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Revista Lusfona de Educao, 19, 13-23
Pensar a decincia numaperspetiva inclusiva
Charles Gardou
Resumo
O que h de mais cultural do que denir a decincia e dar-lhe respostas? A
decincia afecta a pessoa mas tambm o seu contexto mais alargado, pres-
sionando a ordem cultural reinante. Vem de qualquer modo corromper o ideal
enraizado numa cultura. Um ideal que delimita a conformidade, dene os fora
da lei, elabora categorias, vigia o conformismo das pessoas, cria e sustenta
processos de interao, de oposio ou de segregao. Este artigo interroga
os modos de a conceber e de a tratar na nossa cultura. Questiona de facto o
formato estabelecido e as representaes culturais comuns. Numa perspetivainclusiva, convida a uma desconstruo e a Novas Luzes em relao de -
cincia.
Palavras-chave
Incluso; cultura; reinveno da ordem social.
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Numa tica definitivamente inclusiva, esta contribuio visa interrogar, do
ponto de vista antropolgico e filosfico, as formas de entender e tomar emconsiderao a deficincia.
Antes de mais, note-se que a nossa reflexo se a limenta poderamos dizer
naturalmente do pensamento das Luzes, o movimento filosfico que atra-
vessou a Europa no sculo XVIII, em particular, o de Diderot e da sua Carta Sobre
os Cegos Para Uso Daqueles que Vem; o de Rousseau e do seu Discurso Sobre
a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens; e, obviamente,
o de Kant e do seu lema do Iluminismo: Sapere aude! Tem coragem de usar o
teu prprio entendimento, de pensar por ti prprio, libertando-te dos medos
quimricos, das falsas crenas, dos preconceitos e de outros condicionalismos.Esta referncia ao Iluminismo est associada ao que ele teve de luminoso: a sua
capacidade de se insurgir contra todos os dogmas.
Ultrapassar os obscurantismos
Na esfera que nos preocupa, o Iluminismo convida a entender a deficincia
como aquilo que merece ser pensado diversamente e, ao mesmo tempo, receber
a dignidade do pensamento.
Ora, face a esta expresso da diversidade e da fragilidade humanas, em quemedida somos, ainda, mulheres e homens das Luzes, no desfalecimento, na
reflexo protelada, afastados de um pensamento iluminado?
De que obscurantismos persistentes temos ainda de nos libertar no mbito
da escola, do trabalho e em muitos outros: ignorncia, supersties, falsas cren-
as, esteretipos, representaes colectivas cristalizadas e outros hbitos de
heteronomia, que Kant denuncia na sua Crtica da Faculdade de Julgar?
como se, no fundo, permanecssemos aprisionados s categorizaes, con-
venes, preconceitos comuns, desprovidos da capacidade de sentir diversa-
mente, de interrogar de novo e admitir a vida polimorfa nossa volta.Na verdade, as nossas sociedades so animadas por dois movimentos diver-
gentes: por um lado, uma febre de modernidade e de futuro, como na rea das
cincias, da tcnica e da comunicao; por outro, uma resistncia, at mesmo
uma imobilidade nos arcasmos, quando se trata do olhar que lanamos aos
nossos pares em situao de deficincia. Um olhar pesado de incrustaes, de
depsitos ancestrais que continuam a gerar a sua excluso. Apesar de nunca ter-
mos ido to longe e tantas vezes ao mago da inventividade, o esprito humano
parece limitado nesta esfera.
Podemos, contudo, medir a amplitude das consequncias, seno mesmodos perigos associados indiferena, s insuficincias graves, colectivas e
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individuais, s discriminaes e falta de voluntarismo em relao s pessoas
com deficincia. Alm das violncias concretas, elas sofrem violncias simb-licas, silenciosas, de tal forma insidiosas que as ignoram. Tm por nome in -compreenso, negligncia, marginalizao, por vezes desprezo. Ns tratamos,talvez inconscientemente, o problema da deficincia com certas representaesque antecederam a poca das Luzes, reforadas por um excesso de certezas.Esforcemo-nos, pois, por sair do impasse a que esta questo por norma conduz.
H que, claramente, tomar plena conscincia de que a deficincia no re-sulta exclusivamente da deficincia ou da pessoa em si, mas, por um lado, daforma como os espaos de educao, de cultura, de trabalho e, de modo geral,
a sociedade a considera e, por outro, as respostas que esses lhe do. A abor-dagem mdica, que reduz a deficincia a uma dimenso pessoal resultante deuma doena ou de um acidente, exige ser completada pela tomada em conside-rao do meio fsico e social envolvente: os contextos facilitadores atenuam assuas consequncias, ao passo que os inibidores, pelo contrrio, aumentam-nas. esta abordagem renovada, resultante da Classificao Internacional do Funcio-namento da Deficincia e da Sade, adoptada em 2001, que inspira a expressosituao de deficincia largamente utilizada.
Desconstruir as nossas concepes usuais
Pensar esta questo que o prprio fundamento do Iluminismo no cortejar, seduzir, nem provar a complacncia para com os poderes pblicos,os mdia e a opinio comum. A mudana necessria consiste, em parte, na au-dcia de pensarmos contra o conformismo e, seguramente, contra ns prprios;em permitir-nos ser inovadores, criativos, originais; em ousarmos estabelecernovos princpios de vida com e para os mais vulnerveis. Mas, para que algode novo possa nascer, preciso que nos permitamos pr o logostradicional depernas para o ar.
S a custo de um descentramento do eixo das nossas concepes e das nos-sas prticas que poderemos conseguir destabilizar a ordem geomtrica donosso universo normativo e dos seus cnones retricos. Girard (1998) fala daviolncia da mimesis, da observao da norma, do conformismo. S uma outralngua que no a do conformismo, uma nova lngua, com pronncias estranhase desconcertantes, pode permitir redesenhar o lugar que a nossa cultura deveconferir, aqui e agora, diversidade dos rostos humanos.
Pensamos igualmente em Derrida (1972) que no queria renunciar a nenhu-ma das Luzes possveis sobre a conscincia, o sujeito, a liberdade. Ele aspirava
a uma vida diferente da economia do possvel, uma vida impossvel sem dvida,mas a nica que vale a pena ser vivida, sem libi, de uma vez por todas. A sua
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ideia de desconstruo deve ser, do nosso ponto de vista, colocada no centro da
reflexo sobre a deficincia.No se trata de destruir o que quer que seja: desconstruir no destruir.
No uma atitude negativa, antes a anlise de alguma coisa que consideramosconstruda e que queremos des-cristalizar, des-sedimentar. Qualquer coisa cujo
carcter supostamente natural interrogamos: uma tradio, uma instituio, umdispositivo, uma cultura.
A transformao exigida no pode ser desencadeada seno por um processo
colectivo, mobilizador de recursos de diferentes actores sociais e no s depessoas directamente afectadas ou de militantes da causa dos deficientes. Essa
supe que o corpo social aceite deixar-se apreender por abordagens, formas deorganizao e conceitos renovados.
A terminologia estigmatizante, por exemplo, precisa de dar lugar s palavrase noes que correspondem e remetem para o movimento geral, sem alienar
a pessoa nas suas carncias. Provavelmente poderemos assim abandonar, numfuturo mais ou menos prximo, o termo deficincia, que faz parte seguramentedos conceitos enfraquecidos, seno mesmo esgotados, que continuam a subsis-
tir, alimentando confuses e legitimando algumas excluses.Os conceitos mais comuns, mais universais, contribuem para atenuar as se-
paraes, mas no apagam as singularidades. Para que uma histria comum sepossa escrever, para que as ligaes se team e as palavras ataquem a fronteira,retomando as palavras de Kafka (1954)1, ele prprio muito vulnervel, devemsubstituir-se as palavras-fechadas, as palavras vulnerantes, como se diz das ar-
mas. Porque, como sabemos, o cerne da questo humana reside num jogo deimagens associadas s palavras, ou seja, naquilo que os psicanalistas chamamsimbolizao pr por palavras.
Fazer triunfar os direitos humanos
Ora, certamente por causa de uma tradio caritativa, que marca manifesta-mente a cultura judaico-crist, persiste a dificuldade em entender que as res-
postas a dar deficincia relevam do direito e no de um dever compassivo;que a compreenso das suas repercusses advm menos da emoo e da boaconscincia do que da inteligncia e dos direitos humanos.
No outro extremo, esbarramos com a sacralizao do carcter racional dohomem, de onde ele retira a essncia da sua dignidade. Esta est unicamente li-gada a uma forma de inteligncia operativa ou de pensamento instrumental: era
a tese de Plato, Aristteles ou ainda de Santo Agostinho. E, muito mais tarde,a de Descartes: A razo a nica coisa que nos torna humanos e nos distinguedos animais2.
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Em nome desta razo todo-poderosa, ainda que ilusria, da euforia do po-
der face natureza dominada, vida manipulada, sacralizamos a aparncia e oprazer at obsesso da perfeio normalizada do corpo; esperamos uma vidasem carncias, sem limites, sem rugas, sem velhice e sem morte: uma vida idealcorrespondente aos critrios veiculados pelo imaginrio social. Ns reconhe-cemos, como se costuma dizer, as iluses pelo rudo que elas fazem quando seesfumam.
Nunca a epidemia do auto-centramento e da aparncia eclodiu com tantaviolncia: Eu penso, logo existo. O individualismo tornou-se a regra. O Ho -mem encheu-se de uma iluso de auto-suficincia e de uma confiana ilimitadano indivduo e numa sociedade da felicidade individual. Os feitos cientficos, oengenho a dominar a natureza, a matria, a vida, o universo e a aparente aptidopara realizar tudo o que, at agora, parecia impossvel, marcam a nossa culturado progresso com demasiadas certezas. Verifica-se, pois, um real desequilbriorelacional devido ao enfraquecimento da ligao entre cidados e consequen-te dissoluo da comunidade. Os mais frgeis so os primeiros a sofrer as ondasde choque de uma sociedade, mais inspirada na exigncia da independnciado que na conscincia do outro, que no consegue dar-se um sentido superioratravs da ligao ao outro. O culto da excelncia e da performance do corpopreside organizao das nossas existncias. Ns sonhamos ser mestres e do -
nos da natureza num mundo onde os homens j no sofram as situaes masas dominem. Da o lugar, cada vez maior, da competio e da concorrncia nummundo que se move rapidamente, que no d tempo. Cada um intimado atornar-se o gestor da sua prpria vida, a comportar-se como um lutador, umvencedor, um heri, cada vez mais rpido, extraordinrio e competitivo. Aquelesque a deficincia fragiliza tm de provar que podem entrar na lgica da lei domais forte, do combate para existir, ainda que este esteja viciado pelas assime-trias e injustias.
Mas se eles no conseguem so catalogados, classificados, rotulados em fun-
o do diagnstico inicial, baseado na ideia de que a deficincia um atributoda pessoa, negando a singularidade e as necessidades especficas de cada um.Este processo de categorizao leva sua estigmatizao que resulta, em gran-de medida, de uma exigncia de classificao, criando uma lgica de local izaoinstitucional, uma espcie de prt--porter (uma deficincia = uma estrutura,um lugar predeterminado), quando, ao invs, conviria pensar em termos de tra-jectr ia em movimento, de solues medida. Conclumos com uma parado-xal leviandade: tendo em considerao a sua deficincia, eis a estrutura ad hoconde ser colocado. Esta lgica um entrave ao desenvolvimento e ao acesso
s disposies e dispositivos de direito comum. Ns continuamos a rotular, des-
conhecendo que toda a determinao uma negao (omnis determinatio est
negatio), segundo a expresso de Espinosa (1954, p.1231)3.
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Elaborar um questionamento lcido
olhando mais a fundo esta realidade que poderemos question-la firme elucidamente, criando fracturas que visam uma espcie de inverso, reinveno,da nossa ordem social e cultural.
Segue-se, assim, uma re-interrogao, sem complacncia, da forma comoentendemos e conduzimos a nossa aco, a favor das pessoas em situao de
deficincia, nos diferentes domnios: vida autnoma e cidadania; sade, tica edeontologia; vida afectiva e sexual; vida profissional; vida escolar; vida culturale artstica; vida desportiva e lazer.
O acesso autonomia e cidadania , ainda frequentemente, encarado naptica de tornar acessveis espaos ou servios, como se a simples co-presenade indivduos bastasse para garantir entre eles o exerccio de uma democracia
partilhada. Esta concepo redutora tem de ser eliminada de forma a sereminterrogadas as condies de uma cidadania renovada em torno de trs dimen-
ses complementares: ser cidado , antes de mais, sentir-se autnomo na ci -
dade; , tambm, ser actor da sua prpria histria, capaz de identificar as suasnecessidades, de reconhecer os seus desejos, de formular as suas questes, de
realizar os seus projectos; , ainda, sentir-se responsvel pela comunidade, ca-
paz de se comprometer em prol do futuro comum. Coloca-se, assim, a questoda representao poltica e social das pessoas em situao de deficincia.
A nossa cultura continua a designar essas pessoas como deficientes e,principalmente, como sendo as que no se podem vergar s exigncias de su-cesso individual e de produtividade; as que entram em conflito com um ideal
democrtico, procurando eliminar juridicamente as diferenas ao proclamaremo direito igualdade dos cidados. urgente inverter esta tendncia.
No que respeita sua vida afectiva, familiar e sexual, h que romper com
uma cultura de evaso e de silncios embaraados sobre a expresso da sua
afectividade e da sua sexualidade; criar condies para que todos possam exer-cer o direito fundamental de amar e de ser amado, que humaniza o homem; aca-
bar com as representaes, os tabus, a privao de direitos ainda to presentes.No que se refere vida profissional, h ainda grandes diferenas entre as
vontades colectivas inclusivas, ostentadas de forma recorrente, e as prticas,incluindo as inovadoras, produzidas pelos actores do sector profissional queentram em conflito com a ordem do mundo.
Em matria de vida escolar, num panorama onde se tende a desvalorizar ospercursos atpicos, a prpria cultura do sistema educativo que est global-
mente em causa e, em primeiro lugar, a formao dos vrios actores.Tratando-se da cultura e da arte, ostenta-se geralmente a vontade de fazerdelas espaos de abertura e de mestiagem, sem fossos, barreiras ou fronteiras.
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Mas dificilmente nos conseguimos abstrair da arte para zelar ou da arte adapta-
da/especializada e evitar dois perigos iminentes: por um lado, as prticas estig-matizantes; por outro, a obrigao de ser um gnio, semelhana de Toulouse-
Lautrec ou de Petrucciani.
Por fim, no mbito do desporto e do lazer, dificilmente se consegue escapar
ao tudo ou nada (expectativas de performances de alto nvel ou falta de oferta
de possibilidades) com vista a reabilitar as noes de bem-estar e de prazer
pelo desporto. igualmente difcil passar das prticas ao lado de para as
prticas com.
Agir sobre o modo de vida
Afloremos aqui algumas questes: como inflectir as significaes adquiridas
e persistentes que veiculamos atravs do nosso enraizamento cultural? Como
modificar as atitudes, condutas e comportamentos comuns que reproduzimos
por herana social? Quais os caminhos a tomar para promover as condies de
uma real igualdade de tratamento entre cidados e de uma aplicao efecti -
va do direito para aqueles que dele so privados? O que fazer para ajudar os
nossos pares a viverem melhor o desconforto radical da sua aventura singular?
Quais as alavancas a accionar para suscitar prticas e dispositivos realmenteequitativos, inclusivos, e alcanar, para alm de uma teoria, uma prtica dos
direitos do homem?
Utilizmos conscientemente a palavra alavanca, que remete para um meio
de aco e, mais precisamente, para o que permite vencer uma resistncia.
As alavancas devem ser projectadas segundo o substrato cultural dado, por-
que a deficincia deve ser concebida, de maneira mais ou menos clara e deter-
minada, a partir do fundo cultural, sem, no entanto, negar, ilusoriamente, a re -
alidade da deficincia. Trata-se de reconhecer que uma situao de deficincia
resulta, por vezes, das consequncias de uma deficincia revelada e de factoresassociados ao tecido domeio. Temos ainda algumas dificuldades em admitir e
acreditar em Bruner (1990, 2000), ao demonstrar que o homem nico em vir -
tude do seu desenvolvimento, que no depende da histria reflectida nos seus
genes ou cromossomas, mas da histria reflectida da sua cultura. Por conseguin-
te, este meio no um dado mas um constructo, urdido de elementos sociais e
relacionais, podendo facilitar ou, ao invs, inibir as actividades e a participao.
Por conseguinte, ns podemos e devemos agir sobre ele, trabalh-lo, fazer
cair as barreiras do meio para atenuar os efeitos da deficincia objectiva.
Se as rampas de acesso, os pictogramas de sinalizao, as novas tecnologiassociais (informao, comunicao, servios online), os suportes apropriados
e as tcnicas especializadas (secretariado, descrio udio, interpretao em
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linguagem gestual, etc.) no eliminam a deficincia, reduzem, pelo menos, as
suas ressonncias. o princpio de converso do obstculo, a acessibilidade nasua acepo mais aberta.
No deveramos pensar o outro a partir do que lhe falta, das suas lacunas,das suas carncias, nem negar, por ignorncia ou por comodidade, o impacto domeio. Como Perec (2000, p. 13), gosto de dizer que viver passar de um espaoao outro, tentando o mais possvel no esbarrar em nada. A recusa de proceders adaptaes necessrias no s cria desvantagens reais, como tambm cons-titui, por si mesma, uma discriminao. o que acontece com a falta de acessi-bilidades aos lugares culturais. Convm no nos esquecermos que esta preocu-
pao inclusiva para benefcio de todos, pois no se trata de pensar e agir emtermos especficos somente para os grupos considerados particulares, mas detornar as acessibilidades mais confortveis, de as humanizar para todos, segundoo princpio universal de acessibilidade e do conceito de qualidade de vida.
O que importa consciencializarmo-nos de que ns somos feitos para vi-vermos em grupo: o que facilitador para uns benfico para outros. Sejamarquitecturais, educativos, sociais, artsticos ou culturais, os planos inclinadosuniversais so universalmente teis.
Abrir a singularidade ao universal
Contudo, entre as caractersticas marcantes da nossa cultura e est longede ser a nica h uma tendncia para marginalizar a problemtica da defi -cincia. Em relao aos especialistas e outros entendidos na matria, bem comoaos militantes da causa diz-se: um problema deles, no nosso. No nos dizdirectamente respeito: no da nossa competncia.
Pelas mesmas razes, tendemos a relegar a deficincia para segundo plano.Como uma vergonha a esconder, uma mcula a apagar. Como se quisssemosesquecer que a nossa histria e que cada uma das nossas histrias esto pejadas
de imperfeies e urdidas de anomalias. Como se a deficincia fosse de uma di-menso extraordinria, em vez de a considerarmos normal cada vez que pensa-mos o homem e os seus direitos, que o educamos ou formamos, que elaboramosas regras e leis, que concebemos a habitabilidade social ou que criamos espaoseducativos, culturais e de cidadania. Somos tentados a instalar algures osque so afectados: a insulariz-los. Irredutveis sua deficincia e ao seu sig-nificante que os designa como deficientes, eles no fazem mais que trazer luz os universais antropolgicos: a infinita diversidade humana, a sua polifonia,o movimento das suas aparncias, a sua inconstncia, a vulnerabilidade como
sua essncia. Ecce homo!Ns queremos sublinhar que o que caracteriza a problemtica da defi-cincia, da qual falmos em particular, precisamente esta significao da
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universalidade, na medida em que encerra em si a forma integral da condio
humana, no deixando nada de fora. Os estudos e as respectivas investigaesno podem ser feitas por um sistema de pensamento fechado, dobrado sobresi mesmo, dogmtico. Trata-se de abrir a singularidade por mais radical queseja ao universal, bebendona fonte de referncias culturais comuns. Se umareflexo original ou assumida com originalidade desejvel, ela tanto mais le-gtima quanto mais tomar como princpio a sua recusa de confinar os problemasligados deficincia a uma categoria de questes particulares. Ameaadade ser subjugada cada vez que ela se encerra nas fronteiras, exige uma misturacultural, uma permeabilidade a outras possibilidades: no um pensamento do
sistema mas um pensamento de arquiplago, como defende Glissant (1996).O universal est no mago do particular: o homem na sua sociedade, na suacultura, no seu mundo; em relao a si prprio e aos seus outros. Ele oespelho ampliador, a amplificao das grandes inquietudes humanas. A prop-sito das excluses a que induz, Foucault diz precisamente que estas revelam aforma como as sociedades se desembaraam, no dos mortos, mas dos vivos4.Faz eco, de certo modo, da afirmao de Montesquieu, filsofo do Iluminismo eum dos fundadores da sociologia: Ns fechamos alguns doidos em casas paraprovar que os que esto c fora no o so 5. Para alm das pessoas em situaode deficincia, particularmente ameaadas, os fenmenos de excluso que co -
nhecemos retratam bem a dificuldade do nosso mundo em ser tolerante.Os mais vulnerveis pagam, alis pagamos todos, um pesado tributo a esta
diviso que aniquila a partilha, a troca recproca de benefcios. a prpria con-cepo de que a sociedade deve existir como um conjunto de (dis)semelhantesque est errada.
Pr fim aos privilgios
O actual recurso a termos, como o de incluso, traduz claramente uma du-
pla rejeio: de uma sociedade, de uma escola, de um universo profissional, deespaos de cultura, de desporto, de lazer, dos quais os saudveis se considera-riam proprietrios, apropriando-se deles como seus privilgios exclusivos ouseus prazeres exclusivos, segundo a de Rousseau (1985); bem como de umaforma de exlio dos que consideramos incmodos, estrangeiros, incompatveis.H incluso quando uma organizao social se torna flexvel e modifica o seufuncionamento. O que sobressai a aco no contexto, de forma a fazer senti -do para cada um em concreto: o que constitui a tua unicidade (a tua pertenacultural, a tua identidade sexual, as tuas potencialidades, as tuas dificuldades)
no te pode privar do teu direito de acesso ao patrimnio comum, a todos osbens sociais: educao, trabalho, arte e cultura, desporto e lazer, etc. No soexclusivos de ningum. A incluso no uma necessidade apenas do mbito
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da deficincia: ela decorre do investimento global e convida a trabalhar em
profundidade a massa cultural.Enfim, perpetua-se a crena numa incapacidade global e numa rigidez que
est irremediavelmente associada deficincia: Uma vez deficiente, deficientepara sempre. Esta tendncia para uma leitura negativista, centrada nas carn-cias, aniquila a vontade de agir, de se projectar; ela domina sob a forma dumsentimento desprezvel, o que resulta num corte com a cidade, num enclausu-ramento no pathos, na transferncia da deficincia para a tutela econmica e,s vezes, num estatuto de menoridade para a vida. Mas quem pode calcular aprodutividade dos que entendemos serem improdutivos? Quem pode pre-
ver o que pode produzir-se quando lhes concedemos o direito de usarem assuas mos e o seu intelecto?A polarizao das suas inaptides, directamente deduzidas de um diagns-
tico mdico e associadas a preconceitos recorrentes, gera um fenmeno dedescrdito quase endmico. Sempre os mesmos motivos em causa: reduzimosa pessoa a alguns aspectos negativos. Um pouco como se no vssemos numaaguarela nada mais que as suas pinceladas escuras; como se as isolssemos,para observar, parte, as peas menos claras de um quebra-cabeas.
Isso parece dar razo a Le Blanc (2007, p. 133) afirmando que quanto mais
um indivduo vulnervel, menos apoiado nas suas prprias formas de vida emais a provao da excluso o expe negao da sua humanidade.
Para concluir
As pessoas em situao de deficincia esperam uma sociedade menos ex-clusiva, menos normativa, sem masmorras nem grades. Elas esperam curvas ecaminhos ondulantes, no um espao social quadrado, cristalizado, fechado. possvel traar, com elas, outros horizontes, contrariar o seu destino, tornar asua vida uma aventura. Utopia? No, na condio, por um lado, de aprender a
contestar o poder das normas que nos governam; e, por outro, de desenvolveruma vontade profundamente reformadora, alheia ao miserabilismo ou ao hero-smo.
As nossas ltimas palavras pretendem sublinhar que a transformao cultu-
ral, aqui esboada, subentende a ambio de desenhar a matriz de um universo
social unido, reconhecendo a fragilidade como condio humana e dando lugar
s suas diversas expresses e aos direitos que dela emanam. A nica ligao
inata entre os homens a sua vulnerabilidade.
Esta transformao passa pela restaurao duma simetria e duma esttica
da relao. Numa perspectiva inclusiva, estas so as novas Luzes s quais restadar forma.
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Notas1
A partir da expresso de Franz Kafka: Toute littrature est assaut contre la frontire, pre-sente ao longo da sua obra.2 Expresso usada ao longo da sua obra.3 Esta expresso aparece, embora de forma diferente, na carta de Spinoza a Jelles, em 2 de
Junho de 1674 (cf Spinoza, B. (1954). Oeuvres compltes. Paris: Gallimard, coleco Biblio -thque de la Pliade).
4 Expresso usada ao longo da sua obra.5 Expresso usada ao longo da sua obra.
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Charles Gardou
Antroplogo, Professor da Universidade Lumire Lyon 2,membro do Observatrio Francs de Formao, Investigao
e Inovao sobre a [email protected]
Traduo do original em francs de Sandra EscobarReviso cientca de Isabel Sanches