educação musical

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REVISTA DA ABEM | Londrina | v.20 | n.27 | 105-116 | jan.jun 2012 105 abstract Este artigo, que tem como foco a formação do professor de música na contemporaneidade, apresenta reflexões fundamentadas no pensamento moraniano. Toma como ponto de partida a diversidade cultural na educação, que pode ser resultante das transformações oriundas da globalização, aliada ao desenvolvimento tecnológico, para postular os desafios e as perspectivas da docência. Foi elaborado a partir de resultados de pesquisa e tem por objetivo enfatizar a formação do professor, trabalhando as relações entre o pensamento musical e o pensamento complexo, em contraponto com a fragmentação do conhecimento. Propõe uma “cabeça bem feita” para o educador musical. PALAVRAS-CHAVE: formação de professores de música, complexidade, pensamento musical FERNANDA ALBERNAZ DO NASCIMENTO Universidade Federal de Goiás (UFG) [email protected] This article focusing on contemporary music teacher education presents reflections based on the thought of Edgar Morin. It takes as its starting point cultural diversity in education, which may be the result of transformations arising from globalization along with technological development which present teaching with challenges and perspectives. It was written on the basis of research with the objective of emphasizing teacher education, in particular the relationship between musical thought and complex thought as a counterpoint to the fragmentation of knowledge. It proposes that musical education teachers get a “well-done head”. KEYWORDS: education of music teachers, complexity, musical thought resumo Educação musical sob a ótica do pensamento complexo Musical education from the perspective of complex thought

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Educação Musical sob a otica do pensamento complexo.

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  • REVISTA DA ABEM | Londrina | v.20 | n.27 | 105-116 | jan.jun 2012 105

    abstract

    Este artigo, que tem como foco a formao do professor de msica na contemporaneidade, apresenta reflexes fundamentadas no pensamento moraniano. Toma como ponto de partida a diversidade cultural na educao, que pode ser resultante das transformaes oriundas da globalizao, aliada ao desenvolvimento tecnolgico, para postular os desafios e as perspectivas da docncia. Foi elaborado a partir de resultados de pesquisa e tem por objetivo enfatizar a formao do professor, trabalhando as relaes entre o pensamento musical e o pensamento complexo, em contraponto com a fragmentao do conhecimento. Prope uma cabea bem feita para o educador musical.

    palavras-chave: formao de professores de msica, complexidade, pensamento musical

    Fernanda albernaz do nascimento Universidade Federal de Gois (UFG) [email protected]

    This article focusing on contemporary music teacher education presents reflections based on the thought of Edgar Morin. It takes as its starting point cultural diversity in education, which may be the result of transformations arising from globalization along with technological development which present teaching with challenges and perspectives. It was written on the basis of research with the objective of emphasizing teacher education, in particular the relationship between musical thought and complex thought as a counterpoint to the fragmentation of knowledge. It proposes that musical education teachers get a well-done head.

    KeYWOrDs: education of music teachers, complexity, musical thought

    resumo

    educao musical sob a tica do pensamento complexoMusical education from the perspective of complex thought

  • NASCIMENTO, Fernanda Albernaz do

    REVISTA DA ABEM | Londrina | v.20 | n.27 | 105-116 | jan.jun 2012106

    A sociedade contempornea passa por um momento de mudanas e transformaes e torna-se cada vez mais diversificada, fato perceptvel tanto para um simples observador quanto, principalmente, para um pesquisador atento. As transformaes ocorrem no plano das ideias, bem como no comportamento individual e coletivo. As novas ideias contrapem o pensamento fragmentado ao pensamento complexo. Essas modificaes nos conduzem a refletir e a analisar os parmetros que norteiam a sociedade na contemporaneidade.

    As mudanas no ocorrem segundo um padro previamente definido. Assim, tais movimentos tm gerado um estado de constante instabilidade. Tal conduta exige discernimento, por parte de pessoas, de grupos e de instituies, cujo pressuposto o pleno respeito s liberdades individuais e coletivas. Nesse processo, no podemos perder de vista a formao e a condio humana, com um pensar aberto e livre.

    O princpio epistemolgico deste artigo a articulao entre cultura, educao musical e pensamento complexo. As proposies apresentadas neste trabalho esto focadas no processo educacional da msica, em um sentido amplo e diversificado, em consonncia com um dos paradigmas da contemporaneidade, que considera o ser humano como um elemento integrador do sistema planetrio e entende o homem como sendo natureza e cultura. Seguindo tal paradigma, entendemos que o indivduo, em sua formao, seja na fase inicial seja na continuada, capaz de desenvolver um pensamento sistmico, integrador, sem priorizar a fragmentao dos conhecimentos apreendidos.

    A proposta articula esses princpios de cultura, educao musical e pensamento complexo na formao acadmica do professor de msica, que se entende por um indivduo cujo conhecimento se constri em sinergia, em forma de rede, em somatria de saberes. Ele deve ter sempre em mente o ser humano em sua totalidade e, para isso, preciso que as instituies formadoras saibam construir, por intermdio de seus professores, uma cabea bem feita, o que significa que os alunos, em vez de meramente acumularem saber, devem dispor ao mesmo tempo de uma aptido geral e de princpios organizadores, devem ser ensinados a viver. Esses pressupostos tericos baseiam-se no pensador francs Edgar Morin, para quem a educao a formao para a vida.

    A composio deste trabalho embasa-se em pesquisa em andamento, desenvolvida no Programa de Ps-Graduao em Msica da Universidade Federal de Gois, que tem como um dos lcus de discusso a disciplina Pensamento Musical e Complexidade. Aps leituras, consideraes e reflexes realizadas durante o curso da disciplina em vrias turmas, surgiram diversas inquietaes, algumas das quais so apresentadas como questes norteadoras: qual a formao musical que atende diversidade sonoro/musical da contemporaneidade? Como deve ser um msico portador de uma audio sistmica, ou seja, uma audio complexa, que envolve o organismo como um todo e ainda o seu contexto? Como o pensamento complexo pode dialogar com a msica na formao musical? O que ter uma cabea bem feita em msica?

    A ideia norteadora do artigo propiciar a reflexo sobre as perguntas apresentadas sem ter a pretenso de encontrar respostas para as demais, mas oportunizando ao professor de msica um insight de uma cabea bem feita, estabelecendo conexes pertinentes com outras reas de conhecimento.

    A interface com outras reas do conhecimento parte da hiptese de que a msica interfere positivamente no processo de desenvolvimento do ser humano, aprimorando os fatores cognitivos e perceptivos do indivduo, o que por sua vez gera aspectos positivos na relao de integrao do indivduo com a sociedade, com outros indivduos e com ele mesmo. Este artigo reflete o desejo de cooperar com a formao do homem musical, ou seja, aquele que compreende os sons, na concretizao de uma sociedade mais humanizada.

    introduo

  • Educao musical sob a tica do pensamento complexo

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    A contemporaneidade tem sido marcada pela intensificao da revoluo paradigmtica, o rompimento com o paradigma reducionista, fragmentador do conhecimento e da realidade em busca de novas explicaes sobre o real e a natureza do que cognoscvel. Vrios so os autores que tm colaborado para tal mudana. Entre outros renomados cientistas, destacam-se: Edgar Morin, Ilya Prigogine, Basarab Nicolescu, Fritjt Capra, David Bhm, Henri Atlan, Humberto Maturana e Francisco Varela.

    Este artigo, valendo-se do caminho e do instrumental de abordagem da revoluo paradigmtica, baseia-se nos sete princpios da complexidade, que so: 1) O princpio sistmico ou organizacional; 2) O princpio hologrmico; 3) O princpio do circuito retroativo; 4) O princpio do circuito recursivo; 5) Princpio da autonomia/dependncia (auto-organizao); 6) O princpio dialgico; e 7) O princpio da reintroduo do conhecimento em todo conhecimento. Entretanto, priorizam-se o princpio sistmico ou organizacional, o princpio do circuito recursivo e o princpio dialgico, os quais sero apresentados separadamente, a posteriori.

    Ao se falar em complexidade, necessrio alimentar-se das obras de Morin sobre o pensamento complexo. Edgar Morin1 est entre os maiores pensadores do sculo XX. Possui extensa produo de livros e artigos publicados e traduzidos em diversas lnguas. Em sua obra, ele nos ajuda a reconhecer que a organizao do conhecimento feita por operaes de ligao (conjuno, incluso, implicao) e de separao (diferenciao, oposio, seleo e excluso), lembrando que todo conhecimento comporta separao e ligao, anlise e sntese e tudo isso ao mesmo tempo, pois o processo circular, dinmico e recursivo. Assim, todo pensamento complexo se cria e recria a partir do seu prprio movimento.

    Uma das publicaes desse autor que fundamentam as reflexes apresentadas neste trabalho e que trata de um ensino educativo o livro intitulado em portugus Cabea bem-feita: repensar a reforma e reformar o pensamento (Morin, 2004). O propsito dessa obra, de acordo com o prprio autor, transmitir no um mero saber, mas uma cultura que permita compreender nossa condio e nos ajude a viver, e que favorea, ao mesmo tempo, um modo de pensar aberto e livre (Morin, 2004, p. 11).

    Para construir o termo ensino educativo, o autor apresenta os entendimentos de educao, de formao e de ensino, propondo sua juno e sua compreenso a um s tempo. Fazendo uso da definio do dicionrio Robert para o verbete educao, Morin (2004, p. 10-11) comenta:

    Educao uma palavra forte: Utilizao de meios que permitem assegurar a formao e o desenvolvimento de um ser humano; esses prprios meios. (Robert) O termo formao, com suas conotaes de moldagem e conformao, tem o defeito de ignorar que a misso do didatismo encorajar o autodidatismo, despertando, provocando, favorecendo a autonomia do esprito.

    Apresenta tambm uma definio de ensino:

    O ensino, arte ou ao de transmitir os conhecimentos a um aluno, de modo que ele os compreenda e assimile, tem um sentido mais restrito, porque apenas cognitivo. (Morin, 2004, p. 11).

    1. doutor honoris causa em 17 universidades de diversos pases, tais como Itlia, Portugal, Espanha, Dinamarca, Grcia, Mxico, Bolvia e Brasil. Ele transita nas diversas reas do conhecimento, tais como cincias biolgicas, cincias fsicas, humanas e educao, entre outras, para estudar os problemas do humano e do mundo contemporneo. Tem em sua formao a pluridisciplinaridade. socilogo, antroplogo, historiador, filsofo e, acima de tudo, um intelectual livre que prope uma viso transdisciplinar do pensamento.

    o que se entende por pensamento

    complexo

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    REVISTA DA ABEM | Londrina | v.20 | n.27 | 105-116 | jan.jun 2012108

    Analisando os dois termos separadamente, podemos concluir que eles no so suficientes

    para atender a formao do ser humano como a proposta do pensamento complexo aponta.

    Assim, o autor segue dizendo que a palavra ensino no suficiente, ao passo que a palavra

    educao contm um excesso e uma carncia. Por esse motivo, Morin sugere um termo que

    abrange as duas definies, incorporando os antagnicos e os complementares que permeiam

    as suas palavras: ensino educativo.

    Para que o ensino educativo seja efetivo, Morin (2004, p. 20) aponta a necessidade da

    reforma do pensamento ao dizer: A reforma do ensino deve levar reforma do pensamento,

    e a reforma do pensamento deve levar reforma do ensino. Essa proposio colabora para a

    formao do homem com o intuito de prepar-lo para os desafios da vida, ou seja, aprender a

    viver na contemporaneidade, o que requer que o homem ps-moderno tenha uma cabea bem

    feita, a qual se traduz em uma cabea adequada a organizar os conhecimentos adquiridos,

    evitando com isso o acmulo de conhecimento estril. Assim, entendemos que a educao

    a responsvel pela formao dessas cabeas, conforme se pode depreender da seguinte

    citao que Morin (2004, p. 47) faz de Durkheim:

    Morin indica adicionalmente que essa ideia de ensinar a viver requer a transmisso no s

    de conhecimentos, mas tambm a transformao do aluno, do seu ser mental, do conhecimento

    adquirido em sapincia e da incorporao dessa sapincia para toda a vida. Na educao,

    trata-se de transformar as informaes em conhecimento, de transformar o conhecimento em

    sapincia, orientando-se segundo as finalidades definidas pelo autor. Acrescentamos ainda o

    conceito de Morin sobre a escola de vida e a compreenso humana de que as artes literatura,

    poesia, artes plsticas, cinema, teatro, dana, msica devem ser consideradas como no

    apenas objetos de anlise, mas tambm como escolas de vida em seus mltiplos sentidos. Tais

    transformaes fazem parte de uma reforma em todos os nveis, proposta por Morin.

    A reforma do pensamento uma exigncia da contemporaneidade. Ela deve criar um

    pensamento do contexto, na medida em que concebe o sujeito em suas situacionalidades, e

    um pensamento do complexo, que considera todas as ligaes, conexes e relaes, em uma

    perspectiva transdisciplinar. Ao considerar tais relaes, gera um pensamento que enfrenta a

    incerteza, pois o incerto faz parte da vida. A validade da reforma do pensamento fica mais evidente

    se contrastarmos o pensamento complexo ao pensamento cartesiano. O pensamento cartesiano

    fragmenta e sequencializa. Possui uma causalidade linear e unidirecional. Mantm a rigidez da

    lgica clssica e considera o conhecimento do todo como uma soma das partes. O pensamento

    complexo, por sua vez, unifica e propaga uma causalidade circular e multirreferencial. Promove um

    dilogo capaz de conceber ao mesmo tempo ideias complementares e antagnicas. Reconhece

    a integrao do todo no interior das partes. Morin apresenta sete diretivas complementares e

    interdependentes para um pensamento que une o conhecimento. Dentre elas, elegemos trs que

    so norteadoras das consideraes deste artigo, quais sejam o princpio sistmico, o princpio

    recursivo e o princpio dialgico.

    O princpio sistmico ou organizacional o que liga o conhecimento das partes ao

    conhecimento do todo e baseia-se em Pascal, que diz: Considero impossvel conhecer as partes

    sem conhecer o todo, tanto quanto conhecer o todo sem conhecer, particularmente, as partes.

    (Morin, 2004, p. 94). A ideia sistmica se ope reducionista, assim o todo mais do que a

    Como dizia magnificamente Durkheim, o objetivo da educao no o de transmitir conhecimentos sempre mais numerosos ao aluno, mas o de criar nele um estado interior e profundo, uma espcie de polaridade de esprito que o oriente em um sentido definido, no apenas durante a infncia, mas por toda a vida.

  • Educao musical sob a tica do pensamento complexo

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    soma das partes, assim como tambm menos que a soma das partes, cujas qualidades so

    dificultadas pela organizao do conjunto. A ideia sistmica assemelha-se, no modo como se

    organiza, estrutura de uma partitura musical: as partes existem separadamente, mas esto

    conectadas entre si e s se conhece o todo na realizao do ltimo elemento musical.

    O princpio do circuito recursivo um circuito gerador. Os produtos e os efeitos so, eles

    mesmos, produtores e causadores daquilo que os produz, superando a ideia de regulao,

    de autoproduo e auto-organizao. Morin exemplifica isso com a formao dos indivduos

    que so produtos de um sistema de reproduo que data do incio dos tempos, mas o circuito

    no pode se concretizar se os indivduos no se tornarem produtores com o acasalamento.

    Assim, os indivduos humanos produzem a sociedade nos intercmbios e pelos intercmbios,

    mas a sociedade produz a humanidade dos indivduos, munindo-os da linguagem e da cultura.

    Pensando esse princpio na educao musical, teremos, em um novo paradigma, professores de

    msica bem preparados na sua habilidade e na sua competncia, os quais estaro atuando em

    sua prtica docente, formando alunos capazes e competentes, que sero futuros professores

    para a sociedade. Assim, temos a consolidao desse circuito, que acarretar no aprimoramento

    da educao musical.

    O princpio dialgico une dois princpios que deveriam excluir-se reciprocamente, mas so

    indissociveis em uma mesma realidade. O autor exemplifica com a frmula de Herclito.2 Deve-

    se considerar que a ordem/desordem/organizao, a dialgica entre a ordem, a desordem e

    a organizao via inmeras inter-retroaes, est constantemente em ao nos mundos fsico,

    biolgico e humano. Esse princpio caracteriza-se pelo antagonismo, pela dissonncia, pelos

    opostos, pelos conflitos, que no incio apresentam-se desconexos, mas que no decurso da ao

    mostram-se antagnicos e complementares.

    Tais princpios sustentam a reflexo sobre o conhecimento adquirido e o comportamento

    adotado pelos alunos de msica na atualidade, tanto na educao bsica quanto na educao

    superior. Tambm contribuem para repensar a formao do professor de msica, que deve atuar

    com competncia na sociedade contempornea. Partimos do pressuposto de que tal reflexo

    deve partir da anlise do contexto das universidades, pois este o lcus da formao docente,

    onde se d a educao dos educadores.

    As reflexes e anlises apresentadas seguem preceitos qualitativos, que respondem

    a questes particulares e que se preocupam com um nvel de realidade que no pode ser

    quantificado. Esses preceitos veem o conhecimento como o processo pelo qual as pessoas

    intuem, apreendem e depois se expressam, entendendo que qualquer ser humano que apreende

    o mundo, pensa e exterioriza produz conhecimento. Assim, compreende-se que a atividade

    de pesquisa cientfica que o docente desenvolve no universo acadmico permite-lhe mostrar a

    realidade e interferir nela, provocando transformaes.

    No contexto acadmico, onde ocorre a formao de professores, deve-se encontrar uma

    universidade que conservadora, no sentido de que memoriza, integra e ritualiza uma herana

    cultural de saberes, ideias e valores. Mas a instituio acadmica deve ser tambm regeneradora

    2. Segundo a frmula de Herclito: viver de morte, morrer de vida. As ideias de morte e vida so, ao mesmo tempo, complementares e antagnicas.

  • NASCIMENTO, Fernanda Albernaz do

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    por reexaminar, atualizar e transmitir essa herana. Desse modo, ela ser geradora de saberes,

    ideias e valores que passam, ento, a fazer parte da herana. Para colaborar com a misso

    e a funo da universidade, este artigo reexamina e atualiza os saberes da herana cultural,

    especificamente a musical, tendo em mente um ensino educativo.

    No Encontro Internacional para um Pensamento do Sul, realizado em 2011, na cidade do

    Rio de Janeiro, diversos pensadores apresentaram reflexes balizadas no pensamento de Edgar

    Morin. Um grupo de trabalho, com representantes de pases como Brasil, Mxico, Argentina,

    Peru, Bolvia, Repblica Dominicana, Colmbia, Canad e Itlia, discutiu especificamente sobre

    a reforma da educao. Levantaram-se questionamentos relacionados a como o pensamento

    complexo chegaria aos estudantes, s escolas e s universidades. O grupo de estudo observou,

    conforme relatado: Ficou evidente que o primordial estaria no enfrentamento dos diferentes tipos

    de resistncias presentes no pensamento hegemnico e que, em especial, permeiam todas as

    instncias universitrias. (Almeida et al., 2011, p. 52).

    Essas discusses se ampliaram, expondo vrios enfoques e enfatizando que a reforma

    da educao deveria acontecer a partir dos seguintes eixos: o ontolgico, o epistemolgico, o

    antropotico e o tico-poltico. Tais eixos so trabalhados muito bem por Edgar Morin em suas

    obras, que defende no a fragmentao, isto , o trabalho em um eixo ou outro, mas a abordagem

    simultnea de todos. Em relao aos aspectos epistemolgicos, o grupo ressaltou: preciso

    deixar claro o que se entende por conhecimento, explicitando suas cegueiras e os compromissos

    ticos implicados em sua produo. (Almeida et al., 2011, p. 52). Apontaram-se questes que

    devem ser objeto de estudo:

    Para viabilizar as ideias propostas nessas questes, preciso compreender a incerteza como

    parte constitutiva da vida do ser humano, assim como dos processos autoeco-organizadores

    planetrios. Tambm, deve-se aprender a dedicar um tempo para trabalhar o imprevisvel,

    decorrente da ecologia da ao, e o imaginrio.

    Dar ateno a todas essas questes no fcil, pois, apesar de todo o sistema de

    informao disponvel, temos dificuldades para pensar sobre o nosso pensar, para novas

    descobertas, para sermos originais em nossa maneira de ser, de pensar e de viver/conviver.

    Surge, ento, a necessidade de se evitar a dissonncia cognitivo-afetiva, por, conforme sugere

    Morin, buscar integrar pensamento e sentimento, educao e vida, vida e aprendizagem, dando

    o devido destaque aos saberes decorrentes das experincias vividas. Para que isso acontea,

    a individualidade deve ser respeitada, pois cada um traz consigo a singularidade de sua

    experincia e tal aprendizagem significativa implica o reconhecimento das experincias vividas, a

    compreenso dos sentidos das vivncias internalizadas e incorporadas por cada um.

    Essa reforma do pensamento e da educao exige um quadro epistemolgico mais

    extenso e profundo, pois um dos grandes problemas da educao na atualidade a insuficincia

    da formao docente e a dificuldade que muitos professores tm de trabalhar as questes

    ontolgicas e epistemolgicas, bem como suas implicaes nas prticas educativas. Constatou-

    se, no Encontro do Sul, que existe um consenso geral entre os participantes dos vrios pases,

    sobre a reforma da educao, de que o pensamento acerca dessa unanimidade no deve ser

    procrastinado, antes se deve consider-lo em carter emergencial.

    Como fazer com que os sistemas educativos aprendam a trabalhar com o imprevisvel, o inesperado, o novo e o emergente? Como devemos educar para que os alunos possam afrontar o imprevisvel? Como criar condies ou circunstncias que favoream a curiosidade, a surpresa e a descoberta? (Almeida et al., 2011, p. 53).

  • Educao musical sob a tica do pensamento complexo

    REVISTA DA ABEM | Londrina | v.20 | n.27 | 105-116 | jan.jun 2012 111

    O grande desafio para os professores est em como trabalhar e articular as questes de unidade na diversidade, como compreender a complexidade dos processos de ensino-aprendizagem, incorporar a incerteza, aprender a problematizar a vida, no cotidiano de seus centros educativos e em seus respectivos contextos, em como religar os diferentes saberes e iniciar o dilogo das civilizaes.

    De fato, o momento atual exige pensar em estratgias integradas e capazes de corroborar a reforma do pensamento e da educao, bem como formar professores de cabea bem feita, que estejam preparados para realizar um ensino educativo. Assim, as estratgias devem envolver todos os atores da escola, as polticas pblicas, a administrao e inclusive os recursos das novas tecnologias. Nesse processo formativo, devemos ainda considerar e reconhecer os impedimentos reais que dificultam tal trabalho na educao, descobrindo assim as brechas e fendas que nos permitem colocar em ao o pensamento complexo no mbito educacional.

    Frente a essa discusso da contemporaneidade, que tem provocado transmutaes, urge pensar em caminhos viveis para uma reforma da educao. Sendo assim, consideramos que a educao musical est inserida nesse movimento de reforma, a qual inclui a formao inicial e a formao continuada em msica, enfim, todo o processo constituinte do desenvolvimento musical, ressaltando a orientao dos formadores, nas universidades, priorizando perspectivas que privilegiem uma cabea bem feita e um ensino educativo em msica.

    Embora a diversidade sempre tenha existido, na contemporaneidade passa por um momento de valorizao, pois o senso de democratizao que observamos no Brasil explicita as particularidades de cada indivduo em suas diferentes culturas. Esse movimento ressalta valores das culturas, enfatizando as especificidades sem o reconhecimento de uma cultura como a dominante. Nesse contexto, o grande desafio da educao educar para a multiplicidade.

    A preocupao com a diversidade cultural e social j ultrapassou os muros da escola e da universidade, pois podemos constatar que a sociedade est discutindo esse tema em jornais. Em contrapartida, discute-se pouco esse tema no meio acadmico. Se os prprios membros da sociedade esto incomodados com o assunto, fica um alerta para os professores formadores quanto necessidade de propagar essa discusso. O objetivo deve ser formar educadores para a diversidade, sujeitos crticos e reflexivos que sejam capazes de transmitir conhecimentos significativos, por intermdio de um ensino educativo.

    Recordemos o exemplo do filme Entre os muros da escola (Entre les murs, 2008), cujo enredo se passa em uma sala de aula marcada por diferentes ordens de conflitos provocados pela diversidade cultural. Em determinado momento, uma aluna adolescente de ascendncia rabe questiona seu professor, com um senso de ironia, sobre os livros didticos adotados pela escola. A aluna levanta a questo com relao aos personagens que tm apenas nomes franceses, como se no existissem pessoas com nomes rabes. Esse fato indica que a estudante queria apenas ilustrar o desconforto sentido por ela e por diversos outros jovens de origem no

    francesa e o choque cultural vivido naquela sala de aula, naquela escola e em toda Frana.

    o desafio de educar para a

    diversidade

    preciso pensar, com urgncia, na formao dos formadores, tanto no que se refere formao inicial como formao ao longo da vida profissional, condio para alcance dos objetivos pretendidos a partir desse pensamento. Esta uma questo chave, uma questo central para a reforma da educao a partir de uma reforma do pensamento do professorado, entendendo que o pensamento do Sul pode dar origem a uma importante rede de formao de formadores, com impacto nos diferentes pases. (Almeida et al., 2011, p. 53).

  • NASCIMENTO, Fernanda Albernaz do

    REVISTA DA ABEM | Londrina | v.20 | n.27 | 105-116 | jan.jun 2012112

    Trata-se de um exemplo do contexto europeu, onde o tema da diversidade na escola tem

    ganhado ateno h algumas dcadas. So realidades enfrentadas com dificuldades pelo

    sistema educacional. Vale a pena ressaltar que essa realidade no uma particularidade da

    Frana, est presente tambm em outros pases, como o Brasil, pas que tem a diversidade

    cultural em suas razes histricas, amalgamando influncias indgenas, africanas e europeias.

    Segundo o estudioso argentino Nstor Garca Canclini (2003), em seu livro Culturas hbridas, os

    latino-americanos tm uma cultura hbrida. Em uma perspectiva social, as escolas brasileiras,

    principalmente as escolas pblicas, renem crianas de diferentes situaes socioeconmicas,

    que tm suas prprias experincias e aprendem em seu prprio ritmo. A diversidade cultural

    brasileira manifesta-se tambm de outra maneira, por meio do regionalismo, intensificado por

    uma formao cultural hbrida e uma extenso geogrfica continental. Assim, embora haja uma

    mesma legislao para o pas, temos de respeitar a variedade cultural, pois podemos constatar

    que, como em outros pases, um dos maiores desafios da escola contempornea brasileira

    educar para a diversidade.

    Se tomarmos como referncia as publicaes de livros, seminrios e oficinas, podemos

    verificar que o tema da diversidade est em voga, mas ainda vivemos em dois mundos: o das

    teorias e o das prticas defasadas. De fato, observa-se que as escolas brasileiras, de um modo

    geral, ainda parecem funcionar como se abrigassem apenas um tipo de estudante, que deveria

    ser o aluno ideal, que corresponderia a todos os esteretipos que desejamos de forma consciente

    ou inconsciente. Fazendo nossas as ideias do autor portugus Joo Barroso, no Encontro

    Internacional para um Pensamento do Sul, ainda educamos a muitos como se fossem um s,

    e no a todos como se fossem cada um. Ento, a discusso sobre a diversidade existe, mas

    no se faz presente de forma efetiva, ficando em segundo plano, pois as diferenas individuais,

    especialmente as ligadas s questes sociais e culturais, so simplesmente ignoradas.

    preciso ocorrer uma mudana. Isso requer que os sons oriundos da diversidade soem

    nas escolas da educao bsica. As salas de aula so um espao fecundo para as trocas de

    particularidades, para que as crianas se expressem, ganhem autoestima, que se orgulhem

    do que so e se encontrem em contexto multicultural. Mas a transformao deve iniciar-se nas

    instituies formadoras, nas universidades, que so as responsveis pelos profissionais que

    atuaro na educao.

    No que diz respeito educao musical, no podemos permanecer entre os muros

    da escola, isto , reproduzir o mesmo modelo defasado de educao que desconsidera a

    diversidade cultural. Necessitamos acompanhar as mudanas da sociedade. A formao dos

    educadores musicais deve seguir o movimento de valorizao da cultura. Precisamos demonstrar

    atitudes que mostrem uma conscincia crescente da demanda cultural e uma necessidade de

    se mergulhar em nosso prprio patrimnio para que o ensino universitrio de msica se torne

    brasileiro. Assim, estaremos educando musicalmente com as diferenas, assumindo que o

    ensino ter a responsabilidade de preservar o patrimnio cultural, trabalhando com a diversidade

    social e cultural e sem perder de vista as culturas musicais do mundo.

    Inevitavelmente, tais consideraes conduzem percepo de que a questo da diversidade

    precisa contemplar as prticas pedaggicas cotidianas da educao musical. Exige-se que as

    universidades e os institutos formadores preparem os professores para uma mudana de atitude

    e de paradigma, subsidiando uma cabea bem feita, para criar um ambiente sonoro musical

    onde as diferenas sejam o combustvel do ensino educativo.

  • Educao musical sob a tica do pensamento complexo

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    A diversidade cultural traz contemporaneidade uma nova maneira de perceber os eventos sonoros, ampliando as possibilidades do som, o que dificulta no primeiro momento a audio,

    mas ao mesmo tempo origina vivncias sonoras nunca dantes ouvidas ou experienciadas.

    Segundo Murray Schafer (2009, p. 15),

    Alm disso, passamos por um momento de transmutao. Verificamos que o contexto

    escolar mudou muito. A comunicao e as relaes entre professor e aluno no so as mesmas

    de geraes passadas. Tal situao fica evidente se compararmos a sala de aula das geraes

    presentes ao contexto em que os atuais professores e pais estudaram. No caso destes, as

    informaes se restringiam aos meios de comunicao como rdio e jornal, talvez, para alguns,

    tambm a televiso. Atualmente, os meios de comunicao que atingem a maioria da populao

    oferecem informaes abundantes, permitindo o acesso a variadas culturas e o contato com a

    pluralidade de modos de viver e pensar. Na escola contempornea, comum a presena de

    alunos de todas as classes sociais e com suas singularidades ideolgicas.

    Em salas de aula, em particular de msica, seja na educao bsica seja na educao

    superior, convivem diferenas sonoro-musicais, tanto as derivadas das condies vitais de

    sobrevivncia como as oriundas das ideologias individuais. Essas diferenas determinam um

    espao no qual as mais diversas teorias comparecem e coexistem segundo o princpio da

    pluralidade e onde procedimentos democrticos deveriam assegurar a todos condies para

    que se sintam partes do mesmo processo de ensino-aprendizagem.

    No decorrer da docncia universitria, mais explicitamente nas ltimas dcadas,

    percebemos um descompasso no processo de cognio e de percepo dos alunos de msica

    frente diversidade dos sons e dos estmulos musicais que traduzem a linguagem musical

    contempornea. Essas divergncias podem ser compreendidas se considerarmos o contexto

    da contemporaneidade e as alteraes sociais e culturais ocorridas no tempo atual. Observa-se

    que essas rpidas mudanas so provenientes de vrios fatores, entre os quais enfatizamos o

    advento da globalizao, que por sua vez contribuiu para o desenvolvimento das comunicaes,

    com o fax, o telefone celular, a internet e a comunicao instantnea em todos os pontos do

    planeta, aproximando a comunicao entre as pessoas. Conseguintemente, tem mudado a

    relao entre as pessoas e o processo de aquisio de conhecimento. Esses so fenmenos

    notveis e considerveis, com efeitos tanto positivos quanto negativos, que permitem comunicar,

    entender e intercambiar informaes, e tm transformado as relaes humanas neste incio do

    sculo XXI.

    Esse evento de comunicao tem provocado, no de forma homognea, uma mudana

    no perfil dos alunos de msica e uma alterao na comunicao entre o professor e o aluno. O

    discurso apresentado pelo professor em sua atividade docente tem sofrido de um rudo branco,

    nome dado ao fenmeno da combinao simultnea de sons de todas as frequncias, resultando

    em rudos indistintos. Do mesmo modo, a recente exploso de comunicao e o excesso de

    informaes tm resultado em distores na compreenso das mensagens transmitidas pelo

    professor. Tal qual o rudo branco, a expanso descontrolada do saber causa incompreenso,

    pois, segundo Morin (2004, p. 16-17),

    percepo sonora musical contempornea

    hoje, em todos os lugares do mundo, a paisagem sonora est mudando. Os sons esto se multiplicando ainda mais rapidamente do que as pessoas, medida que nos rodeamos com mais e mais dispositivos mecnicos.

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    Assim, com o intuito de abrandar o rudo dessa comunicao e encontrar o conhecimento

    que perdemos no excesso de informaes no campo sonoro musical, buscamos vertentes

    alternativas que auxiliam tanto o professor como o aluno na compreenso dos desafios

    contemporneos, para que seja possvel um processo de ensino e aprendizagem no qual se

    efetive a proposio de ensino educativo da msica.

    Acreditamos que o primeiro passo a ser dado pelo professor nesse processo de mudana,

    de transformao, deve ser a tomada de conscincia do seu contexto sonoro em conexo com

    o ambiente planetrio. Compartilhamos das ideias de Schafer (2001), que acredita na existncia

    de um caminho. O trajeto para melhorar a paisagem sonora mundial, segundo o autor, muito

    simples, reto, sem muitas curvas. Ele sugere que necessrio aprender a ouvir, hbito que

    considera esquecido pelo homem da ps-modernidade. Nesse sentido, a conscincia do homem

    exige uma sensibilizao do ouvido para o mundo de sons sua volta. Depois que as pessoas

    tiverem desenvolvido alguma perspiccia crtica sobre a paisagem sonora podero caminhar

    em direo a projetos maiores, que tenham implicaes sociais. Desse modo, outras pessoas

    podero ser influenciadas por tais experincias. Tal postura dever ser tomada na docncia

    musical, pois, como especialistas dos sons, seremos os atores transformadores do ambiente

    acadmico, como tambm do contexto social, cultural, ecolgico e planetrio. O objetivo maior

    tornar conscientes as decises a respeito de projetos que afetam a paisagem sonora nossa

    volta. (Schafer, 2009, p. 17).

    Schafer (2001) nos indica um caminho norteador para a mudana de paradigma da

    linguagem sonora, permitindo-nos uma nova e ampla percepo da organizao dos sons,

    derrubando fronteiras e unindo saberes, principalmente no que tange ecologia do som. Mas no

    decurso da pesquisa em questo, entendemos que as ideias apresentadas por Schafer (2009)

    podem e devem ser complementadas com as de Morin, no sentido de ampliar e desenvolver

    aspectos na formao do professor de msica. Baseando-se no princpio dialgico, acreditamos

    que deve existir uma interlocuo entre os saberes e os autores.

    Como educadores musicais contemporneos, em consonncia com Schafer e Morin,

    necessitamos enfatizar a abordagem social, cultural, ecolgica e planetria comum a todos ns

    e assim compreender as inter-relaes ecossistmicas que entrelaam os diferentes domnios

    da natureza. Para tanto, preciso reconhecer e ter conscincia da interdependncia entre o

    ambiente, o ser humano, o pensamento e os processos de desenvolvimento, que acontecem

    no apenas em relao aos processos cognitivos, emocionais e espirituais, mas integram razo,

    emoo, sentimento, imaginao e intuio. Entendemos que somente as ideias de Schafer

    (2001, 2009) no so capazes de abarcar todas as proposies apresentadas, mas podem

    ser ampliadas com o conhecimento de outras reas do saber. Consideramos tambm que, no

    contexto atual, o educador musical deve preocupar-se com a informao e com a diversidade

    na formao educacional, de maneira que essas se tornem um instrumento de interlocuo, de

    dilogo multifacetado e multidirecional.

    o crescimento ininterrupto dos conhecimentos constri uma gigantesca torre de Babel, que murmura linguagens discordantes. A torre nos domina porque no podemos dominar nossos conhecimentos. T. S. Eliot dizia: Onde est o conhecimento que perdemos na informao? O conhecimento s conhecimento enquanto organizao, relacionado com as informaes e inserido no contexto destas. As informaes constituem parcelas dispersas de saber. Em toda parte, nas cincias como nas mdias, estamos afogados em informaes. O especialista da disciplina mais restrita no chega sequer a tomar conhecimento das informaes concernentes a sua rea. Cada vez mais, a gigantesca proliferao de conhecimentos escapa ao controle humano.

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    Retomando uma das questes norteadoras deste artigo: como o pensamento complexo pode dialogar com a msica? O pensamento complexo dialoga com a msica quando o

    consideramos enquanto campo de conhecimento, pois tanto a msica quanto o pensamento

    complexo estruturam-se sob a forma sistmica. Em ambos os campos, todos os elementos

    esto ligados e conectados entre si. Esse dilogo entre os conhecimentos tem ocasionado um

    acrscimo qualitativo na compreenso e apreenso dos elementos musicais na prtica profissional

    do educador musical. Mas a contribuio do pensamento complexo no se restringe ao dilogo

    interdisciplinar; antes, vai alm, pois sua compreenso se estende a um novo paradigma na

    msica. Com base em uma nova maneira de pensar o mundo e o prprio conhecimento, busca-

    se priorizar nessa abordagem a msica enquanto prtica social e enquanto pedagogia da msica.

    O contexto sonoro musical da contemporaneidade demanda uma ampliao da

    compreenso dos saberes, um rompimento com as fronteiras das reas de conhecimento,

    permitindo a circularizao de ideias, conceitos, princpios e preceitos sem que se perca a

    especificidade de cada campo. Assim, as condies impostas na contemporaneidade pem

    o educador musical em uma nova situao, exigem uma postura diferenciada, requerem que

    a docncia musical tenha em sua essncia um pensamento musical amplo, democrtico, sem

    preconceitos, sem barreiras, um conhecimento musical mltiplo, plural, ou seja, um pensamento

    musical complexo.

    Ponderando sobre o pensamento musical e a complexidade e sem a pretenso de indicar

    assertivas, prope-se, como possvel caminho para atender as inquietaes levantadas,

    uma interface entre a reforma do pensamento, proposta por Morin, e a formao docente em

    msica, em um princpio dialgico. Essa interconexo de saberes entre as reas possibilita

    uma mudana de pensamento do professor, que, consequentemente, movimenta-se seguindo

    o princpio recursivo, cujo intuito reformar o pensamento musical para reformar o ensino da

    msica e reformar o ensino da msica para reformar o pensamento musical. Essa modificao

    do pensamento e do ensino leva compreenso de uma mudana na sociedade e aponta para

    a abrangncia sistmica. Assim, o princpio sistmico, que se realiza na totalidade das aes

    e concepes e que se relaciona e se conecta no sistema educacional, leva o pensamento

    musical para alm do conhecimento fragmentado, que separa e desconecta, por tornar invisveis

    as interaes entre um todo do conhecimento e suas partes, anulando o complexo e ocultando

    os problemas essenciais da msica.

    A proposio de pensamento complexo que reforma o pensamento musical tem como

    propsito formar indivduos, professores e alunos que tenham em sua base epistemolgica uma

    formao musical plural, de valorizao da diversidade cultural, que sejam msicos portadores

    de audio sistmica. Tambm, que sejam portadores de uma mente complexa, oriunda

    do pensamento complexo, atendendo, no momento, as exigncias da contemporaneidade e

    priorizando, sempre, o ensinar a condio humana.

    A maneira como observamos a realidade musical e nos relacionamos com ela est

    profundamente imbricada com os valores professados, com os hbitos, as atitudes, as crenas,

    os objetivos e os estilos de vida. Desse modo, uma viso mais estreita, fragmentada e limitada

    da realidade influencia nossa maneira de pensar, sentir e agir na esfera da msica, bem como

    a maneira de perceber a pulsao da vida sonoro/musical entre e ao redor de cada um de ns.

    Assim, a cognio e a percepo de organizaes sonoras diversas em atividades individuais

    ou em grupos, independentemente da satisfao emotiva provocada pela prpria msica,

    contribuem para o aprimoramento fsico, psicolgico, intelectual e emocional do indivduo. Tal

    pensamento musical e

    complexidade

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    contribuio deve-se ao fato de que a atividade musical oportuniza o reconhecimento de aptides

    pessoais e o aprimoramento do sentido auditivo, da inteligncia, do raciocnio e da sensibilidade.

    A proposio apresentada vislumbra a mudana de paradigma na formao do professor

    de msica, um novo paradigma, que atenda diversidade e s transformaes de nossa

    sociedade. A proposta ressalta um ensino educativo que valoriza a formao humana sem abrir

    mo dos demais aspectos musicais. O professor de msica formado sob esse novo paradigma

    ter uma cabea bem feita e estar preparado para lidar com as adversidades do ensino. Seu

    desempenho ser a contribuio para a prtica profissional em educao musical.

    Em essncia, a cabea bem feita que nos d a aptido para organizar o conhecimento,

    o ensino da condio humana, a aprendizagem do viver, a aprendizagem da incerteza, a

    educao cidad (Morin, 2004, p. 103). Devemos preparar as mentes musicais para responder

    aos desafios que a crescente complexidade dos problemas impe ao conhecimento humano.

    ALMEIDA, M. da C. et al. Grupo 2. A reforma da educao. In: ENCONTRO INTERNACIONAL PARA UM PENSAMENTO DO SUL, 1., 2011, Rio de Janeiro. Anais Rio de Janeiro: SESC: Departamento Nacional, 2011. p. 50-61.

    ENTRE LES MURS. Direo: Laurent Cantet. Produo: Simon Arnal, Caroline Benjo, Barbara Letellier e Carole Scotta. Paris: Haut et Court, 2008. 128 min, color., 35 mm.

    GARCA CANCLINI, N. Culturas hbridas: estratgias para entrar e sair da modernidade. Traduo Helosa Pezza Cintro, Ana Regina Lessa. 4. ed. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 2003.

    MORIN, E. A cabea bem-feita: repensando a reforma, reformar o pensamento. Traduo Elo Jacobina. 9. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

    SCHAFER, R. Murray. Afinao do mundo. Traduo Marisa Trench Fonterrada. So Paulo: Editora Unesp, 2001.

    ______. Educao sonora. Traduo Marisa Trench Fonterrada. So Paulo: Melhoramentos, 2009.

    referncias

    Recebido em 30/11/2011

    Aprovado em 02/02/2012