do conceito antropológico de cultura, ele utiliza o trabalho como tal. Vemos a sua prática superar sua teoria. 7 Este livro contém textos escritos entre 1968 e 1974, foi publicado 1976 e pertence ao mesmo período de produção que Pedagogia do Oprimido, por este motivo foi utilizado.

5

podem conhecê-lo e transformá-lo com seu trabalho (FREIRE: 1987, p. 121).

Os seres humanos são capazes de ter finalidades, de prever os resultados de

suas ações antes de iniciadas, diferentemente dos animais, eles são capazes

de projetar. Portanto, a maior diferença entre o trabalho humano e o animal é a

objetivação, ou seja, a possibilidade humana de reflexão sobre o produto a ser

realizado. Enquanto os animais se adaptam ao mundo para sobreviverem, os

seres humanos o transformam de acordo com as finalidades que se propõem.

Os seres humanos são seres da práxis e, ao transformar o mundo, estão

também transformando-se, “significa impregná-lo de sua presença criadora,

deixando nele as marcas de seu trabalho” (Freire: 1982b, p.69). Neste

processo constante de humanização do mundo pela ação transformadora do

homem, em que ambos se transformam, o homem e o mundo se historicizam

e, ao fazerem história, os homens também a contam.

Freire ainda complementa que o trabalho, para o ser humano não depende do

esforço físico empregado pelo sujeito, mas sim da consciência que ele tem de

suas habilidades essencialmente humanas, de seu próprio esforço, da

possibilidade de projetar a ação, de criar instrumentos para a atuação e de

prever seus resultados e finalidades. Para que a ação seja trabalho “é preciso

que dela resultem produtos significativos que, separando-se do produtor, se

podem dar à sua reflexão crítica ao mesmo tempo em que o condicionam”

(1982 b, p. 69).

O trabalho, desta forma, é o meio pelo qual o homem pode conhecer e

transformar o mundo, através da práxis:

(...) se os homens são seres do quefazer é exatamente porque seu fazer é ação e reflexão. É práxis. É transformação do mundo. E, na razão mesma em que o quefazer é práxis, todo fazer do quefazer tem de ter uma teoria que necessariamente o ilumine. O quefazer é a teoria e prática. É reflexão e ação. Não pode reduzir-se, como salientamos no capítulo anterior, ao tratarmos a palavra, nem ao verbalismo, nem ao ativismo. A tão conhecida afirmação de Lênin: ‘Sem teoria revolucionária não pode haver movimento revolucionário’ significa precisamente que não há revolução com verbalismo, nem tampouco com ativismo, mas

6

com práxis, portanto, com reflexão e ação incidindo sobre as estruturas a serem transformadas (FREIRE: 1987: p. 121).

A práxis é, assim, a relação dialética entre os seres humanos e seu mundo, na

qual constroem sua realidade e, ao fazê-la, elaboram também sua consciência

desta realidade. Através da práxis o homem pode conhecer de forma crítica

sua realidade, refletir sobre ela e então agir. Esta ação, no entanto, não será

ativismo, será prática enriquecida pelo conhecimento crítico da realidade (o

concreto pensado), por uma teoria construída segundo as dadas condições

histórias e suas necessidades.

Ao analisarmos a concepção de homem em PO observamos que Freire

mantém a base filosófica próxima ao existencialismo cristão, no entanto ao

desenvolver a idéia de homem histórico acrescenta a categoria trabalho como

subsídio desta discussão. A categoria trabalho vem enriquecer e elucidar

atividade criadora do homem, o que lhe confere caráter histórico e social.

Passemos agora ao resultado do estudo comparativo entre EPL e PO no que

diz respeito à análise da sociedade.

Nos anos de 1950 a economia brasileira completava o processo de transição

de um modelo agro-exportador, para o modelo urbano-industrial intensificado

no início do século XX, sendo expressão do desenvolvimento tardio da

industrialização no Brasil. Neste período, tinha início a segunda fase do

processo de substituição de importações, a qual se caracterizava pela

instalação de indústrias que dava ênfase a produção de equipamentos, bens

de consumo duráveis e produtos químicos, o que conseqüentemente requeria

aportes de capital mais elevados utilizando-se, assim, de capital estrangeiro

(RIBEIRO: 1998, p. 153).

Politicamente se configurava um Estado populista-desenvolvimentista, que

representava a aliança entre os interesses entre os empresários nacionais e os

setores populares, os primeiros tinham o objetivo de intensificar o processo de

industrialização capitalista, sob amparo protecionista e os segundos,

almejavam maior participação econômica e política. Porém este arranjo era

manipulado pela ascendente burguesia nacional contra as oligarquias. A

7

participação do capital estrangeira no momento de expansão não é visto como

perigoso, mas como uma imprescindível participação, que mais tarde vai expor

as contradições deste pacto, ao mostra a inviabilidade da conciliação de tais

interesses (FREITAG: 1980, p. 55).

Em EPL Freire analisa a realidade brasileira neste momento, para ele, ela é

uma sociedade em trânsito, que se desvencilha de sua estrutura de “sociedade

fechada”, para constituir-se numa “sociedade aberta”. De uma sociedade

brasileira marcada pela opressão, pela falta de diálogo, pelas relações

verticalizadas, para uma sociedade que pretendia-se democrática; este

processo de transição, para Freire, é um momento de “rachadura”, que rompe

com a herança da estrutura colonial, que se configurava por uma economia

dependente, baseada na agro-exportação, precária na vida urbana, reflexa em

sua economia e na cultura e mantida por relações verticalizadas e antidialogal

(FREIRE: 1982b, p. 49).

Tal estrutura, própria de uma sociedade escravocrata, sem participação das

camadas populares e antidemocrática, pautada no “mandonismo”, na

dependência e no “protecionismo”, impediu que se estabelecesse uma cultura

de diálogo, de comunicação, ou seja, a formação de uma mentalidade

democrática, em que se estabelecesse a participação do povo nas discussões

políticas. Para o educador, a inviabilidade de um comportamento participativo

seria, portanto, um dos elementos de estrangulamento de nossa democracia

(Freire: 1982b, p. 66).

A “rachadura” que inaugura o processo de transição, segundo Freire, decorreu

da “ruptura nas forças que mantinham a sociedade ‘fechada’ em equilíbrio”,

resultantes das alterações econômicas já em fins do século XIX, “com os

primeiros surtos de industrialização” (FREIRE: 1982b, p. 49). A modificação

econômica vem alterar a organização da sociedade e a própria relação de

poderes que, em decorrência, modifica também as estruturas sociais e as

culturais, de forma deflagrar um processo de re-laboração da identidade

nacional, e do novo homem necessário a esta sociedade.

8

Freire capta este movimento a partir de seu interior, recebendo as influências

das idéias que, neste momento, fomentam a intelectualidade brasileira, ao

mesmo tempo, na sua prática como educador buscava respostas para a

situação concreta de seus educandos e para a forma pela qual deveria dirigir a

educação destes. O pensamento social cristão do qual Freire fez parte, bem

como da filosofia da existência, foram as respostas que o educador recebeu

naquele momento, para a constituição de sua concepção de homem. No

entanto, em relação a sua leitura da realidade brasileira, Freire não fez grandes

elaborações, como seu objeto era a educação, ele se apropriou de análises já

sistematizadas de alguns intelectuais que serviam a seu propósito, como

Gilberto Freyre, Tristão de Ataíde, mas principalmente nas teorias produzidas

pelos intelectuais do ISEB, como Hélio Jaguaribe, Alberto Guerreiro Ramos,

Roland Corbisier e Álvaro Vieira Pinto.

Para o ISEB (TOLEDO: 1982) era necessário a crescente participação das

massas nos problemas nacionais para que se efetivasse o desenvolvimento

econômico. O que dependeria da atuação de uma classe dominante

esclarecida, que fosse capaz de apreender as “necessidades faseológicas” da

nação e dirigir o povo de forma a legitimar o projeto de desenvolvimento como

um projeto de toda a sociedade, no qual todos se envolvessem e trabalhassem

em seu propósito. Ocorria, assim, em suas análises, uma singular união entre as expressões tipicamente capitalistas do capital e do trabalho, os obreiros e a burguesia empreendedora, contra os interesses privilegiados remanescentes da velha ordem senhorial. Solidários, os proprietários dos meios de produção e os vendedores da força de trabalho davam forma a um só povo, progressivamente crítico, voltado para o futuro, coeso na luta pela realização da sociedade desenvolvida e senhora de seus destinos (BEISIEGEL: 1982, p. 50).

No campo político, ocorria uma mudança na composição da classe dominante,

em que a burguesia nacional se fortalecia politicamente (respaldada pela sua

ascendência econômica) frente à aristocracia rural, e tornava-se a protagonista

das mudanças estruturais da sociedade, exercendo, assim, uma forte influência

no direcionamento das mudanças. No entanto, para os isebianos, a classe

dirigente ainda não havia tomado ciência da sua responsabilidade como tal,

9

não utilizando totalmente o poder que lhe era atribuído e, por este motivo ainda

não tinham clareza no seu papel. Contudo, estes intelectuais consideravam-se

os “iluministas” da sociedade, aqueles que conduziriam as classes ao

conhecimento das tarefas e problemas da sociedade, para que cada um fosse

capaz de exercer sua função.

Tal projeto ganhava corpo com a crescente politização das massas. O

desenvolvimento econômico previa o rompimento com a antiga elite de

dominação, substituindo as oligarquias pela inquietação das massas que,

tomando corpo e intensificando sua participação, delegaria a seus

representantes – burguesia industrial, de forma democrática – os poderes para

que sustentassem tal desenvolvimento.

Freire defende a importância da “integração” dos homens na sociedade, esta

idéia já havia sido desenvolvida em “Educação e atualidade brasileira8” e, com

a mesma clareza, em EPL, obras em que podemos perceber de forma clara a

sua convocação à toda a sociedade à integração no desenvolvimento

econômico brasileiro. As transformações almejadas, as quais requeriam a

integração do homem brasileiro, confluíam para o desenvolvimento das

estruturas capitalistas de produção e não das transformações destas

estruturas. Portanto o problema crucial era:

O de conseguir o desenvolvimento econômico, como suporte da democracia, de que resultasse a supressão do poder desumano de opressão das classes muito ricas sobre as muito pobres. E de coincidir o desenvolvimento com um projeto autônomo da nação brasileira (FREIRE: 1982b, p. 87).

O desenvolvimento econômico, segundo ele, amenizaria os problemas sociais,

fazendo uma redistribuição de renda, ao mesmo tempo em que contribuiria

para o desenvolvimento das formas democráticas de organização política.

Estamos convencidos, com Lipset, de que “o aumento da riqueza não está somente relacionado com o desenvolvimento da democracia para alterar as condições sociais dos trabalhadores; na realidade, ela atinge também a forma de estrutura social, que deixa de ser representada como um alongado

8 Tese de concurso para a cadeira de História e Filosofia da Educação na Escola de Belas-Artes de Pernambuco, em 1959. Por corresponder ao primeiro período estudado e ter grande influencia na escrita de Educação como Prática de Liberdade será utilizada outras vezes em nosso texto.

10

triângulo, para transformar-se num losango com uma classe média crescente. A renda nacional relaciona-se sempre com os valores políticos e o estilo de vida da classe dominante. Tanto mais pobre seja uma nação, e mais baixos os padrões de vida das classes inferiores, maior será a pressão dos estratos superiores sobre elas, então consideradas desprezíveis, inatamente inferiores (FREIRE: 1982b, p. 86).

Freire atribui à industrialização a crescente participação do povo na vida

nacional, no entanto, isto não se dá apenas porque a industrialização

desenvolve uma consciência crítica nos indivíduos, mas porque ela os

transformam em produtores e consumidores de mercadoria, ou seja, são

indispensáveis para a produção e reprodução do capital. A criticidade que

almejavam era somente o reconhecimento que o povo deveria ter da sua

importância para o desenvolvimento econômico e, portanto, deveriam trabalhar

para tanto, de forma harmoniosa, cada um exercendo sua função na

sociedade, tanto os trabalhadores, como a burguesia nacional. As mudanças,

portanto, deveriam ocorrer dentro dos limites estruturais do capitalismo, era

apenas a modernização de tais estruturas que se encontravam atrasadas em

relação ao restante do mundo.

A práxis de Freire aponta uma contradição entre a teoria aqui explicitada e sua

atuação nos movimentos sociais no início da década de 1960, a sua prática de

educador acaba superando a sua teoria que servia à ideologia nacional-

desenvolvimentista, e consequentemente a sua teoria é revista e reformulada a

partir de uma nova abordagem das relações sociais na sociedade capitalista.

O exílio foi um momento de refletir sobre as experiências passadas, à luz das

novas circunstâncias políticas dos países que o acolheram e aquilo que o

próprio golpe militar de 1964 evidenciou, a inviabilidade de uma relação

harmônica entre as classes sociais. A reação conservadora abortou a

efervescente participação política das massas, demonstrando os interesses

contraditórios entre a burguesia e os trabalhadores. A nova percepção política

da sociedade refletiu-se em sua análise educacional, levando-o a repensar a

sociedade e o papel da educação na mesma. Assim, Freire estaria pronto para

rever sua elaboração teórica de até então, a qual não se distanciava da

11

concepção humanista cristã, no entanto, rompia com sua interpretação de

sociedade encontrada em seus primeiros escritos.

Em PO a desumanização dos homens segundo Freire é “um fato concreto na

história, não é, destino dado, mas resultado de uma ‘ordem’ injusta que gera a

violência dos opressores e esta, o ‘ser menos’”. Portanto, a “humanização e

desumanização, dentro da história, num contexto real, concreto, objetivo, são

possibilidades dos homens como seres inconclusos e conscientes de sua

inconclusão” (FREIRE: 1987, p.30). Nesta perspectiva, é a contradição

existente na relação opressor e oprimido que gera a situação de opressão, ou

seja, a distorção do ser mais, para uma relação de submissão, a qual leva o

homem à acomodação, negando-lhe a vocação de interferidor, sendo

submetido a prescrições, dominado por mecanismos ideológicos, imerso na

sua realidade, passando de sujeito a objeto.

Ao constatar a existência da relação contraditória entre opressores e oprimidos,

Freire está reconhecendo que existe uma relação de opressão de uma camada

da sociedade por outra. Apesar de não utilizar o materialismo histórico como

referencial de análise, Freire identifica esta relação como uma relação de

classes, em que uma é detentora dos meios de produção da sociedade,

enquanto a outra é destituída dos mesmos, vendendo sua força de trabalho

como única forma de sobrevivência.

Freire fala dos opressores como os patrões, que dependem dos oprimidos para

manter-se como opressores, e os oprimidos como os empregados, que são

explorados pelos patrões. Ele não explica as bases fundamentais de tal

relação, mas identifica a contradição de interesses entre as duas classes, e fala

que uma tomou a liberdade da outra em virtude de seu poder, fruto de suas

posses, portanto, a opressão se dá nas bases objetivas da sociedade, as

quais, numa relação dialética, se amplia para a subjetiva.

Percebemos assim, que Freire supera a compreensão de sociedade

encontrada em EPL, que servia os interesses do nacional-desenvolvimentismo.

Apesar, da sua experiência mostrar seu compromisso com o povo,

12

teoricamente, tinha um posicionamento liberal, defendendo a modernização do

país como uma necessidade de toda a sociedade. O contrário acontece em

Pedagogia do Oprimido, onde reconhece a contradição entre os interesses da

classe trabalhadora e os da burguesia, acabando por fazer a opção por uma

pedagogia que servisse a causa do oprimido, como instrumento de superação

desta relação violenta.

2- CONSCIENTIZAÇÃO: EDUCAÇÃO PARA A TRANSFORMAÇÃO?

A categoria conscientização é muito polêmica, há uma grande discussão em

torno de sua validade teórica. Porém, não abordaremos aqui a legitimidade

desta categoria, mas as características que ela ganha nos dois períodos de

produção de Freire abordados neste trabalho. Esta categoria foi escolhida por

permear toda sua teoria, mas principalmente por constituir-se na mediação

entre sua teoria e a sua prática. Além disso, é um objeto de pesquisa perfeito

para análise do seu pensamento, no que diz respeito a compreensão da

relação entre os elementos objetivos e subjetivos da realidade.

Já vimos que houve uma alteração significativa na compreensão das relações

sociais de EPL para PO, alterando o posicionamento político intrínseco a

educação. Agora passaremos à análise das determinações subjetivas do

sujeito, ou seja, a formação da consciência e sua relação com a objetividade, o

que pautará a redefinição do papel da educação nesta sociedade.

Em EPL Freire faz um estudo dos níveis de compreensão da realidade e

estabelece uma ligação direta entre consciência e o contexto econômico, a

promoção da consciência para ele acontece paralelamente “à promoção dos

padrões econômicos da comunidade”. Assim, a passagem da consciência

intransitiva para a transitiva-ingênua acontece de “forma automática”, à medida

que se intensifica o processo de urbanização e os sujeitos vivem novas

experiências e travam novas relações na sociedade em trânsito (FREIRE:

2001, p. 37).

13

A Consciência Intransitiva é “própria de lugares poucos desenvolvidos, como

as áreas rurais, sendo o modelo de uma sociedade fechada”. Neste nível as

preocupações do homem se restringem às “formas mais vegetativas de vida”,

não tendo um “teor histórico”. Ela “representa um quase incompromisso entre o

homem e a sua existência”, circunscrevendo-se a áreas estreitas de interesse e

preocupação, as quais não ultrapassam o que há de “vital biologicamente”

(FREIRE: 2001, p. 34 e 1982b, p. 60).

A Consciência Transitiva corresponde às “zonas de desenvolvimento mais

fortes”, em um primeiro momento é predominantemente ingênua, pela

simplicidade de interpretações dos problemas, pela subestimação do homem

comum, pelo gosto às explicações fabulosas, pela fragilidade na argumentação

e pelo forte teor de emocionalidade. No segundo momento, ao sofrer a

interferência de uma “educação dialogal e ativa, voltada para a

responsabilidade social e política”, ela se torna predominantemente crítica. E

“caracteriza-se pela profundidade na interpretação dos problemas e pela

substituição de explicações mágicas por princípios causais (FREIRE: 2001, p.

34 e 1982b: p. 61).

Como bem sintetizou PAIVA (2000, p. 176), a consciência ingênua e a

consciência crítica podem ser resumidas em dois pólos, nos quais os eixos

centrais sejam: “1) dominância de emoção x dominância da razão; o qual

desdobra-se em capacidade/incapacidade de dialogar; 2) recusa x aceitação

de mudança; 3) subjetivismo x objetividade na explicação da realidade”. O

primeiro seria próprio de sistemas autoritários de governo, próprios de relações

de subordinação. Enquanto que, o segundo seria imprescindível para a

construção e preservação das organizações democráticas, revelando-se

abertas ao novo, flexível às mudanças, sendo objetiva na percepção da

realidade e agindo racionalmente na resolução de problemas, bem como,

relacionando-se através do diálogo.

14

Influenciado por Guerreiro Ramos e Vieira Pinto9, percebemos uma influência

marcante da interpretação dualista de sociedade sobre a determinação

também dualista da consciência, como se a infra-estrutura fosse determinante

direto da superestrutura, sem mediações entre as complexas tramas que

articulam o particular e o geral e vice-versa, ficando preso, portanto, a uma

relação unilateral. Esta é uma interpretação mecanicista, que despreza a

relação dialética entre a objetividade e a subjetividade na constituição da

consciência, enfatizando o fator econômico em detrimento das relações em sua

totalidade. No entanto, vemos Freire avançar em relação aos isebianos,

quando enfatiza a importância da interferência pedagógica.

O desenvolvimento econômico, no entanto, não é suficiente para completar a

passagem da consciência transitiva predominantemente ingênua para a

transitiva predominantemente crítica, pois esta passagem não ocorrerá de

forma automática, pelo contrário, ela acontecerá somente a partir de uma

intervenção educativa. Mas, será necessário um “trabalho educativo com essa

destinação”, em “íntima relação com a industrialização, que nos é um

imperativo existencial”, ou seja, a educação deve trabalhar em consonância

com o desenvolvimento econômico, que tem por base a industrialização.

O processo educativo, para Freire, deveria propor “ao povo a reflexão sobre si

mesmo, sobre seu tempo, sobre suas responsabilidades, sobre seu papel no

novo clima cultural da época em transição”. O processo de conscientização,

realizado na relação educativa, promoveria a passagem de uma consciência

transitiva ingênua para uma consciência crítica (FREIRE: 1982b, p. 59). A

educação, assim, tem um papel fundamental no processo de transição, na

formação do homem necessário à sociedade democrática e industrial, o qual

deve se integrar de forma crítica nesta sociedade, contribuindo para o seu

desenvolvimento.

A educação, neste sentido, faz-se necessária para legitimar o projeto da

burguesia industrial para o país, representado pela ideologia nacional

9 Álvaro Vieira Pinto, Consciência e a Realidade Nacional e Alberto Guerreiro Ramos, A Redução Sociológica.

15

desenvolvimentista entre as massas, “pois o processo de desenvolvimento é

função das massas” (PINTO: 1956 apud FREIRE: 2001, p. 21). Assim, o

trabalho educativo não pode ser feito para o povo, mas com o povo, no sentido

de integrá-lo à nação. Percebemos, portanto, que a base da teoria educacional

de Freire neste momento, está ligada à ideologia do nacional-

desenvolvimentismo.

Contudo, será que uma afirmação como esta é tão fácil de se fazer? Mesmo

perante a demonstração de sua ligação com a ideologia burguesa de dado

momento, podemos afirmar categoricamente que a concepção de educação

Freiriana serviu aos interesses da elite?

A atuação e influência de Freire nos movimentos sociais da década de 1960

estabelecem uma contradição entre sua concepção educacional e a prática

pedagógica instituída nestes movimentos. Os movimentos de cultura e

alfabetização representavam os conflitos sociais e a polarização da sociedade,

em vista ao fracasso da aliança nacional desenvolvimentista, que a partir da

utilização de seu método educativo contribuiu para a politização das massas,

instrumentalizando-as em sua organização. A superação da concepção

educacional de Freire se dá na práxis, quando os atores sociais se apropriam

de suas idéias pedagógicas e a utilizam para o tensionamento das relações em

que estavam inseridos.

A defesa da “integração” do povo nos problemas nacionais rui, com a

conjuntura social que se delineia no início da década de 1960, quando ocorre

uma nítida polarização das forças sociais da sociedade; entre setores

populares, até certo ponto representados pelo Estado e intelectuais da classe

média, e do outro lado, grande parcela da classe média, a burguesia nacional,

o capital estrangeiro e as oligarquias (FREITAG: 1980, p. 56). As contradições

entre os interesses de classe se afloram, mostrando a inviabilidade do projeto

nacional harmônico, deflagrando na organização popular. Neste momento as

idéias pedagógicas de Freire serão úteis para os movimentos populares na

preparação de uma consciência para a contestação da ordem vigente.

16

As modificações da compreensão das relações sociais em PO também

decorrem da análise deste movimento. O papel da subjetividade ganha uma

nova conotação política e a formação da consciência ganha uma explicação de

acordo com a contradição entre opressor e oprimido, gerando uma nova

compreensão do ser social e de seu papel histórico. A opressão se dá nas

relações concretas da sociedade e, como a consciência é constituída ao

mesmo tempo em que o mundo, veremos que Freire compreende a

consciência como expressão desta relação.

A consciência do opressor dá-se na relação que este estabelece com seu

contrário, da mesma maneira, a consciência do oprimido dar-se-á nesta mesma

relação. Portanto, a percepção de mundo, de homem e das relações

estabelecidas neste mundo por estes homens, terão como referência sua

relação objetiva da estrutura de dominação, ou seja, a relação de submissão e

exploração entre opressor e oprimido.

A consciência do oprimido se constitui na base concreta da sociedade e se

manifesta de forma ideal na consciência. Da mesma forma a consciência do

opressor se dá nesta mesma relação. Portanto, a visão de mundo dos

oprimidos é a visão de mundo da classe dominante, à medida que pensam na

superação da sua situação de opressão, somente almejam um dia tornarem-se

opressores. Pois, para eles o ideal de homem é o opressor e o tipo de vida que

sua posição pode oferecer.

A classe dominante, consciente da relação que estabelece com o oprimido, tem

clareza de seu papel na sociedade, que se configura na manutenção das

estruturas sociais, além disso, reconhece as ações que tem de realizar para

tanto. No entanto, o oprimido nem sempre reconhece o tipo de relação em que

está envolvido, para Freire o oprimido pode ter níveis diferentes de

compreensão da realidade, à medida que ele se desprenda das explicações

fatalistas inculcadas pela ideologia da classe dominante e possa compreender

de forma crítica a realidade em que vive.

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Para Freire, as explicações míticas e as interpretações deterministas da

sociedade são doações da classe dominante, a qual utiliza-se de mecanismos

de ocultamento das relações reais para impedir que a classe trabalhadora

possa compreender a realidade e as determinações que resultam na sua

opressão. Portanto, as explicações que os oprimidos têm do mundo são as

explicações de velamento das relações de exploração, o que naturaliza tal

situação, impedindo que a maioria explorada por uma minoria, se levante

contra tal situação.

Freire, no entanto, aponta que à medida que os oprimidos se descobrem em

uma relação contraditória com o opressor, reconhecendo que são explorados e

que tal situação não mais os satisfaz, adquirem uma nova compreensão da

realidade, assumindo uma consciência “em si”, em que conseguem identificar o

opressor fora de si. Esta nova compreensão da realidade revela uma

consciência mais enriquecida das relações que partilham, no entanto, não é

ainda uma consciência “para si”10, em que tal percepção incitaria uma luta para

sua superação.

Ao fazer isso, Freire supera sua compreensão de consciência encontrada em

EPL e identifica um caminho para superação desta relação, não sugerindo a

harmonização dos interesses das classes, pelo contrário, a consciência crítica

em Pedagogia do Oprimido é uma consciência revolucionária que, em sua

práxis, busca a superação da sociedade de classes.

Para Freire “não se pode pensar em objetividade sem subjetividade. Não há

uma sem a outra”, portanto, estas dimensões “não podem ser dicotomizadas”

(FREIRE: 1987, p. 37). A relação dialética entre a consciência e a realidade

concreta é fundamental para Freire, mas ele adverte, somente rompendo com

a interpretação simplista da realidade, ou seja, do senso comum, pode-se

reconhecer a verdadeira relação existente entre os pólos contraditórios da

sociedade e reconhecer-se em um deles. 10 A compreensão de Freire de consciência “em si” e “para si”, revela a leitura de “História e consciência de classe”, obra de Lukács, marcada pela influência de Hegel, os quais foram citados algumas vezes em Pedagogia do Oprimido. A própria contradição entre opressor e oprimido, revela uma certa influência da idéia de “servo e escravo” de Hegel.

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Reconhecer-se fora do opressor é condição fundamental para o processo

revolucionário, no entanto, não é o seu fim, pois, tal reconhecimento não

modifica em nada as relações concretas, apenas é o primeiro passo para a

tomada de consciência. Para Freire, a tomada de consciência não é ainda a

consciência crítica, pois esta somente se dá no processo de conscientização,

em que o homem ultrapasse a esfera espontânea de apreensão da realidade e

passe a elaboração da práxis revolucionária, assumindo um compromisso

histórico:

A realidade social, objetiva, que não existe por acaso, mas como produto da ação dos homens, também não se transforma por acaso. Se os homens são os produtores desta realidade e se esta, na “inversão da práxis”, se volta sobre eles e os condiciona, transforma a realidade opressora é tarefa histórica, é tarefa dos homens (FREIRE: 1987, p. 37).

Frente a esta relação de opressão, Freire destaca a grande tarefa humanista

da história dos oprimidos: “libertar-se a si e aos opressores”, pois somente o

oprimido pode libertar-se da opressão e da exploração e, ao fazê-lo, está

libertando também aquele que o oprime, não colocando-se no lugar dele, mas

sim, trabalhando para a superação da relação de exploração. O oprimido, desta

forma, estaria lutando por sua humanização, cumprindo sua verdadeira

vocação (FREIRE: 1987, p. 35).

A conscientização, como um processo educativo, é um meio de organização

política do oprimido, ela instrumentaliza na luta pela superação da realidade de

exploração. O processo de conscientização permeia toda a proposta

educacional de Freire e é essencial para o movimento revolucionário, como

imperativo educativo na constituição de sua práxis. Assim, percebemos o

comprometimento político de Freire na sistematização de uma teoria

educacional que, por entender a inviabilidade de sua neutralidade, faz-se

revolucionária.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As teses eminentemente educacionais, não se alteram estruturalmente de EPL

para PO, o que se altera é a finalidade da educação, ao ser considerada em

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uma nova perspectiva teórica, atribui um novo significado político e social que

se contrapõe ao primeiro livro. Neste sentido, podemos destacar as alterações

teóricas fundamentais da utilização da educação que se propõe a

conscientizar.

Percebemos que a essência de sua teoria pouco se altera, como sua

concepção de homem, e, mesmo incorporando elementos do materialismo-

histórico, não abandona a fundamentação existencialista-cristã11. No entanto,

perceberemos uma alteração significativa entre os dois livros na compreensão

das relações sociais, o que será decisivo na significação política da educação

em cada momento. Em EPL, Freire propõe uma educação que fosse

significativa para seu momento histórico, em que se configurava a transição de

uma sociedade fechada para uma sociedade aberta, ou seja, de uma

sociedade marcada por uma economia agrário exportadora e essencialmente

rural, para uma sociedade que industrializava-se e intensificava seu processo

de urbanização.

A educação deveria responder às exigências deste momento, contribuindo para

a modernização do país, oferecendo os instrumentos de criação de uma

sociedade democrática e formando os quadros técnicos de uma economia

industrial. Neste contexto, a educação era um importante veículo de integração

social nos moldes da democracia liberal, em que se pregava a harmonia social

para o desenvolvimento do país.

Já em PO, a relação entre a classe dominante e a classe dominada é

percebida nas suas contradições, como uma relação de opressão que se dá

nas bases objetivas da sociedade, mas que se manifesta na subjetividade dos

indivíduos. Compreendendo, assim, a inviabilidade de uma educação neutra,

pois a educação é um instrumento tanto de dominação, quando nas mãos da

11Freire fala sobre tal conciliação, numa entrevista: “[...] Marx me ensinou a reler os evangelhos. [...] eu não vejo nenhuma contradição à minha opção cristã pretender uma sociedade que não se funda na exploração de uma classe por outra. [...] devo dizer que tanto a minha posição cristã quanto a minha aproximação a Marx, ambas jamais se deram ao nível intelectualista, mas sempre referidas ao concreto. Não fui às classes oprimidas por causa de Marx. Fui a Marx por causa delas. O meu encontro com elas é que fez encontrar Marx e não o contrário” (LEITE: 1979, p. 75).

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elite dominante; como de organização revolucionária, quando nas mãos dos

oprimidos.

A educação, desta forma, ganha um caráter essencialmente político. Em que o

conhecimento será ferramenta estratégica na libertação das estruturas de

opressão da sociedade, em contraposição aos mecanismos de dominação

utilizados pela classe dominante. Por este motivo, a educação é ação cultural

para a libertação, que através do processo de conscientização, pretende

adensar a compreensão da realidade do educando, de modo que este se

organize politicamente em uma atitude de transformação.

A educação em EPL, tinha a função de integrar o homem à sua realidade,

munindo-o da capacidade de participação política, ao transitar de uma forma

ingênua de compreender a realidade (consciência transitivo ingênua), para uma

com um teor mais crítico (consciência transitivo crítica). Em PO, a educação

tem a finalidade de auxiliar o oprimido a extrojetar o opressor de sua

“consciência hospedeira”, identificando-o como seu antagônico. A consciência

que está em “aderência” ao opressor é uma “consciência dual”, pois

compreende as idéias da classe dominante, como suas próprias idéias.

Extrojetar o opressor é reconhecer-se em uma relação contraditória com seu

antagônico, ao fazer isso, o oprimido estaria adquirindo a consciência “em si”, a

qual não é ainda uma consciência crítica, é apenas a tomada de consciência.

O desenvolvimento de uma consciência crítica implica o desenvolvimento da

tomada de consciência, à qual realiza-se a partir de uma educação

problematizadora da realidade do educando, que o faça ultrapassar o nível de

“consciência real” e atinja o da “consciência máxima possível”. A consciência

crítica não é apenas a percepção da relação de opressão, implica ainda um

comprometimento com sua transformação. Ela não pode existir fora da práxis,

pois constitui-se no processo de conscientização, que é um contínuo

desvelamento da realidade, de maneira dialética, ou seja, com a constante

reflexão sobre a prática. Por este motivo, a conscientização em PO é

imprescindível para a constituição da práxis revolucionária. Enquanto a

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“consciência crítica”, em EPL, é integração ao processo democrático, em PO

ela é consciência revolucionária.

As mudanças ocorridas nas teses epistemológicas evidenciam-se tanto com o

novo significado político que é atribuído à educação em PO, como na mudança

da influência teórica que pode ser percebida com as referências bibliográficas.

Em EPL suas referências eram, Álvaro Vieira Pinto, Guerreiro Ramos, Tristão

de Ataíde, Fernando de Azevedo, Gilberto Freyre, Oliveira Viana, Anísio

Teixeira, Karl Mannheim, Karl Jaspers, Gabriel Marcel, Simone Weil, Karl

Popper, Barbu Zevedei, entre outros. Em PO suas principais referências são

Karl Marx, Vladimir Lênin, Che Guevara, Louis Althusser, Eric Fromm,

Marcuse, Mao Tse-tung, Lucien Goldmam, dentre outros. Isso não significa que

as primeiras tenham se tornado irrelevantes, mas que as outras vieram

acrescentar uma nova compreensão da realidade e do papel da educação.

No entanto, não foram somente as novas influências teóricas que contribuíram

para a modificação de sua teoria, sua prática mostrou-lhe novas possibilidades

de compreensão da realidade. O processo metodológico, dialógico e dialético,

a que Freire se propôs, acabou por educá-lo. As contradições da realidade de

opressão expressavam-se tanto no cotidiano dos educandos, durante a

pesquisa do conteúdo programático, como nos diálogos descodificadores,

quando os educandos-educadores apresentavam novas problematizações de

sua realidade, levando os educadores-educandos a perceber novas mediações

para a compreensão da realidade (concreta). No processo de conscientização,

o conscientizado, foi também, o próprio Freire, ao perceber que as situações

concretas de seus educandos revelavam-se muito mais complexas que ele

presumia.

Percebemos no decorrer do estudo, que as alterações teóricas ocorridas na

produção freiriana, propiciaram a modificação na significação da categoria

conscientização. Embora reconhecemos que em EPL, a prática havia superado

a teoria, não podemos deixar de destacar que em PO há uma compreensão

mais elaborada do significado social que tal método de alfabetização implica.

Se, no primeiro momento a conscientização significava a integração do povo às

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discussões políticas no modelo da democracia liberal, no segundo, é condição

fundamental para a constituição de uma “consciência de classe”, a qual se faz

na práxis revolucionária.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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