educaÇÃo fÍsica na escola democrÁtica: uma … · construtivista para a metodologia de ... o...

12

Click here to load reader

Upload: dohuong

Post on 12-Jan-2019

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: EDUCAÇÃO FÍSICA NA ESCOLA DEMOCRÁTICA: UMA … · CONSTRUTIVISTA PARA A METODOLOGIA DE ... O plano de ensino do componente foi elaborado a partir dos ... trabalhado na aula anterior

Anais do “II CONPEF – Congresso Norte Paranaense de Educação Física Escolar” P. 01 - 12, julho/2005 ISBN 85-7216-433-2

EDUCAÇÃO FÍSICA NA ESCOLA DEMOCRÁTICA: UMA PROPOSTA CONSTRUTIVISTA PARA A METODOLOGIA DE ENSINO

Marcos Garcia Neira Grupo de Pesquisas em Educação Física Escolar

Faculdade de Educação da USP

RESUMO

Esta pesquisa-ação objetivou experimentar uma proposta metodológica de Educação Física fundamentada na concepção de aprendizagem construtivista, tomando como base as intenções educacionais explícitas na nova LDB: o preparo para o exercício pleno da cidadania e a inserção da Educação Física no projeto escolar. Para tanto, foi desenvolvido um programa de aulas em uma turma do Ensino Fundamental de uma escola da rede municipal de Osasco (SP). O plano de ensino do componente foi elaborado a partir dos objetivos explicitados pela comunidade escolar e documentados no seu Projeto Pedagógico. A metodologia de ensino considerou o resgate do patrimônio da cultura corporal dos alunos, a socialização desses saberes e sua ampliação, por meio da superação de situações-problema apresentadas pelo professor-pesquisador ou pelos alunos-sujeitos.Os dados, coletados por meio das filmagens das intervenções pedagógicas, tiveram seu conteúdo analisado e confrontado com a Epistemologia Genética de Piaget. Como descoberta relevante apontamos que tal prática educativa proporcionou, sobretudo, a aprendizagem dos conteúdos atitudinais estabelecidos no projeto escolar.

Palavras-chave: 1 – Cultura; 2 – Jogo; 3 – Educação Física. Endereço do autor: Av. da Universidade, 308 Cidade Universitária – São Paulo – SP CEP – 05508-900

Linha de estudo: Procedimentos Metodológicos e de Avaliação da Educação Física na Educação Básica.

Page 2: EDUCAÇÃO FÍSICA NA ESCOLA DEMOCRÁTICA: UMA … · CONSTRUTIVISTA PARA A METODOLOGIA DE ... O plano de ensino do componente foi elaborado a partir dos ... trabalhado na aula anterior

CONPEF – Congresso Norte Paranaense de Educação Física Escolar

2

2

1. Introdução Uma análise mais cuidadosa dos estudos sobre a prática pedagógica da

Educação Física permite afirmar que o componente encontra-se afastado dos princípios educacionais. Tal fato é de fácil constatação ao verificarmos os parcos fundamentos que sustentam o seu fazer: a escolha de conteúdos, métodos e instrumentos de avaliação adequados. Esse quadro, entendemos, contribui para deturpar a figura do educador diante dos alunos, dos colegas e da comunidade.

Sendo a escola a instituição escolhida pela sociedade para universalizar e ampliar os conhecimentos, proporcionando as condições necessárias para o desenvolvimento de competências socialmente valorizadas, consiste, então, num problema comum a todos os educadores a busca de alternativas que viabilizem essa intenção.

Neste estudo, partimos da concepção de que os benefícios pedagógicos das aulas de Educação Física escolar não são alcançados, simplesmente, pela dotação material ou ampliação da carga horária destinada ao componente. O discurso queixoso dos profissionais da educação, por vezes, atribui à super-lotação das turmas e ao desinteresse dos alunos, as causas do insucesso da Educação Física. Entendemos que este não é o fator desencadeante do fracasso pedagógico. Inversamente ao discurso corrente, é a prática educativa que precisa ser urgentemente revista. Cabe aos educadores sintonizar o fazer pedagógico com o atual momento vivido pela escola, abandonando as lamentações e enfrentando com competência e energia a nova realidade da atuação docente: a escola compulsória e democrática.

Assim, a presente investigação experimentou um programa de Educação Física cujo objetivo principal foi aproximar-se das intenções educacionais pretendidas pela instituição educacional, isto é, formar cidadãos. Através da análise das aulas registradas ao longo de um ano letivo em uma turma do 1º ano do Ensino Fundamental de uma escola da rede municipal de Osasco (SP), buscamos identificar os aspectos contribuintes da proposta para o alcance dos objetivos explícitos no Projeto Político-pedagógico (PPP) da instituição.

A modalidade de pesquisa-ação pode ser utilizada para tentar compreender, de forma sistemática, a prática do cotidiano escolar e seus efeitos. Acompanhando os objetivos institucionais, foram selecionados determinados conteúdos de aprendizagem e empregada uma metodologia de ensino que considera a perspectiva construtivista da aprendizagem.

Na escola atual, o discurso mais urgente lança mão da escolha de objetivos que direcionem a educação escolar para a vida; que orientem a seleção de conteúdos para temas relevantes social e culturalmente e que, por fim, se utilizem metodologias comprometidas com a formação de sujeitos conhecedores e críticos. 2. A prática pedagógica da Educação Física

Como tarefa inicial, coube estabelecer a coerência entre o programa a ser desenvolvido e as intenções educativas manifestadas no PPP da instituição que tomou como base a proposição da LDB (9.394/96) e dos PCN1.

1 Parâmetros Curriculares Nacionais – Educação Física

Page 3: EDUCAÇÃO FÍSICA NA ESCOLA DEMOCRÁTICA: UMA … · CONSTRUTIVISTA PARA A METODOLOGIA DE ... O plano de ensino do componente foi elaborado a partir dos ... trabalhado na aula anterior

CONPEF – Congresso Norte Paranaense de Educação Física Escolar

3

3

Conforme Libâneo (1994) toda ação didática implica uma concepção de valor que se atribui ao ensino, bem como certas idéias em relação aos processos de ensinar e aprender. Portanto, a forma pela qual o trabalho escolar é conduzido proporciona a aquisição de conhecimentos, valores e competências em detrimento de outros. Como exemplo, podemos dizer que ao pretender construir uma sociedade livre e democrática serão necessários processos de ensino abertos2 e estimuladores do desenvolvimento das potencialidades humanas.

A sociedade delegou uma série de obrigações à escola que reorientam a prática educativa, fato que ocupa o tempo e o trabalho de todos os envolvidos. Dessa forma, os programas escolares de todos os componentes precisam ser revistos se quisermos alcançar os objetivos pretendidos pela legislação educacional, comumente reproduzidos no Projeto Político-pedagógico da escola.

O PPP é o documento que identifica a escola, vai além de um simples agrupamento de planos de ensino e da descrição das atividades a serem desenvolvidas, não deve ser algo arquivado ou encaminhado às autoridades educacionais como prova de cumprimento de tarefas burocráticas. Deverá ser construído e vivenciado em todos os momentos, por todos os envolvidos com o processo educativo.

No caso da instituição pesquisada, essa experiência foi vivida nos quatro últimos anos e, segundo os depoimentos colhidos, “todos têm aprendido com essa prática e modificado sua forma de fazer educação”3.

Àquele cidadão que a escola quer formar, explícito no seu PPP, foram atribuídas características, potencialidades, competências e ‘sonhos’ discutidos coletivamente com a comunidade e que, traduzidos em objetivos e finalidades educacionais direcionam a prática educativa.

Veiga (1995) nos lembra que o projeto busca um rumo, uma direção. É uma ação intencional, com um sentido explícito, com um compromisso definido coletivamente. Por isso, todo projeto escolar é, também, um projeto político por estar intimamente articulado ao compromisso sociopolítico e com os interesses reais e coletivos da população majoritária. É político no sentido de compromisso com a formação do cidadão para um tipo de sociedade. Conforme Saviani (1983), “a dimensão política se cumpre na medida em que se realiza enquanto prática especificamente pedagógica” (p. 93). Na dimensão pedagógica reside a possibilidade de efetivação da intencionalidade da escola, que é a formação do cidadão participativo, responsável, compromissado, crítico e criativo.

Há, portanto, uma dupla intenção explícita na concepção de PPP: o retorno para a sociedade dos benefícios frutos do trabalho escolar e a ação de ensinar para a efetivação desses benefícios. Nesse sentido, o PPP é um processo permanente de reflexão e discussão dos problemas da escola e a busca de alternativas viáveis à efetivação de sua intencionalidade.

Na opinião de Azanha (2000), a principal possibilidade de construção do PPP passa pela relativa autonomia da escola, de sua capacidade de linear a própria identidade. Isso significa resgatar a escola como espaço público, lugar de

2 Entendemos como “processos de ensino abertos” aqueles em que se privilegiam as tomada de decisão dos alunos. 3 Depoimento da Coordenadora Pedagógica.

Page 4: EDUCAÇÃO FÍSICA NA ESCOLA DEMOCRÁTICA: UMA … · CONSTRUTIVISTA PARA A METODOLOGIA DE ... O plano de ensino do componente foi elaborado a partir dos ... trabalhado na aula anterior

CONPEF – Congresso Norte Paranaense de Educação Física Escolar

4

4

debate e diálogo fundados na reflexão e no comportamento democrático. Portanto, é preciso entender que o PPP da escola fornece as indicações necessárias à organização do trabalho pedagógica, ou seja, a dinâmica das aulas.

A partir desse pressuposto, considera-se que o documento deva contemplar uma absoluta independência na elaboração do currículo articulando coerentemente o cidadão que se pretende formar e a prática educativa. Essa coerência é na verdade, condição sine qua non para a efetivação de uma prática consciente e comprometida com a transformação social.

No estudo do PPP da escola constataram-se que os objetivos educacionais decididos coletivamente assumiram majoritariamente um contorno atitudinal e a concepção de aprendizagem definida pelo documento alicerçava-se nos pressupostos construtivistas. Estes elementos sinalizaramo ponto de partida para a elaboração do programa de Educação Física infantil:

Finalidade: O desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em vista a aquisição de conhecimentos e habilidades, formação de atitudes e valores (EMEF Prof. Anézio Cabral, p. 51).

Considerando que esta intenção educacional é possível pelo

desenvolvimento de competências nos alunos, o mesmo documento priorizou:

Posicionar-se de maneira crítica, responsável e construtiva nas diferentes situações sociais, utilizando o diálogo como forma de mediar conflitos e tomar decisões coletivas;

Desenvolver o conhecimento ajustado de si mesmo e o sentimento de confiança em suas capacidades afetiva, física, cognitiva, ética, estética, de inter-relação pessoal e inserção social, para agir com perseverança na busca de conhecimento e no exercício da cidadania (id., p. 55-56).

Sobre o componente curricular Educação Física, explicitou:

A Educação Física nesta instituição abordará a complexidade das relações entre corpo e mente num contexto sociocultural, tendo como princípio a igualdade de oportunidades para todos os alunos e o objetivo de desenvolver as potencialidades, num processo democrático e não seletivo. (id., p. 60)

3. Descrição da metodologia de ensino Partindo do PPP, as aulas propuseram: a retomada do que havia sido

trabalhado na aula anterior por meio do depoimento dos alunos-sujeitos; apresentação pelo professor-pesquisador da atividade a ser desenvolvida consistindo em uma situação-problema que partia de um diagnóstico inicial realizado no início do estudo: foram levantados os aspectos lúdicos presentes na cultura corporal do grupo tendo sido registrados nos cadernos dos alunos e no plano de aulas do pesquisador (Pega-pega, Vivo ou Morto, Peteca, Bobinho,

Page 5: EDUCAÇÃO FÍSICA NA ESCOLA DEMOCRÁTICA: UMA … · CONSTRUTIVISTA PARA A METODOLOGIA DE ... O plano de ensino do componente foi elaborado a partir dos ... trabalhado na aula anterior

CONPEF – Congresso Norte Paranaense de Educação Física Escolar

5

5

Paredão, Esconde-esconde, Queimada, Corrida, Batata-quente, Ciranda, Guerra do abacate, Mico preto, Pular corda, Jogo de Damas, Corre Cutia, Amarelinha).

Assim, em continuidade ao que havia sido desenvolvido na aula anterior ou recorrendo ao repertório de atividades já conhecidas pelos alunos-sujeitos, o professor-pesquisador elaborava uma nova situação-problema que propunha, por exemplo, a exposição do jogo por uma das crianças, a vivência do jogo, o convite à construção/modificação das regras para a adequação à realidade daquele grupo, a invenção de alternativas para superar os “problemas” identificados no jogo, o incentivo à discussão sobre conflitos vividos no andamento do jogo etc.

A situação-problema era modificada no decorrer da aula sempre que o professor-pesquisador constatava sua ineficácia e uma nova situação-problema era apresentada quando o grupo concebia soluções satisfatórias de forma democrática. Quando o grupo se mantinha interessado, a situação-problema era retomada na aula seguinte, envolvido novamente na busca de alternativas de superação.

Embora o conhecimento da solução dos problemas existisse previamente para o professor-pesquisador, ainda não existia para a maioria dos alunos-sujeitos, que deveriam operar de várias maneiras para encontrá-la. Desta forma, o professor-pesquisador mantinha-se atento e preocupado com a elaboração das atividades que facilitassem a construção dos conhecimentos por parte dos alunos, valorizando as contribuições e os laços relacionais durante as atividades.

4. Análise e interpretação dos dados

Segundo Becker (2003), uma pedagogia centrada na relação tende a desabsolutizar os pólos professor-aluno, dialetizando-os, nesse caso, nenhum dispõe de hegemonia prévia: o professor traz a sua bagagem, o aluno também. São bagagens diferenciadas que entram em relação. Nada, a rigor, poderá ser definido de antemão. Trata-se de uma concepção de ensino e aprendizagem que resgata a importância de ambos os sujeitos, fazendo-os crescer a níveis inéditos. Este modelo, traduzido em prática, busca a destruição dos fatores que prejudicam ou até anulam os pólos da relação e resgata a dinâmica própria do conhecimento que permite o crescimento.

Piaget (1975) esclarece esse ponto: as verdadeiras formas ou estruturas de conhecimento não são dadas na bagagem hereditária, também não são resultado de um decalque das organizações dos objetos ou do meio físico ou social por força da pressão deste meio; mas resultam de um processo de interação radical entre o mundo do sujeito e o mundo do objeto, (inter)ação ativada pela ação do sujeito.

As relações entre o sujeito e o seu meio consistem em uma interação radical, de modo tal que a consciência não começa pelo conhecimento dos objetos nem pela atividade do sujeito, mas por um estado indiferenciado; e é desse estado que derivam dois movimentos complementares, um de incorporação das coisas ao sujeito, o outro de acomodação às próprias coisas. (p. 386).

Page 6: EDUCAÇÃO FÍSICA NA ESCOLA DEMOCRÁTICA: UMA … · CONSTRUTIVISTA PARA A METODOLOGIA DE ... O plano de ensino do componente foi elaborado a partir dos ... trabalhado na aula anterior

CONPEF – Congresso Norte Paranaense de Educação Física Escolar

6

6

Por esse raciocínio, a proposta centrada na resolução de situações-problema nos parece adequada por estimular de maneira constante a ação dos alunos sobre o conhecimento (no caso os conteúdos da Educação Física) dado que os objetos (pela via das situações-problema) apresentavam-se assimiláveis à ação dos sujeitos.

É devido aos esquemas de assimilação cuja propensão é aplicar-se a tudo, que os alunos encontram muita dificuldade em permanecer atentos e prestar atenção à explicações longas do funcionamento e organização das atividades. Em presença do material: bolas, cordas, colchões, aros etc., o que pudemos notar é uma imensa energia canalizada para experimentar (e viver) o material de todas as maneiras possíveis, assimilando-o às suas estruturas antes mesmo da proposição da situação-problema. O próprio manuseio do material apresentava, por vezes, um problema a ser solucionado.

Ao provocar nos alunos uma nova resposta para um objeto conhecido – uma forma diferente de pular corda – interessados em compreender seu funcionamento, sua lógica, acomodaram seus esquemas ao objeto, esta acomodação não se deu de imediato, pediu exercício e experimentação, mas acabou por acontecer enriquecendo a capacidade de assimilação. Quando o aluno já tiver, em decorrência do processo de acomodação, assimilado satisfatoriamente o novo objeto, diz-se que ocorreu equilíbrio entre assimilação e acomodação. Como os estados de equilíbrio são sempre instáveis (novos objetos sempre aparecem pedindo modificações constantes na capacidade de assimilação), Piaget destaca que o processo de equilibração, sublinha, justamente, o caráter dinâmico da relação entre assimilação e acomodação.

No “pular corda”, por exemplo, foi possível identificar muitas possibilidades para a inter-relação com novos objetos de conhecimento: músicas, desafios motores (colocar as mãos no chão), sensações de superação etc. Os alunos, inicialmente convidados a experimentar a mudança, fizeram-no de posse dos esquemas vividos. Ao atuarem um maior número de vezes, vivenciaram a possibilidade de fazê-lo com sucesso, atingindo o equilíbrio e dispondo-se, voluntariamente, a novas modificações no que foi recém apreendido.

É a busca do equilíbrio através da superação de conflitos cognitivos que explica em parte a evolução da inteligência e dos conhecimentos, mas evidentemente, para que haja conflito, é necessário que o sujeito perceba que suas formas de assimilação não dão conta do que pretende fazer ou resolver.

As estruturas do conhecimento não se dão nem na bagagem hereditária nem nos objetos: constroem-se na forma e no conteúdo por um processo de interação radical entre o sujeito e o meio, processo ativado pela ação do sujeito, mas de forma nenhuma independente da estimulação do meio. O que se quer dizer é que o meio, por si só, não se constitui “estímulo”. E o sujeito, por si só, não se constitui “sujeito” sem a mediação do meio; meio físico e social.

Conceber a aprendizagem como construção significa descartar uma metodologia que forneça as respostas corretas e a passividade dos alunos. Tal modelo pode parecer cômodo e mais eficaz, uma vez que concentra no professor a responsabilidade por todo o processo – do planejamento à avaliação cabendo-lhe todas as tomadas de decisão. Contudo, ao resgatar o sentido da escola (explícito na LDB e no PPP) a educação visa o desenvolvimento de todas as

Page 7: EDUCAÇÃO FÍSICA NA ESCOLA DEMOCRÁTICA: UMA … · CONSTRUTIVISTA PARA A METODOLOGIA DE ... O plano de ensino do componente foi elaborado a partir dos ... trabalhado na aula anterior

CONPEF – Congresso Norte Paranaense de Educação Física Escolar

7

7

potencialidades do cidadão, proporcionando-lhe meios para a aprendizagem constante, ao longo da vida.

No mesmo sentido, Inhelder (1977) se posiciona: “o processo mais fundamental de toda conduta de aprendizagem consiste em que o sujeito aprenda a aprender” (p. 22). A partir daí, coube ao professor-pesquisador planejar e desenvolver um programa de Educação Física que estimulasse o tempo todo a ação mental dos alunos – motor da aprendizagem e do desenvolvimento, vinculando-o à cultura corporal de movimento.

Neste quadro, o jogo ocupou um importante espaço, pois possibilitou, tal qual entendem Macedo et al. (2000), a mobilização de conceitos, atitudes e procedimentos e acolheu a possibilidade de ações motoras diversificadas, conservando, por meio do seu componente lúdico, um traço bastante significativo para os alunos nessa faixa etária.

O ‘sucesso’ obtido no jogo é fruto de uma ação que parte do sujeito (ou dos sujeitos) e que se vê inserida num determinado contexto: as características do jogo, as condições dos participantes, as possibilidades de ação que as regras permitem etc. Tal fato, vivido nas situações-problema elaboradas conduz os processos de ensino a uma direção inversa aos métodos diretivos. Enquanto que as propostas diretivas tencionam o alcance de determinado objetivo explicito, uma proposta por situações-problema, proporciona a mobilização de conhecimentos e um enriquecimento do processo.

Para Freire (1982), o caminho para chegar ao êxito no método diretivo pode ser mais curto, mas o que nos interessava no presente estudo, em termos de melhora, também da compreensão, era a descoberta e a construção do próprio caminho pelos alunos, o aprender a aprender. Acrescenta-se que nas intervenções pedagógicas propostas, as ações mentais predominaram sobre as ações motoras – aspecto contrastante com a idéia cultivada no ambiente escolar de que a aula de Educação Física deve possuir muitas e diversificadas propostas motoras, quase sempre concentradas em movimentos já automatizados – o que implicou maior número de coordenações e, portanto, maior conhecimento. Em continuidade, afirma o autor:

predeterminar os movimentos que o sujeito utiliza e apontar antecipadamente as soluções equivale a afirmar que o conhecimento é algo que decorre de um estímulo externo, proveniente do objeto, e ignorar as estruturas do sujeito. Por outro lado, estimular a descoberta pelo sujeito, significa afirmar que o conhecimento é um produto das interações entre suas estruturas, através de ações próprias. (p. 75)

Após essas contribuições, a prática pedagógica da Educação Física se

modifica. Substitui-se o procedimento tradicional pelo qual o professor explica o jogo e conduz o seu andamento, controlando as ações dos participantes e policiando as regras, pela proposição de vários desafios.

Ao tomar-se como referência a tradição pedagógica da Educação Física que enfatiza a vivência motora sobre os demais aspectos do indivíduo, a metodologia de ensino empregada neste estudo poderá ser questionada dado que em uma aula conduzida de forma diretiva ‘não haveria tamanha perda de tempo’

Page 8: EDUCAÇÃO FÍSICA NA ESCOLA DEMOCRÁTICA: UMA … · CONSTRUTIVISTA PARA A METODOLOGIA DE ... O plano de ensino do componente foi elaborado a partir dos ... trabalhado na aula anterior

CONPEF – Congresso Norte Paranaense de Educação Física Escolar

8

8

com paralisações, discussões e elaboração de regras. Os alunos jogariam mais e ficariam menos tempo ‘parados’. Notou-se, no entanto, que os alunos mantiveram-se em atividade buscando resolver mentalmente e motoramente os conflitos que surgiram, somando-se a isso diferentes recursos foram mobilizados de maneira significativa e voluntária. Pela análise das filmagens, pôde-se observar grandes níveis de interesse e envolvimento com a proposta (os alunos permaneceram operando e tentando resolver os problemas sem que fossem percebidos afastamentos), daí, infere-se que a situação-problema quando assume a forma de jogo, adquire para o grupo, um grande significado.

Nesse processo, o professor-pesquisador ao atentar para a potencialidade da atividade, favoreceu um maior grau de significância na aprendizagem. Na construção é possível atribuir significado a um determinado objeto de ensino, o que implica a ação por parte da pessoa que aprende, de seu interesse e disponibilidade, de seus conhecimentos prévios e de sua experiência. Em tudo isso o professor desempenha um papel especial ajudando a detectar um conflito inicial entre o que já se conhece e o que se deve saber, contribui para que o aluno se sinta capaz e com vontade de resolvê-lo, propõe o novo conteúdo como um desafio interessante cuja resolução terá alguma utilidade, intervém de forma adequada nos progressos e nas dificuldades que o aluno manifesta, apoiando-o e prevendo, ao mesmo tempo, a atuação autônoma do aluno.

A proposição de situações-problema não só contribui para que o aluno aprenda certos conteúdos, mas também faz com que aprenda a aprender e que aprenda que pode aprender. Sua repercussão não se limita ao que o aluno sabe, igualmente influi no que sabe fazer e na imagem que tem de si mesmo.

Piaget (1978) nos ensina que o processo de construção do conhecimento ocorre de maneira inconsciente e, de forma semelhante, o conhecimento adquirido poderá permanecer no inconsciente cognitivo. Em termos pedagógicos essa possibilidade pouco contribui, porque não possibilita uma melhora na compreensão, a qual só vem a ocorrer no momento da tomada de consciência. Por essa razão, foram escolhidas para as interferências pedagógicas em Educação Física, atividades nas quais os alunos necessitassem de pausa e reflexão para sua resolução e até mesmo quando os alunos, fazendo uso dos mecanismos de assimilação partiam prontamente para a tarefa, o professor-pesquisador convidava-os (após vivenciarem o insucesso) a pensar e refletir sobre o que estava acontecendo e como poderiam encontrar uma solução diferente.

Os problemas apresentados exigiram dos alunos a concentração para trabalhar com os elementos (informações) de que dispunham e se seriam necessárias ou não, úteis ou não. A comparação intencional com as situações por eles vividas, a organização do grupo para o trabalho em equipe, a eleição por uma das diversas situações apresentadas pelos componentes do grupo e a preparação para a apresentação foram os principais recursos mobilizados pelos alunos para a resolução das situações expostas. Numa tarefa aparentemente simples, notou-se o estímulo ao desenvolvimento de diversos conceitos, atitudes e procedimentos necessários para a uma atuação cidadã.

Acompanhando, por meio da análise dos dados, a evolução das respostas dos alunos às propostas pode-se afirmar que essas estratégias, empregadas constantemente pelo professor-pesquisador, foram de grande importância na

Page 9: EDUCAÇÃO FÍSICA NA ESCOLA DEMOCRÁTICA: UMA … · CONSTRUTIVISTA PARA A METODOLOGIA DE ... O plano de ensino do componente foi elaborado a partir dos ... trabalhado na aula anterior

CONPEF – Congresso Norte Paranaense de Educação Física Escolar

9

9

aprendizagem e desenvolvimento cognitivo pois, com o passar do tempo as dificuldades iniciais foram vencidas rapidamente e outras que mobilizaram os mesmos recursos porém num nível mais sofisticado também foram superadas. A explicação desse fenômeno, segundo Piaget (1976), é que uma inovação resulta sempre de uma necessidade anterior, que atualizada, constitui-se em um novo esquema de procedimento tendendo a alimentar-se, aplicando-se a situações análogas.

Essa generalização4 possível do esquema de procedimento confere ao sujeito um novo poder e o simples fato de ter conseguido inventar um procedimento para certas situações favorecerá, aos meus olhos, o êxito noutras. (p. 155)

A retomada constante das idéias dos alunos sobre as possibilidades de

solução, o estímulo à invenção de alternativas aos mais variados problemas e o confronto de possibilidades colocado pelo professor-pesquisador converge com o que ensina Piaget ao garantir que o confronto de diferentes pontos de vista, tão essencial ao desenvolvimento do pensamento lógico, está sempre presente no jogo, o que torna essa situação particularmente rica para estimular a vida social e a atividade construtiva da criança.

A prioridade nos diz Macedo et al. (2000), é, portanto, incentivar o aluno a atuar, valorizando principalmente o desenvolvimento de competências, como disciplina, concentração, perseverança e flexibilidade. Isto tem, como conseqüência, a melhora dos esquemas de ação e a descoberta de estratégias vencedoras. Por isso, coube ao professor-pesquisador valorizar a observação e a superação dos erros, bem como propor diferentes formas de registro para análises posteriores às atividades.

Segundo os referidos autores, o gerador do elemento lúdico será sempre a resolução de situações-problema que, em geral, têm as seguintes características: - são elaboradas a partir de momentos significativos do próprio jogo; apresentam um obstáculo, ou seja, representam alguma situação de impasse ou decisão sobre qual a melhor ação a ser realizada; favorecem o domínio cada vez maior da estrutura do jogo; têm como objetivo principal promover análise e questionamento sobre a ação de jogar o que torna menos relevantes o fator sorte e as jogadas por ensaio e erro.

A pedagogia das situações-problema também é valorizada por Meirieu (1998) como propulsora da aprendizagem:

Uma prática que desafia os alunos a buscar respostas cuja construção resulta necessariamente numa nova aprendizagem (...) todo esforço da pedagogia das situações-problema (...) impõe que se tenha a certeza da existência de um problema a ser resolvido e, ao mesmo tempo, da impossibilidade de resolver o problema sem aprender. (p. 172)

4 Grifo nosso.

Page 10: EDUCAÇÃO FÍSICA NA ESCOLA DEMOCRÁTICA: UMA … · CONSTRUTIVISTA PARA A METODOLOGIA DE ... O plano de ensino do componente foi elaborado a partir dos ... trabalhado na aula anterior

CONPEF – Congresso Norte Paranaense de Educação Física Escolar

10

10

Contudo, Macedo et al. (2000) alertam que, na perspectiva de intervenção por meio de jogos, o desafio é compartilhar a responsabilidade do problema e sua superação com os próprios alunos. Se eles não se conscientizarem e mobilizarem recursos próprios para as mudanças necessárias, não haverá aprendizagem.

Em síntese, a discussão desencadeada a partir de uma situação de jogo, mediada pelo educador, vai além da experiência e possibilita a transposição das aquisições para outros contextos. Isto significa que as atitudes adquiridas no contexto de jogo tendem a tornar-se propriedade dos alunos podendo ser generalizadas para outros âmbitos, em especial, para situações do cotidiano.

Do ponto de vista piagetiano, conhecer implica a existência de uma relação sujeito-objeto, considerando a ação como condição para que o sujeito construa novas estruturas. Nesse caso específico, não se trata de qualquer ação executada, mas daquelas que têm significado para o sujeito.

Assim, jogar favorece a aquisição de conhecimentos, pois o sujeito aprende sobre si próprio (como age e pensa), sobre o próprio jogo (o que o caracteriza, como vencer), sobre as relações sociais relativas ao jogar (tais como competir e cooperar) e, também, sobre conteúdos (semelhantes a certos temas usuais no contexto extra-escolar). A grande vantagem está na manutenção do espírito lúdico, requisito essencial para o jogador entregar-se ao desafio da “caminhada”. Como conseqùência direta do jogar, haverá uma construção gradativa da competência para questionar e analisar as informações existentes. Conseqùentemente, quem joga pode efetivamente desenvolver-se. Vale lembrar que consiste em responsabilidade do educador determinar qual será a melhor contribuição do jogo que escolhido e organizar a atividade de maneira a alcançá-la.

Observar, questionar, discutir, interpretar, solucionar e analisar são alguns exemplos de competências necessárias para se jogar bem. Nas intervenções pedagógicas de Educação Física deste estudo, enquanto os alunos jogavam eram acompanhados pelo professor-pesquisador que lhes propunha análises sobre as suas ações. Essa metodologia permitiu a descoberta da importância da antecipação, do planejamento das jogadas (ações), da organização do grupo para a realização das tarefas e do pensamento antes da ação.

Por esse raciocínio, infere-se que o jogo com sentido pedagógico desenvolvido nas aulas em muito se difere do jogo praticado em outros momentos. Assim, não é todo e qualquer jogo que trará benefícios ou construirá novos conhecimentos.

O conhecimento na perspectiva da Epistemologia Genética é visto como algo a ser construído pelo sujeito, pelo aluno, no contexto de suas interações (relações) com outras pessoas ou objetos. O conhecimento não é dado a priori; o sujeito nasce com a possibilidade dele, mas não nasce com ele. O conhecimento é, por isso, um trabalho ou construção. Construção social, se considerarmos o conhecimento acumulado (disponível) ou produzido pelas pessoas de uma certa sociedade. Construção individual, ao considerar-se que necessita ser refeito pessoa por pessoa.

Page 11: EDUCAÇÃO FÍSICA NA ESCOLA DEMOCRÁTICA: UMA … · CONSTRUTIVISTA PARA A METODOLOGIA DE ... O plano de ensino do componente foi elaborado a partir dos ... trabalhado na aula anterior

CONPEF – Congresso Norte Paranaense de Educação Física Escolar

11

11

5. Considerações Os jogos na Educação Física foram utilizados pelo professor-pesquisador

como instrumentos para instigar os alunos, promovendo a observação das ações executadas e a análise das suas conseqüências, favorecendo a conscientização do que deve ser intencionalmente mantido, porque se aproxima da vitória, ou modificado, porque é ruim para o sistema.

A metodologia de ensino valorizou o processo em oposição ao resultado. Essa postura implicou respeitar as diferenças individuais e considerou como ponto de partida, exclusivamente, as aquisições já assimiladas pelos alunos. Portanto, a idade dos alunos foi apenas uma referência e não, tomada como padrão em termos de expectativas: buscou-se identificar e valorizar todos os progressos dos alunos comparando-os consigo mesmos.

Como foi visto, jogar favorece e enriquece o processo de aprendizagem, na medida em que o sujeito é levado a refletir, fazer previsões e inter-relacionar objetos e eventos, bem como contribui para fornecer informações a respeito do pensamento infantil, o que é fundamental para o educador que pretende auxiliar na superação das eventuais dificuldades.

O que se busca é a criação de condições para que todos os alunos possam descobrir ou redescobrir que é possível aprender e conhecer, e, para a surpresa de muitos, mesmo as atividades mais formais podem dar prazer, despertar interesse e prender a atenção. Afinal, como afirmam Macedo et al. (2000), a longa jornada que é a vida escolar não precisa ser sempre sinônimo de fracasso, medo e frustração.

Finalizando a análise da prática pedagógica da Educação Física, vale retomar o princípio de que a função social do ensino compreende a ampliação e o desenvolvimento das potencialidades individuais do ser humano. Diante disso o educador necessita de uma proposta de ensino ampliada, que abarque grande parte das capacidades do educando, desequilibrando-as e estimulando o seu desenvolvimento. Observou-se que as intervenções pedagógicas de Educação Física demonstraram componentes valiosos e contribuintes para uma formação integral. Fundamentando-se em uma concepção de aprendizagem construtivista, a metodologia proposta consistiu na elaboração de atividades que contemplaram o desenvolvimento das competências pela mobilização de diferentes conceitos, atitudes e procedimentos.

Ao enfrentar uma turma heterogênea (como é qualquer turma) no que se refere aos conhecimentos prévios sobre a cultura corporal, a opção pela proposição de situações-problema por meio de jogos foi determinante no atendimento à tal diversidade e no estímulo a todos os alunos pelo aprimoramento dos processos autônomos de construção do conhecimento.

Pensar a Educação Física como componente curricular e inserida no projeto escolar implica em compreender uma nova forma de desenvolver seus conteúdos, não basta apresentar uma quantidade enorme de atividades motoras, mesmo que lúdicas, para os alunos executarem. Essa postura (tão comum na escola da infância) contribuirá muito pouco para a formação do cidadão. Destaca-se, no entanto, a necessidade de maior quantidade de investigações envolvendo a prática pedagógica da cultura corporal para que seja possível uma efetiva reconstrução do fazer pedagógico.

Page 12: EDUCAÇÃO FÍSICA NA ESCOLA DEMOCRÁTICA: UMA … · CONSTRUTIVISTA PARA A METODOLOGIA DE ... O plano de ensino do componente foi elaborado a partir dos ... trabalhado na aula anterior

CONPEF – Congresso Norte Paranaense de Educação Física Escolar

12

12

6. Referências bibliográficas AZANHA, J. M. P. Proposta pedagógica e autonomia da escola. In: SÃO PAULO [estado]. A construção da proposta pedagógica da escola: a escola de cara nova. São Paulo: Secretaria de Estado da Educação, 2000. p. 18-24. BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2000. BECKER, F. A origem do conhecimento e a aprendizagem escolar. Porto Alegre: Artmed, 2003. BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial da União em 20 de dezembro de 1996. ___________.Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais – Educação Física. Brasília: MEC/SEF, 1997. ESCOLA MUNICIPAL DE ENSINO FUNDAMENTAL “Prof. Anézio Cabral”. Projeto Político Pedagógico. Equipe Técnico-pedagógica, 2004. FREIRE, J. B. As relações entre o fazer e o compreender na prática da Educação Física. Dissertação de Mestrado. Escola de Educação Física da Universidade de São Paulo. EEFUSP, 1982. INHELDER, B. Aprendizagem e estruturas do conhecimento. São Paulo: Saraiva, 1977. LIBÂNEO, J. C. Didática. São Paulo: Cortez, 1994. MACEDO, L. et al. Aprender com jogos e situações-problema. Porto Alegre: Artmed, 2000. MEIRIEU, P. Aprender... sim, mas como? Porto Alegre: ARTMED Editora, 1998. PIAGET, J. O nascimento da inteligência na criança. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. ___________. Psicologia e pedagogia. Rio de Janeiro: Forense, 1976. ___________. A tomada de consciência. São Paulo: Melhoramentos, 1978. SAVIANI, D. Escola e democracia: teorias da educação, curvatura da vara, onze teses sobre educação e política. São Paulo: Cortez, 1983. VEIGA, I. P. A. Projeto político-pedagógico da escola. Campinas: Papirus, 1995.