educacao fisica a arte da mediação - hugo lovisolo

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Hugo Lovisolo A educação Física vive momentos de discussão e crítica de questões vinculadas à sua identidade e lugar entre as disciplinas científicas, e com sua legitimidade e papéis na própria sociedade. Nos cursos de graduação e pós-graduação essas questões suscitam tanto preocupações de ordem intelectual quanto de ordem pessoal. O autor analisa e propõe alternativas, a partir das ciências sociais, para as relações entre educação física e seus fundamentos científicos e para os problemas vinculados àlegitimidade e possibilidade de sua intervenção. Propõe que compreendamos a Educação Física como definida a partir do horizonte de valores (estéticos e éticos), transformados em objetivos sociais, que comandam a intervenção. Considera que os educadores físicos devem desenvolver uma arte da mediação entre conhecimentos, valores e objetivos no programa de intervenção e que essa arte é produto da mediação criativa entre ciências, técnicas e saberes. A intervenção, para o autor, apenas faz sentido, e será eficiente, no seio de acordos sociais livres e participativamente decididos. Tomando como referência a educação física escolar desenvolve e exemplifica esta hipótese. Dada a contraposição de valores que caracterizam a nossa sociedade, e tomando como eixo analítico o valor da competição emjogos e esportes, o autor demonstra as ambigüidades desse valor no plano dos efeitos na formação individual e na dinâmica sócio-cultural. A articulação de valores, éticos e estéticos, e sua quase indistinção ou superposição, é trabalhada no seio do movimento social pela saúde (qualidade de vida, mantendo a forma, prolongando a vida), um vetor de estruturação de nosso presente e um campo significativo, em suas múltiplas dimensões, de atuação profissional. A obra abre para novas questões e formas de olhar a Educação Física no momento atual ao invés de se fechar em posições estabelecidas. O autor matem um diálogo permanente com o leitor, a partir das ciências sociais, utilizando formas discursivas que facilitam a compreensão do leitor. cação Física ARTE DA I MEDIAÇÃO p O) SPRINT

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Hugo Lovisolo

A educação Física vive momentos de discussão ecrítica de questões vinculadas à sua identidade e lugar entre asdisciplinas científicas, e com sua legitimidade e papéis na própriasociedade. Nos cursos de graduação e pós-graduação essas questõessuscitam tanto preocupações de ordem intelectual quanto de ordempessoal. O autor analisa e propõe alternativas, a partir das ciênciassociais, para as relações entre educação física e seus fundamentoscientíficos e para os problemas vinculados àlegitimidade epossibilidade de sua intervenção. Propõe que compreendamos aEducação Física como definida a partir do horizonte de valores(estéticos e éticos), transformados em objetivos sociais, quecomandam a intervenção. Considera que os educadores físicosdevem desenvolver uma arte da mediação entre conhecimentos,valores e objetivos no programa de intervenção e que essa arte éproduto da mediação criativa entre ciências, técnicas e saberes. Aintervenção, para o autor, apenas faz sentido, e será eficiente, no seiode acordos sociais livres e participativamente decididos. Tomandocomo referência a educação física escolar desenvolve e exemplificaesta hipótese. Dada a contraposição de valores que caracterizam anossa sociedade, e tomando como eixo analítico o valor dacompetição em jogos e esportes, o autor demonstra as ambigüidadesdesse valor no plano dos efeitos na formação individual e nadinâmica sócio-cultural. A articulação de valores, éticos e estéticos,e sua quase indistinção ou superposição, é trabalhada no seio domovimento social pela saúde (qualidade de vida, mantendo a forma,prolongando a vida), um vetor de estruturação de nosso presente eum campo significativo, em suas múltiplas dimensões, de atuaçãoprofissional. A obra abre para novas questões e formas de olhar aEducação Física no momento atual ao invés de se fechar em posiçõesjá estabelecidas. O autor matem um diálogo permanente com oleitor, a partir das ciências sociais, utilizando formas discursivas quefacilitam a compreensão do leitor.

cação Física

ARTE DAI MEDIAÇÃOpO)

SPRINT

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Educação Física.* ' "' oE lífe SE

A ARTE DAMEDIAÇÃO

Hugo Lovisolo

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Direitos exclusivos para a língua portuguesaCopyright© 1995 byEDITORA SPRINT LTDA.Rua Adolfo Mota, 61CEP 20540-100 - Rio de Janeiro - RJTeL: (021) 264-8080 — Fax: (021) 284-9340

ISBN 85-85031-81.6

Reservados todos os direitos.Proibida a reprodução desta obra, ou de suas partes,sem o consentimento expresso da Editora.

Capa e Editoração: VIZUALL Editoração Criativa

CIP-Brasil. Catalogação na fonte

LOVISOLO, Hugo

Educação Física: Arte da Mediação; Hugo LovisoloSprint Editora - Rio de Janeiro - RJ - 1995

ISBN 85-85031-81.6

I. Educação Física 2. Esporte3. Corporeidade 4. Antropologia5. Sociologia

I. Título

Depósito legal na Biblioteca Nacional, conformeDecreto n° 1825 de 20 de dezembro de 1967

Impresso no BrasilPrinted in Brazil

Hugo Lovisolo

Doutor em Antropologia Social, professor do mestrado edoutorado em Educação Física da Universidade Gama Filho.

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Sumário

Introdução 01

Capítulo l : A educação física como arte da mediação 07

Capítulo 2: Educação e educação física em escolasde Rio de Janeiro 39

Capítulo 3: Regras, esportes e capitalismo 81

Capítulo 4: Esporte e movimento pela saúde 109

Capítulo 5: Ciências do esporte:interdisciplinaridade ou mediação 133

Bibliografia 149

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Introdução

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Os cinco capítulos que compõem este livro, apesar de escritosem distintas oportunidades entre 1991 e 1994, possuemuma considerávelunidade. Trata-se, nos três, de pensar aspectos do lugar da educaçãofísicana sociedade atual e particularmente na brasileira. Devo reconhecerque, antropólogo por formação, meu interesse nos temas que aquidesenvolvo foi durante muito tempo de caráter geral, situavam-se nocampo das leituras que as etnografias provocavam em relação asrepresentações e práticas sobre o corpo e as atividades corporais emdistintas culturas. A oportunidade de lecionar antropologia e sociologiado corpo e das atividades corporais na Universidade Garoa Filho, noMestrado de Educação Física, possibilitou o contato com os colegase alunos. Os alunos mudaram a imagem que eu tinha dos professoresde educação física, os educadores físicos como os chamo, com muitocarinho, no primeiro capítulo. Eles me transmitiram um horizonte dequestões, de problemas e ansiedades profissionais que eu nem imaginavaexistirem. Meu interesse no campo se potencializou e iniciei pesquisasria área.

Alguns princípios orientadores de leitura dos fenômenos que~\nos ocupam me parecem evidentes. O primeiro é que o corpo forneceum grande modelo de referência, um manancial de metáforas parapensarmos tanto questões não corporais nem materiais quanto aprópria sociedade. O segundo, é que a linguagem sobre o corpo torna- jse figuras de expressão de instâncias ou processos não corporais. O iterceiro, é que o esporte e as atividades corporais tornaram-se, além dê"um componente do processo civilizador, no sentido elaborado porElias, um modelo de entendimento, por vezes crítico, da sociedade. Oquarto, é que a procura do equilíbrio entre o físico e psíquico, ocorporal e o mental, a carne e o espírito (talvez entre natureza e jcultura?) é um vetor significativo para entendermos o auge das práticascorporais. Há, acredito, uma espécie de recusa à preeminência

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'jqualquer um dos aspectos e sua substituição por um modelo decircularidadê ou de condicionamento reciproco entre os leigos e os

M especialistas. O quinto, é que a procura da longevidade e de manterJ a forma ou estar em forma são chaves orientadoras, talvez também-i _i -L :

práticas de resistência à entropia natural e social, para entendermos ofenômeno das práticas corporais. Recuso, portanto, entender osesportes e as atividades culturais como meros mecanismos de fuga e

(descompromisso.r No Ocidente a formação dos homens implicou gradativamentea constituição de quatro questões principais: ada formação intelectual,a da moral, a da manual e a da física ou corporal. Apaideia no Ocidenterespondeu com variações ao longo de sua história aos problemas quecada dimensão apresenta. De fato, as propostas pedagógicas tratamdestas questões combinando-as, fundindo-as e hierarquizando-as.segundo perfis particulares. Assim, por vezes, trata-se de formar ointelecto, o físico e a habilidade manual. Em outras, apenas o espíritoe o corpo ou a consciência e o corpo. As vezes a moral é absorvida natematização da formação política ou do cidadão.

As quatro questões, e seus desdobramentos em questõesespecíficas, continuam sendo relevantes por estabelecerem ao longoda história uma rede de relações de signos variados. Tomemos asquestões mais próximas para observar, por exemplo, que a formaçãointelectual (a habilidade no raciocínio, na utilização criativa deinformações, como exemplos) não se confunde com a moral emboraestejam inter-relacionados. E fácil mencionar muitos exemplos depessoas dotadas intelectualmente porém altamente questionáveis sobo ponto de vista moral ou do senso que possuem da justiça. Entretanto,hoje, um corpo, formado a partir de hábitos de controle alimentar e daprática esportiva, pode nos estar sinalizando uma atitude moral, a doautocontrole, e também produzir um efeito que entendemos comoestético.

A educação física surge na modernidade vinculada à questão daformação dos corpos e superpõe no horizonte de seu agir objetivosdiversos: militares, disciplinares, de saúde, estéticos, esportivosrecreativos, esportivos de alto rendimento e expressivos e formativos

do eu mediante o corpo, entre outros.Em tempos de critica e rebeldia, a educação física, ou melhor

seriadizer os educadores físicos, expandem seus campos de intervenção.Emergem assim propostas de educação física preocupadas com aformação intelectual, a consciência política e moral, a formaçãoholística dos "eus" entre outros novos objetivos. O espírito críticorevisa a história da educação física, retomando questões sobre suafuncionalidade ou capacidade de transformação manifesta ou latente.Também olha para as práticas esportivas e corporais encontrando nosmodos de sua realização e em suas regras interesses de acomodação,domínio e manutenção de ordenamentos nem sempre justos. Por vezes,os educadores físicos se sentem em meio de uma crise: de valoresorientadores, de identidade, de consenso em relação aos processos deintervenção e a seus objetivos.

Acredito que a crise resulta das forças do relativismo quedomina nosso presente. Se nos entregamos ao relativismo temos quereconhecer que há lugar para qualquer tipo de representação sobre ocorpo e para qualquer tipo de prática corporal. Temos que aceitar quecada grupo e cada indivíduo tem direito a pensar e tratar de seu corpocomo sua vontade lhe indique. O educador físico seria assim um meromediador, alguém que estabelece um programa de atividades, quedistribui um conjunto de meios, para atingir ou satisfazer as demandasdo grupo com o qual trabalha. Contudo, uma boa parcela dos estudantese profissionais da educação física recusa esse papel por dois motivosprincipais, analiticamente distinguíveis, porém, na prática, altamentecoexistentes. Por um lado, porque acreditam que seu próprio conjuntode valores é superior aos do grupo com o qual trabalha. Assume-se,então, como formador de valores, como orientador de condutas depensar e fazer. Pensam que os outros estão alienados, não sãoconscientes ou ainda não ascenderam ao entendimento do justo, doverdadeiro e do belo. Por outro, existem os que pretendem reencontraraunidade maisque imporum conjunto de valores, Sentem-se desgarradospela fragmentação do presente, procuram e querem reencontrar aunidade, a comunidade de valores e de formas de expressão.

Os artigos situam-se nesse contexto de reflexões, sentimentos

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e atitudes. O primeiro, A editcaçãofísica como arte da mediação, títulodo livro, procura clarificar a distinção entre intervenção em educação

._física e pesquisa disciplinar e entre intenções é efeitos nos processos deintervenção no campo. O segundo, apresenta os resultados de umapesquisa em escolas do Rio de Janeiro, realizada com alunos eresponsáveis, com o intuito de relativizar, partindo da "demanda",muitos dos discursos elaborados sobre o dever ser da educação físicaem contextos escolares. Trata de dizer que devemos escutar o que osalunos e seus responsáveis estão demandando da escola e da própriadisciplina educação física. Trata de insinuar que a escola não será boase não estabelece acordos entre seus agentes. O terceiro, discute umaquestão central: o problema das regras nas práticas corporais eesportivas, tentando relativizar as críticas e abrindo algumas sendasque acreditamos deveriam ser transitadas. O quarto, procura daralgumas pistas para pensarmos esse poderoso movimento de consensoque é o da saúde, talvez a única expressão "anti-relativista" do atualmomento. O quinto artigo, volta a retomar, no contexto dainterdisciplinaridade nas ciências ao esporte, algumas questõesanunciadas, porém não trabalhadas, no primeiro capítulo.

Minhas posições, ainda em processo de elaboração ereformulação, foram construídas a partir das questões e reflexões demeus alunos da disciplina Sociologia das Atividades Corporais docurso de Mestrado em Educação Física da Universidade Gama Filhoe também dos diálogos no processo de orientação dos mestrandos.Algumas das preocupações dos alunos tornaram-se eixos em minhaspróprias reflexões, em vários sentidos são co-autores, embora nãoresponsáveis por muitas das afirmações realizadas. Contudo, não éintenção do trabalho fechar questões, propõe- se mais a indicar algumaspistas para os estudos e pesquisas dos alunos. E de se destacar tambémas influências das conversas, mais assistemáticas que sistemáticas, commeus colegas do mestrado e, especialmente, com seu coordenador,Helder Guerra Rezende. A alunos e colegas agradeço e dedico estaspáginas.

Capítulo lA educação física

como arte da mediação

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Introdução

A experiência docente na pós-graduação indica que muitasdas discussões do campo da educação física, por vezes de grandevirulência, são em pane produto de mal-entendidos e, sobretudo, danecessidade de solidificar valores sentidos como verdades pelos seusdefensores. Daí a insistência em apresentar a própria posição comose fosse cientifica ou como resultado de um processo de"conscientização11 que, quase sempre, é entendido em oposição àalienação, isto é, como falta de compreensão científica do mundo oucomo adoção de ideologias que não se correspondem com a posiçãosocial de seus portadores. Os "conscientizados", desde sua posiçãode superioridade ou .iluminada, consideram-se responsáveis de ajudaraos não conscientizados a realizar sua própria passagem para o estadosuperior, seja científico, seja de ideologia autônoma. Muitos'"conscientizados" sofrem profundamente quando os t lnãoconscientizados" não estão nem um pouco inclinados a reconhecera bondade do "conscientizador''. Na verdade a posição que ocupamsob o ponto de vista sociológico é semelhante a do catequizador e ado colonizador.

A afirmação precedente não implica um juízo moral negativosobreo conscientizador ou educador. Historicamente, nos movimentosde aproximação entre "intelectuais" e povo, os sentimentos decompaixão, solidariedade, culpa, vergonha e de responsabilidade pelasituação do outro desempenharam um papel motor. As ideologiaselaboram, refinam esses sentimentos impulsores, lhes dão expressãoem categorias como compromisso ou comunhão com o povo ou estara serviço dos fracos, entre outras. Estes sentimentos possuemdignidade e nobreza e nos é difícil pensar numa sociedade que de

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alguma forma não os desenvolva nos espíritos e nas práticas. Maisainda, parece difícil transformar a realidade sem alguma forma depresença desses sentimentos. O motor da ação dos homens carece deseu combustível.

Entretanto, em nossas sociedades, a argumentação pseudo-científica torna-se um escudo para a defesa e difusão de sentimentos^e valores partilhados pelos educadores que se identificam como"comprometidos", e também pelos educadores físicos, os alunos dapós-graduação. Embora eu compartilhe muito desses valores(emancipação, igualdade; liberdade, solidariedade, entre outros) nãoposso deixar de assinalar que dessa forma se elaboram "ideologiascientificas", isto é, discursos cuja pretensão de justiça e de verdade élegitimada se apresentando como "Ciência". Tal modo de justificaros valores conforma a "tradição cientificista".

Sabemos que freqüentemente as ideologias conservadoras —decorte racista ou sexista e outras— apoiam-se também no seu caráterpretensamente científico. A observação das diferenças empíricas entreos homens levou os conservadores a justificar a hierarquia, aindabastante recentemente sob o escudo de testes de inteligência jásuficientemente criticados. A mesma observação das diferenças levoue leva outros a lutar pela igualdade diante de deus, a lei, o estado ouas oportunidades. Em outras palavras, embora se constatassecientificamente que o egoísmo é parte integrante da natureza humanaas sociedades poderiam querer favorecê-lo ou querer criar formas desocialização e educação que fossem contra o egoísmo, mítigando-o,reduzindo seus efeitos. Há, assim, uma alta quota de independênciaentre a constatação de propriedades dos homens e das sociedades e aação de indivíduos historicamente situados para formar os homens eremodelar suas sociedades.

Julgamos a ciência pela sua coerência interna e sua relação comos fatos nos quais se apoia, porém não podemos julgar os valores damesma forma. De fato, se acompanharmos Rousseau, pensaremosque os homens estão algemados por toda parte. Mas esta observação,falsa ou verdadeira, não obstaculiza nem um pouco que lutemos pelaigualdade. Se a biologia provasse que o instinto de agressão é natural

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ao homem igualmente poderíamos lutar para desenvolver a paz. Temossuficiente experiênciahistóricapara saber que apoiar valores unicamentebaseados na ciência é perigoso. O que hoje é ciência pode se tornaramanhã mero erro da caminhada. A ciência e a lógica podem ajudar adeterminar aquilo que não devemos acreditar, contudo são péssimascompanheiras para nos dizer em quais valores devemos apostar paraconstruir o mundo que sonhamos. J

Acredito que as ideologias dominantes na educação física em'nosso meio são cientificistas, isto é, pretendem assumirpára o discursosobre o social o mesmo estatuto dos discursos sobre a naturezaelaborado pelas ciências que dela se ocupam. A história e posição daeducação física, • enquanto campo de aplicação de conhecimentoscientíficos, como veremos adiante, gravita nessa direção. Corremosassim o risco, por exemplo, de que um modelo estético do corpo setorne um modelo científico. Mesmo as receitas ou recomendaçõescientíficas sobre o tratamento dos corpos modificam-se com grandevelocidade. Qualquer um de nós pode lembrar exemplos de hábitos quetidos como científicos deixaram de sê-lo. Para minha geração eracientificamente obrigatório extirpar as amigdalas, hoje esta intervenção,sé realiza pouco freqüentemente. , . •

A ciência muda rápido demais para que nela encontremosfundamento de nossos valores e critérios duradouros de orientação nocotidiano. Não estou com isto atacando a ciência, apenas sugerindoque saibamos qual é seu lugar e que não conviríamos a enunciação deseu nome num aríete para impor convicções sobre o social.

Talvez seja ainda o marxismo a corrente dominante dentro docientificismo da educação física. Na verdade um marxismo muito fraco,por vezes nem mesmo um marxismo. Falta-lhes a seus defensoresmuita leitura, reflexão e observação humilde dos dados quecorrespondem à realidade formulada pelo próprio marxismo. Ummarxismo ao qual falta a observação dos dados, como os que Marxapurava nos informes dos inspetores de fábricas ingleses ou Lenin noscensos dos Estados Unidos, corre o risco de ser apenas preconceito.Solicito que leiam, por exemplo., o livro do professor Medina sobre qcorpo do brasileiro como exemplo das afirmações precedentes. Ao

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invés de pesquisa somente acho nele declarações de grande apeloemotivo.

Quando a principal confiança marxista, no plano da intervenção,a de que um mundo centralizado e planejado é superior a um mundoregido pelo mercado parece haver-se derrubado, ou pelo menoseclipsado, e quando ao invés da paz e unidade os países socialistasenfrentam o fantasma bastante real da guerra interna e da fragmentação,a humildade do cientista deveria substituirá crença dogmática. É horade pensar, de colocar as velhas 'Verdades" em suspense e não derepetir antigos "slogans" que parecem dar a força que a razão falhaem proporcionar. Os alunos sensíveis se sentem confusos e estesentimento é certamente melhor do que a afirmação de um dogmatismosem apoio na realidade. Os professores, pelo menos alguns, sabemosque também estamos confusos pois as razões desse sentimento são bemreais. (/\/\ jj> Q ̂ f\ tV t\-^ 9. c'ent'fic'smo, entre outros desfavores, faz freqüentementeesquecer que um dos pilares da eficácia da educação é o consenso ouacordo numa sociedade democrática: o compartilhar valores sobre osfins e os meios do processo educativo. Nenhuma educação pode darcerto se não se apoia num horizonte comum de valores perseguidos emconjunto pelos atores do processo educativo. O acordo, entretantõTnão significa monolttismo. Significa que apenas é possivel mudar noseio de uma tradição. Os desacordos fazem sentido no horizonte daconcordância. A crítica que perde de vista as considerações em pautaacaba jogando tudo fora, água e a criança.

A eficácia tampouco existe quando a valorização é meramentediscursiva e não se concretiza na prática: pouco se valoriza a educaçãoquando se desvalorizam os educadores. Um educador desvalorizadosocial; cultural e economicamente é a pior propaganda educacional.Estudar para ser como o professor não parece ser um bom negócio paraos alunos brasileiros. Valores e práticas devem assim seguir a mesmamúsica. Esta coerência é um dos vetores do consenso.

Minha posição pessoal, que não pode ser confundida com umasolução, e a de que os valores não são nem verdades cientificas nemquestão de mero gosto individual. Formam uma estrutura triangular

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com as questões de gosto, liberdade da esfera pessoal ou subjetiva, eas verdades da ciência, iníersubjetivas em alto grau. Nem pessoais, nemaltamente intersubjetivos, os valores merecem ser defendidos comargumentos e ações que os realizem. Embora sejam coletivos eles nãose confundem com as verdades cientificas que hoje representamoscomo transitórias e aproximadas. Portanto, pouco fundamentopoderíamos encontrar nelas para construir nosso mundo. Hácientificistas, positivistas e marxistas, que acreditam na eternidade daverdade científica. Claro que se fossem eternas seriam um ótimofundamento para a construção do mundo. Outros, acreditam que aeternidade é o método científico. Todavia, hoje se fala dos métodos esabemos que a vigência do método é imersubjetiva, relativa e histórica.A velha solução de dialogar sobre os valores continua sendo umcaminho transitável se acreditamos na razoabilidade dos homens. Odiálogo apenas é possivel se a democracia é uma realidade docotidiano.^ Parece-me que, o diálogo sobre os valores deve reconhecer três^ ^princípios em nome da experiência: a) O da pluralidade: existediferenciação significativa devalores nas sociedades complexas. Nossacultura ou tradição valoriza valores por vezes contraditórios, b) O daHÕO contradição: valores contrários podem ser igualmente valiosos enecessários para a vida humana, neste sentido Kolakowsjd escreveu'seu ti/ogio à incoriseqüência. c) O da sititacionaUdade: situaçõeshistóricas específicas nos demandam a defesa de valores que podemperigar, estar prestes a morrer. Isto não significa, entretanto, matar os-valores opostos. A luta pela igualdade não deve acabar com a liberdadenem a manutenção da liberdade de poucos significar a desigualdade de'muitos. Caminhar pelo fio da-navalha é difícil, porém é o caminhonecessário e desejável. Por vezes parece que a única forma possível decaminhar é,no vai e vem, no ziguezague.

. Uma cultura é forte na medida em que possui um estoque devalores diferenciados mesmo que em contradição. E forte, assim, demodo semelhante ao de uma espécie por possuir recursos genéticosvariados. Uma sociedade de valores únicos e não contraditórios é fracapois dá pouca liberdade de combinação e criatividade aos seus atores.

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Estas sociedades são desejadas por aqueles que sentem a diversidadeeo conflito entre valores como negatividade, como falta de organicidadee mesmo como desmapeamento. Assim, segundo meu ponto de vista

^nada original, a palavra de ordem que nos manda escolher entredemocracia representativa eydireta é redutora, limita nosso estoquecultural. O bom é se perguntar onde e quando democracia representativa,onde e quando a direta e como combiná-las, conciliá-las. O mesmo emrelação a igualdade e liberdade ou aventura e segurança ou competiçãoe solidariedade. Fico com as alternativas, embora hajam situações quedemandem a defesa de uma delas e não existam respostas já prontasque definam as escolhas em cada situação. A força do argumento é:entral em cada situação.

São citados poucos autores nas notas deste texto. Esta estratégiaé proposital pois se quer fugir ao argumento de autoridade. O texto émais um convite para refletirmos juntos do que uma demonstração,sistemática de afirmações. E um momento de eliminação de obstáculospara pensarmos com maior leveza, com menor carga de sentimentose preconceitos, ou seja, com argumentos que lembrem sua razão de ser.Não espero, sobre este texto, que os leitores pensem se é ou nãocientifico. Interessa-rne, sobretudo, que motive nosso diálogo sem* 'perder a forma1' pois quando ela se perde é difícil dê ser reencontrada./p i /\Apo P^TA /^T£ ̂ (j^u^íõ ^"«lA

Sobre a legitimação aas disciplinase outros tópicos talvez desnecessários

Estamos acostumados, em nossa tradição de pensamento, aabordar os fenômenos a partir de perspectivas analíticas. Em outrostermos, aceitamos que o ponto de vista constrói o objeto deconhecimento separando o essencial, o determinante, o estrutural ousignificativo dos aspectos não relevantes. Um fenômeno como a1 'vida' * pode legitimamente ser estudado sob o ponto de vista da física(biofísica), da química (bioquímica), da biologia ou da filosofia entreoutros. Cada ponto de vista opera uma redução do fenômeno a objeto,de pesquisa.

Podemos também discutir sobre qual é o ponto de vista mais

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O -

valioso, verdadeiro, operacional, econômico, redutor, não-redutor,complexo, etc. Supomos então que podemos estabelecer um campo,um terreno neutro ou comum do qual avaliar e selecionar o melhorponto de vista. Este terreno comum permitiria, epistemologicamente,estabelecer a legitimidade de um ponto de vista e escolher entre teoriasconcorrentes. Esta confiança hoje está suficientemente alquebradapara que pensadores importantes a questionem e afirmem aimpossibilidade de se estabelecer um terreno comum.1

Sem entrar no âmago desta discussão filosófica, podemosconstatar que um ponto de vista é socialmente aceito quando éproduzido por uma disciplina de reconhecida cientificidade, legitimadacomo papel na sociedade.2 Neste sentido, cada legitimidade possuiuma história. Assim, encontramos físicos, químicos, biólogos e suasrespectivas disciplinas. O reconhecimento social, a legitimidade, nãoeliminam as críticas nem os debates, da mesma forma quereconhecimento dos partidos políticos ou da legitimidade do governonão faz desaparecer a crítica a suas propostas e ações. Os biólogosconcordam no papel da seleção, no entanto podem discutir sobre se elaacontece no gene, no indivíduo ou no grupo. Para avançar na discussãoé importante saber em que concordamos, e não somente dominar oíndice das discordâncias. Assim poderemos sentir a proximidade, e nãoapenas a distância, que temos com nossos adversários,

Habitualmente legitimamos um papel social quandoreconhecemos que realiza valores especiais de uma forma adequada.No caso do papel social da ciência,dois valores lhe são atribuídos: ofundamental, o próprio valor do conhecimento como desejável em simesmo e enquanto meio para se . aumentar o conhecimento (asmatemáticas que conhecemos servem para desenvolver "mais"matemáticas); secundariamente, a utilidade do conhecimento para avida humana, para a solução dos problemas práticos que os homensformulam e enfrentam. A utilidade é secundária, pois se fosse um valordominante a astrologia seria reconhecida como ciência ao invés daastronomia. Semdúvidaaastrologiaémuitomaisútilquea astronomiano cotidiano das pessoas. -L

Ser secundário, todavia, não implica que o valor da utilidadej'

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não ocupe freqüentemente o primeiro plano da cena, nem que oscientistas não usem a utilidade para obterem legitimidade e apoio detodo tipo. Os cientistas não são tão diferentes das outras pessoasquando argumentam em benefício próprio. Ambos valores sãoconstruções sociais que foram realizadas num longo percurso históricopormeio de argumentos. Éa história quepode explicar o reconhecimentoda astronomia como ciência e a não legitimidade científica daastrologiajamaisautilidade. Há pessoas que apenas podem reconhecera ciência pela sua utilidade. Eles são de fato utilitaristas, emborapossam criticar o utilitarismo. Para a maioria das pessoas saber que ohomo sapiens tem cerca de 50.000 anos é de completa inutilidade.Apenas é "útil" para compreender nossa precariedade na terra, parasaber que estamos aqui apenas nos últimos segundos de um dia debilhões de anos. Talvez pudéssemos ser mais cuidadosos se sabemosque os dinossauros, grandes e fortes, desapareceram após cem mühõesdeanos.^p J/A? O R f A /VT&

Os dois valores em questão foram e ainda são questionados,'criticados. Contudo, julgar os conhecimentos prioritariamente a partirde sua utilidade, qualquer que seja ela, é sofrer de miopia utilitarista,isto é, enxergar, e mal, apenas aquilo que está perto. Eu não sei se aciência chegará um dia a "solucionar" nossos principais problemas.Acredito, no entanto, que pode aumentar a compreensão de nósmesmos e esta é uma das poucas cartas que temos no baralho paradefinir e enfrentar nossos problemas,

A utilidade domina por vezes nas críticas a educação. Assim,por exemplo, se contrapõe ao ensino das matemáticas sua utilidadesocial. Os homens no mercado realizam cálculos que não sabem fazerno papel, nos dizem, como se estas ações fossem o dever ser dasmatemáticas. Reduzem o ensino a sua utilidade. Além de sua utilidade,nem sempre explicitada, a geometria euclidiana é um modo de pensar,de definir as coisas e operar com elas. Há verdades e utilidades nela,por certo, porém também há beleza que o docente deve ensinar aapreciar. Quando apreciamos Bach, Guimarães Rosa, Olinda, a vidasertaneja ou a arte de domar os potros, alguma coisa do humano estáentrando em nós. Talvez essas artes não sejam úteis no cotidiano da

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luta econômica. Entretanto, elas participam, com tantas outras, denossa relação com o mundo. Observo que muitos revolucionários daeducação raciocinam como os empresários que apenas querem para ostrabalhadores uma educação útil para o processo produtivo, Osrevolucionários quase sempre a pretendem útil para o processoorganizativo-político. Ambos são funcionalistas e utilitaristas daeducação. -1

Há, lembremos, também os que pensam que o progresso doconhecimento científico se traduz em regressão espiritual, moral emesmo em destruição da natureza.3 Há, então, os que pensam quepassaríamos melhor sem ciência. Outros pensam que passaríamosmelhor sem esporte ou sem política. Estas soluções se assemelham aacabar com a pobreza matando os pobres. Podemos, no entanto,aceitar que domina na sociedade, embora com reações, o reconhecimentodesses especiais valores da atividade científica. Mais ainda, que asáreas de atividades mencionadas ciência, esporte e política podem seraperfeiçoadas ao invés de decapitadas. Reconheço, entretanto, que ovalor de aperfeiçoar nossas atividades, o próprio aperfeiçoar, contacom muitos detratores. Aperfeiçoar passou a ser uma atitude desegunda ou terceira categoria, pois para muitos trata-se de revolucionar.

A mudança social pode ser pensada como um processo gradualde transformações ou como um processo que avança a saltos, comgrandes rupturas. Os biólogos, nossos parentes mais próximos dasciências exatas e naturais, enfrentam a mesma oposição quandopensam a mudança. Eu defenderia, juntamente' com alguns dosbiólogos, um enfoque pluralista: a mudança é por vezes gradual e porvezes revolucionária. Há lugar para todos no pluralismo da sociedadee da natureza. (Recomendo a leitura das obras de S. Gould aos quegostam de biologia e muito mais àqueles que a detestam).

£ o baita problema da legitimidade da educação física

Cí£l--

L ,

L

Este breve apanhado nos coloca dois problemas sérios.) <.Primeiro: qual é o ponto de vista da educação física, seu objeto. no\V"conhecimento1 de seus fenômenos? Segundo: quais os valores especiais]^

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que lhe são socialmente reconhecidos, quer de utilidade, quer deconhecimento?

ij r Sejamos generosos, partamos do princípio de que o campo dos-(fenômenos que se ocupam com a educação física é o das atividades\! corporaisnum sentido amplo. Este campo fenomênico é tremendamente" disperso pois pode abranger tudo aquilo que os homens fazem e

significam com seu corpo —nível intencional— ou tudo aquilo que oscorpos dos homens fazem e significam sem que as intenções dos

í homens estejam presentes —nível biológico-, inconsciente individual,"(determinação cultural, etc.

• É óbvio que tamanho campo fenomênico pode ser estudado porquase qualquer disciplina socialmente reconhecida. Teríamos assimuma física, uma química, uma biologia, uma psicologia, uma economia,uma sociologia, entre outras, das atividades corporais. Cada umadestas disciplinas estudaria as atividades corporais com um conjuntoidentificável e distinguível de teorias, métodos e estilos de fazerciência. Cada disciplina produziria um recorte, uma redução particular .do campo fenomênico na construção de seu objeto. A mesma cidadepode ser habitada e visitada de formas diferentes.

Coloca-se então a questão de qual é o conjunto próprio,

b identificável e distinguivel, de teorias e objetos, métodos e estilos defazer ciência da educação física? Qual é o seu recorte? Em outrostermos, por certo mais emotivos, qual e a sua identidade?

Temos um monte de joãozinhos que fazem musculação cincor dias por semana e nos perguntamos sobre o porquê deste esforço. Um

biólogo poderia responder que eles estão desenvolvendo característicascorporais que os colocam melhor dianteda seleção natural, isto é, estãopotencializando suas possibilidades de reprodução. Um psicólogo, dealguma ortodoxia, poderia responder que estão sublimandodeterminados instintos e construindo uma imagem do eu. Um sociólogoprocuraria no poder da distinção ou na correspondência com padrõesculturais as explicações da conduta dos joãozinhos, e também dealgumas mariazinhas. O historiador narraria o desenvolvimento históricodessas condutas, talvez nos levaria em direção das tradições (tantas

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academias de fisioculturismo levam o nome de Apoio!). Cada umdesses cientistas operaria a partir de alguns dos pontos de vistasdominantes em suas disciplinas. Um leitor avisado poderia reconhecerqual a tradição disciplinar que gera a explicação ou interpretação.Qual, me pergunto, é o ponto de vista explicativo da educação física?,Qual a tradição que nos permite afirmar diante de uma interpretaçãoou explicação que ela pertence ao campo disciplinar da educaçãofísica? Ela existe? Mantenhamos um bocadinho mais o mistério.

O primeiro mal-entendido: cientista ou bricoleur

Uma forma de abordar o problema consiste em se situar noplano da reprodução do papel social da atividade científica. Nareprodução de um físico domina o conteúdo da própria física, isto é,as teorias, os métodos e os estilos de se fazer física. O físico ésocializado na tradição da física. Estórias, anedotas, figuras heróicasparticipam na construção e transmissão da tradição além de teorias,métodos e dados. Com os matemáticos e os biólogos acontecem coisasemelhante na formação • de suas respectivas tradições.

Um educador físico suporta um currículo de formação que vaida mecânica à filosofia, passando pela fisiologia,, a neurologia, abiologia, a sociologia, as ditas ciências da educação e a história entreoutras áreas disciplinares. A reprodução, ou formação, é claramentemosaico, fragmentária, multidisciplinar, e não dominantementedisciplinar. Os conteúdos do currículo podem enfatizar uma ou outraárea disciplinar, mas a ênfase não tira o caráter eminentementemultidisciplinar. Este caráter da formação não implica que se baseie emformas consensuais e satisfatórias de integração ou relacionamento dasdiversas disciplinas que entram no currículo. De fato, e este é umproblema sério na formação, as disciplinas podem ser entendidas comocompartimentos sem graus apreciáveis de comunicação. O currículopode então, com bastante razão, ser entendido como justaposição defragmentos ou como um mosaico de disciplinas. Na própria pós-graduação, por exemplo, as disciplinas bioméclicas são obrigatórias atépara os interessados em fazer história da educação física ou pedagogia

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do movimento humano. Observe-se que não estou questionando aimportância de cada disiciplina, apenas estou afirmando que nãosabemos como costurar os retalhos.

O problema se coloca na prática quando o educador físico deveproduzir um arranjo das disciplinas num programa de atividade corporal.Neste caso, o educador físico se nos aparece muito próximo da figurado bricoleur^ de Lévi-Strauss, que a partir de fragmentos de antigosobjetos, guardados no porão, constrói um objeto novo no qual suasmarcas não desaparecem.4 Ele é formado, fundamentalmente, paracombinar conhecimentos, técnicas e tecnologias para alcançar objetivossociais. A combinação, o produto intelectual de sua atividade, seexpressa geralmente num programa: de treinamento, de educaçãocorporal ou de lazer entre outros. Esta concepção já estava presenteno parecer sobre educação de Rui Barbosa. Mais ainda, se lermos oparecer observaremos que nele a educação física possui o valor

instrumental de formar um bom suporte material, corporal, para ointelecto. Seu caráter instrumental e utilitário é evidente. A educaçãofísica dominantemente foi considerada como meio pararealizar valoressociais (higiênicos, estéticos e de controle social para citarmos algunsdos mais importantes).

Por certo, um profissional de educação física_pode produzirpapers que, quando de qualidade, podem ser considerados comotrabalhos de fisiologia, de psicologia, de história ou4e sociologia e,neste caso, opera como os profissionais dessas áreas disciplinares. 5

Entretanto, quandoeleplanejaourecomendaatividadescorporaisage,prima fade, como um bricoleur. Por exemplo, quando formula o planode "educação física" para uma escola pode levar em consideraçãoafirmações, ou conhecimentos, que vão da fisiologia até aquelas quea antropologia elabora e, sobretudo, procura realizar objetivospolíticos ou sociais com seu programa. Em outros termos, o programarealiza objetivos que se supõem úteispara a sociedade no seu conjunto,para algum de seus segmentos ou simplesmente para os participantesdo programa. A utilidade pode assim ocupar o lugar central na obra

/ou programa de intervenção do bricoleur. A tradição da educaçãol física parece ser portanto a formulação de propostas ou programas de

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intervenção no plano de atividades corporais que realizem valoressociais.

De fato, os cursos de "educação física" foram inicialmentecriados para formar especialistas em um tipo de intervenção. Nestesentido, considerou-se a educação física como um campo de"aplicação" das disciplinas científicas, O educador físico deveria seralguma coisa assim como um engenheiro das atividades corporais narealização de valores postulados como sociais pelos idealizadores. j

A intervenção, então, devia e deve, tudo indica, basear-se nos l 'conhecimentos cientificos das disciplinas que podem auxiliá-la.Entretanto, nem a definição dos valores orientadores da intervençãonem a seleção das disciplinas ou conhecimentos auxiliadores são j i< _ • - = - .:„.«„,„ f rdecisões científicas.

Confundir os dois papéis, o do cientista e o do bricoleur, ouinterventor", é o primeiro e freqüente mal-entendido que encontramos

entre os educadores físicos. Este mal-entendido se relacionarão daconfusão entre disciplina e programa de atividade?

O segundo mal-entendido:disciplina ou programa de atividades "•

Há ainda um segundo mal-entendido que persegue a educaçãofísica. Na verdade na escola, no clube, na fábrica, nas academias, noscentros de recuperação se realizam atividades corporais programadas(jogos, esportes, ginástica, etc.) emfunçao de objetivos sociais. Nesseslugares não se ensina a disciplina "educação física" ainda que essepossa ser, no caso das escolas, o nome das atividades no horárioescolar. O professor dematemáticasoudefísicae/í5/>?c/^tó/wí7//£:a/ne//íeo conteúdo de sua disciplina no seu horário escolar. Ensina parcial egradativamente aquilo que aprendeu na sua própria formação, isto é,matemática ou física. Em outras palavras, o objetivo de sua açãoeducativa reproduz —parcialmente e segundo critérios de adequaçãoao tipo de ensino— o currículo de formação de sua área disciplinar.

Esta, de praxe, não é a situação do professor de educação física:ele não é contratado para ensinar aquilo que aprendeu na sua formação.

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r /£j ÍEspera-seque oaprendido sejautilizado na formulação de um programa,s /baseado no conhecimento científico, de atividade corporal que deve^J realizar objetivos sociais, isto é, valores em condições determinadas.^ Os objetivos sociais dos programas de intervenção são a especificação

de valores adeterminadas condições queconformam, na representação,uma situação singular.6 Encontra-se, portanto, próximo das fimções-domédico, do engenheiro, do assistente social e do pedagogo quandoagem no plano da intervenção.

Esta situação especial e paradoxal não deve ser dimihuida emmportância e significado,pois a sociedade moderna pareceria que não

pode funcionar sem os especialistas da intervenção. Uma sociedadesem especialistas seria muito diferente daquilo que entendemos porsociedade complexa, moderna e plural. Entretanto, a situação especialleva a muitos professores de educação física a procurar ensinar

fragmentariamente (nem gradativa nem sistematicamente) conteúdosdo currículo de sua própria formação. Leva-os a projetar, no sentidopsicanalítico vulgar, sua formação na formação dos participantes daatividade corporal programada. Buscam imitar a conduta daqueles^jue

\ ensinam as disciplinas reconhecidas como científicas. Assim, o educador^físico pode tentar ensinar a mecânica ou a fisiologia de um determinado

movimento; a antropologia, sociologia ou história de um esporte emparticular como se este fosse um objetivo em si mesmo. De praxe, os^educadoresfísicos acreditam que essa projeção (formação) é necessária,útil, boa, conscientizadora para os praticantes ou participantes dosprogramas de atividades corporais. Entre os alunos de pós-graduaçãoem educação física a procura de formas de realizar a projeção se tornaangustiante, obsessiva.7 Aquilo que outras áreas discipünares fazemde modo natural é um espelhismo que corre sempre na frente doseducadores físicos.

^ Talvez devêssemos mudar a lente da comparação e tomar comoreferência a formação do médico. Neste caso também nos confrontamoscom um currículo de estrutura multidisciplinar. Também o médicopode fazer pesquisa em bioquímica, genética, físiologia, neurologia ouqualquer outra especialidade operando, em cada caso, com as teorias,métodos e estilos da área disciplinar na qual realiza a pesquisa.

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D

Entretanto, quando é médico, quando deve prevenir, proteger ourestaurar a saúde dos indivíduos ou da população também ele operacomo um bricoleur: usa recursos diversos em função de objetivossociais. Cria um programa no qual articula conhecimentos de áreasdiversas, técnicas, tecnologias e até efeitos simbólicos quando osconsidera como elementos ativos ou coadjuvantes do processo decura ou restauração. Mesmo quando populariza os conhecimentosmédicos o objetivo é a saúde e não a formação médica. Osconhecimentos são considerados como um meio e não como umobjetivo em si mesmo.

Uma pesquisa em química não se confunde com uma pesquisaem medicina, apesar que os resultados dessa pesquisa sejam úteis paraa saúde. Uma pesquisa médica, insistamos, se distingue por se colocarno ponto de vista de articular recursos diversos —de conhecimentos etécnicos com a finalidade de realizar o objetivo social da saúde--. Estapesquisa não deve necessariamente aumentar os conhecimentos quearticula, seu valor deriva fundamentalmente de sua utilidade pararealizar objetivos sociais. Uma correlação empírica positiva entre umasubstância e uma doença é um bom fundamento para uma terapêutica,embora não saibamos como a substância possa atuar no organismo. Aslinhas de demarcação são por certo frágeis, contudo o papel do médicoe da medicina não se confunde com o papel da pesquisa nas disciplinasque subsidiam a medicina. Assim como não confundimos o dia e a noiteembora seja impossível determinar quando um termina e o outrocomeça.

Foi na história que a medicina ganhou grande reconhecimentoe os médicos passaram a ter um poder político e uma incidência culturalconsiderável. Hoje apreciamos o papel social da medicina e de seusmediadores, os médicos. Podemos discutir se ela deve ser privada oupública, se desenvolver a medicina preventiva, de base ou asespecialidades, se concentrar esforços na alopatia ou desenvolver ahomeopatia ou as ditas medicinas ou curas alternativas. Não está emquestão a necessidade da cura nem a atividade médica que a toma porobjetivo. Tanto os médicos estão seguros do reconhecimento do seupapel social que podemos encontrar médicos que aceitam tudo aquilo

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que é bom para a cura do paciente. Assim, não descartam as práticasterapêuticas populares de cura nem os efeitos simbólicos dos rituaisreligiosos ou de corte psicanalíticos. O programa terapêutico podeincluir tudo aquilo que comprovadamente não seja contrário aoobjetivo social da cura. O programa articula, concilia, diversosrecursos em prol da cura. No passado, quando a medicina ainda nãohavia sido reconhecida, sobretudo na cultura popular, os médicoslutavam pela penalização de práticas terapêuticas que hoje aceitamcom bastante entusiasmo como coadjuvantes.

A diferença especifica da medicina se reflete em representá-lacomo competência para combinar ciências, técnicas e experiência. Porvezes a competência para combinar recursos diversos recebe o nomede arte, O mesmo qualificativo tem recebido a agricultura e aeducação, entre outras tantas atividades.8 O qualificativo indica que os

•{recursos não podem ser combinados cientificamente ou por umalgoritmo. Indica então que a atividade do bricolenr, seu gênio,instinto, percepção, entre outras alusões ao mesmo problema, é~fundamental. Digamos que dizem que a criatividade para realizar o

rograma não pode ser programada, que é uma artev

Educação física e objetivos sociais contrapostos

O que hoje conhecemos por educação física emerge comoreflexão que articula conhecimentos ou saberes para realizar objetivossociais. As propostas de atividades corporais programadas, nãoespontâneas, procuram realizar valores sociais: tradicionalmente corposfortes e sadios, corpos disciplinados, caráteres, personalidades, hábitosentre outros. A atividade corporal é entendida como meio, comorecurso, para se realizar valores sociais. Observemos que é somenteno discurso e conduta das crianças onde o jogo, o esporte e abrincadeira se colocam em si mesmos como finalidade. Os adultos,habitualmente, atribuem a essas atividades também, ou dominantemente,outras finalidades, situam-nas como meio que contribui para o trabalho,asaúde, o relaxamento ou outros objetivos. Os adultos tendem a racionalizare justificar, em linguagem utilitária, as atividades corporais.

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Esta posição de mediação não se modifica quando no presente ,colocamos valores tais como-a liberdade, a felicidade, o prazer, a nconscientização do corpo, a transformação social, a realização do euou qualquer outro enquanto objetivos das atividades corporais.Todavia, esta situação não se modifica quando se trata de integrar adualidadecorpo-mente. Asatividadescorporaisprogramadascontinuam "Jsendo um meio para se realizar valores de utilidade social, emborasejam diferentes dos tradicionais e diferentes grupos de profissionais e .intelectuaisque defendem valores contrapostos, e cadagrupo considereas elaborações adversárias, pensadas por vezes como inimigas, comofonte do erro ou ideologias a serviço dos opressores ou qualquer outroqualificativo. Uma sociedade plural se caracteriza pela existência, xAconfronto e conciliação de valores e objetivos diferentes e por vezes em • 5franca oposição. No presente lidamos tanto com valores gerados no ̂passado quanto com aqueles que supomos apenas terão vigência plena ^~no futuro. O presente aparece como lugar de tensão, de irresolução, Tde confronto e conciliação. Lt

É por razão da obrigação de realizar objetivos sociais, e nãoA )-meramente produzir conhecimento, que a principal discussão no:ampo da educação física é sobre os objetivos sociais que ela devetllllLÍVy «w WUUW*Y»U _ _ _ _

Tomover, perseguir, realizar. De fato, não podemos cientificamente \rdecidir se a educação física deve perseguir o objetivo da emancipaçãopolitica ou o da saúde ou o da estética do corpo. Em segundo lugar, asdiscussões centram-se sobre as características dos programas para ajgalização dos objetivos uma vez definidos.

Os profissionais da educação física referem-se permanentementeao seu compromisso com a prática, em definitivo, ao conjunto dosvalores transformados em objetivos que devem promover no programa Lde atividade corporal.

No campo da medicina e da engenharia a legitimidade social égrande, e é significativamente alto o consenso sobre os objetivossociais a serem promovidos. O grau de consenso, por demais o grau de\\qualquer coisa, é importante na sociedade. Não podemos refletir e agirsobre o social se o grau daquilo que consideramos não é levado emconsideração. Temos que deixar de considerar o grau como

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í/significativo, acessório ou negligenciável. Na verdade "o grau" éfreqüentemente o verdadeiro problema.9 É o alto grau de consenso damedicina, por exemplo, que faz com que os valores sociais da saúdesejam lidos como demanda do povo, da classe trabalhadora ou dasociedade e não como trabalho de imposição dos especialistas. Comoconseqüência, o próprio especialista se sente respondendo a uma

c( demanda. Pode se apresentar e se sentir como solucionador dedemandas, esquecendo que seus predecessores agiram ativamentepara definir o perfil das demandas atuais e deixam de notar que elescontribuem para sua redefinição constante.

A situação atual, na medicina e outros campos de atividades,oculta o longo trabalho dos especialistas (da saúde, da religião, doshumanistas) para inculcar valores, estruturas de personalidade e padrõesde comportamento na sociedade. Formação que abrange os modos dereprodução e sexualidade, de atendimento do corpo, de definição danormalidade ou saúde, de espectativas em relação à duração da vida,de ideais de corpo entre outros.10 Este longo trabalho de inculcaçãofaz, por exemplo, que objetivos como a longevidade, a altura e peso dosindivíduos se tenham tornado valores' 'naturais". Os jornais registrama preocupação com abaixa estaturadosbrasileiros, quando comparadacom as médias americanas por exemplo, e tomam uma maior alturamédia como símbolo de progresso alimentar, da saúde, enfim, dascondições de vida. Esta absolutização para qualquer realidade indicaa pouca base científica do valor da altura, pois, sob o ponto de vistadarwiníano, a altura apenas poderia ser considerada como positiva ounegativa pela sua adequação ao contexto. Devemos reconhecer queo apelo á argumentos científicos e ao prestígio da ciência foi fundamentalna construção social dos especialistas do corpo.^ A educação dos corpos, a educação física, emerge no bojo dasatividades de intervenção dos especialistas. Sua institucionalizaçãoresulta da demanda de programas de atividades cprporajsque realizemobjetivos sociais. Assim, é impossível pensar a educação física sob omodelo da institucionalização das disciplinas cientificas. De fato, aeducação física não possui um objeto próprio, delimitado, específico.Ao longo de sua história as atividades corporais situaram-se em

(J2Q

relação a valores e objetivos sociais. Os historiadores da educação\física afirmam, e por vezes se queixam, de serem suas atividadesconsideradas como disciplina corporal que contribui na formaçãomoral ou do caracter. Assim, o corpo deve ser trabalhado para ser umbom receptáculo para uma mente que, ao mesmo tempo, o considera'um instrumento, um meio de sua realização. Quase todos os manuaisde história da educação enfatizam que o enfoque biomédico e asnecessidades militares institucionalizaram a educação física no sistemaeducacional na primeira metade de nosso século. n A formação deespecialistas resultou assim de uma demanda associada de corpossadios e funcionais para a ordem social, a economia e a defesanacional Quando as demandas originais perdem seus fundamentos,e se tornam preconceito, são retrabalhadas e criticadas sob a basede demandas emergentes inseridas em redefinições, necessidades eobjetivos sociais w c ( J*

Demandas sociais e propostas

A educação física hoje aparece como um campo no qualprojetos e demandas variadas se confrontam. Um amplo leque dedemandas -isoladas ou associadas e mais ou menos consensuais—definem o horizonte de atuação dos profissionais da educação físicana sociedade. Ao mesmo tempo, o campo da educação física estáeivado de- propostas de novo tipo, muitas delas ditas contrárias àsdemandas tradicionais ou socialmente dominantes. Apontemos, sempretender ser sistemáticos e exaustivos, algumas delas.

Em primeiro lugar, o discurso biomédico continua apresentandodemandas vinculadas à saúde. A atividade corporal situa-se aqui emtrês dimensões principais: a) como preventiva de doenças e dosdesgastes da velhice —recusa social a se envelhecer--, b) comoformadora, mantenedora e recuperadora da disposição física ou docorpo, a atividade corporal na empresa poderia aqui ser incluída, c)como compensadora dos desgastes neurológicos e/ou psicológicos davida moderna e d) como recuperadora de funções corporais perdidasou não desenvolvidas em indivíduos. Neste campo, as propostas

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alternativas à físiologia ou medicina normal se multiplicam. Propostasque objetivam à unidade da mente e do corpo, ao tratamento dasdimensões emocionais entre outras. As ciências biomédicas ocupamum lugar de destaque no fundamento das propostas de intervençãorelacionadas com estes objetivos.

Em segundo lugar, há um conjunto de demandas estéticas, porvezes travestidas de cientificas, que se expressam nas atividades deconstrução de modelos ou tiposideais de corpos. Realizam-se esforços •significativos para se construir uma identidade, uma distinção, a partirda imagem do corpo. No plano mais geral, por exemplo, torna-se umapreocupação a altura e peso da população. As academias de formaçãode corpos estéticos se multiplicam.

Em terceiro lugar, destaca-se a demanda das atividades corporais-recreação, divertimento, lazer, etc- ocuparem o tempo livre queresulta da tendência à redução dajornada de trabalho, de mudanças emsuas modalidades e de redefinições amplas da sociedade. Emergem aspropostas sobre o prazer de "trabalhar" o e com o corpo. O enfoque"liberador" , por sua vez, enfatiza que o corpo deve ser liberado dosdomínios aos quais foi submetido para recuperar o prazer do corpo. Opensamento crítico humanista participa ativamente na discussão eimplementação de propostas deste tipo.

Situam-se em quarto lugar as demandas do nacionalismoesportivo. Ao invés de ganharmos e festejarmosaguerrao nacionalismonos manda ganhar competições esportivas, científicas e artísticas. Oespírito competitivo e a procura do louvor deve se realizar na paz dosesportes, na doçura das atividades científicas e artísticas e não nocampo de batalha. O desenvolvimento de capacidades Esportivas e otreinamento é hoje um campo significativo para os profissionais daeducação física em nosso meio. O Brasil não somente exporta jogadoresde futebol, como também treinadores nessa e noutras modalidadesesportivas. Em relação a estas demandas as propostas alternativas sesituam dominantemente no questionamento dos meios recomendadospara a realização dos objetivos.

Em quinto lugar, c onfront amo-nos com as demandas deatividades corporais na educação formal. Os objetivos são aqui

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diversificados: saúde, desenvolvimento psicomotor, cognitivo,conscientizadores ou políticos entre outros. Neste tipo de demanda osprofissionais da educação física interagem fortemente com ospedagogos, os educadores. A filosofia, a psicologia, a sociologia eantropologia educacional subsidiam ativamente as discussões nestecampo. pb l f^ÇO PI AA>Tb

Em todas estas e outras demandas os educadores físicosparticipam discutindo e apresentando propostas que fazem'a suadefinição de objetivos, perfil da demanda e características de cadaatividade. O campo da educação física aparece diante de nós comoconflitivo, onde se disputa a hegemonia de definições, objetivos e>práticas em qualquer segmento de demanda. Observamos que"projetos" e '.'compromissos" antagônicos se confrontam emqualquer segmento de demanda. A intervenção no campo das atividadescorporais continua sendo o núcleo da tradição da educação física, l

/W uDa arte da mediação: objetivos e meiosTO

bj

A situação apresentada nos leva a redefinir o papel de bricoleurcomo arte da mediação: mediação entre histórias, entre presente efuturo; mediação entre disciplinas; mediação entre ideologias oudemandas sociais na elaboração do programa de atividade corporal.

Q educador físico, o mediador, não se relaciona apenas coma articulação de áreas disciplinares. A representação e avaliação dahistória, do presente e futuro' de sua atividade, desempenha um papelcentral em suas propostas. Também os valores que escolhe promovere realizar agem sobre as propostas. Estes planos de construção das/1

propostas agem sobre a escolha das disciplinas que o mediador priorizana elaboração de seus programas. Assim, as incidências sobre a arte damediação são múltiplas. Recortaremos apenas alguns de seus aspectos

A arte da mediação se nos aparece como estando principalmentecondicionada pela opção entre a "aceitação" e a "determinação" dademanda. Isto cria como duas tribos de profissionais da educaçãcfísica.

O profissional que aceita a demanda guia-se na elaboração do

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programa por objetivos externos, isto é, por objetivos que aceita^como socialmente dados em algum segmento de atividade. Digamos /que ele é a-crítico em relação aos objetivos. Assim, pode elaborar'um programa de treinamento competitivo para o brilho nacionalou de atividades corporais na empresa para que os operáriosestejam psicológica e fisicamente melhor e sejam mais produtivos.Sua pretensão é ade realizar da melhor forma possível os objetivossociais que lhe são demandados. Neste caso, a questão central l rdiz respeito sobre a melhor forma de realizar os objetivos/jjrequeridos. Isto não implica, entretanto, falta de criatividade ou de)competência na mediação. Este tipo de profissional pode ser muitocriativo na articulação do programa e mesmo altamente renovadorem relação aquilo que vinha sendo feito. Assim, aceitando-se ademanda o profissional pode ser tradicional ou 'renovador naelaboração do programa que a satisfaz. Pode, portanto, ser críticoe criativo em relação aos meios para realizar os objetivos.

A outra tribo é formada pelos profissionais que desejamJnecessitam ou acham fundamental determinar a demanda. Aquio programa inicia-se pela discussão dos objetivos com o auxilio dáinterpretação socio-política. Qual a função profissional é a grandequestão? Qual o papel dos educadores físico^ Qual a função doprograma de atividade corporal? Estes profissionais são os críticos, osque se sentem renovadores ou revolucionários, os que acreditam quepodem transformar a realidade social em função de seus desejos ou1

sonhos, embora por vezes atribuam esses desejos ou sonhos ao povo/aos oprimidos, aos trabalhadores. Esta opção não implica que estes;profissionais sejam necessariamente criativos ou renovadores emrelação aos meios. De fato, na mediação que elabora o programa elespodem ser tradicionalistas ou pouco inovadores. A-críticos, então, enjrelação aos meios que realizem seus objetivos criticamente elaborados

^Nossos comentários nos levam as seguintes possibilidades:

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••n*

/•

O B J E T I V O S

Críticos

A-críticos B

A-críticos

D

A: critico ou inovador em relação aos objetivos e meios; ~nr=

B: a-crítico em relação aos objetivos e crítico em relação aos meios; ^

C: crítico em relação aos objetivos e a-crítico em relação aos meios; ̂

, . .D: a-cntico em relação a objetivos e meios.

Estas considerações nos colocam diante de um velho e crucialproblema: devemos avaliar os homens pelas suas intenções (a-criticasuou críticas) ou pelos efeitos de sua ação (tradicional ou inovador)? AJjquestão não existiria se as intenções e os efeitos fossem convergentes] *.Entretanto, há uma longa lista de pensadores de envergadura que -chegaram à conclusão de que intenções e efeitos podem ser paradoxais,ou contraditórios, isto é, divergentes. Mandeville popularizou adivergência positiva quando afirmou que dos vícios privados (daintenção egoísta) se deriva a virtude pública (o efeito de riqueza dasnações). Marx, em oposição, enfatizou a segunda divergência quandoreafirmou que o inferno está empedrado de boas intenções, isto é, queas boas intenções dos capitalistas podem nos levar, e também a eles, auma situação pior. Mais ainda, quando sua tese central diz que se oscapitalistas agem capitalisticamente contribuem para a morte docapital. Observemos que a grande críticaacaridade,umaboaintenção,é a de que seu efeito resulta em aumentar a dependência, a apatia, e por

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esse meio apenas reforça a caridade dos doadores enquanto situaçãode superioridade.

Tomemos um exemplo desportivo: o boxe. Meu conhecimentodos educadores físicos aponta que muitos deles compartilhamsentimentos e argumentos humanistas contra este esporte. Algunsgostariam que fosse uma prática esportiva proibida e nenhum dos quecompartilham esses sentimentos e argumentos se dedica voluntariamentea atuar no treinamento esportivo do boxe. A intenção crítica apenaspode ter algum efeito no campo geral da discussão ideológica e poucoou nada se incorpora ao programade treinamento. Em oposição, os queaceitam os objetivos desse esporte estão introduzindo novidades noprograma de treinamento cujos efeitos, a médio e longo prazo, podemsignificar uma mudança no boxe. A introdução da dança, e portanto damúsica, no treinamento pode gradativamente ir diminuindo a importânciado nocaute, esse "gol" do boxe. Esta mudança não necessita estardeterminada por uma intenção ou vontade de modificar a demanda. Otreinamento pode gradativamente ir enfatizando a importância doestilo, um valor de tradição e cultura do boxe, sobre o nocaute, seuoutro valor. Esta mudança gradativa da relação entre aquilo que seadmira num esporte pode levar a uma docificação do boxe e aconseqüente introdução de estilos e equipamentos que minimizando aimportância do nocaute sejam menos agressivos para seus praticantes.O boxe poderá ser valorizado ainda como esporte enquanto o nocauteperderia sua importância e, com ele, o privilégio concedido à violênciado soco. Os exemplos poderiam ser multiplicados.12

Não estou por certo propondo que deixemos de julgar asintenções. A necessidade de julgar as intenções dos outros impõe-seno cotidiano, permanentemente avaliamos as intenções dos outros paradefinir nossa conduta. O campo da relação entre governantes egovernados é fundamentalmente, de pane dos segundos, um processode avaliação de intenções. O cidadão comum não pode esperar que osespecialistas avaliem, após vários anos de estudo, o efeito educativodos Cieps parajulgar Brizola enquanto governador. De fato, o primeirojulgamento é sobre as intenções. Se daqui a alguns anos o próprioBrizola reconhecer que sua estratégia educativa foi errada, porém bem

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intencionada, os cidadãos poderão votar ainda nele. Habitualmenteperdoamos a incompetência ou desconhecimento, e mesmo o efeitonegativo de uma ação nào-intencional, somos mais duros com asintenções negativas ou moralmente ruins. Isto pode acontecer porqueem nossa própria experiência constatamos a divergência entreintenções e efeitos. Podemos, todavia, no processo avaliativo,

^privilegiar as intenções ou os efeitos. Salientemos que, enquantoa avaliação das intenções não exige créditos especiais, por serbasicamente moral, a avaliação dos efeitos em nossa sociedade

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demanda especialistas. Os efeitos são diferentes no tempo e no espaço,'"V * - -- ^ - —.**.}!+. * r* f^. e

nos diversos contextosespecialistas avaliações das políticas públicas

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implementadas, embora muitas vezes engavetem-nas quando seus^ - -* -»~ -^ ** *-*'"^li^ír*O/~l/1rtC

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resultados não lhes sào favoráveis. Na arte da mediação a avaliação dos1U^ Anr

efeitos é um processo central, vertebral, para a• Z i~

programas, de sua mudança, e para a obtenção do reconhecimento

social sobre os mesmos.Curiosamente domina entre os educadores físicos a avaliaçãc

da arte da mediação pela intenção. Basicamente, avalia-se se o:• " ' " ' !-„,.,

objetivos dos "outros*' são os mesmos que "nós" defendemos. Este\J ^JJ •Wiru^».^^, _.

tipo de avaliação é um claro sinal da ideologização do campo-i - _..:..: j„segmentos de atividade

^ Vi u v. u y uu f-j* •- ..4 _ ̂ _ . .

vinculados á educação formal e não-formal. Neste terreno, a disput* ' J _ • n i— " ~ ^. ^ -v* l l*, si f* r

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entre os que aceitam a demanda social e os que desejam lhe da- - - - - - - r ^ : r ; ^ .. ^ -_ __T*^

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forma, ganha sua maior força e virulência e, muito freqüentementediscussão torna-se não civilizada.

Os médicos podem discordar sobre o tratamento Me urpaciente. Cada um pode defender uma arte da mediação diferente e.termos dos meios a serem articulados. Entretanto, por mais furioso

" ~ * • • - • - j --------- «^Á^ttermos dos meios a serem articmaaos. nnu eiamu, ym mau tu» *>~~que se encontrem na disputa, partilham o objetivo de curar o pacienjjA discussão se torna técnica, menos ideológica. Q próprio pacientf\ U.1OVL4JJUU jy ..,."..,_ .,

poderá consultar outros médicos para arbitrar a disputa. Oobjeti'' - - -..-*: l U n m Incice posto em questão, pacientes e médicos o comjjartilhãmTirisisU

e^ta é uma discussão em relação aos meios e não sobre_osJjtTsJreconhecimento do papel social deação. Ilustra o alto grau de

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médicos e o consenso em relação aos objetivos de sua ação. Estadiscussão não é ideologicamente do mesmo tipo que quando sediscutem os objetivos ou finalidades. Confundir estas duasdiscussões é uma forma de aumentar os mal-entendidos. Destesapenas tiram partido os que apostam no discurso único, na atitude deunificação que é contraria ao processo intelectual que gera distinçõescada vez mais finas. O discurso que não distingue possui um alto apeloemotivo, porém pouco consegue fazer, pois o fazer implica distinguire temperar na medida certa como sabe qualquer boa cozinheira.

A dupla confusão entre as intenções e os efeitos e entrea discordância ou a concordância em relação aos objetivos ou aosmeios permeia as discussões no campo da educação física. N*Tverdade, educadores físicos podem entre si: a) discordar em relaçãoaos objetivos e aos meios; b) concordar em relação aos objetivose discordar em relação aos meios; c) discordarem relação aos objetivose concordar em relação aos meios e d) concordar em ambos planos.

As situações "a" e "d" se nos aparecem como coerentes ede fácil aceitação. As situações sociológica e historicamenterelevantes são as "b" e "c". Os marxistas, compartilhando o objetivodo socialismo, discordaram em quanto aos meios para suaconstrução, por exemplo, uso ou não da violência. Liberais e marxistaspodem discordar em relação ao tipo de sociedade que desejam,contudo, podem concordar em considerar como os meios principaisa persuasão e a educação. Os exemplos históricos podem ser, emrelação a estas situações, multiplicados ao infinito.

Estas duas situações nos surpreendem, e por vezes nosincomodam, à medida que consciente ou inconscientemente acreditamosque existe ou deveria existir a ação racional em determinadas áreasdo social e especialmente no campo da educação física. Entender o agircomo ação é a lógica natural do ator. Basicamente, entendemos ascondutas quando pensamos que elas resultam da vontade dosindivíduos de alcançar objetivos (intenções) cuja realização dependede condições e meios. As condições são variáveis que o ator deveconsiderar embora não possa modificar, os meios são os recursos queo ator pode mobilizar para alcançar os objetivos.

(V, (O \ <c

ÜJ

QüOQ.

Entendemos que uma ação é racional quando levando emconta as condições mobiliza os meios de forma a atingir o objetivo,ou pelo menos maximiza os meios disponíveis para atingir o objetivo.Entendemos que a ciência, a estratégia econômica ou militar, aengenharia, a medicina, entre outras, são campos nos quais dominaa ação racional. Associamos, assim, a ação racional a possibilidades deconhecimento e de cálculo. Se a ação é racional, como é possívelconcordando no objetivo utilizar meios discordantes e comodiscordando no objetivo utilizar meios concordantes? Esta é asurpresa. Vejamos o problema com breves toques em perspectivahistórica.

Valores nos objetivos e nos meios

O mundo moderno pensou a modernidade como um processosecular de aumento do domínio da ação racional em todos os camposde atividades. Os objetivos da ação podiam ser pensados comonão racionais, como valores, no entanto o processo de sua realizaçãodevia e podia ser crescentemente racional, Isto significou umaprofunda valorização do conhecimento dás condições e dos meios, ede sua inter-relação, no mundo moderno. Medicina e engenhariapassaram a ser áreas de atividade racional, embora desenvolver oconhecimento científico . não fosse o objetivo dominante. Aracionalidade tornou-se o denominador comum entre as áreas deatividades modernas. As condutas tradicionais, as que não podiamfundar-se num cálculo racional, foram entendidas comopreconceito, como atividades que tinham perdido suas razões empíricas.

Aeducaçãoeaeducação física são áreas que se desenvolverama partir de pretensões de cientificidade e racionalidade. As atividadesde educação foram reivindicadas como objeto pelas "ciências daeducação", a cientificidade e a racionalidade foram passaportes parase obter reconhecimento e legitimidade na modernidade. Os limites a

• suas pretensões, contudo, não se situaram nem se situam principalmentena a-cientificidade ou a-racionalidade dos objetivos, senão que narelação não racional nem calculável entre meios e objetivos. A escola

35

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é criticada por não alfabetizar, pela alta evasão, pela repetência e pelabaixa qualidade da formação e não por serem esses objetivos poucocompartilhados ou não expressarem valores sociais compartilhados.A falta de realização dos objetivos questiona a cientificidade dasciências da educação. Por certo os especialistas da educação colocama responsabilidade sobre os repetidos fracassos nos políticos, poisos especialistas teriam a especialidade mas não o poder de implementarsuas receitas.

Os objetivos podem, e devem, ser valores socialmentecompartilhados. Entretanto, os valores também permeiam os meios naação educacional e, de modo geral, toda a arte da mediação. Distodecorre a vigência das situações "a", "b" , "c" e "d'*. Situaçõesnas quais a relação meios-objetivos se apresenta como racionalquando na realidade é uma relação segundo valores, ou seja, os'valores presentes nos objetivos estào também presentes nos meios("a" e "d") ou valores diferentes permeiam objetivosemeios^b"ê "c"). ^>

Exemplifiquemos para a educação física o que viemos dizendosobre os casos intermediários, que são os mais significativos sob oponto de vista sociológico. Tomemos dois exemplos do treinamento,programas que se supõem mais carregados de racionalidade na relaçãomeios-objetivos.s- Caso (b). No treinamento objetiva-se o desempenho do

(atleta, a eficiência, importa a performance na competição.Entretanto, o treinamento pode ser pensado num t lclima" dedisciplina autoritária ou num outro de disciplina auto-imposta, elaboradapelos participantes do treinamento. Em ambos os casos, osargumentos salientam as vantagens para o desempenho de um ou outromeio. Cada estratégia apresentar-se-á como mais eficiente noatingimento dos objetivos. Isto é, como mais racional na articulação demeios e fins. Esta seria uma situação freqüente onde a demandasocial estabelece com força os valores e objetivos e ainda não existeconsenso entre os mediadores em relação aos meios para se atingiros objetivos ou onde as diferentes propostas sobre os meios refletemdisputas entre os mediadores por ocupar posições no campo, como

36( C

C ^ ÍJdiria Pierre Bourdieu. Í/Y- ^

Caso (c). Na escola um educador pode defender comoobjetivo o desenvolvimento psicomotor da criança e um outroconscientização de sua situação de vida. Ambos podem operar nu"clima" participativo e apoiando a capacidade crítica da criança.Ambos podem pretender realizar seus objetivos por meio deprocessos inovadores em relação aos tradicionais. Num plano geralsuas atitudes em relação à escolha dos meios, nos limites que osobjetivos possibilitam, são semelhantes. J

Poder-se-ia objetar o fato de tomarmos o 4 ' clima" como meiopara se atingir objetivos. A maioria dos programas se preocupamexplicitamente por sua definição e estabelecimento e lhes atribuemimportância estratégica. A critica da pedagogia moderna à tradicionalé mais uma critica aos valores presentes no processo pedagógico,aos modos de interação, enfim ao "clima", do que aos objetivos. Defato, pedagogos modernos recuperam a transmissão sistemática deconhecimentos como objetivo da educação formal. A criticatoma cadavez mais o sentido de estabelecer uma coerência ou correlação entreos valores presentes nos objetivos e os valores presentes nos meios.Digamos que desejam que às intenções estejam'presentes nos meiospelos quais se procura realizá-las. E, depois .de tudo, no cotidiano,antes de sair de casa procuramos saber qual é o clima.

Diria, para finalizar, que a principal finalidade didática é a deestabelecer um clima de entendimento. Este, lembro, é o primeiroobjetivo destas notas. • ' • '

1 Em relação a esta discussão ver o trabalho de Ròrty (1988.)2 Estou partindo aqui dos fundamentos da sociologia da ciência, a literatura

a respeito c ampla c conhecid. . - .• * A idéia de progresso é fundamental no Brasil e no mundo. Ver as obras

de Nisbct e o claro texto de Lc Goff sobre a inscparabilidadedas idéias de progressoc reação.

37

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4 Refiro-me aqui à imagem criada por Lévi-Strauss no Pensamentoselvagem.

5 Conferir como exemplo a excelente História do corpo de Crespo.6 Observe-se que esta é uma mediação sistematicamente realizada pelo

especialista entre o universal, aprendido na formação, e o particular da situação naqual o programa se desenvolve.

7 De fato os especialistas da Física podem discordar sobre as partes da Físicaque devem ser priorizadas, os meios de ensino-aprendizagem e as metodologiasentre outros aspectos.Contudo, eles não se colocam objetivos culturalmente tãodistantes como a "conscientização políüca"e a "saúde do corpo". Observemosque estes objetivos se colocam como contrapostos no programa de atividades e nãona sociedade. Esses valores situam-se em planosdiferentes e ambos podem servaliosos. É no programa de atividade onde o especialista situa a contradição e aescolha que, no fundo, remete à diferenciação entre os especialistas.

• * Conferir meus comentários sobre este assunto em Educação popular:maioridade e conciliação.

9 Observo que há, entre os especialistas da Educação Física, um marxismobanalizado que esquece o grau. De fato, o grau é uma questão empírica complexae o marxismo banalizado, distanciado da pesquisa empírica, o exclui, pois estáimpossibilitado de lidar com ele dada sua preferência em explicar quase tudo pelaluta de classes. Esquece que a definição e entendimento concreto das classes e dosseus agires é tarefa teórica e empírica complexa e que demanda pesquisa constante.O marxismo banalizado é muito cômodo e mágico, pois tira de frases feitas a"realidade social".

10 Ver os TrabaJhos de Elas, Brown, Vigarelío e Crespo citados nabibliografia, corno exemplos de análise das construções às quais me refiro.

11 Conferir Eby, por exemplo.12 Uma contribuição central, da releitua da história da ciência, feita por

Kuhn é considerar que a atividade científica sendo convergente -agindo dentro deum paradigma- termina provocando a divergência, a mudança do paradigma.Entre as intenções que guiam a ação e seus efeitos há também no caso da ciênciadistâncias consideráveis.

38

Capítulo 2

Educação e educação físicaem escolas do Rio de Janeiro

39

Page 25: Educacao Fisica A Arte da Mediação - Hugo Lovisolo

1.Educação e educação física em escolas do Rio deJaneiro.1

O campo da educação física no Brasil caracteriza-se peladispersão das propostas ou programas de atividades corporais. Odebate existente é considerável e, dificilmente, poder-se-ia afirmarque, a intervenção dos profissionais da área, se orienta por umconsenso significativo, em termos de valores ou objetivos a seremperseguidos e dos meios adequados aos mesmos. A dispersão, comseus debates e discussões, aparentemente inesgotáveis, éparticularmente forte no que diz respeito à educação física nocontexto institucional da educação formal e, sobretudo, no seuPrimeiro Grau.2 . . . . . .

O ponto de partida dos estudos Sobre a educação formal,diríamos que de consenso, reside naafirmaçãp de que a escola brasileiraestá mal e que devem ser realizadas ações para tirá-la desta situação.A partir deste consenso, muito frágil ou muito forte, segundo o pontode vista avaliador, as .propostas de transformação ou mudança semultiplicam. Se'u lequeé-arhploe, sob o ponto de vista pedagógico,abrange desde a politização da educação até sua psicologização maisindividualista ou a revalorização da escola tradicional. No planoorganizativo, defende-se desde um controle e centralização maior daeducação pública, até ousadas propostas de descentralização, com aintrodução de mecanismos de ''mercado" , ou de estímulo aprodutividade. Adispersâodas propostas indica, entre outros elementos,a dificuldade da educação brasileira em constituir uma tradição, umconjunto de valores e normas suficientemente articulados, em cujoâmago da mudança educacional aconteça. De fato, o acúmulo dePropostas hão está acompanhado por mudanças efetivas no cotidiano

41

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escolar.Evidentemente, estepanorama da educação incide, fortemente,

na educação física escolar. Também aqui as propostas de intervençãose diversificam, em termos de valores e meios, para sua realização. Aemancipação política, o desenvolvimento psicomotor, odesenvolvimento cognitivo, o apoio a integração e funcionamentoescolar, o respeito a cultura dos alunos ou a competência corporal,entre outros, podem ser escolhidos enquanto valores orientadores doprocesso de intervenção. Por certo, a diversidade dos meios propostosé correlata a dos valores ou objetivos.

Os discursos de intervenção dos especialistas geralmentepretendem o status de científicos. Entretanto, é habitualmente baixoe mesmo nulo, o fundamento em termos de pesquisa empírica. Osespecialistas participantes dos debates pretendem impor seus pontosde vista sem apresentarem, habitualmente, "dados" ou "provas", quepossibilitem ãleançaçmos alguns' 'acordos", que permitam aperfeiçoara educação no Brasil. ': • >•

"*••• *: Os alunos e seus responsáveis também possuem seus pontos devista e opiniões-formuladas, a partir da experiência escolar, e derepresentações elaboradas, à partir de incidências diversas (culturapopular, especialistas, meios de comunicação, entre outras). Estespontos de vista devem ser levados em alta consideração se pretendemalcançar algum grau de consenso, em termos de "projetos" ou de"propostas", para a ação educacional e, em especial, para a educaçãobásica.

Parece por demais evidente que os negócios humanos funcionamquando se estabelece algum grau de consenso ou acordo entre os atoressociais que deles participam. Os atores privilegiados do processoeducativo são sem dúvidas as famílias, os educandos e os

1 educadores. Se entre eles não existe um acordo suficiente a escola nãofunciona. Acordo sobre valores, os meios, as espectativas parece sera estratégia fundamental para que se implementem projetos no planoda educação. Enfim, se os atores não partilham de um horizonte comumde crenças ou representações é impossível a eficácia simbólica daescola, lugar onde, permanentemente, se ensina a operar com símbolos

articulados ou não a um conjunto de valores. Sabemos, na prática, quenão contamos com "tradição afortunada" que estabeleça um campoconsensual como base da ação educativa. Este ponto de vista práticojustifica a pesquisa fortemente descritiva que estamos realizando, poiso que se pretende é aproximar dados empíricos que possam ser \utilizados como referências para o debate. i

Os valores, as crenças e as representações mudam como 1 <qualquer outro elemento da sociedade e da natureza. Estabelecer^acordos ou consensos não significa congelar o mundo como alguns Sfacreditam. Os acordos são eficientes para mudar o mundo, sobretudo, «quando a mudança se processa no seio de uma "tradição afortunada" ;-um conjunto de acordos que possibilitam guiar a mudança sem Isermos tragados pela entropia. De fato, a história da educação no>Brasil representa uma tradição desafortunada ou, uma força entrópica,^que nega a consolidação de um sistema educacional que possamos íqualificar, sem modéstia, de regular ou de bom. * A > ̂ ^

Observe-se que não se trata aquig&i 'extrair'' da ciência ou doconhecimento científico, os valores ou as crenças, que dir

jíV

processo educativo e a intervenção da educamenor e diferente. Pretendeu-se, n """"

pretensão ealho, estabelecer as linhas,

vpontos ou tópicos que deveriam guiar.o estabelecimento dos acordossociais. Neste sentido, os resultados da pesquisa podem ser consideradoscomo matéria- prima que enriquece os diálogos.

A amostra desta,pesquisa foi formada por 703 informantesalunos e 432 informantes responsáveis..Selecionou-se seis escolas de

-diferentes regiões da Rede Municipal, no segundo segmento de 1°Grau. O questionário foi dó tipo auto-administrado. Aplicaram-se 900questionários a alunos e a mesma quantidade aos responsáveis. A taxade retorno foi alta se considerarmos o tipo de aplicação. Entre osinformantes alunos, 58% dos pesquisados foram do sexo feminino. Emrelação a caracterização sócio-econômica dos informantes, observemo sque quase 48% dos responsáveis declararam perceber renda inferior atrês salários mínimos, e 18% de três a cinco salários mínimos. Observa-se, portanto, um perfil ,de .renda com predomínio de salárioscaracterísticos das camadas populares.

43

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2. Da educação e da escola

As respostas dos responsáveis

Os estudos sobre educação salientam que a preocupação pelaescolha da escola tornou-se um elemento do cotidiano da classe média.4

As famílias, discutem as escolas em termos de suas propostaspedagógicas, e as escolas direcionam tais propostas, para segmentossócio-culturais definidos, como a clientela em potencial. Há, em váriossentidos, um controle simbólico e prático das famílias de classe médiasobre as propostas e realizações das escolas. Estes processos têmespecial vigência na educação privada.

A escolha de uma determinada escola significa que as famíliasacreditam na existência de diferenças entre as propostas pedagógicas,e que consideram que há escolas melhores ou piores para a formaçãode cada criança. Neste sentido, a escolha também comporta umcomponente de psicologização no entendimento da educação.5 Estasconsiderações levam a crer que a imagem de uma escola única, sealguma vez vigorou em nosso meio, quebrou-se na representação dasfamíliasdeclasse média. Háumasegmentaçãodademandaeducacionalnesses grupos sociais.

Interessava na pesquisa constatar se havia segmentaçõessemelhantes entre os informantes de baixa renda da escola pública, ouse as orientações tinham um fundamento ainda referido a unidade daescola. Assim, por exemplo, se alguém escolheaescola pela proximidadedo domicílio, num contexto urbano que possibilite a escolha, é porquede alguma forma, acredita que as diferenças entre as escolas nãojustificam os custos de deslocamento. Aceita, assim, o critério daadministração escolar, que'orienta na direção da proximidade lar-escola a partir da indistinção das "qualidades" de cada escola. Comesta conduta, elimina-se a "escolha" do horizonte das preocupaçõesda família das classes populares. Observa-se que um efeito desta atitudeé que a administração escolar elimina a "competitividade" entre asescolas, pois elas possuem uma clientela cativa pelo determinismogeográfico.

44

No quadro a seguir apresentam-se os motivos que orientamos responsáveis em relação a escolha da escola;

MOTIVO

Qualidade

Proximidade

Gratuidade

Sem escolha

Hor. integral

Alimentação

Filhos na escola

Conhecidos

Outros

TOTAL

N"

193

143

143

14

13

1

3

4

13

52,7

%

36,0-

27,1

27,1

2,6: 2,5

0,2

0,6

0,8

2,5

100,0

Verifica-se que a proximidade e a gratuidade, se somadas,perfazem um percentual de 54,2%, o que pode indicar que aorientação é dominantemente utilitária na escolha da escola. Amenção da gratuidade (27,1%) pode .ser entendida como opçãoforçada, no caso dos responsáveis contarem com poucos recursos. Aopção de 36,6% escolhendo a escola pela qualidade do ensino, salientaa preocupação dos pais com a formação dos filhos. De fato, estapreocupação indica que a orientação pela qualidade é significativaentre os responsáveis. Ao mesmo tempo, pode estar indicando aquebra da idéia de unidade que domina na representação da EscolaPública. Isto é, a vigência de representações diferenciadas dasescolas, diferenciação derivada da própriadefinição variada da qualidade(A pesquisa sobre as definições de "qualidade" da escola é um campoainda insuficientemente explorado). . •

Segundo a opinião dos familiares, constatou-se que 73%

45

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avaliam o ensino escolar como £'regular'', 18% "puxado" e 9%"fraco". Entretanto, quando chamados a responder sobre o "deverser" do ensino, quase 71% acreditam que deveria ser mais "puxado".Se a primeira resposta pode ser entendida como uma avaliação decompromisso, a segunda sobre o — "dever ser"— situa uma demandade maiores exigências de ensino. Adesconformidadese manifestaentão em relação ao "dever ser" da escola e não imediatamentequando se interroga sobre o que ela "é".

Os informantes quando questionados sobre a satisfação ouinsatisfação com a escola, não apresentam diferenças, pois quase 90%dos informantes da família declaram estar satisfeitos. Embora osquestionários não fossem identificados, é possível que ocondicionamento da resposta tenha tido considerável peso nasmesmas, devido a temores diante da reação da escola. As respostasa outras questões mais indiretas permitem concluir que ocontentamento não é tão alto quanto o percentual enunciado acimasalienta.

Tomemos alguns desses indicadores. Quando a avaliação doensino passa pela disciplina escolar, 61,8% acham que a escola é"rígida", 27,8% "poucorígida" e somente 8,5% "muito rígida".59,5% esperam que a escola seja "mais rígida". Apenas 4,2% seexpressam no sentido de uma escola "menos rígida". Também, nestecaso, adesconformidade se manifesta no plano do "dever ser". Emrelação à realidade da escola as respostas são cautelosas, e assim otermo intermediário, menos comprometido, domina amplamente.

Os responsáveis quando compararam a escola do passado coma de hoje, forneceram as seguintes avaliações: 72,5% acreditam quea escola do passado foi melhor e apenas 13,4% avaliam como melhora escola do presente. O restante não percebe diferenças na comparaçãoentre o passado e o presente. Evidentemente, estes dados devem serrelativizados em função da tendência, bastante geral, de valorização dopassado. Contudo, eles podem ser entendidos como sinais dadisconformidade com a escola.

Tal avaliação pode ser confirmada quando os responsáveismanifestam como objetivos da escola, aquilo que os pedagogos

denominam de ensino ou escola tradicional, e por vezes, de autoritáriaou disciplinadora. As respostas que manifestam estaposição significammais de 70% do total. Também, apareceu entre as respostas oobjetivo de "desenvolver a criança", este pode ser aceito comoobjetivo da escola moderna. Um dado interessante é o percentual de11% que apareceu como resposta, que se alinha com a posição dospedagogos "progressistas". Isto pode indicar que o discurso doseducadores "politizados" está se incorporando ao discurso dosresponsáveis ou a sociedade em geral cristalizou uma espécie dediscurso transformador. O quadro a seguir dá substância as observaçõesacima:

OBJETIVOS

Preparar a criança

Instruir

Disciplinar

Desenvolver a criança

Mudar a sociedade

Outras

Total

203

187

167

-118'-'

92; •22 ' •

789 ;

%

25,73

23,70

21,17

14,96

11,66

2,78

100

No conjunto das respostas alinhavadas, pode-se dizer que,no domínio das representações dos responsáveis, a escola idealizadapor estes deve ser disciplinadora, preparar e instruir a criança. Enfim,aquilo que se reconhece como imagem tradicional ou conservadora daescola.

Esta imagem se reforça quando considera-se a importânciaatribuidapelos responsáveis às disciplinas escolares vigentes. Aceitando-

,se respostas múltiplas, obtém-se os seguintes valores de respostasválidas:

47

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DISCIPLINA

Matemática

Português

Ciências

História

Geografia

Ed. física

Inglês

Quimica

Francês

Música

TOTAL

N"

386

372

115

105

75

74

68

17

16

7

1235

Os responsáveis apresentam uma imagem definida daimportância das disciplinas. Observemos, primeiramente, quematemática e português são consideradas, de modo inequívoco,como as disciplinas mais importante, concentrando 60% dasrespostas. Ocupam, assim, o primeiro lugar nas preferências, porcerto orientadas pela utilidade destas disciplinas no contextocultural. A disciplina'ciências (física-biológicas) ocupa um lugarde destaque, seguida por história, geografia e educação física.Claramente, o inglês é a língua estrangeira de preferência, tendofrancês, comparativamente, poucas menções.

Com a intenção de se completar o perfil dasdisciplinas, o questionário perguntava que disciplinas deveriam termaior quantidade de aulas. Acreditava-se que estas respostasfossem, talvez, melhor na sua capacidade de refletir expectativas,

48

m relação à oferta do sistema escolar. As respostas foram

seguintes:

as

DISCIPLINA

Matemática

Portuüuês

Lin. estrangeiras

Ciências

Educação Física

Geografia

História

Química

Música

Outras

Total

N"

258

236

119

91

89

72

64

24

19

• _ — . • 6 8

1040

A idéia que se tem é a-da dominância de um currículo queprivilegie as disciplinas heurísticas, que permitam a sociabilidadeé o aprendizado. Tais como: matemática, português e as línguasestrangeiras. Em segundo lugar, destacam-se as disciplinasformativas em ciências, história e geografia. Em terceiro, aprópria educação física.

As respostas dos familiares são coerentes e retratam ummodelo de escola organizada, exigente e centrada no currículo,onde as disciplinas preferidas, perfilam entre as de dominânciaheurística e científica. História, sem dúvida, é considerada

:como a principal disciplina de formação humanística.

49

Page 30: Educacao Fisica A Arte da Mediação - Hugo Lovisolo

As Respostas dos Alunos

A educação brasileira como objeto de estudo temrecebido diferentes recortes. As análises tratam dacompetência do professor, da eficiência dos métodos, dapolítica financeira destinada à educação e das propostasideológicas que são subjacentes ao processo educativo.Enfim, estes temas têm sido bastante explorados. Entretanto,a opinião dos atendidos pela escola brasileira não temmerecido o tratamento destes grandes temas. As avaliações aseguir procuram aproximar alguns dados para oconhecimento do ponto de vista dos atendidos diretamentepela escola pública, os alunos.

Cabe esclarecer que as perguntas dirigidas aosalunos diferem ligeiramente, na forma e na disposição dasapresentadas aos responsáveis. Por certo, a estratégia deorganização do questionário atendeu apenas as diferençaslingüísticas e contextuais dos grupos pesquisados, todavia ascategorias levantadas pelo instrumento não diferem entre osresponsáveis e alunos, e isto possibilita comparações entresuas respostas.

Pediu-se aos informantes que identificassem o quegostam e desgostam na escola. A partir desta identificação, aquestão seguinte pedia que os informantes contrabalançassemsuas opiniões e julgassem se a escola possui mais coisas boasou ruins. Constatou-se que 70.8% dos alunos avaliam que aescola, apesar das "faltas" reclamadas por eles, apresentamais "coisas boas" do que "ruins". A escola ainda évalorizada do ponto de vista dos alunos que nelapermanecem.

Observe-se, a seguir, o que os alunos "gostam" e"não gostam" no universo escolar. Estes dados sãoimportantes para que se entenda o "cálculo" utilizado pelosinformantes na avaliação da escola como uma instituiçãopositiva, como foi visto acima:

50

NÃO GOSTASujeiraBagunçaFalta de manutençãoFalta de materiaisHorárioProfessorEnsinoFuncionárioMatériaFalta de professorOutrasTotal

N°417

325279234208

514731300641

1669

%

24,9919,4816,7214,0312,473,052,811,851,790,352,46

100,0

Somando os percentuais dos quatro primeiros indicadores,75,22% deumtotal de respostasmúltiplasválidas(1669),observa-sequeos alunos concentram suas críticas na sujeira, na bagunça, na falta demanutenção e materiais. Os informantes apontam, através deste altopercentual, que a escola se encontra desorganizada, tanto doponto de vistadisciplinar, quanto do ponto de vista administrativo. A falta de disciplinaé reclamada através do alto percentual de insatisfação com a sujeira e abagunça. Istopareceindicar que oprofessor,eosdemaisresponsáveispelaescola, na visão dos,alunos, já não se responsabilizam pela ordem doambiente escolar. Este dado indica a ausência de orientações básicas paraque seja trabalhado qualquer projeto pedagógico. A desorganizaçãoadministrativa causada pela sujeira, pelafaltade manutenção e materiais,indica que o problema administrativo possui razões internas (da própriadireção) e externas (dá falta de recursos e políticas governamentais).

O horário, o quinto indicador de insatisfação com a escola,apresentaaconcentraçãodel2%,oquepode ser considerado alto. Estepercentual alto, entretanto, pode ser explicado pelos Cieps que integrama amostradas escolas selecionadas. OsCiepsfuncionam em turno integral,eeste tem sido um dilema enfrentado pelos atendidos, que são oriundosdasclassespopulares. Aidéiadoturno integral parece contribuir para uma"lelhorformaçãò em termos ideais, em contrapartida este modelo exclui0 aluno de contribuir diretamente na renda familiar e/ou limita sua vida narua.

51

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A questão que se referia ao que os alunosescolafoido tipo aberta, somando um total de 1158válidas Observem-se as respostas

mais gostavam narespostas múltiplas

GOSTA

1 -Professor

2-Amigos

3-Educação física

4-Ensino

5-Pátio

6-Tudo

7-Merenda

8-Funcionário9-Estudar

10-Artes

11 -Direção

12-Carinho

13-Bagunça

14-Horário

l"5-Limpeza16-Banho

17-Laboratório

18-Biblioteca

19-Festas

20-Cantina

21 -Passeio

22-Nada

23 -Grêmio

24-Cozinha25-OutrosTOTAL

N"325

112

111

1109266

59

49

46

38

36

20

17

15

87

7

7 •

6

554

229

1158

%

28,07

9,68

9,59

9,50

7,95

5,70

5,10

4,24

3,98

3,29

3,11

1,73

1,46

1,29

0,69

0,60

0,60

0,60

0,51

0,43

0,43

0,34

0,17

0,17

0,77

100,0

52

o

A dispersão das respostas dos alunos solicita que as mesmassejamreagrupadas por afinidades, comoobjetivodeclarificaraanálise. , . .

Destacam-se, em principio, as respostas que dizem respeitoàs relações pessoais e afetivas, e dos espaços que as facilitam dentroda escola. Constata-se que os informantes valorizam em 54,78% --somando os percentuais das respostas l, 2,5,8, lie /?--os indicadores! i^que se referem a relações humanas na escola: os professores (28,07%) ~e amigos (9,68%) como figuras que mais gostam na vida escolar; opátio da escola (7,95%) também mereceu destaque, por ser esteo local onde os alunos organizam parte significativa da vida social noambiente escolar; a direção (3,11%) e funcionários (4,24%); e ocarinho (1,73%). De fato, todas estas respostas se encaminham paray1

uma valorização das relações humanas que são travadas na escola. ^O ensino (9,50%), a educação física (9,59%), a educação

artística (3,29%) e a atitude de estudar (3,98), também são atividadesque os alunos gostam na escola. Este conjunto de respostas, somadaspercentualmente, atingem a 26,36% e poderia-se dizer que se vinculam>X,ao objetivo básico da escola, isto é, ensinar os conteúdos socialmentevalorizados e úteis. Entretanto, quando comparado o percentual^destas respostas àquelas que se' vinculam as relações humanas,constata-se que os alunos se identificam' e priorizam as relaçõesafetivo-sociais. * ' , '

Um dado interessante é o percentual, 'que pode

é*

j

considerado significativo, atribuído à educação'física. O destaquedesta disciplina e a citação da educação artística nas' respostas podesignificar uma separação e uma diferenciação destas das demaisdisciplinas quanto aos seus objetivos nas representações dos atores. ^

V**

ÜJ

.Em contrapartida, as elaborações dos intelectuais progressistas/vinculados a área justificam sua relevância na escola pelas mesmasrazões culturais e cognitivas que as demais disciplinas se justificam. Asdemais respostas, ' 'tio que gostam1 \ se vinculam a aspectos infra- oestruturais e de funcionamento geral da escola. • '

Uma contraposição que se levantou, segundo o ponto de vistado informante, se situa na avaliação de como o ensino "e" e como"deveria ser": O aluno deveria avaliar o ensino de sua escola em

53

Page 32: Educacao Fisica A Arte da Mediação - Hugo Lovisolo

ambos os planos. Na avaliação do "é" obtiveram-se os seguintesnúmeros: 66,9% avaliaram o ensino como "regular", 20,8% como"puxado"e 11,5% como "fraco". A outra questão que tratava do"dever ser" apresentou os seguintes valores: 56,2% afirmaram queo ensino deve ser mais "puxado", 36,7% que se deve manter "comoestá" e 6,1% que deve ser "menos puxado". As respostas de maiorpercentual que avaliam o ensino como "regular", e que o ensinodesejado deve ser mais "puxado" (forte), podem ser consideradascomo uma idéia socialmente compartilhada: que a escola atual,principalmente a pública, é mais fraca do que as expectativas sociaisdemandam.

A idéia da disciplina escolar, entendida como uma categoriaque regula as relações de conduta na escola, foi colhida através de duasquestões: a primeira tratava do que era proibido na escola, e asegunda levantava junto aos alunos que normas de orientações deconduta estes desejam em seu dia a dia na escola.

Quanto à questão da proibição para entendermos os limitesvisualizados pelos informantes, estes manifestaram em 88,2% doscasos, que a escola proíbe algumas coisas e permite outras, em 8,0%proíbe o ahmo de fazer tudo e, apenas 2,4% afirmaram que a escolaé totalmemíe permissiva.

Embora as respostas dos alunos confirmem que a disciplina desuas escolas é equilibrada —permitindo algumas coisas e proibindooutras—, quando inquiridos a respeito da disciplina que almejam emsuas escolas, atribuíram os seguintes valores: 52,9% desejam que adisciplina seja mais rígida; 37,7% que seja mantida como está; e 7,7%que sejamenos rígida. Este posicionamento dos informantes é coerentecom as respostas dos que descrevem que não gostam de bagunçaem suas escolas. Em certa medida, talvez, este dado esteja apontandopara a crise de autoridade que vive a escola hoje. Pode-se sugerir,diante destes percentuais, que os alunos desejam que a escola dêa eles melhores referências de orientação de conduta.

Com a intenção de completar as representações que os alunosfazem da escola de hoje, e de seu' 'dever ser", o questionário levantoujunto aos alunos as seguintes questões; que disciplinas eles mais

54

gostavam; quais as que menos gostavam; e quais eram as maisimportantes. Este conjunto de questões tinha por intenção, levantar opapel atribuído às disciplinas escolares, segundo o cálculo entresatisfação, rejeição e importância. Vejamos a seguir, na tabela, osresultados das respostas múltiplas válidas:

DISCLIPLINA

Educação física

Matemática

Português

Ciências

Inglês

Geografia

História

Francês

Ed. musical

Química

Outras

TOTAL

MAIS GOSTAM

N« Ord

382 1°

318 2°

315 3°

244 4°

204 5°

203 6°

140 7°

104 8°

83 9°

40 10°

23 11°

2056

MENOS GOSTAM

N° Orrf

54 10°

260 2°

196 7°

203 5°

203 6°

213 3°

344 1°

153 8°

217 4°

78 9°

17 11°

1938

MAIS IMPORT.

N° Ord

129 7°

437 1°

432 2°

242 3°

153 6°

212 5°

227 4°

58 8°

11

49 90

10 10°

1949

Diante das respostas pode-se afirmar, pela primeira colunadestacando as seis disciplinas mais votadas, que os informantesdemonstram satisfação em realizar por ordem de preferência as atividadesde: educação física (3 82), matemática (318), português (315), ciências(244), inglês (204) e geografia (203). Na segunda coluna, ondeindicam as disciplinas que "gostam menos", ou melhor, nãopossuem satisfação em realizá-las, temos os seguintes valores: história(344),matemática(260), ed. musical(217),geografia (213), ciências

55

Page 33: Educacao Fisica A Arte da Mediação - Hugo Lovisolo

O

(203) e inglês (203). Na terceira coluna, onde se verifica aimportância atribuída às disciplinas, os resultados são os seguintes:matemática (437), português (432), ciências (242) , história (227),geografia (212) e inglês (153).

l • Que conclusões pode-se observar, a partir da rotatividadee aproximação dos valores, entre as disciplinas mais votadas quantoa utilidade, satisfação ou insatisfação?

A educação física obtém o primeiro lugar entre as disciplinasque os alunos mais gostam, entretanto cai para sétimo lugar emimportância. Os alunos distinguem, portanto, entre o gostar, o prazer,que uma disciplina pode lhes proporcionar e a utilidade que as outrasdisciplinas podem ter para suas vidas no mundo do trabalho.

Matemática e português são as disciplinas mais valorizadas ernordem de importância e, também, na ordem de gosto dos alunos.Entretanto,'em termos de "gostar menos" a primeira disciplina"(matemática) ocupa o segundo lugar e a segunda (português), osétimo. Estas diferenças parecem indicar: (a) importância concedidaa ambas na escola e na sociedade; (b) as dificuldades em torno doaprendizado de matemática, que a íevam a ocupar o segundo lugardentre as disciplinas que os alunos menos gostam; e (c) menoresdificuldades dos alunos com português que cai para sétimo lugar nomesmo eixo. A matemática apresentou, mais ou menos, um índiceequilibrado entre o prazer e o desprazer que proporciona na comunidad eescolar.

Ciências ocupa o terceiro lugar na ordem de importância,quarto na de "gostar mais", e quinto nade "gostar menos". Há,assim, uma grande correlação entre as três colunas.

Um caso significativo é o da disciplina história, que obtéma primeira posição entre as disciplinas que os alunos''gostam menos* \quarto em lugar de "importância", e sétimo entre as disciplinas queos alunos1'mais gostam". Os dados parecem indicar uma importânciaintermediária, baixo gosto e altíssima rejeição. Observaçõessemelhantes podem ser realizadas em relação a geografia.

Como comentário geral deve-se insistir na importância atribuídaàs disciplinas heurísticas e científicas, e o menor valor atribuído àsdisciplinas humanísticas.

56

3.Da educação física na escola

a) O ponto de vista dos responsáveis

Importância da educação física e suas atividades

Os responsáveis avaliam como importante a educação física naescola (93,3%). Somente 2,8% a consideram não importante e 3,7%declaram não ter opinião formada.

O conhecimento por parte dos responsáveis, das atividadesde educação física, é um dado significativo para se entender a própriaavaliação da importância desta disciplina. As respostas foram asseguintes:

TIPO DE ATIVIDADE

Ginástica

Corrida

Futebol

Voleibol

Handebol

G. Olímpica

Basquetebol

Dança

Outros

Sem resposta

TOTAL

262

183 -.

121

105

' 73

11 . * • -

-123

41

27

17

963 .

%

27,2

'19,0

\ 12,6

• 10,9

,7,6

" ' 1,1

12,8

4,2

2,8

' L»

100,0

57

Page 34: Educacao Fisica A Arte da Mediação - Hugo Lovisolo

Nas atividades citadas pelos responsáveis predominam a ginástica(27,2%) e as atividades em equipes, que representam 43,9% do total. O baixoíndice de "sem resposta" indica um conhecimento, real ou imaginado, dasatividades praticadas pelas crianças. Claramente, as atividades citadasremetem à instalações simples, realizadas em quadras polivalentes, ou mesmonos pátios escolares.

Observa-se que as atividades em equipe (futebol, basquetebol, handebole voleibol) são as dominantes em nosso meio cultural esportivo. Entretanto,os percentuais mencionados se distanciam dos existentes na sociedade onde,por exemplo, o futebol domina amplamente. Este dado pode apontar, portanto,o esforço dos professores em, respeitando as práticas existentes, diversificarema experiência esportiva dos alunos ainda com a limitação dos meios existentes.

Do aprendizado e da utilidade

A questão seguinte pretendia caracterizar o aprendizado que aeducação física escolar teria para as crianças segundo os repensáveis, isto é,o que eles pensavam que as crianças aprendiam nas aulas de educação física.Observa-se as seguintes respostas:

APRENDE

Ser solidário

Ser ele mesmo

Não ter medo

Competir

Descontrair

Praticar esporte

Sem resposta

TOTAL

103

132

126

303

160

320

16

1160

%

8,9

H,4

10,8

26,2

13,8

27,5

1,4

100,0

58

As respostas salientam dominantemente valores sociaise, embora não sejam formuladas a partir de um eixo único, sãocoerentes com o tipo de atividade realizada em educaçãofísica. Observa-se que "praticar esporte" (27,5%) e"competir" (26,2%) são as respostas mais freqüentes. Esteaprendizado está estritamente relacionado com as atividadesesportivas em equipes. Desperta atenção o fato de que outrosvalores sociais, além do aprendizado da competição, tenhampercentuais significativos de respostas, como nos casos deaprender a ser "solidário*' (8,9%), "ele mesmo" (11,4%),"não ter medo" (10,8%) e "descontrair" (13,8%). Semdúvidas, estes valores têm sido defendidos como objetivosespecíficos da educação física em sua tradição. As duasprimeiras respostas tornaram-se, por assim dize-lo, tradição daeducação física, embora as críticas progressistas insistam sobrea negatividade de alguns destes valores, especialmente, dovalor da "competição''. Nada impossibilita contudoconsiderar esses valores em oposição, como igualmentevaliosos, sob o ponto de vista dos atores, pois a vidapareceria; exigir tanto a competitividade, quanto á solídaridadeou, pelo menos, a dominância de uma ou outra capacidadenas diversas esferas da atividade social. Sob este ponto de vistaa atividade de educação física deveria se caracterizar, porexemplo, pela conciliação de valores como ''competitividade"e "solidariedade". , , . * "

Em uma outra questão pretendia-se atingir o valor deutilidade da educação física escolar; Partiu-se do suposto deque, o que se' aprende e sua utilidade, são coisas distintas eque esta intuição encontra-se bastante difundida na sociedade.A utilidade foi representada pela questão "para que serve aeducação física na escola? Observemos a distribuição dasrespostas: .

59

Page 35: Educacao Fisica A Arte da Mediação - Hugo Lovisolo

AA f O l B

UTILIDADE

Preparar atletas

Desenvolver o corpo

Aprender a jogar os esportes

Ter mais saúde

Gastar as energias das crianças

Descansar a cabeça

Disciplinar as crianças

Perder o medo

Recrear

Outros

Sem resposta

TOTAL

98

246

190

256

109

122

79

43

83

2

11

1239

%

7,9

19,9

15,3

20,8

8,8

9,8

6,4

3,5

6,7

0,1

0,8

100,0

As respostas resumem o conjunto das utilidades atribuídasà educação física. Observa-se que as derivadas dos enfoquesbiomédicos (desenvolver o corpo, 19,9% e ter mais saúde 20,8%)alcançam os maiores percentuais nas respostas. O objetivo tleaprender os esportes ; está imediatamente atrás com 15,3% e aformação de atletas não ocupa um lugar relevante. De fato, conceitostradicionais que atribuem à educação física, a capacidade de gastar asenergias excedentes da criança (8,8%), e descansar a cabeça dasatividades intelectuais (9,8%), superam ao objetivo de formar atletas.Um objetivo mais vinculado a escola nova como a recreação aparececom baixa participação (6,7%), se comparado com os mais tradicionais,e com a participação semelhante aos objetivos das pedagogias queenfatizavam o papel disciplinador da atividade física. Por certo, o gastode energias da criança também poderia ser entendido como um

60

elemento que contribui com a disciplina escolar, e a recreação seaproxima às atividades que permitem "descansar a cabeça".

É importante salientar que quando caracterizou-se uma respostacomo tradicional, não estamos dizendo que seja inadequada ou poucovaliosa, nem que esteja superada pelo processo histórico-social.

A classificação possui a intenção de contrastar as ideologiasdos responsáveis, e mesmo das crianças, com as correntes pedagógicase com as ideologias que os especialistas elaboram e fazem circular.Observa-se, por exemplo, que o atendimento pediátrico numa escolade classe média poderia ser vivido pelos responsáveis como umaintromissão na forma com que eles cuidam de suas crianças. Aescolha do pediatra é muito importante e se rodeia do levantamentode informações em certos segmentos da classe média. Entretanto, oatendimento pediátrico em muitas escolas públicas, na maioria dasvezes, pode ser interpretado muito positivamente pelos responsáveisdas crianças, pois eles muito mal conseguem um pediatra e geralmentecom baixíssima possibilidade de escolha. Portanto, é lógico que asatividades que possam teoricamente contribuir para a saúde destascrianças sejam valorizadas no contexto .das camadas populares.

A obrigatoriedade da educação física

E sabido que as disciplinas passam a formar parte do currículoescolar, a partir de elaborações dos especialistas e, por vezes, porpressão direta dos mesmos. Por exemplo, no caso da sociologia,recentemente no Estado do Rio de Janeiro, onde os sociólogospressionaram os parlamentares para conseguir sua inclusão nocurrículo de 2° Grau. Depraxea "clientela" do sistema educacionalnão é considerada quando se realiza a incorporação de novas disciplinasem caráter obrigatório. A obrigatoriedade resulta, assim, do produtoda insistência dos especialistas e, raramente, de consultas e debatesdemocráticos. ..

Foi formulada aos responsáveis a questão sobre aobrigatoriedade da educação física na escola. Apesar de mais de90% considerarem esta disciplina escolar importante, 30% dos

61

Page 36: Educacao Fisica A Arte da Mediação - Hugo Lovisolo

entrevistados consideraram que deveria ser optativa. Emboraminoritário, este percentual é significativo. Se for considerado que osistema escolar brasileiro não dá praticamente opções de escolha aosseus alunos, as disciplinas são todas obrigatórias, poder-se-ia pensarna possibilidade de experimentar a optatividade da educação física,num contexto de disciplinas alternativas.

Com o intuito de esclarecer a posição dos responsáveis, emrelação à educação física, apresentou-se algumas alternativas para queestes se posicionassem. Sendo assim as escolas deveriam:

1. Ter mais aulas de educação física;2. Não ter educação física;3. Ter fora do horário escolar mais aulas de educação

física;4. Ter mais esporte;5. Ter mais ginástica;6. Outros.Observemos as respostas diante destas alternativas:

OPÇÃO

12

3

4 e 5

6

SR

TOTAL

289

19

138

421

26

13

906

%

31,9

2,0

15,2

46,6

2,9

1,4100,0

Osdadosindicamqueaescolhapelaoptatividadenãosignificaumanegação da educação física, pois somente 2% manifestaram esta opinião.Naverdadeos responsáveis reivindicammaisgnásticaeesporteem46,6%dos casos, e mais aulas de educação física em 31,9% das respostas. Alémdisto, uma boa parcela, 15,2%, reivindicou mais aulas de educação físicafora do horário escolar. A opção talvez reflita uma velha sabedoria que

indicaque,oqueéatrativonão precisa ser obrigatório. Em outro sentidopoder-se-ia interpretar que há um certo temor de que a educação física naescola, talvez, retire tempo de outras disciplinas consideradas como maisimportantes ou meramente incumbência exclusiva da escola. Caso este,quenãoseriaodosesportes,nemodaeducaçãofísicapoisexistiriamoutrasalternativas de prática como os dados a seguir parecem indicar.

As atividades esportivas fora da escola

Segundo os responsáveis, 61% das crianças praticam algumesporte regularmente fora da escola e 37% não realizam atividades. Emverdade, onúmerodos quedeclarampraticarregularmentealgum esporteé elevado, se levarmos em conta as deficiências de instalações eequipamentos esportivos em nossa cidade e as condições de vida dosmembros de nossa amostra. Importa, conseqüentemente, observar quaisos tipos de esportes praticado:

ESPORTE PRATICADO

FutebolGinásticaVoleibol

DançaNataçãoBasquetebol

Atletismo

HandebolQueimado

Karatê

MusculaçãoG. Olímpica

OutrosTOTAL

122."', 66

63503620131210987

10426

%

28,715,514,8

11,88,54,73,02,82,3

2,11,91,62,3

100,0

63

Page 37: Educacao Fisica A Arte da Mediação - Hugo Lovisolo

Pode-se separar as atividades em dois grandes grupos: (a) asatividades cujas possibilidades de serem realizadas sem instalaç õesespeciaise sem orientação profissional são grandes como: futebol, queimado,handebol, voleibol e basquetebol; (b) as atividades cujas possibilidades deserem realizadas com equipamentos ou orientação profissional são altas:como natação, ginástica, dança, atletismo, karatèemusculação. Somadosospercentuais do segundo grupo, estes representam quase a metade do total(44,4%). Este valor parece indicar uma grande valorização da atividadecorporal, ao ponto de se investir algum tipo de recurso monetário em suarealização.

Educação física e esporte

Uma questão que interessava era saber se as pessoas realizam, ounão^gumtipodedistinçãoentreeducaçãofísicaeesportee^mcasopositivo,quais os significados dados as mesmas. Com este objetivo perguntou-seaos informantes se percebiam, ou não, alguma diferença entre os termos eporquê?

Do total dos responsáveis 54% (235) não encontravam diferençaentre educação física e esporte, e 40% (173) declararam ser atividadesdiferentes, sendo que o restante, 6%, não responderam à questão. Observe-seprimeiro as razões dosqueanrrnarnaigualdadee, depois, às daqueles quedeclaram ser atividades diferentes.

A igualdade baseia-se nas seguintes razões para os responsáveis:

MOTIVO

Praticam esporte

Treinam o corpo

Desenvolvem a mente

São lazer

Preparam atletasOutros

Sem justificar

TOTAL

N°144

14

7

2

1

1

66

235

%61,7

5,92,80,80,40,4

28,0

100,0

O eixo a partir do qual se igualam educação física e esporteé o da prática das atividades esportivas em quase 62% dasrespostas. Há, portanto, uma forte concentração das respostasentre os que afirmam não haver diferenças entre essas atividades.Observamos que a igualdade se estabelece a partir daconstatação daquilo que, dominantemente, se faz na educaçãofísica e, em especial, de suas práticas na escola como acima já foiapresentado.

A distribuição das respostas segue outro padrãoquando os informantes afirmam haver diferença entre ambas asatividades. Assim, a educação física se diferencia do esporte pelosseguintes aspectos:

MOTIVO

Saúde

Pré-requisito

Generaliza

Exercício físico

Desenvol. fisiológico

Disciplinadora

Obrigatório

Desenvolve corpo e mente

Formação ' •

Não desenvolve

Mais cansativa

Para meninas

Não é competitiva

Outros

Sem Justificar

.TOTAL

35

20

16

11

. • 1010 , - ,

8 .

' . 7

4

4

2

1

1

1

381 68

65

Page 38: Educacao Fisica A Arte da Mediação - Hugo Lovisolo

Duas observações se impõem: (a) não existe um padrãodominante na definição de educação física. As respostas são muitas.Apenas *4 saúde", como objetivo da educação física, obtém um percentualsignificativo(21%); (b)aespecificidadedaeducaçãofísicaéconstruída,dominantemente, pela atribuição de objetivos (e não pela observaçãoda prática, como no caso que se afirma a igualdade pela referênciaà prática dos esportes) e por seus aspectos formais e escolares, comoa obrigatoriedade, por exemplo.

Este duplo padrão das respostas continua presente quando osque afirmam a diferença^ definem o esporte ao invés da educaçãofísica. Observemos as respostas:

MOTIVO

Lazer

Competição

Limitado

Jogo

Mais puxado ;

Depende da EF

Dinheiro

Mais completo

Desen. a mente

Para meninos

Variado

Outros

Sem Justificativa

TOTAL

31

24

15

11

07

06

05

05

03

02

02

05

57

173

66

Comparando as respostas, pode-se afirmar que: (a) quandoos responsáveis afirmam não haver diferença, o fazem sobre a basede observar a prática dominante em ambas as atividades; (b)quando ao contrário afirmam a diferença, nos remetem a objetivos,ou supostos, sobre a finalidade e os efeitos da educação físicae do esporte. De fato, a dificuldade de sua distinção fica clara nadispersão das razões dadas para justificá-la. A distinção pressupõealgum conhecimento sobre os discursos que a fundamente, pois sãonestes que se estabelecem as diferenças de objetivos, ou supostos,de um e outro tipo de ação.

Esta problemática deve preocupar aos que defendem umadistinção entre educação física e esporte, pois a mesma, de possuiralgum valor no plano das práticas escolares, não foi suficientementecompreendida pelos atores sociais que, conseqüentemente, nãoconseguem expressar a diferença com algum grau de consenso.Entretanto, a não distinção pode obrigar aos que a defendem arepensar os motivos —em especial, os derivados das lutas peladistinção entre os especialistas, no sentido utilizado por PierreBourdieu— que os levam a .elaborar argumentos a, favor destadistinção. , '

b) O ponto de vista dos alunos

A importância da educação física é suas atividades

Os alunos avaliam a educação física na escola como umadisciplina importante. Das 703 respostas, 86,1% dos informantesa consideram importante, 4,5% não lhe atribuem importância,8,5% não possuem opinião formada e 0,9% não responderam. Estespercentuais levam a acreditar que os alunos atribuem valor àsatividades corporais ou físicas na escola.

As atividades corporais que são mencionadas e dão sentidoao valor atribuído pelos alunos, são as seguintes:

67

Page 39: Educacao Fisica A Arte da Mediação - Hugo Lovisolo

ATIVIDADES

Corrida

Ginástica

Basquetebol

Futebol

Voleibol

Handebol

Dança

Atletismo

Queimado

Outras

Sem Resposta

TOTAL

407

386

231

230

181

118

53

30

19

25

20

1700

%

23,96

22,70

13,58

13,52

10,56

6,94

3,12

1,76

1,12

1,48

1,18

100,0

As atividades citadas pelos alunos indicam que o currículoda educação física desenvolvido nas escolas possui um perfil voltadopara a aptidão física (ginástica 22,70% e corrida 23,95%) e para oensino das modalidades esportivas coletivas, as mais populares,(Basquetebol 13,58%, Futebol 13,52%, Voleibol 10,65% e Handebol6,94%).

De fato, pode-se observar que as atividades desenvolvidas naescola estão de acordo com as atividades corporais mais valorizadasem nosso meio cultural. Assim, a ginástica e a corrida sãorepresentadas como os instrumentos mais comuns de manutenção daestética corporal e da saúde. Tais atividades, se somadas, perfazem46,65% das respostas múltiplas válidas. Já os esportes coletivos sãovalorizados em nossa sociedade como elementos de construção de

68

identidade e, principalmente, como meio de lazer. A soma dasmodalidades esportivas coletivas totalizam 44,69% das respostas.

Uma conclusão à qual se pode chegar, a partir dosapresentados, é que o currículo da educação física caracteriza-se porassumir a função de ensinar e socializar os alunos nas atividadescorporais culturalmente valorizadas e, talvez, na maioria das vezes,apenas reproduzamna escolaaquilo quejá é socialmente disseminado.,

Notamos que as atividades citadas acima reproduzem o sensocomum, pois os informantes quando inquiridos a respeito do quedesejariam realizar nas aulas de educação física fazem referência àsmesmas atividades. Cabe destacar que a natação recebeu 355 das 1254respostas múltiplas válidas. O desejo dos alunos em realizar nataçãoem suas escolas se contrapõe a ausènciade instalações apropriadas namaioria das escolas da Rede Pública e, talvez, represente o desejo destatus social que esta atividade possui em nossa sociedade.

Do aprendizado e da utilidade

Uma questão que constava no questionário referia-se aograu de satisfação dos alunos em relação às atividades que realizavamna educação física escolar. As respostas apresentaram-se da seguinteforma: 88,1% afirmaram que "gostam" das atividades querealizam; .8,65% "não gostam"; é 3,25% não possuem opiniãoformada. , • - -- '

Este índice de satisfação, se contraposto à idéia de crise einsatisfação apontada pelos intelectuaisque pensam a educação físicaescolar, solicita que se repense e se investigue mais sistematicamenteo fenômeno "aula de educação física". Apesar das limitações eprecariedades que todos sabemos que vive o sistema educacionalbrasileiro, talvez se esteja absolutizando as representações sobre aescola. Em conseqüência, não estamos conseguindo realizaranálises e recortes sobre os problemas mais significativos da educaçãoformal. ' ., ' ' .. ' ..

69

Page 40: Educacao Fisica A Arte da Mediação - Hugo Lovisolo

A utilidade que os alunos vinculam à educação física foicaptada através de duas questões. Pode-se constatar que estasquestões diferenciavam-se em níveis de abrangência, pois umadestas possuía um caráter mais universal e a outra um caráter maispessoal.e particular. Observem as respostas das utilidades atribuídasa educação física:

UTILIDADE

Desenvolver o corpo e a força

Ter mais saúde

Praticar esportes

Aprender a competir

Ficar com o corpo mais bonito

Divertir

Perder o medo

Ser você mesmo

Melhorar a nota

Quebra a monotonia da sala de aula

Ser descontraída

Ser solidário com os colegas

Todos os objetivos

Nada

Sem Resposta

TOTAL

353

251

234

196

176

115

95

89

88

48

35

29

7

3

8

1727

%

20,45

14,54

13,56

11,35

10,20

6,66

5,51

5,16

5,09

2,77

2,02

1,67

0,40

0,17

0,48

100,0

70

O conjunto das respostas demarca o perfil das utilidadesvinculadas ao ensino da educação física. Os objetivos de caráterbiomédico atingem os maiores percentuais das respostas(desenvolver o corpo e a força 20,45%; e ter mais saúde 14,54%).A estética corporal obteve um significativo percentual (ficar como corpo mais bonito 10,20%). Pode-se dizer que os valoresbiomédicos e os valores estéticosvinculados ao corpo, aparecemna maioria das vezes, unidos nas representações corporais em nossasociedade.

Outro objetivo atribuído à educação física se vincula aodesenvolvimento das práticas esportivas. Os informantesdestinaram a ela um percentual 13,56%. "Aprender a competir" foioutra função atribuída a esta disciplina (l 1,35%). Observa-se queo valor da competição na educação física escolar está quase sempreassociado à prática de jogos e esportes. Assim, os objetivos daprática esportiva e da competição —no contexto das respostas dosalunos— podem ser vistos como faces de uma mesma moeda.

Os objetivos de caráter psicológico também auxiliam atraçar o perfil da educação física na escola. Os informantes atribuemcomo funções desta disciplina levar o aluno a "perder o medo"(5,51%), a "ser ele mesmo" (5,16%) e "ser descontraído"(2,02%). De fato, em nossa sociedade há uma tendênciapsicologizante na orientação e interpretação das condutas dosindivíduos. A escola e a educação física refletem esta tendência queaparece também entre as representações dos alunos.

As respostas em relação a pergunta que intencionava captaros objetivos de caráter mais pessoal e particular atribuídos pelosinformantes à educação física escolar, obteve o seguinte perfil:

71

Page 41: Educacao Fisica A Arte da Mediação - Hugo Lovisolo

OBJETIVO

Ter mais saúde

Desenvolver o corpo e ficar mais forte

Praticar esportes

Ficar com o corpo mais bonito

Melhorar a nota

Divertir-se com os colegas

Ser um atleta

Perder o medo

Ser mais descontraído

Outros

Sem opinião

TOTAL

261

256

251

204

128

123

112

89

69

39

21

1553

%

16,83

16,53

16,21

13,17

8,25

7,94

7,23

5,54

4,45

2,60

1,35

100,0

Embora existam variações no perfil das respostas, repete-se o padrão estabelecido e analisado na resposta anterior. Aqui,também, dominam os objetivos de desenvolver o corpo e a força,gerar saúde, praticar esportes e os de caráter psicológico.

A obrigatoriedade da educação física

A educação física enquanto componente curricular no Brasilsempre conviveu com o problema da legitimidade. O reflexo destaerise está marcado, em sua própria história, com osfamosos Decretos,Regulamentos e Pareceres (desde Rui Barbosa, Getúlio Vargas até aDitadura Militar de 64) que, por força da lei, pretendiam torná-la parteintegrante da cultura do brasileiro. Tais intenções de ordem legal

72

estão sempre atreladas ao caráter utilitário das atividades corporaisna formação do homem brasileiro. Além desta tradição, a questãoda obrigatoriedade esbarra sempre no lugar comum da pressão dosespecialistas, em conquistar e regulamentar "fatias" do mercado detrabalho. Assim, por um lado, podemos encontrar nos políticos eideólogos da educação e da educação física a intenção de intervirlegislando na cultura corporal da população.

Observe-se que tais argumentos (dos dirigentes, dos intelectuaise dos especialistas) não levam em conta a opinião da "clientela1'atendida, como já foi 'comentado anteriormente. Por esta razão,considerou-se necessário perguntar aos alunos a respeito daobrigatoriedade, ou optatividade, da educação física na escola. Osalunos posicionaram-se da seguinte forma:

OPINIÃO

Obrigatória

Optativa

Sem resposta

TOTAL

380

306

: 17 ' ;. 703

%

54,1

43,5

2,4

100,0

Nota-se que 54,1% dos alunos acreditam que a disciplina deveser de caráter obrigatório e 43,5% responderam que deve ser optativa.A diferença percentual entre as respostas que indicam a obrigatoriedadee a optatividade, é de apenas 10,6%, o que pode significar que nãohá consenso entre os informantes a respeito desta questão.

Podemos afirmar, todavia, que os alunos distinguem comclareza a importância, a relevância da educação física, de suaobrigatoriedade. Como já foi apresentado, 86,1% dos alunos julgamimportante ter educação física na escola. Ao compararmos este dadoaos 43,5% que acreditam que a prática desta disciplina deve seroptativa, o que é um percentual significativo, chegaremos à conclusãoque os alunos distinguem que importância e obrigatoriedade são

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Page 42: Educacao Fisica A Arte da Mediação - Hugo Lovisolo

"coisas diferentes*'. Por certo, que tal posição contrariaria atradição dos políticos e intelectuais que vinculam, no campo de suasdecisões e idéias, importância à obrigatoriedade.

As atividades corporais f ora da escola

A importância das atividades corporais se destaca ainda maisquando se observa o perfil de sua prática fora da escola. Vejamos asatividades:

ATIVIDADES

Futebol

Ginástica

Voleibol

Dança

Natação

Basquetebol

Atletismo

Handebol

Judô-Karatê

Gin. Olímpica

Brincar

Musculação

Ativ. Marítimas

Patins

Tênis

Nenhuma

TOTAL

230

200

147

107

78

65

54

50

50

27

25

22

7

7

2

119

1190

%

49,33

16,81

12,36

9,00

6,56

5,47

4,54

4,20

4,20

2,27

2,10

1,84

0,58

0,58

0,16

10,00

100,0

74

*Não responderam a esta questão 51 alunos, isto é, 7,25%da amostra.

A diversificação e distribuição das atividades acima indicamque existem variadas opções de atividades corporais em nossasociedade. Apesar disto, o futebol, a ginástica, o voleibol e a dança,foram as atividades que receberam os maiores percentuais. Uma dasexplicações possíveis seria o grau de tradição que estas atividadesapresentam no contexto cultural. Os 19,33% dados ao futebol, o maisalto percentual, não surpreenderia nenhum brasileiro pelo significadoque este esporte atingiu em nossa sociedade. O futebol pode serconsiderado como um dos elementos culturais que dá coerência aidentidade do brasileiro (cf. Soares, 1990). Os 16,81% que recebeu aginástica confere com a tradição desta atividade na civilizaçãoocidental. A dança (9,00%) atividade que atende em sua maioriao sexo feminino, também pode ser explicada por sua tradição.Entretanto, os 12,36% conferidos ao vôlei pode ter uma explicaçãodiferente, na medida em que esta atividade ganhou popularidade noBrasil a partir do início da década de oitenta, por sua massificaçãoe pelos resultados significativos no panorama rriuridial que o Brasilobteve neste esporte. Enfim, pode-se afirmar que os alunosreproduzem basicamente as atividades que são valorizadasculturalmente. Nota-se, poroutro lado, que a sociedade atual apresentadiversas possibilidades de atividades corporais.

Educação Física e esporte

Diante da questão da igualdade ou diferença entre educaçãofísica e esporte, os dados não variam significativamente quando osinterrogados são os alunos, ao invés dos responsáveis; 47,5% dosalunos respondem que educação física e esporte são a mesma coisa. Emsegundo lugar, um alto percentual, 34,7%, deixaram a questão semresposta e 12,8% declararam haver diferenças, entretanto, nãoexplicitaram quais são. Assim, apenas 5% dos alunos encontraramalguma diferença e conseguiram atribuir-lhe algum sentido.

Quando os alunos que percebem as diferenças conseguem

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Page 43: Educacao Fisica A Arte da Mediação - Hugo Lovisolo

atribuir sentido a esta resposta definem a educação física como: sendoobrigatória, especializada, vinculada à ginástica e à formação docorpo. Quando tomam o esporte como referência, afirmam que esteé livre, competitivo, tem relação com a prática e o jogo e é mais"pesado" do que a educação física. O baixo número de respostas nosimpede de aprofundar na análise as distinções, embora a formalidadeda educação física (obrigatoriedade, formação do corpo, ginástica,etc.) se contraponha à informalidade do esporte (livre, jogo, etc.) e aseu caráter competitivo.

4. Conclusão

Neste último tópico pretende-se comparar algumas das respostasdos responsáveis com a dos alunos, quando passíveis dessa operação.

1. O motivo da escolha da escola foi respondido apenaspelos responsáveis. Destaca-se a qualidade (36,6%); a proximidade(27,1%); e a gratuidade (27,1%) como motivos da escolha. Amenção da qualidade é significativa, embora superada quandosomamos às outras duas razões de caráter pragmático ou utilitário.

2. A avaliação do ensino foi considerada ''regular"por 73% dos responsáveis e 66,9% dos alunos.

3. Em relação ao "dever ser" da escola, 71% dosresponsáveis e 56,2% dos alunos declararam que o ensino deveriaser "mais puxado". Além disso, 36,7% dos alunos declararam quedeveria permanecer como está e somente 6,1% que deveria ser* 'menos puxado''. Os valores indicam a dominância de uma procurapor ensino "forte" em conteúdos e, em contrapartida, que o ensinoatual estaria aquém das expectativas dos responsáveis e dos alunos.Domina, por certo, a imagem de uma escola de ensino tradicional.Isto se confirma com os objetivos atribuídos à escola, na visão dosresponsáveisjáque consideram, como função desta, preparar, instruire disciplinar a criança (70,6%). Ainda que predomine a visãotradicional, é importante destacar que, também são apontados comoobjetivos da escola o "desenvolvimento da criança" (14,96%) ea "mudança da sociedade" (l 1,66%). Estes dados permitem concluir

76

que o discurso das pedagogias modernas e progressistas está sendoincorporado pelos responsáveis. Devemos lembrar que as propostaspedagógicas de Paulo Freire alcançaram no país largos segmentos daopinião pública e dos setores populares, por meio do trabalhoeclesial orientado pela Teologia da Libertação.

4. As questões sobre a disciplina reforçam a imagemacima exposta. Embora a maioria dos responsáveis (61,8%) achema escola rígida; 27,8% pouco rígida; e 8,5% muito rígida, quandoconfrontados com o dever ser da disciplina escolar, 59% declaramque deveria ser mais rígida. Entre os alunos 88,2% acreditam que adisciplina atual é equilibrada. Contudo, em relação ao dever ser, 52,9%declaram que deve ser mais rígida. Tanto os responsáveis quanto osalunos parecem estar solicitando delimitações e referências disciplinaresmais claras, por parte da escola. De fato, a disciplina parece ser umelemento valorizado da dinâmica escolar, tanto por parte dosresponsáveis quanto dos alunos.

5. Destaca-se que para os alunos a bagunça e a sujeirasão características da escola que eles rejeitam. Ambascaracterísticas podem ser consideradas como elementos antiordem ouantidisciplinar em nossa cultura. As relações humanas (professores,amigos e colegas) e as situações que as possibilitam são dimensõesque os alunos valorizam na escola,

6. A ordem de importância atribuída às disciplinasque figuram no currículo escolar coincidem entre responsáveis ealunos. Os informantes valorizam em primeiro plano as disciplinas decaráter heurístico, como Matemática e . português pois sãodisciplinas que se constituem em "linguagens" básicas. Em segundoplano, destacam-se as disciplinas de caráter científico e humanista,como a ciências, história e geografia. A educação física e as demaisdisciplinas aparecem em terceiro plano. A atribuição de valoresdiferenciados às disciplinas reforçam a interpretação de que a escolaidealizada pelos informantes se aproxima mais da concepção tradicionalde ensino. ;

7. Os alunos quando levados a ordenar as disciplinaspor preferência ou gosto, apontam a seguinte ordem decrescente:

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Page 44: Educacao Fisica A Arte da Mediação - Hugo Lovisolo

educação física, matemática, português, ciências, inglês, geografia,história, francês, educação musical e química. Tal ordem desgosto"elaborada pelos alunos apresenta apenas uma diferença básica seconfrontada com a * 'importância'' atribuída às disciplinas. A educaçãofísica representa a disciplina que mais gostam do currículo escolar.Este dado possibilita concluir que os alunos distingem "importância*'ou ''utilidade" de "gosto" ou "prazer". De fato, parte importantedo discurso pedagógico procura, com enormes dificuldades paraencontrá-las, formas de ensino que permitam conciliar importânciae prazer ou gosto.

8. Os informantes quando questionados a respeitoda importância da educação física na escola atribuíram os seguintespercentuais: 93,3% dos responsáveis e 81,1% dos alunos, julgam estadisciplina importante. Entretanto, os alunos ao se manifestaremquanto à participação obrigatória, ou optativa, apresentarampercentuais aproximadamente divididos. Consideram que esta disciplinadeve ser optativa 43,5% dos alunos e 30% dos responsáveis.Embora estes números não sejam majoritários, de qualquer maneira,indicam que há uma clara distinção entre a importância da disciplinae sua obrigatoriedade.

9. Os valores ou objetivos sociais que os responsáveisatribuem à educação física se vinculam à socialização com o esportee ao desenvolvimento de atitudes psicológicas e sociais positivas. Osalunos vinculam ao ensino da educação física os objetivos de caráterbiomédico. Os pbjetivos estéticos ocupam o segundo lugar e porúltimo objetivos psicológicos.

10. A distinção entre educação física e esporte obtevegraus relativos de reconhecimento, caso ela exista de fato. Entre osresponsáveis, apenas 40% declararam que há distinção entre os ditosconceitos ou atividades. Entretanto, 54% não encontraram diferençaentre os termos. Dos alunos, 47,5% responderam que ambas atividadessão a mesma coisa e 34,7% deixaram a questão sem responder. Apenas12,8% declararam haver diferenças, embora, a maioria não explicitasseas diferenças. Somente 5% dos alunos atribuíram algum sentido adistinção. Os dados indicam que esta distinção está fracamente

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articulada e que os especialistas devem tanto repensar as formas quetransmitem a diferença quanto o significado mais amplo da mesma,isto é, fora da dinâmica interna ao campo dos especialistas.

1 São co-atutores deste Capítulo Antônio Jorge G. Soares e Maristela Daviddos Santos. A pesquisa foi realizada no Mestrado de Educação Física com apoio doCNPq e sob minha coordenação.

2 Cf. Lovisolo, H. e Wrobel, V. 1985.3 Cf. Lovisolo, H. 1990/b. -4Cf, Lovisolo 1987.!Cf. Nicolaci-Da-Costa (1987).

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Capítulo 3Regras, esportes capitalismo:obrigatoriedade e escolha na

educação física escolar.

81

Page 46: Educacao Fisica A Arte da Mediação - Hugo Lovisolo

A crítica das regras

No campo da educação física, foi formulada e defendida nòViBrasil uma concepção das regras esportivas que considero teoricamenteerrada e socialmente negativa, sobretudo quando lida a partir dasvontades de formação de sistemas e políticas democráticas, presentesem largos segmentos da sociedade. Embora alguns dos formuladorese defensores de tal concepção tenham, posteriormente, revisto-ascriticamente, as revisões não parecem ter ganho um caráter tão públicoe notório quanto a concepção negativa originalmente desenvolvida. Eentão a difusão de uma concepção errônea o motivo das reflexões aquiensaiadas e não apenas o erro.

Acredita-se que o erro, dentro das regras do jogo científico, éautocorregivel. Entretanto, quando em nome dá ciência se difunde umerro, e sua crítica e correção pública externa não é suficientementeampla e forte, em verdade se está semeando preconceitos. Umpreconceito é urna descrição ou explicação que esqueceu suas razõesde existência, quer as argumentativas elaboradas no seio de umatradição, quer as fatuais ou ambas. Nada mais distante da éticacientífica do que semear preconceitos, embora essa ação seja maisfreqüente do que o desejado. É este o fato que nos leva a escrever,reitero, e não o mero erro.,Um indicador da difusão é a enunciação daconcepção em pauta pelos alunos de graduação e pós-graduação emeducação física, também, deve ser dito, ela é moeda bastante correnteentre os docentes dos cursos.

Faz-se necessário realizar ainda outro esclarecimento. Emborase partilhem os valores que orientam a critica (por exemplo, oimperativo de ampliar a solidariedade para se compensar acompetitividade social, a igualdade de participação nas aulas de

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educação física no contexto escolar ao invés de favorecer odesenvolvimento dos melhores, o desenvolvimento do esporte baseadonofairplayao invés de baseado em vontades competitivas e cegas deprestígio e triunfo e a participação na criação das regras reguladorasdos jogos e esportes entre outros), devemos estar cientes de que ofundamento no valor não faz automaticamente verdadeira ou válida acrítica. Basicamente por duas condições: a) a realidade social não étransparente e b) existem em nossa própria sociedade valorescontrapostos ou de difícil conciliação.1 Ambas as condições serãoexploradas ao longo deste trabalho.

A concepção comentada é desenvolvida com nuancessignificativas pelos diversos autores que dela se ocupam. Interessa-nosaqui reduzi-la a um esquema básico: a uma espécie de modelo duro queignora as qualificações, pois é esse modelo o que se percebe na fala dosalunos e de muitos docentes na troca cotidiana.2 Assim, a crítica nãose refere a nenhum autor em particular e sim ao efeito conjunto de seustrabalhos, embora não sejam diretamente responsáveis por essesefeitos. Afírmaremosentãoquetrêsaxiomas descrevem, sinteticamente,a concepção pura das regras posta em questão: a) todas as regrasexistentes na sociedade são funcionais paraareprodução da dominaçãodo capital e da ordem social vigente; b) todas as regras que regem osesportes e as atividades de educação física compartilham dessapropriedade e c) portanto os esportes e seu ensino (em clubes,academias e escolas) desenvolvem competências adequadas aofuncionamento do capitalismo.

A reiteração funcionalista

Observo que háum marcado enfoque funcionalista na construçãoda concepção em pauta. A idéia básica do funcionalismo, a partir deMalinowski, é que qualquer crença, hábito ou uso de uma sociedade éfuncional para seu funcionamento, para a manutenção da ordem ousistema social.3 Continua-se sendo funcionalista quando se afirma afuncionalidade por exemplo da educação em relação à integraçãosocial. Um sistema socialpode estar razoavelmente integrado, como no

84

caso do Brasil, embora seu sistema educacional seja altamenteexcludente.4 Porém, não somos menos funcionalistas <;e afirmamos_afuncionalidade das regras em relação à dominação de classe ou à|formação de personalidades sociais adaptadas às competições daeconomia, da cultura ou da política. A afirmação popular de que todoo existente é produto do interesse de alguém é profundamente

Jbh

funcionalista e colabora com a construção de certezas, uma funçãdpsicológica importante. Ser funcionalista não significa, entretantoA5^estar sempre errado. De fato, há muitas crenças, hábitos, regras, leis,' ~~costumes e usos que são funcionais para alguma instância do social.Entretanto, há também outras quenão possuem nenhuma funcionalidade,sendo afuncionais ou francamente disfuncionais, e que ao invés deintegrar ou solidificar sistemas induzem processos desagregativos, deconflito e de mudança social.5 Se qualquer coisa é funcional para aintegração do sistema é quase impossível explicar a mudança e os

O

conflitos.O plano das intenções (da ação, da lei, da regra ou áè

regulamento) é o mais imediato no reconhecimento das funções. Oagente habitualmente enunciasuas intenções ou finalidades de sua açãoque, de praxe, entendemos que se propõem atingir objetivos, finalidades»funções.6 As intenções do agente social, individual ou coletivo, entram,no entanto, num processo interativo com as intenções de outros atoresque podem possuir finalidades diferentes e mesmo de sinais opostos.7

. Os resultados da interação podem confirmar as intenções dos agentes,podem também ser absolutamente contrários às mesmas ou meramenteindiferentes. Há, assim, um amplo campo de variabilidades, incertezas/%;e contingências entre as intenções e os resultados. Há incerteza, emparticular, na relação entre as funções subjetivamente imputadas àação e as funções objetivamente resultantes. Se o mundo social nãofosse organizado dessa forma não haveria nem bolsa nem esporte, nemmundo social conflitivo, contraditório, paradoxal.

Pelas razões apresentadas, podemos concluir que o estudo dasintenções (leis, normas, propostas, etc.) é uma parte dos estudoshistóricos e sociais, porém insuficiente no caso de não serem reveladosos resultados da interação social e os mecanismos que se consolidam

ÜJ

V

Q

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ias interações e processam as intenções dos agentes. Não podemosconfundir portanto um estudo das intenções com aquilo que realmenteocorreu na história.8 Tendo em vista problemas semelhantes, é queMarx afirmava que o inferno está empedrado de boas intenções. Umaproposta, regra ou lei, funcional no plano das intenções, pode se tornardisfundonal no das interações sociais, sendo o inverso também possível.Quando os donos das fabricas inglesas introduziram os relógios paracontrolar o tempo de trabalho, não imaginavam nem sabiam que essa

v A

inovação colaboraria significativamente para que os trabalhadoresi •••'• ' • — ' j - - ' - — ' - ' —" • ~~tomassem consciência do valor de seu tempo de trabalho, e começassem|a reivindicar o pagamento das horas extras e a redução da jornada dejtrabalho. São as disparidades entre as intenções e os resultados umasignificativa razão para fazer das ciências sociais e humanas um campoempolgante de pesquisa, além de constituírem um fator fundamental da

f Qualquer observador medianamente atento, colocar-se-ia oproblema do grande desenvolvimento, nas sociedades ditas socialistas,que teve o esporte, guiado pelos mesmos regulamentos e regrasvigentes nas capitalistas. Este simples fato empírico deveria questionara confiança, partilhada por muitos educadores físicos, na existência deuma relação direta e funcional entre competição esportiva e capitalismo.Percebe-se, sem demasiados esforços, que houve uma corrida esportiva,paralelaàcorridaarmamentista, encabeçadapelas nações mais poderosase representativas dos regimes socialista e capitalista. O número demedalhas obtidas nas olimpíadas foi-nos apresentado como indicadorprivilegiado das virtudes de um ou outro regime em aliança com ostriunfes obtidos na carreira espacial. Na verdade, no bojo da corridaesportiva, os sentimentos eargumentos, a favor ou contra um ou outroregime, estiveram altamente misturados com seus irmãos mais velhos:os sentimentos e argumentos nacionalistas. É difícil, e talvez sejaimpossível, estabelecer com clareza qual desses sentimentos foi odominante dentro da corrida armamentista e da esportiva. Por outrolado, talvez devamos reconhecer que a corrida esportiva foi útil para"sublimar" o enfrentamento armado. Inspirando-nos em NorbertElias, poderíamos apostar na hipótese de que as competições ou lutas

-86

esportivas, imaginárias ou miméticas, substituíram parcialmente aslutas reais, possuindo, assim, um efeito civilizador.9 Se tiveram esseefeito deveríamos, ao invés de criticá-las por desenvolver o espíritocompetitivo no esporte, agradecer sua ação civilizatória, isto é, suacontribuição na redução da violência física da guerra, embora possa tersignificado o sacrifício dos corpos e sentimentos de muitos indivíduosconcretos ao submeter-se a treinamentos freqüentemente destrutivos.

O que importa aqui destacar é que os países ditos socialista^aceitaram com absoluto entusiasmo as regras e regulamentos vigentesdos esportes desenvolvidos no capitalismo e, em especial, com acontribuição pioneira e significativa da Inglaterra, sabidamenteconsiderada berço do capitalismo.10 Como podia serem bons para osocialismo os esportes e suas regras tão funcionais ao capitalismo? Ébastante infrutífero, embora psicologicamente adequado para reinstaurara coerência, explicar a situação pelos desvios do socialismo real.Entretanto, se alguém aceita esse tipo de explicação deveria, em termosde coerência lógica, aceitar osl" desvios'' da Inquisição ou o genocídionazista como "desvio*'. Este contra-exemplo, suficientementepoderoso, deveria levar, ps que defendem a cohcepçlo da funcionalidadepara o capitalismo das regras e dos regulamentos esportivos, a duvidarsobre a mesma. No entanto, ela passou pelo crivo da crítica empírica,desenvolveu-se e é hoje moeda corrente. Tal fato pareceria indicar quea concepção afina-se ou se corresponde com demandas ideológicas ede sentimentos pré-constituídos. Podemos assim elaborar a hipóteseque a concepção é uma luva para disposições, ideologias, atitudes ousentimentos difundidos e ainda vigentes.

Propositadamente coloquei em itálico a palavra todas quandosintetizei a concepção em pauta, pois se somente algumas regras sãofuncionais e outras não, a concepção vai para o espaço e apenas nosresta estabelecer caso a caso a funcionalidade, disfuncionalidade ouafijncionalidade de cada regra. Em outras palavras, a concepçãodesmancha-se no ar e perde qualquer força explicativa. Nenhumbiólogo afirmaria, por exemplo, que todas as bactérias são danosas paraa espécie humana. De fato, há bactérias positivas e negativas para a vidahumana, por isto o biólogo não formula uma teoria geral sobre as

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bactérias e a vida humana; ao invés disso reconhece sua importância eas qualifica sem generalizar. Proponho que, por respeito à lógicapartilhada no campo científico, se siga o mesmo procedimento em

rrelação às práticas esportivas e seu ensino. Ou seja, a partir da escolhados valores que pretendemos reforçar, deveríamos analisar as relaçõesde afinidades e oposição com os esportes, suas regras, modos de ensinoe estilos de prática e desempenho. u Corresponde, então, ao invés depressupor funcionalidades ou correspondências, demonstrá-las com osrecursos teóricos e metodológicos disponíveis e mesmo com os quepossam vir a ser elaborados no processo de investigação e exposição.

A concepção sob o foco da crítica, em contrapartida dessa'atitude prudente, parece que emerge de um preconceito, ideologia,sentimento ou atitude muito simples: consideraquetodalei, regulamentoou norma, foi ç é elaborada pelos opressores e exploradores paraoprimir e explorar melhor os oprimidos e explorados. Assim, a lei, anorma ou o regulamento, origina-se nos interesses, necessidades ouvontades dos poderosos; toda lei é funcional para os poderosos. É(bastante evidente que, em termos lógicos, essa concepção e a luta pelademocracia são altamente contraditórias. O democrata acredita nopoder civilizatório e progressista da lei, norma ou regulamento,democraticamente elaborado, tanto em relação ao espaço públicoquanto no que diz respeito ao desenvolvimento pessoal e às relações(interpessoais da intimidade ou privacidade.12

À bitolada concepção negativa e antidemocrática poder-se-iacontrapor uma não menos bitolada que afirmasse: toda lei, regulamento-ou norma, é resultado das lutas dos oprimidos e explorados e leva a umarestrição nos limites do poder dos opressores e exploradores. Teríamos,então, a mesma funcionalidade apenas que às avessas, inverteríamosa direção de seus efeitos. Embora considere ambas as concepçõescomo extremas e erradas, devo esclarecer que a segunda me parece, emtermos de probabilidades históricas, e também dos desejos, estar maispróxima das tendências das sociedades ocidentais e dos regimespolíticos democráticos que a primeira. Caso contrário, o único"progresso" político existente seria o da opressão. Teríamos então\que negar os "progressos" nas lutas pela liberdade, a igualdade, a

88

justiça em qualquer nível. Teríamos que negar as lutas democráticas eseus resultados: a tendência à universalização e ampliação dos direitospolíticos, civis e sociais.

Considero que há sentimentos fortes que impulsionam nadireção de formular princípios avaliativos do social de tipo universal,como o de toda lei é funcional ou todo esporte é funcional para ocapitalismo. Acreditar nesses princípios simplifica enormemente oesforço que devemos realizar para entender o mundo social. Quandoacreditamos cegamente num princípio avaliativo universal fazemosuma extraordinária economia de pensamento. Tomemos um exemplodos dias atuais. Discute-se sobre a privatização das empresas estatais.'Tanto os que são totalmente a favor quanto contra a privatização estão

* ' j -realizando uma economia de pensamento e também engessando arealidade. No fundo sabemos que não podemos decidir em função deum princípio único, a favor ou contra, pois deveríamos analisar

Lu

empresa por empresa a partir de um conjunto de critérios de avaliação, y |—w.j •~-_rr^_—^r- —_-_: » .

Na verdade, o que deveríamos discutir são os critérios. Além disso,deveríamos insistir sobre a necessária transparência da gestão dasempresas públicas. Sem transparência não,podemos nem discutir as

"I •_--— f ^ . ^ _^_~r^:——,

empresas nem impedir que sejam utilizadas em benefícios privados. Atransparência é uma condição necessária para o debate sobre asempresas^ ;

O

Lei e limitação dos poderes

, . As regras nas sociedades organizadas sob regimes democráticossão de tipo universalistas, assim uma vez formulada rege a vida dosricos e dós pobres, dos brancos e dos pretos e: dos membros dasdiversas religiões, embora cada categoria social tenha diferenciados,ainda que limitados, poderes de manipulaçao-interpretação da lei. Opróprio soberano, ao formular a lei, a ela se submete. Na monarquiaabsolutista francesa o Rei podia colocar na Bastilha qualquer pessoa esegundo o tempo que sua vontade estabelecesse: Em uma democracia(republicana ou monárquica), a lei especifica os motivos e ascircunstâncias pela qual qualquer cidadão pode ser preso. A lei limita

89

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L

o poder absoluto do soberano.Dentro dos limites estreitos da lógica bivalente do certo e

errado, diria que a segunda posição, quando considera a lei comolimitadora dos poderes dos poderosos, é menos errada, lógica ehistoricamente, e também menos negativa socialmente, isto é, sob oponto de vista da esperança democrática, que a primeira. É portantoconveniente trabalhar teoricamente para aperfeiçoar a segundaconcepção e destacar seus efeitos positivos sob o ponto de vista social.' Destaco dois fatos significativos de minha vida pessoal, emvirtude de ser muito difícil para mim aceitarum abismo entre experiênciapessoal e elaboração teórica, e isto, seja dito de imediato, parece-meque é prática corrente entre os que defendem a concepção que estoucriticando. Primeiro fato: meu pai, um operário metalúrgico, e seuscolegas situavam-se nos marcos da segunda concepção, basicamentepor duas razões. A primeira é que de fato muitas das leis e regulamentosdo trabalho eram por eles vistas como conquistas das lutas operáriasque resultavam em limitações legais do poder dos capitalistas. Tambémpercebiam, segunda razão, que as leis políticas, civis e criminaislimitavam o poder dos poderosos, estabelecendo regras de jogo que,quando não os beneficiava diretamente, ampliavam seus campos deação e influência e os protegiam do poder discriminatório. Deduz-se,assim, que: se os fracos estão mal com as regras, estariam muito piorsem elas. Do segundo fato ouvi inúmeras narrativas. Nos tempos deditadura e repressão política, os militantes de esquerda e os dirigentesdos trabalhadores praticavam, nas condições das prisões, untrígidadisciplina que implicava horários rigorosos e obrigatórios de ginástica,de estudos, de tarefes vinculadas à alimentação e a limpeza. Certamente,o rígido conjunto de regras tinha por principal finalidade conservar aintegridade e dignidade pessoal dos ativistas políticos, sindicais eestudantis detentos. A primeira experiência me faz duvidar sobre oaxioma de que toda regra é funcional para a sociedade capitalista; a_segunda me faz duvidar sobre o axioma de que as regras dos esportese das atividades de ginástica, a disciplina que as regras instauram, sejafuncional para o capitalismo. 13Ambas experiências levam a consideraro caráter ambíguo, paradoxal, contraditório das regras, ao invés de

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defender sua maldade ou bondade infinita.Thomas Hobbes é considerado o grande pensador político da

modernidade. Também pode ser considerado, embora existaminterpretações alternativas, como o teórico do Estado Absolutista.Entretanto, Hobbes, ainda que concedendo poder absoluto ao soberano,argumentou, com êxito, que seus atos deviam estar precedidos pelaformulação dalei. O soberano, portanto, antes de agir tinha que legislaie só poderia agir nos marcos da lei. Assim, a lei, torna-se o limite parao poder arbitrário do soberano. Sem lei o soberano é tirano, déspota.Com a lei deve agir dentro da legislação que limita seu próprio poder,ainda que seja ele quem a formula. O Estado de Direito, um valor dos\que defendem a democracia, afirma o papel limitador do poder que afllei possui. Outro valor, o de que o poder vem do povo, consolidou-se nas lutas pela ampliação dos direitos políticos, basicamente pelaextensão do voto e da cidadania atodos os maiores de idade, superadasas diversas formas de voto qualificado. Renunciar às leis reguladorasdo poder significa renunciar às lutas pelo estado democrático e a doisde seus valores: o Estado de Direito e o Voto Universal. Será que asregras que regem os direitos políticos, civis e sociais são merasfuncionalidades para a reprodução do capital ou da opressão? Se assimfor a história deveria ser reescrita e as forças que, em diferentesmomentos históricos, forampensadas, e se pensaram como progressistas,nada fizeram por nós" ~~~' ~~'

central,

OCL

Uma parte importante, senão central, da históriatrabalhadores na modernidade, é a da luta pela substituição do poderpaternal e patriarcal dos patrões pelo poder legal e contratual, peloconjunto de regras que crescentemente regem a relação entreempregadores e empregados. Foi um objetivo dos dirigentes operários \quebraropoderpatriarcalparapoder estabelecer aidentidadedaclasse |trabalhadora. A greve foi um instrumento fundamental para se conseguir lessa ruptura, e por essa razão podia ser eficiente ainda quando não se \obtivessem resultados palpáveis a favor dos trabalhadores; a luta pelalegalização das greves foi um capítulo central na história da constituiçãodo trabalhador moderno. Assim, grande parte das lutas operárias^podem ser entendidas como processo de. substituição de um poder

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paternal e patriarcal, sem limites, pelo poder limitador e regulador dasrelações estabelecidas na lei, nas regras, nos regulamentos e normasque regem os contratos de trabalho. 14 Os trabalhadores ampliaram seupoder, formaram suas organizações, lutaram para conseguir umalegislação cada dia mais avançada. Os trabalhadores organizadoscivilizaram e ainda civilizam o capital. Será que os trabalhadores estãoprofundamente errados quando eles lutam por regras? Será que estãoerrados porque o capital continua a se reproduzir adaptando-se a regrasque limitam seu poder?

f A concepção que estou criticando parece fechar seus olhos àibhistória. Considera, cega pelo dogmatísmo, que toda regra é ditada

pelo capital ou pelos opressores em seu próprio benefício. Ignora aslutas pela limitação do poder das elites econômicas, sociais e políticas.Enfím, afirma dogmaticamente um absurdo teórico e, no plano social,apenas conduz na direção da desesperança, o contrário daquilo queaspiram em suas propostas ideológicas. Insisto, se toda lei é funcional

^ aos poderosos o ideal democrático é insustentável. A única saida então

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é a ditadura iluminada de elites ou unípessoaís.

Incerteza, regras e mudança

A maioria das regras são elaboradas em contextos de conflitoe incerteza. Se usarmos a expressão conflito em um sentido geral,podemos considerar que as regras são elaboradas para se alcançar asolução transitória de conflitos. O conflito emerge do confronto depoderes em função de paixões, interesses ou vontades contrapostas. Apercepção de que na sociedade há conflitos é muito antiga e estavapresente no pensamento de Aristóteles. Pensar a sociedade a partir doconflito não é uma invenção de Marx, como muitos parecem acreditar.Marx, em verdade, procurou uma explicação específica, e queconsiderou científica, do conflito na dinâmica histórica e acreditouencontrá-la na luta de classes. É portanto um tipo especial de explicaçãodo conflito o que caracteriza o pensamento marxista. Wilfredo Pareto,um pensador conservador-liberal, desenvolveu, juntamente comGaetano Mosca, uma outra interpretação da dinâmica histórica também

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baseada no conflito. Para Pareto, a história resulta das lutas entre as-̂s>elites que disputam o poder. Assim, pensar a sociedade a partir dox;conflito não é propriedade exclusiva do marxismo nem dos progressistas. •

Há uma assimilação quase que automática entre conflito e^;desagregação. Sob este ponto de vista os conflitos seriam sempre *negativos, desintegradores. Na verdade, os conflitos podem causar ]tanto desagregação quanto agregação e mesmo solidariedade. Depende^do plano no qual situamos nossa observação. O conflito armado entreduas nações é destrutivo. Contudo, o conflito pode aumentar asolidariedade em cada nação, desenvolver a consciência nacional, criarsentimentos na direção de estabelecer acordos que diminuem osconflitos internos. As regras procuram civilizar os conflitos, minimizar

' • - !*-—•_ c-:— 15 Asuas perdas e, sobretudo, reduzir as quotas de violência física.regulamentação dos esportes parece estar estreitamentevinculada com

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a intenção de minimizar a violência física e os danos que dela resultam.A história do esporte pode ser escrita sob esse ponto de vista.

Nenhuma regra elaborada para regular um conflito, qualquerque seja sua natureza, tem um caráter eterno: as regras sãohistoricamente elaboradas e resultam; de uma negociação, real ousimbólica, direta ou mediada; entre as partes em conflito. As regrassão elaboradas, por serem históricas, em. situações de incerteza.Nunca se sabe a ciência certa os efeitos positivos e negativos quea regra terá a partir de sua elaboração. Contudo, a regra não éformulada às cegas ou irracionalmente, ela possui • umaracionalidade historicamente limitada. Dou um caso paraexemplificar. A regra de se pagar diferencialménte as horas extrasfoi uma conquista das lutas operárias no contexto das ações para selimitar a jornada de trabalho. Podemos estar quase seguros de queos patrões não gostaram dessa regra. De fato, a regra significouuma forte limitação à exploração do capital e penalizou a utilizaçãoda força de trabalho fora do horário pactuado. Hoje, entretanto, osdirigentes operários estão criticando a utilização das horas extrascomo estratégia empresarial de redução do número detrabalhadores contratados. Este efeito -negativo sob o ponto devista dós trabalhadores; positivo; sob o ponto de vista dos

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empresários- depende de uma situação nova em termos das técnicasde produção e das condições econômicas. Ou seja, por haveremvariado certas condições históricas, uma regra conquistada pode serutilizada *'perversamente". Nega este fato o caráter progressivodas regras que regem o trabalho? Acredito que não, embora levemos efeitos negativos a revisitar e reformular as regras. Assim, asregras não são imutáveis e de praxe se estabelecem regras paramudar as regras. A discussão no momento é sobre as regrasconstitucionais que permitem ou não revisar as regras estabelecidasna constituição.

Às regras significam um pacto entre as partes em conflitc^pela qual decidem elaborar uma regra e a ela se submeter, O^horizonte da regra é a superação, nunca definitiva, do conflito, dadesordem, da violência. O que leva a elaborar a regra é o medo daguerra, poderia dizer Hobbes. Ou, talvez, a intuição de que seestamos mal com as regras estaríamos pior sem elas. A situação dejconflito possui para Hobbes duas saídas básicas: ou a guerra ou opacto. A regra resulta da vontade de se estabelecer um pacto queregule o conflito. Os conflitos nem sempre desaparecem com asregras que os regulam, apenas tornam mais civilizadas, menosviolentas e, por vezes, mais equitativas suas resoluções conjunturais.Há, assim, na aceitação das regras um profundo conteúdojcivilizatório. As partes, contudo, podem tentar desobedecer ou'manipular a regra. Algum poder .por cima das partes em conflitodeve ser o juiz nos casos de desobediência ou manipulação ilegítimada regra. Resolver um conflito por meio de um terceiro, o juiz defora, que julga diretamente -em função dos usos, costumes, isto é,da tradição- ou em função dos pactos formal e legalmenteestabelecidos, é também um elemento constitutivo do processocivilizatório. A crítica aos tribunais militares que julgam militares,sobretudo em casos que envolve a civis, é que o juiz éinsuficientemente de fora em relação a uma das partes em conflito.Esta elaboração também se corresponde com a experiência de queruim com regras pior sem elas, ou seja, pior ainda seria se nãoexistissem regras de nenhum tipo para julgar os militares. J

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O conceito democrático da regra

A imagem de uma sociedade sem regras é um absurdo lógicoe histórico. Lógico, pois o próprio conceito de sociedade pressupõeregularidades e estas nos remetem para o campo das regulações,normas ou regras; histórico, por não se conhecerem sociedades semregras de algum tipo. São estas constatações conservadoras? Acreditoque não. O conservadorismo em relação às regras se ancora em doiselos, por vezes, profundamente interligados: as regras vigentes nãodevem mudar e o modo dominante e seletivo de estabelecer as regrasé o correto. Observo, entretanto, que estas definições possuem um altograu de relatividade. Um exemplo disso é que hoje no Brasil as forçasditas progressistas são contra a revisão constitucional e sua mudança,pois pensam que mudar é retroceder, que a revisão pode significarperda de direitos sociais estabelecidos na constituição (estamosnecessitando de novas definições, de no vos instrumentos para pensarmoso atual momento),

O pensamento progressista atacou em diferentes momentoshistóricos as duas. crenças conservadoras em relação às regras. Primeiro,indicando que as regras são elaboradas pelos homens em determinadascircunstâncias históricas e que, portanto, estão sujeitas a mudança.Segundo, afirmando que há um modo democrático de se estabelecer asregras. Seguindo a Rousseau, o pensamento democrático afirma queos homens devem obedecer as regras que eles próprios formulam:obedecer as regras que se dão a si mesmos. ,Ao obedecer apenas asregras auto-impostas os homens estariam superando a distinção oucissão entre os que mandam e obedecem, entre governantes egovernados? Esta questão é crucial para o pensamento democrático.

A segunda afirmativa teve duas interpretações: a democraciadireta e a democracia indireta ou representativa. O conceito democráticoradical afirmou que aúnica democracia verdadeira ejusta é a democraciadireta. O funcionamento político grego na época de auge democráticofoi tomado como modelo inspirador, da democracia direta.16 Emcontraposição, e com base em diversos argumentos, os construtores dademocracia ocidental e moderna inclinaram-se pela vigência da

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democracia representativa como forma de elaboração, controle eaplicação das regras.

Pessoalmente acredito que as duas formas de elaboração deregras e decisões, a direta e a indireta, devem ter vigência em espaçosdiferentes do agir social. Não é este o lugar para estender-me, de formaexploratória, sobre o tema.

Esportes e regras

As regras esportivas disciplinam? A resposta a esta questão,obviamente, é sempre positiva. Qualquer esporte para existir devepossuir um código próprio, uma armadura de regras que indicam opermitido e o proibido, os objetivos do esporte e o modo de seudesenvolvimento. Ainda no caso de que imaginemos um esporte, umaluta por exemplo, na qual tudo vale, vigoraria a regra de que oslutadores devem participar pela própria vontade. Sejogarmos escravosàs feras poderemos fazer um espetáculo, abertamente anti-humano,entretanto não o podemos confundir com qualquertipo de esporte, poisos escravos não são voluntários da arena. Da mesma forma nãopodemos confundir a atividade corporal realizada para se salvar de umterremoto ou de um naufrágio com atividade esportiva. Assim, oaspecto voluntário da participação e as regras parecem ser centrais: arepresentação ocidental do esporte exige a participação voluntária ea regulamentação.f Todavia, para entrarmos no jogo temos que respeitar as regras/do esporte, com juiz ou sem ele, e o desrespeito leva ao conflito que,não raro, acaba com o jogo. Os que não respeitam as regras, de praxe,são excluídos dosjogos. A regra das regras dos esportes diz, no planodo dever ser ou como ideal regulatório, que devemos considerar ooponente como adversário e não como inimigo. Trata-se de ganhar o

jjogo e não de destruir o adversário que, aliás, pode estar em nosso time'na próxima rodada. Esta regra diferencia o esporte dos combates ou daguerra. Na guerra enfrentamos inimigos e ganhar significa destruir. 17

Eu gostaria de perguntar, retoricamente, aos que criticam as regras noesporte, se eles gostariam de participar de um esporte sem regras, sem

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proibições, sem limitações. A maioria dos esportes aparecem estandôísujeitos a regras cada dia mais proibitivas da violência física. De fato,se tomarmos num extremo a luta grega denominada pankration e, nooutro, o estado atual do boxe, deveríamos pensar o processo comoaumento das proibições na forma e tipo dos golpes.18 O boxe se nosaparece, em virtude das proibições, como esporte de luta menosviolento, mais civilizado queopankration, embora muitas consciênciaso considerem exemplo vivo do antiesporte.19 Os esportes com bolaoriginalmente caracterizavam-se pela violência física entre ospraticantes, associada a umnúmero pequeno de regras. A * 'civilização''desse tipo de esporte pode ser entendida como um aumento eespecificação das regras de jogo e das penalizações.' As regras que constituem um esporte tampouco são imutáveis^Se temos uma história do futebol, do basquete ou das lutas é, em partejporque suas regras foram modificadas. A mudança das regras, e os<motivos dessas mudanças, é um capitulo que julgo central paraqualquer história dos esportes. Assim como é central em história d(

Mireito estabelecer tanto o que muda nas leis quanto as razões dessasmudanças. Se não houvesse continuidade e mudança não haveriahistória. Uma forma que temos de pensar essa questão é por meio doconceito de tradição. Podemos afirmar que osesportes, e em particularcada esporte, constitui uma tradição, e que em seu seio processa-setanto a continuidade quanto a mudança. Assim, o historiador dofutebol pode, por exemplo, colocar-se a questão de quando e por quaisrazõesfoi introduzido o impedimento. Pode-se perguntar que objetivostinha a introdução desta regra em termos da dinâmica e da própriaestética do jogo de futebol. Pode pretender recriar o clima desentimentos, atitudes, expectativas, satisfações e insatisfações quelevaram à formulação do impedimento. Pode, também, correlacionaras razões da mudança, e ela mesma, com outras "configurações"presentes em outras esferas da sociedade.20 Pode deslocar o olhar e seinterrogar sobre o modo de reformulação de uma regra: estabelecer queatores participaram e como, por exemplo. A regra foi democrática ouelitistamente estabelecida? Traçará assim o. perfil dos que tomam asdecisões e sua dinâmica. Terá, provavelmente, que olhar para fora do

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próprio jogo para atingir o conjunto dos objetivos explicativos.O conceito de tradição leva a pensar que a mudança, se situada

em seus marcos, para se efetivar deverá tanto ser assimilável pelacultura da tradição dos que a partilham e/ou por aqueles que sãoconsiderados seus detentores. Tomemos as discussões atuais sobre omodo de se realizar o lateral no futebol para exemplificar o quequeremos dizer com assimilável pela cultura da tradição. Os quedefendem o lateral com o pé estão fazendo uma proposição adequadapara a cultura da tradição do futebol nam esporte que se jogabasicamente com o pé e no qual a participação da mão apenas estápermitida ao goleiro e aos jogadores no lateral- e podem argumentarque estão depurando a tradição e aprimorando a estética do jogo. Ouseja, podem propor uma mudança com o objetivo "conservador" derealizar melhor uma tradição, que poderíamos chegar a considerarcomo estando desvirtuada nas regras atuais do jogo que estabelecemo lateral com as duas mãos. Não conheço, em contrapartida, propostasa favor de se efetivar o lateral como se faz o saque no voleibol; talproposta, caso existisse, iria de fato contra a cultura do futebol,enquanto a primeira se situa em seu coração. Situar-se na cultura datradição é um passo necessário, porém insuficiente para explicar amudança. Seria também necessário que os que partilham a tradição dofutebol e, ou, os que detêm o poder em suas organizações, cheguem aconsiderar como vantagem a mudança das regras. Deverão ser postosem ação mecanismos que estabeleçam consenso sobre a necessidade esobre a vantagem da mudança nas regras do lateral. A discussão entreos que partilham a tradição do futebol (dirigentes de associações eclubes, espectadores, profissionais, amadores, entre outros) pode serfechada ou aberta, mais ampla ou mais restrita, contudo ela apenas seráefetivada quando se estime que não gerará cismas, fraturas,fragmentações da tradição e de suas organizações.

Quis apelar à atenção sobre a complexidade que envolve a\mudança das regras no campo do esporte. Embora tenha desenvolvido /o tópico muito ligeira e rapidamente, parece-me que é suficiente para yque pensemos duas coisas: a mudança nas regras dos esportes é um lprocesso delicado e complicado e qualquer proposta de mudança terá J

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que ter razões de peso para queos que partilham uma tradição esportiva J^estejam dispostos a mudá-la. Essas razões deverão estar ancoradas naí r-tradição e apoiar-se em insatisfações deseus participantes. As propostas/" ̂de mudança, portanto, deverão apresentar soluções para insatisfações jque, no entanto, respeitem a tradição. j—

Os que ingenuamente propõem alterar as regras de um esportecom objetivos experimentais ou de crítica podem estar dando murrosem ponta de faca. Para se mudar uma regra devem existir fatosdefinidos (insatisfações com a regra) e argumentos significativos(apoiados na tradição ou em sua depuração). Há tanto preconceito emmudar por mudar quanto em não mudar por não mudar. Ambos hábitosestão moldados pelos preconceitos de que o novo é o melhor ou de queo velho é o melhor. Esses hábitos pouco têm a ver com o pensamentoque se quer crítico, embora apareçam relacionados com disposiçõessobre as quais gostaríamos de ensaiar algumas palavras.

Tradição, disposições e invenção de regras situacionais

Quando as crianças nascem enfrentam um mundo já constituído,ordenado segundo valores e normas. Diferente não é a situação nocampo dos esportes e dos jogos, também aqui enfrentam tradiçõesconstituídas sob os pontos de vista estético, ético e técnico. Aobservação nos indica que a criança quando joga com uma bola, porexemplo, tenta controlá-la a maior parte do tempo. Ignora que há umameta, que joga com outros e que há. diversas regras. A socialização no .esporte vai desde esses elementos básicos à internalização da tradição,por vezes nacional, daquilo que é belo, justo e tecnicamente adequadono jogo. Assim, jogadores e espectadores, socializados em umatradição, podem julgar o jogo belo ou feio, justo ou injusto, técnico oucarente de técnica. A tradição forma nos atores disposições a partir dasquais tanto praticam quanto julgam a prática de um esporte. Como osvalores estéticos, éticos e técnicos não estão automaticamentecorrelacionados podemos sair insatisfeitos de um jogo no qual nossaequipe ganhou.

Se tomarmos o caso do futebol, dada sua dominância entre asf

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f ' /preferências esportivas dos homens da sociedade brasileira, temos quereconhecer que, junto às regras do esporte oficial, há um significativonúmero de variações de jogo em função do tipo de bola, do tamanhoda'' quadra'' e do número de j ogadores. Há portanto uma rica invençãode regras.situacionais dentro das disposições da tradição. Num pequeno(levantamento feito com crianças, no Rio de Janeiro, elas mencionamaproximadamente vinte variações, das quais apenas duas possuemreconhecimento oficial e seus jogos são televisados. As variações estãotambém dentro da tradição do jogo de futebol e de seu aprendizado.Uma observação mais detalhada possibilitaria destacar os fundamentos,as técnicas, as habilidades e o desenvolvimento psicomotor e corporal

cada variação estimula e forma. Gostaria de conhecer algumrabalho que faça essa contribuição significativa, pois poderia instruirprofessores ou treinadores do esporte na utilização das variações noesenvolvimento dos fundamentos. Algumas destas variaçõesromovem o rodízio no jogo entre as posições de goleiro, defensor e

'atacante, dando assim lugar a uma experimentação dos objetivos ehabilidades requeridos por cada posição e indo, por exemplo, contranossa tradição de futebol que desvaloriza a posição de goleiro. Oscomentários e exemplos apresentados, destinam-se a remover opreconceito que considera a tradição esportiva como rígida e comomeramente impositiva. Trata-se, pelo contrário, de entender os grausdeliberdadeedeadaptabilidade situacional que cadatradição possibilita..— Embora dentro da tradição, as crianças são ativas na geraçãojdas variações e das regras que as organizam, pois não esperam parafazê-lo que alguma Associação de Futebol as legitime. Contudo, ajcapacidadede geração de variações não nega o reconhecimento de umavariação como a oficial, se se quer, o "verdadeiro" futebol.,-Assim, a

/tradição do futebol possibilita tanto a experimentação de novas regrasde jogo, variações, adequadas à cultura da tradição, quanto oreconhecimento e respeito do modelo ou variação oficial do futebol, Atradição possui regras, entretanto também motiva a criatividade nageração de novas regras que respeitem a cultura da tradição: os valoresestéticos, éticos e técnicos que a estruturam.

Os valores não constituem um conjunto necessariamente

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coerente. De fato, há tensões, contraposições, inconciliações entre osvalores presentes na tradição geral dos esportes e na de cada esporteem particular. O valor da técnica, posto a serviço de ganhar o jogo,pode ir de encontro com os valores estéticos e também com os éticos.Uma ética muito estrita pode fazer desinteressante o jogo. Asinconciliações entre as disposições e valores -com os quais nosmotivamos e orientamos para jogar, e também com os quais julgamosojogo-, criam um amplo campo de debates-orientados por preferências,que envolve comentaristas, espectadores e profissionais de cadaesporte- e podem gerar regras que procurem conciliar transitoriamenteos valores inconciliáveis. Conciliar transitoriamente significa encontrarregras que medianamente satisfaçam vários valores. Dou um exemplo.Uma redução drástica do direito a faltas no basquete, como resultadodo aumento das exigências éticas, reduziria a estética, a dinâmica e obrilho do jogo. A regra precisa conciliar o estado de várias exigências,valores transformados em objetivos, que mudam tanto por razõesinternas quanto externas a tradição esportiva. A redução nos níveis deaceitação da violência nos esportes leva a regras mais rígidas emrelação às faltas, entretanto elas devem ser conciliadas com os valoresestéticos e técnicos presentes na tradição. Estas observações são muitomais significativas nos esportes deequipe, onde o confronto dos corposé constante, mais ajustadas então ao basquete e futebol do que ao vôlei,por exemplo.21 Também uma mudança técnica pode provocarinsatisfações transitórias ou duradouras em esportes que não implicamo confronto físico dos corpos. O aperfeiçoamento técnico do saque no

"tênis-pode4evar -a dificultar enormemente a devolução, provocandoprimeiro admiração e depois insatisfações diante de um jogo queganharia em monotonia. Caso se aperfeiçoasse a devolução, o jogo se >reequilibraria em termos de valores. Se isto não acontece, talvez setorne necessário mudar a regra do saque, por exemplo, obrigando abater a bola a menor distância ou elevar a rede, para restabelecer oequilíbrio entre ã inovação técnica e as disposições estéticas do tênis,Cada tradição esportiva é, portanto, um precário equilíbrio afetadopelas forças que á própria tradição mobiliza. Sendo o equilíbriodinâmico, a regra, como a lei, é uma solução transitória para a

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conciliação de valores de difícil conciliação.A dinâmica das tradições esportivas levam a pensar que

constituem um excelente campo de reflexão sobre as práticas sociais,seus condicionamentos, interações, conflitos e soluções transitórias.Habitualmente os participantes de uma tradição esportiva discutem asquestões provocadas pela não conciliação dos valores, sobretudo apartir dejogosoudisputas passadas, emboratambém existam discussõesbaseadas em suposições sobre as vantagens e desvantagens entreoutras. Por vezes podem pretender solucionar as inconciliaçõesestabelecendo um valor superior que submete, e mesmo exclui, osoutros valores. Assim parece ocorrer quando tudo vale para se ganharojogo. Estas estratégias pareceriamterumadurabilidade relativamentecurta e logo os valores submetidos ou excluídos, os éticos e estéticos,revoltam-se e voltam a cena exigindo novas conciliações. O doppingé um caso por demais conhecido, podemos encontrar reaçõessemelhantes nos esportes coletivos. Ó atrativo atual do basqueteamericano parece derivar sua força de uma excelente conciliação entredemandas técnicas, éticas e estéticas.

' Seria despropositado pretender que a discussão, a análise e acrítica, substitua o próprio esporte entre profissionais, amadores eespectadores. Tal parece ser a proposta feita por alguns teóricos daeducação física, sobretudo daqueles queatuam em contextos escolares,e em recreação com grupos populares, e que pretendem desenvolvera consciência crítica, o espírito de justiça ou a revolta diante dasinjustiças sociais. Pretende-se nas propostas que a reflexão sobre asociedade, feita a partir do esporte e da atividade cultural, torne-se uma* 'disciplina'' em sentido estrito, ao invés de continuar tendo o estatutoreal de''atividade" e o formal de disciplina no sistema de ensinobrasileiro. Parece muito mais lógico e funcional que a educação físicano sistema de ensino seja uma atividade com objetivos definidos emtermos éticos, estéticos e técnicos e que o ensino das humanidades edas ciências sociais incorpore o esporte como objeto de estudo ereflexão, dada sua importância para o mundo e para a vida cotidianados estudantes.

Abandonar a formalidade de disciplina significa, por um lado,

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quebrar com o corporativismo que fez da educação física uma disciplinaobrigatória; do outro, elaborar argumentos e experiências persuassivassobre sua necessidade social e pessoal apesar de deixar de ser uma^pdisciplina obrigatória. As crianças de modo geral acham muito bom 5comer chocolate, apesar de não ser sua ingestão obrigatória, e reação Jsemelhante parece existir em relação com a educação física, entendida lcomo conjunto de atividades corporais e de práticas esportivas, no ̂contexto escolar.22 É oportuno se salientar, para eliminar temores hoje1 Jinfundados, que algumas pesquisas já realizadas indicam uma fortecorrente de opinião a favor da não obrigatoriedade, sem, contudo, que t£isso signifique uma avaliação negativa da educação física nos contextos luescolares. a Os dados indicam, pelo contrário, uma avaliação ^extremamente positiva e a vontade da prática de esportes e atividadescorporais, em contextos de ensino, ainda no caso de não seremobrigatórios.

Se a educação física no sistema educacional é transformada ematividades, tanto real quanto formalmente, poderia se tornar umapoderosa contribuição para a construção da democracia pessoal e de,relações democráticas interpessoais. Entendo por democracia pessoal,em seus minimos termos, a construção de um sujeito autônomo capaz 'de escolher, a partir de avaliações razoáveis, as atividades e associações/1nas quais quer participar. Entendo por democraciainterpessoalum tipo| ,de relacionamento não condicionado legalmente, um relacionamentoque se processa na base do reconhecimento mútuo da autonomia, dasafinidades de disposições, sobretudo emotivas, e no estabelecimentode acordos, de contratos, de parcerias.

No caso da educação física tornar-se uma atividade nãoobrigatória, as unidades educativas deveriam: a) organizar um leq ue deatividades esportivas, corporais e recreativas para que os alunos

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escolham em qual participar; b) criar processos de conhecimento e dej Qexperiência das mesmas para que os alunos as avaliem e as escolham/em função de relatos razoáveis que justifiquem suas preferências e c)constituir processos dialógicos que levem na direção de acordos, decontratos e parcerias em relação às regras dos esportes e das atividadescorporais nas situações concretas em que ocorrem e também em

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relação com a participação nos mesmos.Devemos realizar alguns comentários esclarecedores sobre o

que foi dito. A importância do esporte e da autoconstrução dos corpos,enquanto dimensão significativa da elaboração da auío-identidade namodernidade, leva a pensar que atividades esportivas e corporais nãoobrigatórias contariam com a mesma ou maior adesão que sendoobrigatórias. Em segundo lugar, as pesquisasindicamque as preferênciaspelos esportes e atividades corporais estão passando por um processode diversificação, o gênero, a idade e a classe social são variáveisincidentes nesse processo, tanto em relação com as práticas quanto emrelação ao esporte espetáculo.

A oferta-obrigatória por parte da escola- de um leque variadode atividades esportivas, corporais e recreativas-não obrigatórias paraos alunos-, levaria a que cada aluno procure àquelas nas quais porexperiência ou antecipação acredita encontrar maiores satisfaçõespessoais. Há um falso igualitarismo no fato de apenas se ofertar comoesporte o futebol e então se pretender que todos os alunos joguem, comindependência de suas preferências e habilidades. Claro, se a únicaoferta para os varões é o futebol, está-se criando uma situação na qualapenas se pode escolher entre jogar ou ficar olhando. Essa, por certo,é uma escolha muito pouco educativa sob o ponto de vista da formaçãode uma personalidade democrática. A formação dessa personalidadeimplica uma considerável reflexividade sobre o próprio eu, portantosobre suas possibilidades e limitações; implica fundamentalmente aautoconstrução de um estilo de vida, dentro do qual se situa a relaçãocom o corpo e com as atividades corporais. Não é importante que oaluno jogue futebol mal ou bem, o significativo é que realize asatividades que colaborem com seu crescimento pessoal e uma dimensãodesse crescimento é o reconhecimento de suas próprias limitações.Gostaria de uma situação na qual o aluno que dança respeite os amigose colegas que praticam futebol e admire àqueles que se destacam nesseesporte, e gostaria que os que praticam futebol tenham as mesmasatitudes com seus colegas dançarinos. Essas atitudes são centrais parauma democracia interpessoal.

Evidentemente que em cada esporte, e mesmo em algumas

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atividades, far-se-á sentir o peso das respectivas tradições quandoexistentes. As regras e as normas de uma tradição viva e saudável nãosão vividas como imposição. Ao contrário, temos delas uma vivênciade naturalidade e de espontaneidade. Tornam-se impositivas,-autoritárias, quando a tradição quebra-se e perde sua força. Podemosperfeitamente imaginar uma tradição já sem forças dentro da qual ofilho solicita ao pai que lhe consiga uma noiva pois está na idade decasar. A tradição hoje manda que cada um de nós procure sua próprianoiva. Quando a tradição perde sua força e vitalidade, a invocação desuas regras ou normas se torna autoritária. Hoje seria classificado deautoritário, senão de louco, o pai que ordenasse a seu filho casar comdeterminada mulher. As sociedades tradicionais de nosso passadorecente foram baseadas no poder patriarcal e paterna!. Durante muitotempo essa tradição esteve viva e saudável, quando começa a sequebrar, quando perde sua força, os mandamentos enunciados emnome da tradição tornam-se autoritários. Assim, a emergência do.autoritarismo é o sinal da perda da força da tradição.

Na sociedade moderna a tradição democrática é a da igualdadee da liberdade. Significa que a tradição manda estabelecer a partir dasuposição da autonomia dos indivíduos ps acordos, os contratos, asparcerias. A tradição moderna se expande, com assincronias, emesferas diferentes: na vida pública, na privada, na empresa, na escola,nos hospitais. Começamos desde cedo a tratar as nossas crianças comose fossem autônomos para que chegem a sê-lo. 'Seria absurdo pretenderque as crianças e jovens façam tudo o que seus pais mandam até os 21anoseapartirdessemomento se transformem magicamente em adultosautônomos. O treinamento da autonomia, embora gradual comoqualquer treinamento, deve começar desde cedo.

Acredito que a implementação da educação física,atividade não obrigatória nos contextos escolares, poderia ser umreforço para a tradição democrática. Eliminaria o poder coercitivo)legal que os professores de educação física possuem sobre os alunos.Os obrigaria á ser criativos no planejamento da oferta de atividadescorporais e estarem atentos às demandas dos alunos: a sua autonomiae necessidades de construção de seus " eus" e de seus relacionamentos

-

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No fundo acredito que a transformação da educação Física em atividadenão obrigatória pode colaborar muito mais com a construção depersonalidades e inter-relações democráticas que muitas palavrasescritas nessa direção, embora sejam essas palavras uma grandecontribuição para se mudar o estatuto legal da educação física nocontexto escolar.

A / f O K J 6

1 Ver o capítulo 1.2 O trabalho mais elaborado e lúcido da concepção acredito seja o de Bratch

(1992, cap.2).3 Uma crítica ainda válida aos' 'excessos' 'do funcionalismo foi formulada

por Lévi-Strauss (cf. Lévi-Strauss, 1975).4As pesquisas de Sérgio Costa Ribeiro e sua equipe têm demonstrado

claramente a alta capacidade de exclusão do sistema educativo brasileiro. Contudoo Brasil realizou uma integração da nacionalidade e de aceitação de valores poroutros caminhos.

5 Cf. Lovisolo, 1989, especialmente capítulo V.6 É bom lembrar que temos duas formas ou perspectivas dominantes para

entender a conduta dos indivíduos. Sob a primeira perspectiva, que podemosdenominar de homus economicus, entendemos que o agente atua para alcançarvalores, objetivos, interesses ou finalidades mobilizando meios a seu dispor eenfrentando condições que não pode mobilizar. Sob a segunda, que podemoschamar de homus sociologicus, o ator social desempenha um papel, ou seja, atuaa partir de regras sociais. Os termos de agente e ator servem para indicar qual dasperspectivas usamos para explicaraação ou conduta. Embora não sejam teoricamenteintegradas elas podem ser combinadas, por exemplo, quando sob a perspectiva doagente consideramos as normas como condições.

7 Recomendo a leitura dos trabalhos de Boudon,1979, e Elster, 1983.8 Tal confusão é muito freqüente nos trabalhos de história da educação e da

educação física. Os autores habitualmente tomam as intenções do legislador ou dopolítico como espelho da realidade.

9 Cf. Elias 1990 e 1992.10 Cf. Elias 1992, especialmente Introdução e os capítulos III e V.11 A questão da correspondência entre valores e práticas, mediada pelos

sentidos construídos pelos atores sociais, é ainda um campo interessante depesquisa. Ver, como exemplos de investimentos nessa direção, as dissertações de

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Soares (1989), Santiago (1993) e Mendonça (1993).12Cf. Giddens, 1993.13 No filme Em nome do pai, a recuperação do espírito de luta do principal

personagem está estreitamente vinculada à recuperação do corpo por meio daginástica que pratica em sua cela.

14 A economista inglesa Joan Robinson observou que, em seu pais, oscapitalistas foram grandemente inovadores em contextos de lutas intensas dostrabalhadores. Ou seja, as lutas dos trabalhadores obrigaram os capitalistas amodernizar-se. O efeito de inovação provavelmente não estava entre as intençõesdos trabalhadores. O exemplo sugere mais uma vez a dificuldade de aplicarprincípios avaliativos gerais na interpretação do social.

15 Cf. Elias, N. (1992).l6Cf.Finley,M. (1988).17 Algumas destas diferenças foram tematizadas por Anatol Rapapport.18 Sobre as lutas esportivas na Grécia conferir o trabalho de Poliakoff (1987),19 Cf. Elias, N. (1992).MUso aqui o termo "configuração" no sentido dado por Elias (1980).11 Meus comentários sobre o futebol são devedores das trocas com Antônio

Jorge G. Soares.22 Cf. capítulo 2.23 Cf. Da Silva ( l 992).

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Capítulo 4Esporte e movimento pelasaúde: notas de pesquisa.

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Introdução: o paradoxo do progresso e a saúde

Uma das formas mais freqüente e destacada de entender opresente, consiste em situá-lo num complexo de relações com opassado e o futuro. Quando realizamos esta ação, a questão avaliativa,isto é, as comparações do presente que construímos com o passado quereconstruímos, e também com o futuro que imaginamos, torna-secentral. A avaliação do presente torna-se assim produto também dasrelações com o passado e o futuro.

Uma das perguntas que habitualmente orienta o trabalhocomparativo, em diferentes áreas da ati vidade.humana, é a interrogaçãosobre o progresso em relação ao passado. Essa pergunta é habitual nocampo dos esportes competitivos, tanto entre os especialistas quantoentre os desportistas amadores e os apreciadores dós esportes. Temos,assim, uma espécie de hábito, e toda uma linguagem, que pareceobrigar-nos a realizar esse tipo de comparação. Comparamos asmarcas atléticas ou as formas de jogos coletivos do presente com osdo passado e hipotetizamos sobre os desempenhos, futuros, queremossaber se o progresso é mais ou menos contínuo ou se há um limite paraas potencialidades humanas. Porém, a comparação também aparecequando nos situamos no ponto de vista de avaliar a educação física eas atividades corporai s não vinculadas ao esporte competitivo. Quando,por exemplo, pensamos e avaliamos as atividades culturais em termosde sua contribuição para o lazer, a recreação, os padrões estéticos, desaúde e ainda sua contribuição para a produção cultural, da moral e dapolítica.

A idéia de progresso aparece então como tendo sido, e aindaé, fundamental para nossa cultura, tanto quando a defendemos quandoa atacamos; tanto então quando defendemos a existência de algum tipo

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de progresso como quando reagimos negativamente às propostasconcretas ou à própria idéia em si mesma. A idéia é suficientementecentral como para que o presente, quando definido como crise, sejatanto entendido como resultado da diminuição das esperanças noprogresso, por causa dos empecilhos ou obstáculos que o freiam,quanto da perda nas esperanças que a própria idéia de progressoprovocou durante longo tempo. NoBrasil, temas como desenvolvimentoeconômico, social e consolidação democrática estão profundamentevinculados ao campo semântico do progresso. Os políticos, bemsabemos, usame abusam das esperanças sobre o progresso: econômico,social e cultural. A idéia de progresso é então importante poisestabelece um sentido, uma finalidade, uma direcionalidade para o agirhumano. A crise da idéia de progresso significa, conseqüentemente, umabalo, uma quebra do próprio sentido do agir humano. A idéia deprogresso foi um importante doador de sentido anosso estar no mundo.Há vozes que podem defender o ponto de vista de que poderíamos estare agir muito bem sem a idéia de progresso, e de fato contam com bonsargumentos para apoir essa convocação. Pareceria, contudo, que aindanão nos ofereceram uma idéia suficientemente atraente e prática paraabandonarmos a idéia de progresso.

As respostas à pergunta sobre o progresso compõem noentanto um campo conflitivo, pois sob diversos pontos de vista (morale estético, por exemplo) é difícil, e talvez impossível, afirmar queestamos melhor ou pior que no passado. Os críticos do progresso dopresente, apoiam-se de praxe nesses pontos de vista para criticarespecialmente os otimistas do progresso, aos que entendem que oprogresso estaria processando-se em todos os campos da atividadehumana ou, pelo menos, em campos considerados centrais, significativose valiosos. A crítica à idéia de progresso significa um esvaziamento dosentido do mundo. De fato, se partirmos da idéia de que não hápossibilidade de progresso espiritual ou material no mundo muito doquefazemosperde seu sentidode longo prazo. Perdemosum referencialsignificativo para orientar e julgar nosso estar no mundo. A idéia deprogresso é de tamanha significação que podemos estudar a modernidadesob o ponto de vista das afirmações e reações ao progresso.1

112

o• ~\ \O relativismo é o principal crítico da idéia de progresso. OYs

relativismo não é contudo uma idéia fora de lugar, malvada e sem ^fundamentos. Enfrentamos, de fato, obstáculos consideráveis pa ra /§afirmarmos o progresso da pintura moderna em relação à clássica, para * f

entender que Joyce é superior a Cervantes ou que nossos padrões j1^morais são superiores aos da Grécia clássica ou aos de uma tribo ^famazônica. Temos, assim, muitas dificuldades em formular argumentossólidos que nos levem, sobretudo, a aceitar o progresso estético emoral. Porém, é também muito complicado estabelecera superioridadeda física relativista em relação à física clássica, neste caso a discussãodesliza para campos altamente sofisticados da história e epistemologiada ciência.2 Todos esses objetos pareceriam ser portanto nãocomparáveis ou incomensuráveis, como se afirma numa linguageirimais técnica. Assim, o relativismo opera a partir de dificuldades reais\ «,em se estabelecer o progresso e empurra na direção de se pensar quea própria idéia pode provocar problemas maiores do que aqueles queparece querer solucionar. Por outro lado, o relativismo apresenta-secomo uma estratégia civilizatória baseada na tolerância e potencialmenteassociável com o pragmatismo.3 Se, de fato, não podemos^estabelecerrelações de superioridade ou inferioridade.'em quais argumentosbasearíamos os esforços de colonização, civilização ou conscientizaçãodo outro, daquele que nos é diferente? Neste sentido, o relativismo éuma salutar reação contra os crimes cometidos em nome da confiançano progresso. O relativismo nos convida a admirar e conviver com adiferença e com os diferentes e a realizar um esforço de compreensãodo outro, ao invés de um trabalho de domesticação ou transformação.Assim, o relativismo não, aparece como uma idéia fora de lugar,malvada e sem fundamentos. . '

O que denominamos relativismo pode ser entendido, emboranão seja apenas isso, como um poderoso movimento de reação à idéiade progresso, sobretudo nas interpretações sobre o progresso formuladasdurante o século XIX. O relativismo antropológico criticou a idéia dacomparação entre o passado e .o futuro, de modo mais geral criticou acomparação avaliativa entre culturas diferentes sob o ponto de vistamoral. Ou seja, o relativismo defendeu a idéia de que nos é impossível

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estabelecer relações de inferioridade ou superioridadeentreas culturas.4

O relativismo epistemológico atacou nosso entendimento da ciênciacomo processo de constante superação, pois afirmou que as teorias nãosão comparáveis. No campo das artes, o relativismo também recusourepresentá-las como constituindo um processo de evolução. As críticasrelativistas colocaram pedras no entendimento dó mundo social comoprocesso evolutivo, de superação de fases ou estados anteriores.Digamos que o relativismo nos convida a valorizar as diversidades dasformas existentes, naíuraise sociais, ao invésde valorizar suaevolução.

Se houve um tempo no qual era politicamente correto expandiro progresso, atualmente tornou-se politicamente correto a defesa dadiversidade. Estamos hoje imersos, com nossas incertezas e dúvidas,nos terriçnos ,005 relaíiyismos e dos argumentos que defendem aimpossibilidade da comparação em termos de superior e inferior, etambém das impossibilidades de responder clara e distintamente à

.-questão.de se estamos melhor ou pior que no passado em termosmorais, estéticos e mesmo em termos de conhecimento científico.Assim, a noção de progresso, que durante bastante tempo parecia darum sentido, uma direção, uma finalidade ao processo histórico, já nãopossui o mesmo poder iluminador.

Há, contudo, relativo consenso em afirmar o progresso emalgumas áreas do fazer humano. Em primeiro lugar, o progressotecnológico, refletido basicamente no aumento da produtividade dotrabalho, aparece como inegável campo de progressos, embora aavaliação se complique quando consideramos os efeitos negativos damassificação tecnológica sobre o meio ambiente e também sobrepopulações específicas. Em segundo lugar, cita-se o progresso emtermos do aumento da população e da esperança de vida, isto é, dalongevidade, como áreas menos conflitivas de consenso sobre oprogresso. O aperfeiçoamento tecnológico, o aumento da populaçãoe da esperança de vida estão por certo estreitamente relacionados.Entendemos que o aumento da população e da longevidade indicam oprogresso na saúde das populações, possibilitado por inovaçõestecnológicas que fazem mais leves e menos desgastante os diversostipos de trabalho e mais saudáveis as condições de vida, sobretudo na

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ampliação dos sistemas de esgotos e água tratada é na democratizaçãodo acesso aos meios de prevenção e cura das doenças. De fato, osprogressos em pauta não se distribuem uniformemente pelo planeta,dentro dos países e entre as regiões. A luta pela igualdade na distribuiçãodos benefícios do progresso continua sendo um poderoso motor doagir humano.

Num mundo relativista emerge como um paradoxo o acordo,quase uma certeza amplamente compartilhada, sobre a importância doprogresso no campo da saúde. Esse acordo destaca o campo da saúdecomo sendo muito especial para a confiança e ação dos que acreditamem alguma forma de progresso. Será esse acordo uma das últimastrincheiras da idéia de Progresso?

A longevidade, ou a esperança de vidaf^nlu^fláá flJHkum indicador privilegiado e sintético para se afirmar o progresso no >campo da saúde. Se as pessoas tivessem que escolher um país para

•Prt"imi l -lirtjnnriiinn i n ..--.,....._._

viver e apenas contassem com indicadores de educarão, FéHÍe longevidade, não duvido que a maioria escolheria para morar o paiscom melhor indicador de longevidade. O resultado hipotético, porémsensato, do jogo não menos hipotético de escolha entre países, indicaa importância assumida pela esperança de vida.5

De fato, também podemos fazê-lo no campo do atletismo, porexemplo, quando comparamos os registros do presente com os dopassado, chegando aestimar que háprogresso crescente no desempenhofísico dos atletas. De fato, também em relação ao progresso esportivops efeitos perversos ou negativos mencionados, principalmente os quese referem à saúde dos ex-atletas e à perda do sentido lúdico do esporte,são significativos para alguns relativizadores e críticos do progressono campo esportivo. Criticam-se os esforços desmedidos para superaras marcas do passado que provocariam a deterioração, por vezes,permanente, da saúde dos ex-atletas.6 J

Assim, parece que poderíamos falar de progresso nos casos quepodemos estabelecer: a) algum tipo de medida comparativa entriTdesempenhos do passado e do presente e b) quando não se localizam^efeitos perversos ou negativos que relativizam os desempenhos^conseguidos. Destaca-se, como preenchendo ambos os critérios, a

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saúde, cujo progresso é registrado, especialmente, a partir do indicador"] sintético que é o aumento da longevidade das populações.

O progresso nessas dimensões, embora possa ser medido comalgumas dificuldades, não elimina as vozes críticas e descontentes emrelação a suas implicações éticas. Contudo, as dimensões citadas doprogresso (progresso tecnológico, aumento das populações e dalongevidade) possuem uma outra particularidade que nos interessa:a de serem bastante democráticas, no sentido que as pessoas comuns,sem formação especializada, podem manifestar suas opini ões valorativáse constatar no cotidiano as transformações associadas com essasdimensões do progresso. Ou seja, as pessoas podem no cotidianovisualizar o progresso tecnológico desde os computadores aos tratorese as máquinas de lavar roupas ou pratos e sentem no contexto oaumento da população e observam que a longevidade está mudando aimagem do mundo, no sentido que as populações são cada dia maisvelhas, acarretando efeitos significativos em vários campos. As pessoaspodem avaliar se estas coisas são boas ou ruins a partir do universo deseus conhecimentos práticos e de suas experiências de vida. Podem,então, emitir juízos com bastante independência das opiniões dosespecialistas, caso bastante mais difícil quando se discute o progressonos campos da física ou da pintura ou no da moralidade de sociedadessignificativamente diferentes. Em função de suas avaliações as pessoaspodem tanto se propor agir por mudanças radicais nos rumos dodesenvolvimento tecnológico quanto demandar meros aprimoramentosde seus percursos. Podementender, por exemplo, que muitos aparelhosde uso doméstico possuem mais programas que os necessários,tornando-se portanto caros sem necessidade e elaborar propostas parafazê-los mais simples e baratos. Ou podem mobilizar-se para acabarcom a energia nuclear ou fazê-lo para que os carros sejam maiseconômicos e seguros e os alimentos industrializados menos tóxicospara o organismo humano. Também podem discutir sobre os valorese as implicações do crescimento da população e, sobretudo, sobre opróprio valor da longevidade. A saúde torna-se portanto um campobastante democrático, no sentido de igualitário, de avaliações, propostase reivindicações.

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Acredito que em volta da saúde e da longevidade formou-se umpoderoso movimento agregativo que comparte valores e interesses etomou, ao longo do século, considerável magnitude e forçaespecialmente no Ocidente. Talvez seja o movimento social que possuimaior grau de acordo, apesar das tensões internas que o perpassam edaheterogeneidade própria de cada movimento, e isto sem dúvidas estárelacionado com as avaliações e possibilidades de progresso nessecampo. A manutenção da saúde, entendida não apenas negativamente,como estando livre de doenças, porém positivamente como estando /-\ i^em ou mantendo a forma, e da longevidade, estão crescentemente se ^tornando valores orientadores da vida das pessoas e aglutinadores de ointeresses de origens bem diferentes e contraditórios, como os do OEstado, das seguradoras, das indústrias, dos especialistas, de amplos Lsetores da sociedade e de correntes de pensamento religiosas e -^seculares.

Podemos partir então da constatação da existência de ummovimento pela saúde que, no entanto, assume íntensidades ecaracterísticas diferenciadas em cada contexto nacional ou regional.Podemos observar que instaurou-se nos movimentos pela saúde uma

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força emotiva e moral que impulsiona as pessoas.a viverem o máximopossível, mantendo a forma para chegar à velhice em condições físicas

V

e psicológicas de participação em diferentes esferas da vida social.velhice, assim, está deixando de ser pensada como um momento dereclusão, como um estado de aposentadoria, no sentido literal de ficar 3recluso em um aposento, como um informante diz para o pesquisador.A velhice está deixando de ser o-oposto da vida ativa, cujo símbolo foidurante muito tempo a juventude, para passar cada vez mais a serconsiderada como momento também dessa vida ativa. Há, nestequadro, uma espécie de revolução no cotidiano que passa tanto pela /preocupação com a saúde quanto pela resistência ou recusa a envelhecer, 'no sentido tradicional dessa expressão, ou seja, a sentir-se desgastado,usado demais, fora de circulação, enfim, um objeto do porão e daslembranças.7 Confrontamo-nos, portanto, com uma tendência para semodificar as representações sobre a velhice como momento depassividade, de inatividade e também da saúde como ausência de

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doença, como funcionamento silencioso do organismo. As pessoasparecem estar querendo crescentemente acumular anos sem perder'capacidade de participar, de circular, sem se sentirem ou serem vistoscomo usados e gastos. Rejeitam portanto a reclusão nos aposentosinteriores ou no porão, pretendem ficar na sala, na rua, enfim, na vidaativa. Também pareceriam estar querendo sentir-se física e mentalmentepotentes, bem dispostos, equilibrados, com capacidade de autocontroleentre tantas outras afirmações que sinalizam os significados que a saúdeestá adquirindo na sociedade.8

^ Acredito que o movimento pela saúde está provocando umareadequação daprópriaeducação física. Historicamente, há um poderosoveio constitutivo da educação física que já na visão de Locke, provávelcriador do termo, a vincula à formação de corpos sadios e potentes, sempreocupações pelo aspeto competitivo ou pela performance esportiva.Acredito que na tradição da educação física esse primeiro objetivo foideslocado —e por vezes minimizado, no domínio das propostas maisrecentes— por: de um lado, a preocupação pelas performances dosatletas e desportistas e, do outro, pelas propostas que atribuem àeducação física um papel formador das consciências críticas, dainteligência ou de qualquer outro valor não diretamente ancorado naespecificidade do trabalho com os corpos.9

s Parece-me que há sinais de que o movimento pela saúde faráretornar a educação física ao campo das preocupações com a saúde,- t • — r t T*^—" ~-*— »« !**»•-M*íj

entendida, entretanto, como uma noção de múltiplas dimensões:fisiológica, psicológica, estética, moral e espiritual, recreativa e desociabilidade. Diria então como hipótese que a educação físicajá está,e estará ainda mais no futuro, vinculada ao movimento pela saúde.Crescentemente, então, as atividades corporais e esportivas estarãomarcadas pelos múltiplos sentidos que interagem e desdobram-se emtorno da saúde. Devemos então nos perguntar até que ponto as críticasaos movimentos higienistas, realizadas no campo da história da educação,/• « ~—* • - • •--""" ' *•"• . -_^_ ~ —» -físicanão devem serrevisitadasereavaliadas. Sobretudo, quando essasintervenções, essas pastorais da higiene e da saúde, IQ foram apenas_ _ . _ . . — . . . . *——-pensadas, sob os pontos de vista que se autoproclamam de críticos,como estratégias de dominação, ao invés de também sê-lo como formas

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de intervenção que tentaram tanto promover o progresso quanto doarum sentido à vida humana. Ações de intervenção que distribuíramvalores e objetivos para a vida humana. Acredito que estamos hojemetidos no meio de uma imensa pastoral: o movimento pela saúde.Temos que começar a refletir e a entender os múltiplos sentidos eefeitos desse movimento no presente e na perspectiva de sua história,sobretudo se os especialistas e os não especialistas, e entre os primeiros,os educadores físicos11, pretendem desempenhar algum papelresponsável em seu seio.

Mudança de hábitos: crítica técnica e moral.

O movimento pela saúde pode ser inicialmente considerado, oudefinido, como um processo de agregação ou convergência de valorese interesses que implica uma remoralização da sociedade, por meio dosindivíduos, através da mudança de hábitoscotidianos que se expressam,sintética e centralmente, no momento atual, na luta contra a gordura,o fumo e a favor de manter a forma, corporal e espiritu..., por meio dehábitos alimentares, práticas esportivas e corporais que prolonguem avida tanto quanto for possível.12 Cada um desses aspectos seráconsiderado ao longo dó trabalho de modo sintético, exploratório enão conclusivo. Pretende-se mais formular algumas hipóteses parauma agenda de pesquisas do que propor conclusões sobre cada aspectoem particular ou sobre suas inter-relações.13

O movimento da saúde não é novo, possui uma históriaconsiderável que ainda deve ser realizada no caso do Brasil, emboramuitas de suas características locais sejam semelhantes às que podemser encontradas em outras realidades.14 Como tantos outros movimentospossui origens variadas e de difícil mapeamento e tem sido gerado tantocom a contribuição de especialistas no campo da saúde quanto de' * leigos", e tanto a partir de grupos com identidade, valores e objetivosreligiosos quanto de tipo secular.15 É muito importante realizar ahistória das variadas origens do movimento para não cairmos no errode pensar que é um mero produto das ações médicas, das pesquisascientíficas e dos especialistas do corpo, embora esses sejam agentes

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importantes dentro do movimento. Reconhecermos as origens variadase, em especial, asreligiosas e políticas, é importante para a compreensãodo movimento.

Embora haja diferenças consideráveis nas origens e nos modosde seu desenvolvimento, em cada contexto nacional ou regional, doiselementos aparecem como sendo bastante constantes e responsáveispelo seu êxito cultural: primeiro, a capacidade que o movimentodemonstra em tomar seus valores e objetivos em acordos culturais, emconsenso social; segundo, a capacidade que demonstra em agregarinteresses gerando organizações, regulações e ações a favor dosvalores e objetivos do movimento.r^ O primeiro elemento, a capacidade de gerar acordos culturais,'pareceria residir o ser facilitado pelo tipo de articulação discursiva domovimento entre os hábitos alimentares, os corporais e os estadospsíquicos. Apesar das diferenças notáveis em termos de regimes dealimentação e sonho, de terapêuticas e atividades corporais, e apesartambém das diferenças nos fundamentos filosóficos, científicos ereligiosos, o movimento da saúde estruturou-se e ganhou força a partirdo acordo sobre a necessidade de promover mudanças nos hábitos derelacionamento com nossos corpos e que isto implicava mudanças dasmentes, dos espíritos, das psiques ou das consciências. O movimentodemanda mudanças de atitudes, de estados de consciência para mudarhábitos corporais. Por outro lado, promete que a mudança nos hábitoscorporais gera mudanças nos estados psíquicos. Mais importante quea origem da mudança, consciência ou hábitos, o que importa é a difusãode uma circularidade entre corpo e mente. Assim, o movimento da

Q^ saúde possui como objetivo fundamental modificar hábitos de conduta,tanto mentais quanto corporais, tanto psíquicos quanto físicos. Demodo geral apela para o individualismo, a responsabilidade individual,a força de vontade pessoal para provocar a mudança nos hábitos,embora seja um movimento de apoio e solidariedade àqueles quepretendem modificar seus próprios hábitos. 16

A mudança nos hábitos, sob o ponto de vista meramente lógica,poderia estar fundamentada em três tipos de argumentos ou modos deintervenção: a) como uma mudança meramente técnica; b) corno

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mudança basicamente moral e c) como junção ou conjugação deaspectos técnicos e morais. Parece-me altamente plausível a hipótesede que as possibilidades-técnica, moral e suas combinações-, fazemparte da plasticidade ideológica do movimento, que permite enfatizarsomente os aspectos técnicos da mudança nos hábitos ou enfatizar osaspectos religiosos e morais, ou mesmo se pretender uma articulaçãoequilibrada de ambos os aspectos. Assim, por exemplo, a recomendaçãopara se abandonar o consumo das carnes vermelhas pode estar fundadatecnicamente na redução do colesterol. Contudo, também pode serpostulada a partir da necessidade moral de reduzir a agressividade, deaumentar a equanimidade, enfim, de controlar a violência no mundo.Também ambos argumentos, o técnico e o moral, podem ser combinadosem uma única fórmula. A plasticidade permite que, por exemplo,médicos, com argumentos técnicos, e religiosos, apenas com argumentosmorais, participem do movimento.

A plasticidade permite a pluralidade de leituras do movimentoe favorece sua aceitação, pois permite se resguardar a especificidadenos fundamentos, nos objetivos práticos e nos meios preferidos paraatingi-los por diferentes participantes (indivíduos ou grupos). Assim,também faz parte da história possível do movimento as ênfases namudança técnica ou na moral, ou os propósitos de articular nos planosdas representações e das ações ambos os aspectos. No plano dosfundamentos, parecem altamente significativas as diferenças entrefundamentos técnicos (fisiológicos ou psicológicos), éticos e religiosose também significativas são suas fôrmas de articulação e conciliação.

Acredito que na maioria dos estudos sobre as práticas esportivas)e corporais em nosso meio houve pouca atenção às origens das práticase de seus fundamentos morais. Em contraposição, dominou umaacentuada tendência critica para serem destacados os objetivos efundamentos técnicos e políticos, deixamos assim de prestar suficienteatenção aos aspectos religiosos e morais do esporte e das práticascorporais. Tal forma de entendimento ajudou a considerar as práticas lesportivas como pouco sérias, e pouco morais, apesar dos protestosCâpUlllVaO t-V/111 V JJVSUWV dWMltw, v fsvu«f ^^.v.«__, _j f

contrários atai tipo de interpretação. Observemos, contudo, que as-criticas às práticas corporais ou esportivas cujo objetivo é modelar o

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corpo, segundo padrões de beleza, possuem basicamente um fundamentomoral. Não seria moral dedicar-se a isso pois há outras coisas maisimportantes a serem feitas na vida, critica-se assim o individualismo, oegocentrismo ou o narcisismo. Também se afirma que preocupar-secom a estética demasiadamente, embora seja muito difícil definir o"demasiadamente", é uma atitude alienante pois de praxe se aceitaum padrão estético exterior ou imposto, assim a crítica se apoia emrazões de fundamento moral, basicamente no abandono da"autonomia*'. Contudo, os fundamentos morais poucas vezes sãoexplicitados. Há, no ar, uma certa má fé na exposição e defesa dosfundamentos. Por sua vez, o pensamento político e social críticoconsiderou durante longo tempo que as práticas esportivas, e sobretudoo esporte competitivo, significa uma alienação, uma falsa consciência,um desvio daquilo que importava: a reforma política e moral dasociedade, isto é, a nova ordem social, O pensamento crítico viu noesporte uma forma de desenvolvimento de uma' 'moralidade negativa'',de tipo competitiva e egoística, e deixou de observar os elementos deuma "moralidade positiva" talvez também presentes nas práticas.Assim a crítica ao esporte competitivo realizou-se a partir do desejo deuma moral cuja base de valores devia ser a solidariedade e o altruísmo.O pensamento crítico considerou que as práticas esportivas ocupavamo cotidiano das pessoas distanciando-as da política, e deslocandoconseqüentemente os verdadeiros problemas e interesses. Formulava-se então uma crítica política ao esporte cujo fundamento também é detipo moral, pois há alienação ou falta de responsabilidade no fato dededicar-se à coisas que obstaculizam construir um mundo mais justo,portanto mais moral. Deixou-se de considerar, por exemplo, que noesporte competitivo a regra se aplica igualitariamente e que estaexperiência é básica e constitutiva da vida democrática. Deixou-setambém de perceber que á dinâmica das competições levam aconsiderar o inimigo como mero adversário e obriga a aceitar o rodíziono pódio e no poder. Essas experiências, a do respeito da regra, a darepresentação do adversário e da conformidade em relação ao rodíziodo poder são atitudes esportivas que, ao mesmo tempo, são básicaspara o funcionamento das sociedades democráticas.17

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iO que estou propondo é que uma das leituras possíveis, e

Frutíferas, das práticas corporais e do esporte, pode ser realizada apartir da ótica das propostas e ações para a mudança nos hábitos,considerando tanto os componentes técnicos quanto os morais. UmaI-IMUIUVI U11UW kuntv \jj wniu u ••<••..•_» .c li 1 -.,- -.-—^_—iforma de fazer essa leitura, no momento, é vinculando os esportes a

' •• - < J t-ii.:* 1 ,»„—+Jas práticas corporais aos obj et i vos de mudança nos hábitos do movimento hpela saúde, Outra, é vinculando o esporte ao processo civilizador,!entendido basicamente também como mudança de hábitos, no sentido} ,̂proposto por Norbert Elias, de ser o esporteum conjunto de atividadesU—mirnéticas que permitem substituir a violência física pela simbólica econtribuem poderosamente, via o respeito das regras esportivas, parao desenvolvimento dos hábitos de autocontrole, de respeito às regrase do hábito de saber ganhar e perder considerando o outro como umadversário e não como inimigo que deve ser destruído. Ambas as

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O

leituras podem, teórica e empiricamente, ser relacionadas, e iremosapontando alguns desses relacionamentos.18 j

A vinculação que estamos propondo, entre esporte e mudança^de hábitos, significa redefinir os modos de fazermos pesquisa no campodo esporte. As pesquisas sobre as práticas esportivas e corporais sãohabitualmente entendidas como sendo exteriores ao objetivo principalde mudança nos hábitos que o movimento de saúde propõe e àstendências do processo civilizatório. Apesardospromotores do esporteterem enfatizado a vertente moral do esporte, entendida basicamentecomo mudança nos hábitos, este aspecto é pouco explorado naspesquisas sobre os esportes realizadas no país. Mesmo quando sereconhece, por exemplo, o papel'dos religiosos na promoção doesporte, poucos sentidos se extraem desse tipo de constatação. 19 J

De fato, muitas pesquisas não interrogam os informantes sobreseus hábitos alimentares nem sobre suas avaliações sobre os mesmos,ou sobre suas relações com os estimulantes (químicos, fumo, drogas,entre outros), nem se preocupam pelo universo geral das representaçõespelas quais os informantes dão sentido a suas práticas esportivas. Naárea da educação física dominaram as pesquisas de tipo'' survey'', comum recorte acentuado das possibilidades de entendimento e de respostapor parte dos entrevistados, que resulta num recorte das significações,

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portanto do entendimento das condutas objeto das pesquisas. Quandoo informante declara que faz uma atividade para manter a forma, porexemplo, pouco ficamos sabendo sobre o significado dessa expressão.Mais ainda, domina o entendimento que manter a forma estáestreitamente vinculado a meras técnicas médicas de saúde ou aodomínio de padrões estéticos. Assim, os significados morais de manter

!a forma esvaiem-se, perdem qualquer sentido. Manter a forma podetanto ter como referência um padrão de estética corporal quanto umestado fisiológico e psicológico desejável, ou todos esses objetivos-

^ significados ao mesmo tempo. Porém, pode também enviar-nos paraJ adimensão moral do autocontrole, da responsabilidade, da sociabilidadeí entre tantas outras.9 r * Não temos, por outro lado, ainda clareado as relações que se

'estabelecem entre a estética e a saúde. De fato, podemos estarentrando, ou podemos já estar no meio de representações queidentificam ou igualam certos padrões estéticos com indicadores desaúde atual ou futura e com a vigência de sinais morais. Um abdômen jde homem sem gorduras parece haver-se tornado hoje tanto um padrãoestético quanto um indicador, presente ou futuro, de saúde. Porémpode ao mesmo tempo ser entendido como sinais de estados morais?Uma mulher com corpo firme, sem gordura visível nem celulites é umpadrão estético valorizado, entretanto não é ao mesmo tempo umindicador de saúde, de hábitos alimentares e de práticas corporais,enfim de um autocontrole e de uma moral que permitem manter econstruir esse corpo? Ou seja, não estaremos entrando ou construindoum sistema de representações sobre o corpo pelo qual os indicadoresestéticos, de saúde e morai s se mimetizam, se confundem, se sobrepõem?

Observemos que também no lazer podem existir multiplicidadesde sentidos. O lazer pode ser entendido como mero momento lúdicoe enquanto tal Valorizado. Sob este ponto de vista, o lazer de jogarpôquer ou o de realizar caminhadas ecológicas situam-se no mesmonível, no da satisfação subjetivado jogador ou do caminhante. Entretanto,os anúncios do lazer ecológico estão nos meios de comunicação e nosmurais escolares, não sendo este o caso das mesas de pôquer. O lazerecológico situa-se nos marcos de uma nova moral no relacionamento

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com a natureza. Há, portanto, uma moralidade do lazer? Há lazeresmorais, outros menos morais e alguns francamente imorais? Como seestruturam essas classificações em nossa cultura? Podemos tambémconsiderar o lazer de modo terapêutico, como momento necessáriopara superar ou compensar o estresse e desequilíbrios da vida.Evidentemente que neste caso vinculamos o lazer às aspirações desaúde. O lazer pode, em vários sentidos, estar ocupando o lugar ou ospapéis da oração. A oração sempre foi vista pelo crente como modo dereencontro com a paz de espírito, como superação das dores, daspreocupações, enfim, do estresse e desequilíbrios da vida. Podemosentão pensar a atividade corporal a partir de um modelo religioso?Pessoalmente acredito nas possibilidades de ampliação de nossoentendimento que poderíamos obter desse tipo de leitura.

, A prática corporal pode então ser entendida como forma de sealcançar um equilíbrio, como caminho que permite o crescimento doautocontrole, do domínio sobre si mesmo. Evidentemente que estesobjetivos tem como referência um horizonte moral e civilizatório quedemanda em nossas sociedades um primado dos mecanismos deautocontrole sobre os de controle externo. A própria alimentação já foipostulada como caminho de redução das condutas violentase agressivase o esporte como forma de canalização e de sublimação das tendênciasagressivas. Na retomada do esporte de alto nível nas olimpíadas,pretendeu-se encontrarumaatividademiméticaqueajudasseasubstituiras guerras pelas competições esportivas. O horizonte moral que esses.exemplos destacam é freqüentemente esquecido ou não relacionadonas pesquisas que, apressadamente, reduzem os significados do agirhumano. Assim, o aspectomoraldo movimentodasaúdeé desconhecido,como também é desconhecida a participação do esporte na formaçãodo indivíduo, no crescimento das formas de domínio sobre si mesmo,um componente central do aspecto moral do movimento pela saúde.

Em sua história, ó movimento pela saúde não criticou apenastecnicamente hábitos que estavam errados em termos da preservaçãoda saúde. Há por certo médicos que realizam sua intervenção no seiodo movimento de um modo técnico, informando que se quisermosviver mais devemos seguir um conjunto de regras técnicas que

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significam mudar nossos hábitos. Colocam suas recomendações sernlevar em consideração, pelo menos abertamente, avaliações de tipoéticas e estéticas sobre a gordura, o fumo ou a inatividade física.Contudo, o movimento no seu conjunto, aberta ou implicitamente,sempre indicou que esses hábitos implicam algum tipo de defeito,perversão ou falha moral. A luta contra o alcolismo foi um tipo de açãccujo conteúdo moral foi claro e dominante. Entretanto, infiltra-seatualmente na crítica ao gordo» ao fumante e ao inativo, uma dimensãomoral. A luta contra esses males é encarada por grupos e participantesdo movimento pela saúde como missão e é difícil distingui-la dasmissões religiosas ou dos movimentos moralizantes. Essas figuras -aido gordo, do inativo e do fumante- não se caracterizam apenas ponpossuir hábitos que provocam danos à saúde e diminuem as chances de\ "tf-vida, carregam também algum grau de estigma moral, sobretudo "quando persistem nessas condutas desajustadas e que, sob o ponto devista moral, atentariam contra a vida humana. A gordura situa-se assimna longa tradição religiosa de crítica à gula. Junto com o alcoolismo,o uso de drogas e o fumo, a gordura é situada no polo das condutashumanas marcadas pela falta de autocontrole, de domínio sobre simesmo, da falta de força de vontade e perseverança, de entrega aprazeres fáceis. Os maus hábitos, principais inimigos do movimento dasaúde, são portanto associados à linguagem da crítica moral.

A junção da crítica técnica e moral aos hábitos contrários àN

saúde é uma característica central e recorrente do movimento. Sob esteponto de vista, o movimento aspira à formação de uma comunidademoral. Alcoólicos Anônimos, Vigilantes do Peso e grupos antifumosão organizações com padrões comuns que objetivam modificarhábitos na medida que constróem uma nova personalidade moral. Aconfissão, o reconhecimento da culpa e ,das fraquezas e os rituaisgrupais, são práticas comuns das organizações que procuram formarum novo ser, produzir uma conversão.Foram e são também práticas demuitos movimentos religiosos. Entretanto, é possível trabalhar com ahipótese de que contribuiu com o crescimento do movimento um certoocultamento da crítica moral, destacando-se nas propostas de mudançanos hábitos uma linguagem centrada nos interesses na saúde, na;

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longevidade e num corpo sadio que, cada vez mais, torna-se sinônimode um corpo estético. Digamos que o movimento para universalizar-se adotou a linguagem dos interesses, ocultando sua tradição de criticamoral, embora a moralidade apareça nas bordas das criticas aos maushábitos. De fato, devemos reconhecer queédifícil, senão absolutamenteimpossível, criar um movimento social sem algum tipo de apoio naindignação, no sentimento moral, e na subseqüente crítica moral.

Agregação de interesses

Afirmamos acima que, em segundo lugar, o movimento dasaúde é forte e cresceu rapidamente porque possibilitou agregarinteresses de diversos atores sociais e mesmo de atores sociais quepodem estar em confronto em outros movimentos. Em vários sentidos,é nos Estados Unidos e em países da Europa onde essa agregação deinteresses pode ser percebida mais claramente, embora seus sinais já sedeixem sentir no Brasil. Seria muito difícil explicar a rápida expansãodo movimento sem levar em consideração a sociologia da agregaçãodos interesses que promove sobre a base de seus aspectos técnicos emorais. Realizemos uma breve Descrição-desses atores e de seusinteresses. . • . •

f Para um dos atores principais das sociedades modernas, osestados dos países desenvolvidos, passou, a ser um bom negócioinvestir na promoção da saúde, sobretudo quando se considera que"Hrvmino a r»r\rãcientí>i^5/-» Hf»7mf» a ç nrátírãc Af\ trm\rimt*ntn. ne»]? cnúHí*"domina a representação de que as práticas .do movimento pela saúderedundam em menores taxas de doenças .e, como conseqüência, emmenores gastos médicos e hospitalares e maior produtividade nocampo da produção. Reduzir as internações, sobretudo as provocadáTpelas doenças cardíacas e o câncer, tornou-se um objetivo das políticasde saúde. Em relação às primeiras domina o quadro, gerado pelaspesquisas, que a interação somativa entre gordura, fumo e vidasedentária aumentam significativamente as taxas de risco de doençascardíacas. O fumo tornou-se o principal agente provocador do câncerde pulmão, e existe a impressão, não fundada claramente em pesquisas,\Íe que uma alimentação inadequada contribuiria com diversas formas

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de câncer. Neste quadro, a ação dos estados a favor do movimento dasaúde aparece como baseada nos sólidos interesses da política públicano campo da saúde. Os estados reforçaram o movimento pela saúdecom campanhas publicitárias, com apoios explícitos e com regulaçõeslegais que limitaram as possibilidades dos maus hábitos. As regulaçõesque restringem o fumo, que limitam sua publicidade e que taxa cada vezmais o consumidor de cigarros são exemplos claros. E de se destacarque no combate ao fumo, o movimento pela saúde chega a tomarcaracterísticas de uma guerra santa, de uma luta religiosa contra oshereges que perseveram em hábitos contrários aos objetivos de saúdee longevidade. Há áreas dos Estados Unidos onde a guerra simbólicados não fumantes contra os fumantes pode sem dúvida ser comparadaa muitas guerras religiosas.

Um segundo ator importante são as empresas seguradoras,indissoluvelmente vinculadas como é sabido ao capital financeiro, quepromovem uma política de preços e descontos destinadas a favoreceraos não íumantes e àqueles que têm medidas de peso dentro das taxasde menor risco. Favorecem também então as práticas corporais eesportivas. As empresas de seguros são poderosos agentes capazes deencomendar pesquisas no campo da saúde e divulgar seus resultadosnos meios de comunicação para formar no público atitudes favoráveisà orientação moral e técnica do movimento. As seguradoras pressionamos estados para que tomem medidas no campo da segurança notransporte e na indústria e apoiam as lutas do movimento pela proibiçãodo fumo nos espaços públicos. Participam da guerra contra o fumo,contra o consumo de gorduras e a favor das práticas esportivas. Suaação salienta claramente que os interesses de diferentes segmentos daprodução podem ser contraditórios, porém também podem ser apenastransitoriamente contraditórios. Um exemplo dessa situação é a indústriaautomotriz, em princípio não muito interessada em normas de segurançaque aumentavam os custos dos automóveis e que adequou-se à novasituação quando, obrigadas pelas regulações legais, todas as empresastiveram que enfrentar as mesmas normas e portanto terem os mesmoscustos.

Um terceiro ator significativo é o conjunto de empresas

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( 3

vinculadas à produção de alimentos, material e aparelhos desportivos,vitaminas e complementos dietéticos, higiene e cosméticos. De fato,em vários momentos, e especialmente a indústria alimentar, entrou emconflitos com o movimento da saúde. As criticas do movimento aosconservantes, corantes e sabores artificiais foi e é ainda dura. Contudo,temos a impressão que uma boa parcela das empresas produtoras dealimentos mudou sua conduta e procura alinhavar sua oferta em funçãodas demandas do movimento da saúde. A visita aos supermercadospermite conferir como as embalagens registram essa adequação,oferecendo produtos de baixo nivel de gordura, produtos vitaminadose com conservantes, corantes e sabores que se declaram naturais. Aindústria aparece ofertando uma ampla gama de possibilidades deescolha e construindo a imagem de um consumidor soberano que podeescolher entre o produto com gordura ou sem ela, com açúcar ou sem,entre arroz ou trigo integral ou não integral. Podemos considerar queo movimento da saúde, apesar dos conflitos iniciais, deu novasoportunidades à indústria alimentar. Evidentemente que no campo daroupa e do calçado esportivo e da produção de aparelhos e instrumentospara se manter em .forma, criou-se um novo segmento industrial queganha espaço crescente no campo da produção e da propaganda.

Os especialistas da saúde, em especial a classe médica, porémtambém os educadores físicos, os fisioterapeutas, os massagistas eoutros militam ativamente no campo do movimento pela saúde. Geramdiscursos e dietas, métodos de emagrecimento, tratamentos antifumo,realizam pesquisas para fundamentar sua intervenção, entre outrosprodutos e "atividades, por vezes em estreita colaboração com aindústria alimentar e farmacêutica. Escrevem artigos, livros e falam nosmeios de comunicação diariamente. Criam clínicas, institutos, academiaspara práticas esportivas, programas públicos e privadosparaa realizaçãodos objetivos do movimento: contra a gordura, contra o fumo a favorda atividade corporal. Na promoção da saúde os especialistasencontraram um campo que lhes permite lutar pelo prestigio na mídiae na moda e fazer bons negócios, protegidos pelo convencimentomoral de que estão lutando por uma causa justa e boa.

• Com diferentes ritmos e intensidades as pessoas de diferentes

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grupos sociais aderem aos objetivos e práticas do movimento pelasaúde. Podemos por toda parte constatar que os valores de longevidadee de manter a forma são aceitos como quase evidências que nãodemandam muitos argumentos a favor. Os objetivos principais e atuaisdo movimento, o combate à inatividade corporal, ao fumo e à gorduratambém estão espalhando-se rapidamente. Ao mesmo tempo semultiplicam as propostas de atividades corporais e de mudança noshábitos alimentares. Temos assim conformado um campo amplo paraa educação física, quer no plano da intervenção, de formulação depropostas e sua implementação, quer no da investigação das múltiplasdimensões desse poderoso processo que temos diante de todos nós.

1 Os trabalhos de Nisbet e Lê Goffsobre a idéia de progresso e suas reaçõessão um excelente guia de leituras.

2 A importância da obra de Kuhn nesse campo deve ser destacada.3 Este é o caso do filósofo americano R. Rorty.* A expressão mais clara destas posições estão no campo da antropologia

cultural ou social.5 A importância concedida à saúde e refletida na esperança de vida, à

manutenção da forma física, à atividade corporal destinada a estetizar o corpo, àsatividades corporais que objetivam a modificar hábitos corporais e mentaisdesmente afirmações correntes na educação física, tais como que a sociedadetecnológica ou capitalista não confere importância ao corpo. Devemos considerar,entretanto, que na educação física também circula com a mesma desenvoltura aafirmação, de intencional idade crítica, da sociedade tecnológica promover acorpolatria. Por vezes não fica claro se ambas críticas bem referem-s a níveisdiferentes de leitura bem se são francamente contraditórias.

6Esse estilo de crítica hoje também circula nos países ditos' 'ex-socialistas''e não apenas nos países com economia capitalista avançada.

7 Cf. a dissertação de Santiago (1993).8Pesquisas em cursos no MEF-UGF indicam que em diferentes atividades

corporais a atribuição de sentido das mesmas se estabelece pela sua contribuiçãopara o equilíbrio físico e mental. Ainda que diferentes informantes se pensem a

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partir da distinção entre o corporal e mental, o físico e o psicológico, o corpo e oespírito domina amplamente o entendimento de seu relacionamento, quase pensadocomo circularidade ou condicionamento recíproco entre saúde ou disposiçãocorporal e espiritual.

9 As propostas de uma educação ísica conscientizadora aparecem comofundadas em três fonles. A primeira, e mais óbvia, é a fonte política, o educadorfísico é concebido como um agente político. A segunda, é a recusa à divisão dotrabalho dos especialistas, uns formando as mentes eoutros os corpos. Pretende-sereconstituir a unidade da formação. A terceira, pareceria residir no sentimento deinferioridade dos educadores físicos em relação aos educadores das mentes e daprópria educação física diante das outras áreas disciplinares nas universidades. Dosentimento de inferioridade pareceria emergira "ansiedade" por um objeto teóricopróprio. O trabalho de Sérgio M. (1989) dá abundantes sinais para confirmar essainterpretação.

10 O sentido das pastorais da higiene e da saúde pode ser encontrado noexcelente trabalho de Vigarello (1988).

11 Sobre a expressão educadores físicos conferir o Capitulo 1.12 A obra de Michael S. Goldstein. (1992), é de leitura obrigatória para

comprender o movimento nos Estados Unidos.IJ Várias pesquisas em curso no MEF-UGF, e algumas já concluídas,

focalizam aspectos parciais dessas inter-relações quer em perspectiva histórica,quer a partir do presente, tomando como referências a intervenção no campo daformação da criança, da-velhice e a saúde, da gordura e da saúde, das praticasalternativas ou soft no campo da educação física, entre outras.

14 Essa intenção faz parte de nosso projeto de pesquisa A formação doscorpos no Brasil em curso no MEF-LJGF.

15 As fontes do movimento da saúde são altamente variadas. Para dar umexemplo dessa variedade diria queo trabalho de Savana, A Jtsiologia do gosto, ondepretende criar uma ciência da gastronomia, ensinando a comer e cozinhar,preocupa-se pelos aspectos que relacionam alimentação a saúde e atividadecorporal a saúde. Por ser aparentemente um contrasenso. o exemplo salienta ahistória das preocupações pela saúde e sua incidência num texto que ensina que oalô de comer é o prazer que fica quando os outros nos abandonam.

16 O modelo aparece com toda clareza entre: alcoólicos anônimos evigilantes do peso.

17 Os trabalhos de Norbet Elias são fundamentais para o entendimento daproblemática teórica desporte-política-sociedade. Interpretações significativas sobreo tema.foram elaboradas por Roberto DaMatta. tomando como objeto o futebol noBrasil. Conferir também o livro de A.J. Soares, Malandragem no gramado: odeclínio de uma identidade.

18 R. Girard. A violência e o Sagrado, desenvolveu uma teorização geralsobre os processos mjimóticos de controle da violência no campo religioso.

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19 A adesão, e mesmo o entusiasmo, de grupos religiosos pelo esporte nüonecessita que o considerem essencialmente moral ou moralizador. É suficenle quese lhe outorgue o caráter de "mal menor" que subsitui ou distancia dos "malesmaiores" .

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CapítuloS

Ciências do esporte:interdisciplinaridade

ou mediação

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Introdução: análise e intervenção

Acredito que podemos aproximarmo-nos do tema da '~iníerdisciplinaridade nas ciências do esporte a partir de vários pontos ^de vista e com várias questões que os estruturem. Trata-se, então,especificar de onde falamos e quais questões tentamos esclarecer.Emergem, de chofre, três áreas de questões que me parecem relevantese sobre as quais irei alinhavando minha exposição.

A primeira, refere-se aos tipos de acordos que estabelecemos^para falarmos de interdisciplinaridade. Num nível muito básico,poderíamos entender por interdisciplinaridade a utilização por umadisciplina de modelos teóricos ou conceitos elaborados em outra maisconsolidada, ainda no caso que essa utilização seja mais metafórica ealegórica que fiel.1 Num segundo nível, podemos entender poriníerdisciplinaridade o diálogo das disciplinas, a abertura dos ouvidos .e olhos de cada disciplina para os ditos e fazeres das outras e para /conseguirmos, pela via do entendimento dialógico, uma soma deesforços na solução de problemas teóricos e- práticos. De fato,pessoalmente, inclinar-me-ia a pensar que esse tipo de diálogo foi maisfecundo no campo da solução de problemas práticos do que teóricos./^Podemos pretender, no entanto, num nível de exigência ainda maio4 Çe com maiores esperanças, que a interdisciplinaridade derive em algumtipo de construção integrativa, holística, superadora dos pontos devistas parciais. Neste último sentido, a interdisciplinaridade aparececarregada pelos desejos da unidade e da transparência.

A primeira questão diz então: que significa a palavra,interdisciplinaridade para nós e que tipo de orientações e ações]esperamos de seus significados?.

A segunda questão, obriga-nos a definir o que entendemos por]

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Ciências do Esporte. Acredito que temos, pelo menos, duas grandes>pçoes~ou caminhos de respostas. O primeiro caminho entenderia que

Ciências do Esporte compõem um conjunto particular de ciências;*\|O segundo que as Ciências do Esporte são apenas aplicações das

iinatrizes ou paradigmas disciplinares ao campo dos fenõmenõs^quepodemos reconhecere agrupar como esportivos. Pessoalmente, inclino-me por pensar que as Ciências do Esporte constituem aplicações paraum campo específico de conhecimentos disciplinares gerais. Ou seja,não acredito na autonomia teórica das Ciências do Esporte. Penso queo esporte coloca problemas práticos que levam a trabalharmos comaplicações teóricas. Em casos felizes, os problemas práticos podemsolicitar reformulações teóricas em disciplinas particulares. Minhacrença me leva a pensar que não há um problema epistemológicoparticular das Ciências do Esporte e que, portanto, enfrentamos osmesmosproblemas epistemológicos e metodológicos que se apresentame discutem nas ciências da natureza e nas ciências humanas e sociais.Neste caso, o problema da interdisciplinaridade então, nas Ciências doEsporte e sob o ponto de vista teórico, não seria diferente do problemageral da interdisciplinaridade.r A terceira questão poderia assim ser formulada: quandofalamos^fre-Cigncias do Esporte, nos estamos referindo de fato^T

^/ciências ou estamos também incluindo técnicas, saberes e artes? ATespostaaestaquestãodependedosacordosquecheguemos estabelecer.Se, por exemplo, aceitamos que um problema prático das'' Ciências doEsporte" é preparar a seleção de futebol para o Mundial, devemosreconhecer que o programa de preparação implica conhecimentoscientíficos aplicados, experiência técnica acumulada, saberes e arte.Acredito que é neste tipo de problema que se centra grande parte denossas discussões e mal-estares. Insistirei bastante, portanto, sobreesta questão.

Devo, entretanto, realizar um esclarecimento prévio. Pretendofalar da interdisciplinaridade como cientista social e não como filósofoou epistemólogo. Evidentemente que, em minhas afirmações, háfilosofias em estado prático. Corresponde à competência filosóficateorizar sobre as filosofias em estado prático que os cientistas utilizam

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e nas quais acreditam, por vezes sem muito controle. Minhaspreocupações estão muito mais vinculadas ao como as disciplinasinteragem em contextos institucionais, universidades e institutos depesquisa, do que ao como deveriam interagir. Dizem então a respeitode certos atores sociais desempenhando papéis, culturalmenteestabelecidos, e também a respeito da ação dos agentes sociais que, porvezes, criam novos horizontes.2

Com o intuito da mapear as dificuldades, e esta ação já é umaaproximação, eu pediria que me acompanhem realizando uma dupladistinção -embora altamente inter-relacionados- entre, de um lado,a atitude academicista e a atitude intervencionista e, do outro, o lugardas ciências, das técnicas e das artes no campo dos esportes.

Conhecer e intervir

Conhecer uma coisa ou um processo é uma ação de graudiferente que a de intervir sobre ou em essa coisa ou processo. Os povosdomaram o fogo muito antes de poder explicar o mecanismo dacombustão: Conhecer significa, basicamente, analisar uma coisa ouprocesso. Conhecer significa* quê a coisa pode ser reduzida a seuselementos simples e processos básicos e, se a análise foi bem realizada,termos a possibilidade de reconstituir a coisa a partir dos elementossimples e dós processos básicos. Há, assim, uma atividade redutora oureducionista na construção científica: Trata-se então de desvendar umacaixa preta, criar uma teoria para dar .conta daquilo que acontece nacaixa, para estabelecer seu funcionamento interno e as relações entreas entradas e as saídas: Não.ha nenhuma necessidade interna, aoprocesso da análise, que mande, intervir ou modificar a coisa ouprocesso que está sendo analisado. Os astrofísicos estão, quandoescrevo estas notas, profundamente interessados na colisão de umcometa comum planeta, não pretendem, contudo, modificar ou intervirsobre esse fenômeno natural. Mais ainda, Cjuandooobsewadorrriodifica,por mera presença, o campo dos fenômenos observados, a intervençãotorna-se um problema e não um objetivo do processo de conhecimento.Temosciências quando podemos reduzir e explicar, não necessariamente

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quando podemos intervir.3

Podemos perfeitamente satisfazermo-nos com o conhecimentoderivado da análise se nos situarmos na tradição academicista queentende o conhecer, a pesquisa, como um valor, como um compromisso

que temos por estarmos no mundo, como missão encomendada porDeus ou como uma necessidade da_natureza humana. Assim, conhecer]é bom, independente das aplicações do conhecimento. A verdade é um

[valor e, para a tradição academicista,4 importa muito mais do que aeficiência da intervenção. Da mesma^maneira, que jogar ou praticaiesportes é bom, por ser lúdico, com independência dos resultado:psicológicos, fisiológicos ou políticos das práticas lúdicas e esportivas , vAs crianças, como é sabido, não esperaram pela teoria de Piaget pari 'se dedicarem a seus jogos. Ser criança, no Ocidente, é situar-se numa j|tradição de avaliação dojogo e dabrincadeira como atividade essencialA ̂boa, natural, gratuita e espontânea. Por isso, se alguém apenas pode '~~brincar o consideramos criança, imaturo, ainda não desenvolvido. Damesma forma, há uma longa tradição que afirma que conhecer é bom,natural, espontâneo. Em tempos marcados pelo utilitarismo,conservador ou revolucionário, parece-me que é muito bom manter!viva a tradição de que conhecer é um bem em si mesmo, independentedas utilidades imediatas ou mediatas que se derivem do conhecer.Sustento que temos que manter aberta a legitimidade da resposta,

5 i

Sustento que temos que manter aberta a legitimidade didiante da pergunta sobre a utilidade, de que conhecerconhecer serve nara sati^farprnarríalmpntpnncca admirara

serve paraconhecer, serve para satisfazer parcialmente nossa admiração diante domundo natural, social e cultural. ̂ > ] ^/\ pó RT~VA ̂ ~^ E^ Assim, por exemplo, enquanto cientista social, sinceramenteadmirado pelas repercussões, a participação e a paixão do povo noMundial de Futebol, posso tentar analisar os mecanismos presentes

^-nesses processo^sociais sem, entretanto, pretender modificar nem asformas organizativas nem os significados culturais do processo. Emalgum sentido meu trabalho situar-se-ia no campo das Ciências doEsporte. Contudo, minha ação de conhecimento não tenciona modificaro conhecido, e a modificação do conhecido, se existir, será apenas umaconseqüência não procurada do conhecimento. Entretanto, podeexistir outro tipo de observador, preocupado em intervir sobre o

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futebol nacional para alcançar resultados no próximo mundial. Assim,pode pretender utilizar ou aplicar conhecimentos científicos, acumularexperiência técnica, desenvolver saberes e artes para melhorar aseleção nacional. De fato, a maioria dos brasileiros quer intervir tantoescalando a seleção nacional ou estabelecendo o tipo de estratégia quedevedesenvolveremseusconfrontos. Corisideramo-nòs, anósmêsmos,expertos em futebol e a partir de nossa experticie tentamos intervir.

O intervir situa-se assim num outro horizontérOlntêrvêntõf)pretende modificar uma coisa ou um processo e mesmo inventar umacoisa ou um processo. O inventor é uma classe de interventor. Ointerventor, ou inventor, parte de um objetivo, pretende alcançar um \_resultado. As análises estão submetidas à demanda do resultado, aoj\-objetivo da intervenção. A eficiência no atingimento dos objetivosmuito mais importante que a verdade, é mais importante portanto queja especificação dos mecanismos. Os criadores ingleses realizavam]processos de seleção natural quando Darwin ainda nãodesenvolvido sua teoria da seleção. j

O inventor com toda legitimidade, segundo seu ponto de vista,pode-nos dizer: não sabemos como funciona, porém o importante é quefunciona. Pode basear sua certeza .de funcionamento 'numa correlaçãoempírica, entretanto a correlação e:m si mesma não significa ciência.Bronowski nos deu um exemplo do qual eu pessoalmente gosto muito.Conta que, quando editor de uma revista científica, recebeu umtrabalho que demonstrava que se dividissem os dias de gestação dosmamíferos pelo número Phy obtinha-se um número inteiro. O conselhocientífico da revista discutiu o trabalho, seus resultados compunhamuma significativa curiosidade, contudo, decidiram não publicar otrabalho pois, entendiam, que a relação não podia ser explicada pelalógica científica. O interventor, embora possa saber, não necessariamenteprecisa do conhecimento científico para intervir. O uso das anestesiasfuncionou muito antes de sabermos quais eram seus mecanismos, e essefuncionamento possibilitou uma revolução no campo das técnicascirúrgicas, dando lugar ao nascimento do século dos cirurgiões. Osexemplos poderiam ser multiplicados-. Importa muito mais dizer, parao objetivo, de nossas discussões, que o interventor ou inventor pode

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/ \Auarticular variados conhecimentos, técnicas e saberes para atingir seusobjetivos. A articulação que realize é avaliada pela eficácia da invençãoou intervenção. No primeiro capítulo, denominei a articulação entre^'valores ou objetivos sociais, conhecimentos científicos e técnicossaberes de arte da mediação no processo ou programa de intervenção.5

Comparei essa mediação ao trabalho do bricoleur, que vai ao seuporão e, a partir de partes de objetos, produzidos sob circunstâncias ecom objetivos diferenciados, compõe um novo objeto. Parece-mebastante evidente que as Ciências do Esporte estão profundamentemarcadas pela necessidade de intervir e de inventar. Enfrentamos,então, um campo de atividade onde prima a relação de objetivosteóricos e práticos, de várias disciplinas c, sobretudo, a mediação entrevalores traduzidos em objetivos, conhecimentos científicos e técnicos,artes e saberes. Assim, a interdisciplinaridade, entendida, em principio,como diálogo entre as disciplinas, pareceria ou deveria formar parte damediação no processo de intervenção.

Acredito que durante muitas décadas, por não dizer séculos, ospapéis sociais do acadêmico e do interventor ou inventor foram bemdistinguidos. Osacadêmicos publicavam os resultados de suas pesquisase perseguiam prestígio e reconhecimento social. Os interventorespretendiam modificar o mundo, orientá-lo para determinados valorese objetivos. Os inventores patenteavam seus produtos e além doprestígio montavam indústrias, ganhavam dinheiro e até podiam, comono caso de Nobel, premiar a pesquisa científica e literária. O queimporta reconhecer é que publicar para partilhar o conhecimento é umaconduta bem distinta à de patentear para receber os benefícios de umapatente ou da conduta de conhecer para transformar aquilo que édefinido como um real negativo, atrasado ou injusto. Os sistemas depatentes, por certo, estimularam a invenção e ajudaram a revolucionaro cotidiano de nossas vidas, embora tenham provocado efeitos perversossignificativos. As reivindicações de muitos interventores políticos esociais fizeram as sociedades mais justas, embora em certos contextoshistóricos hoje avaliemos que outros poderiam ter sido os caminhos deuma sociedade melhor.

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t

Cursos mosaicos e disciplinares

As reflexões realizadas nos levam na direção de pensar que olugar favorável para a interdisciplinaridade, em algum dos sentidos quelhe podemos dar, é o da intervenção ou o da invenção. Sociológica einstitucionalmente, então, importa mapear os lugares nos quais ainterdisciplinaridade teria maiores probabilidades de acontecer.

Nós sabemos que, no Brasil, quase noventa por cento daspesquisas se realizam nas Universidades e, mais especificamente, noscursos de pós-graduação. A Universidade, ademais, pelas característicasde universalidade ou de abrangência disciplinar seria o lugar commaiores possibilidades para a interdisciplinaridade. Maisainda, podemosformular a hipótese de que já na graduação existem cursos que secaracterizam por uma formação poli ou multidisciplinar. Podemosentão nos perguntar se seriam os cursos de graduação e pós-\

, graduação, caraterizados pela multidisciplinaridade na formação, os^lugares com maiores probabilidades de emergência e consolidação da';interdisciplinaridade em algum de seus sentidos? ^.̂ J Uma classificação possível dôs:cursps universitários atuais^

|\ sob o duplo ponto de vista de: a) seus objetivos, conhecimento-|ej reprodução do conhecimento e intervenção, e b) sua estruturaí| curricular, consiste em separá-los em dois.grandes grupos, sendo que.§ l o segundo grupo pode também ser subdividido. Proponho então queí_

falemos de cursosdisciplinares e cursos mosaicos ou profissionalizantesentre 6s últimos, distingamos entre cursos mosaicos ou

profissionalizantes tradicionais e não tradicionais. Jr O primeiro tipo de curso .estaria integrado pelos cursosdisciplinares, caracterizados por realizar uma formação concentradaem um conjunto de conhecimentos vinculado s a uma matriz disciplinar.Este seria o caso, por exemplo, da formação em Física, Química,Biologia, Matemática, Economia, História, Antropologia, Sociologiae outros. Estes cursos formam os alunos tendo como objetivo

/ principal a atuação em pesquisa (bacharelado) ou no ensino das/ próprias matrizes disciplinares (esta. formação habitualmente recebel nome de licenciatura no Brasil). .Em outros termos, o físico é

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/ \formado para desenvolver a física ou para ensiná-la tanto quanto o jantropólogo, apesar das diferenças existentes entre disciplinas/paradigmáticas e pré-paradigmáticas, para dize-lo na linguagemj

J kuhniana. Evidentemente que o panorama reitera-se nas pós-graduaçõesdesses cursos. Observemos que os cursos disciplinares tiveram umaemergência tardia, especialmente no caso do Brasil, pois foramprecedidos pelos cursos de formação profissional em medicina, direito/e engenharia,

O segundo grupo de cursos está formado peloscursos mosaicose profissionalizantes. Dentro do grupo podemos distinguir entre oscursos tradicionais ou clássicos, medicina, direito e engenharia e oscursos mais modernos, como serviço social, administração de empresas,pedagogia, educação física, nutrição e outros.

Os cursos mosaicos clássicos se caraterizam pelo domínio daintervenção no horizonte de atuação e por um currículo mosaico qutpode ser dividido em duas grandes áreas: a disciplinar e a técnica oiprofissionalizante. Na verdade, a formação disciplinar é seletivaapresenta fortes concentrações. Por exemplo, no caso da engenharidomina a formação em matemáticas, física e química aliada as disciplinas]de tipo técnicas. Em medicina, domina a biofísica, a bioquímica e asciências biomédicas também em aliança com o aprendizado e práticadas técnicas, artes e saberes do campo. Nos cursos de medicina, porexemplo, pode ser discutida a questão de se a formação deve ter comohorizonte a teoria e a pesquisa ou a prática de intervenção médica.

O cursos mosaicos mais recentes, não tradicionais, tambémestão integrados por uma área de formação disciplinar e uma áreainstrumental, técnica ou profissionalizante. Contudo, sua característicaprincipal pareceria ser que o mosaico das disciplinas é muito maisamplo, metioTcõncentrado. Estão estruturados a partir de um amploespètro de disciplinas (de matemáticas a filosofia, por exemplo) e umaárea instrumental ou profissional. O objetivo da formação tambémvincüla-se a um processo de intervenção sobre áreas ou instâncias dasociedade. Supõe-se que, a formação profissional, habilita par;desenvolver ou atuar em programas de intervenção orientados por1

valores habitualmente codificados como objetivos da intervenção.

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Assim, os administradores de empresa ou os assistentes sociais sãoformados para que contribuam na realização de valores, transformadosem objetivos, que se supõem demandados por segmentos da sociedadee, às vezes, pela sociedade no seu conjunto. A orientação por valoresnão pressupõe, entretanto, a eliminação do debate sobre os mesmos.Na origem destes cursos figura o objetivo da intervenção ainda no casoque, na história interna, registrarem-se processos de afirmação deobjetivos de pesquisa e de ensino semelhantes aos do primeiro grupo.

Os cursos mosaicos não tradicionais nasceram em plenamodernidade, e no contexto de sociedades que acreditam no papel daracionalização e do conhecimento do empírico na construção da ordemsocial e na solução de seus problemas. Ern última instância, umproblema existe quando se afirma o acordo social de que um valor nãoestá sendo, ou está insuficientemente, realizado (a justiça, a saúde, aeducação básica, a eficiência, a qualidade ou qualquer outrosignificativo). Corresponde assim aos especialistas elaborarem propostasde intervenção que possibilitem uma maior realização dos valoresdesejados. A crença na racionalidade e empiricidade, levou osespecialistas desses cursos a realizar, poderosos investimentosintelectuais para se convencerem, e nos convencerem, sobre o carátercientífico de seus marcos referenciais e formas de intervenção. Suasdiscussões, aparentemente infindáveis, por exemplo, sobre o objetoteórico de suas áreas de atuação são suficientemente conhecidas. ^

- - Entretanto, os problemas dê identidade e legitimidade dessasprofissões são significativos, provocando44ansiedades1Y'angústias''e fortes investimentos na construção de teorizações que tentam

- - - --*• 1 — ™ *»V>iatrt tc>r\-r\ff\

acãoemicü, cimciam.*^ u.̂ ui^^u^u^^ ..«*-. _ _intervenções destinam-se à obtenção' da. legitimidade social, dapossibilidade de intervenção e de suas modalidades. Agrega-se a isto J

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para aumentar as dificuldades, o fato que a integração dos elementosda formação, e dos elementos constitutivos das propostas deintervenção, não é produto do cálculo, do algoritmo, senão que daarte de mediação (entre conhecimentos, técnicas, valores e objetivos)pela qual se constróem as propostas ou programas de intervenção.

Os profissionais dessas áreas atuam muito mais dentro dosmarcos do papel do brico/eiir que no do cientista. Estão muito maispróximos do artistaou do técnico queagem a partir de uma experiênciafamiliar que do cientista. Estão mais próximos do cozinheiro e dagastronomia que do físico e sua física. Entretanto, rejeitam,habitualmente, a arte e a técnica do cozinheiro para representar o papelde cientistas. Esta rejeição, ao mesmo tempo uma escolha, pareceriase explicar, em princípio, pelo prestígio da ciência na sociedademoderna, embora seja discutível tanto esse prestigio quanto aspossibilidades reais dos cursos e profissões do segundo grupo chegarema ser científicas. Na sociedade moderna valoriza-se, por certo, muitomais a utilidade de um artefato ou processo, que se diz freqüente eerroneamente criado pela ciência, que os processos de conhecimentocientífico. Os científicos utilizaram-se da confusão -entre a inovaçãodevida ao desenvolvimento da ciência e a derivada do própriodesenvolvimento da técnica, enquanto família independente- paralegitimar o papel dos científicos na sociedade e conseguir, portanto,reconhecimento social e recursos para suas atividades.

f De fato, as ciências do primeiro grupo se caracterizam pordesvendar ou fazer transparentes mecanismos. Em outros termos,temos ciência quando explicamos os mecanismos que estão dentro da

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caixa preta. Algumas dessas explicações, desses desvendamentos, são.utilizados na geração de artefatos ou mecanismos. Freqüentementeocorre o contrário, a ciência entra para explicar os efeitos de um,

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quando desvendam mecanismos, o fazem dentro de uma matriz ,disciplinar do primeiro grupo. Naverdade, eleshabitualmente utilizamexplicações fornecidas pelas disciplinas do primeiro grupo para legitimar.racionalizar e orientar os programas de intervenção, ou explicar os,cursos (efeitos, impactos, eficácia, eficiência, etc.) dos programas de

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intervençãoContudo, parece existir um problema de fundo ou maior. É

possível que o prestígio da ciência deva muito ao desejo, tornado mito,da transparência do real natural e social. O objetivo da ciência é fazertransparente um mecanismo. O objetivo mítico da intervenção é operarcom mecanismos transparentes ao invés de fazê-lo com os obscurosprocessos da interação social. O cientificismo, essa crença que afirmaque podemos operar com o social da mesma forma que o fazemos como natural, supõe a possibilidade de um mundo transparente, presentetanto na etapa científica da humanidade deComte quanto no socialismode origem marxista. Talvez porque já presentes em Rousseau? Assim,a utopia da transparênciaagita-se no fundo dos cursos que formam paraa intervenção.

No entanto, e aqui aparece meu desencanto, tanto a pesquisanessas áreas quanto a pesquisa interdisciplinar em seus sentidos maisfortes, deixa muito a desejar. A interdisciplinaridade pareceria queencontra os maiores empecilhos onde, logicamente, deveria ter asmaiores vantagens. Não sei porque, se a física e a sociologia ainda nãoalcançaram a unificação ou integração teórica, fazemos tanto barulhoc o m a interdisciplinaridade. . . • - . • - * ' - '

Ciências do Esporte: intervenção e interdisciplinaridade

Podemos agora concentrarmo-nos no campo dás Ciências doEsporte, e da própria Educação Física, para consolidar nossas

apreciações e reflexões.No campo especifico das Ciências do Esporte e da Educação

Física, a discussão sobre o objeto ou o eixo epistemológico.sabemosque é significativa. A discussão parte, explicitamente, da ansiedade dereconhecimento cientifico, de reconhecimento da igualdade no campoacadêmico. Acredita-se que um meio para a igualdade reside emsermos donos de um objeto teórico definido, pois, entende-se que,possuindo-o se alcança a autonomia, a independência da aplicação dematrizes disciplinares elaboradas em outras áreas. Trata-se, assim, deinventar objetos. Tenho a impressão, por vezes, de que a discussão

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pretendetambém esquecer que os cursos mosaicose profissionalizantestêm por função a intervenção para realizar valores e objetivos sociais:ganhar competições, aprimorar a saúde da população, recriar os laçoscomunitários, proporcionar lazer e recreação, desenvolver valores eidentidades entre outros. Ao mesmo tempo, parece que pretendemesquecer que no campo da intervenção trata-se de mediar entreconhecimentos teóricos e empíricos, técnicas, artesesaberes. Esquecer,então, que deveríamos aqui também falar das técnicas, das artes, dossaberes e não apenas das ciências. Sobretudo, quando levamos emconsideração que a intervenção deve, habitualmente, mediar entrevalores de difícil conciliação. Assim, por exemplo, deve conciliar osvalores da tradição estética de um esporte com o valor de ganhar acompetição. Não foi esse um dos eixos das discussões sobre nossaseleção nacional no Mundial? Não poderíamos explicar o augeinternacional do basquete pelo fato dos americanos haverem conciliadovalores estéticos do esporte com uma alta competitividade?^~~ A intervenção demanda a mediação entre disciplinas díspares.Hoje, no treinamento de uma equipe não se pode depreciar a bioquímicaaplicada no campo da fisiologia e da nutrição, a fisiologia e a nutriçãoaplicada no desenvolvimento do potencial dos atletas, a psicologiaindividual e de grupo, a psicologia social e tantos outros conhecimentos.Entretanto, nessa aplicação, sabemos que precisamos do regente daorquestra. O diretor que indica quando entra cada instrumento, otempo que tocará, a importância que terá no trabalho de conjunto.

/ Sabemos que o diretor ou regente precisa de, além dos conhecimentos,M bom senso, tato, capacidade de mediação entre as diversas demandas.QliPrecisa ser um mediador, sobretudo quando há uma forte crise doQ| autoritarismo e da autoridade da posição. No entanto, a mediação entre

(Mas disciplinas, na prática de intervenção, não parece provocar umainterdisciplinaridade forte, uma integração dos conhecimentos. Tudo

<] indica que as matrizes teóricas conservam sua autonomia, embora emsuas aplicações reforcem seus efeitos, se o regente possui a artesuficiente para provocar o efeito de conjunto, a soma das participaçõesparticulares.

-;Um bom trabalho de antropologia, sociologia ou histórical

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sobre o esporte hoje circula nas boas revistas internacionais dessasdisciplinas. Acredito que, da mesma maneira, um bom trabalho debioquímica, fisiologia ou psicologia no campo do esporte circuletambém nas boas publicações dessas áreas. Gostaria, por certo, verexcelentes versões de divulgação desses trabalhos em nossa CiênciaHoje. Estou querendo afirmar que em esporte, educação, administraçãoou serviço social podem ser produzidos trabalhos de qualidade empesquisa. Acredito que, se bons, serão reconhecidos em esses camposporém, também, nas áreas disciplinares que sejam suas matrizesteóricas. Penso que, dentro do grande tema desta reunião anual denossa querida SBPC, deveríamos entender a interdisciplinaridade emdois sentidos.6 Por um lado, como abertura para o diálogo, paraaproveitarmos dos dizeres e fazeres dos colegas de outras disciplinas.Por outro, por nossa aposta na mediação entre valores, disciplinas,técnicas, saberes e artes. Mediar significa reconhecer o valor culturale importância social de cada campo de atividade. Mediar significaapostar na diversidade. Mediar implica reconhecer o direito a vida dasexpressões humanas. Devo reconhecer que a integração total e oholismo soa, em meus ouvidos, com uma certa nostalgia, ou deveria sersaudade, de um paraíso totalitário no qual, o preço da felicidade, é'nãoprovar os frutos da sabedoria. ' • . •. ' J

1 Observo que sem uma boa quota de tolerância diante da imprecisão ouinexatidâo conceituai o desenvolvimento das ciências teria sido,impossível. Oconceito nasce tosco, grosso, impuro e é aperfeiçoado pelos cientistas ao longo dahistória das disciplinas. Assim, a utilização metafórica dos conceitos também podeser produtiva embora distorça os conceitos originais.

:Nas próprias ciências sociais há dois paradigmas.interpretativós» Por umlado, explicamos a conduta como resultado do desempenho de papéis socialmenteestabelecidos. Ou seja, o ator atua em função de normas. É difícil.sob estaperspectiva explicar e mesmo entender a mudança. Por outro, explicamos a condutasob ,o ponto de vista de um agente que persegue objetivos, que possui interesses.Embora ambos pontos de vista possam ser operados em conjunto é um problema

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sério de sua unidade teórica. Ou seja. assim como não há ainda unia teoria integradano campo da física, não há uma teoria integrada no campo das ciências sociais ouda sociologia.

-1 Um argumento forte da tradição que adiante dcnomi no como academicista.foi ode proclamar quca verdade científica poderia ser aplicada, seria útil. mais cedoou mais tarde. O argumento possui um forte apelo legitimador. porem ná"o é nadaevidente.

4 A tradição academicista se baseia na renúncia ou separação entreteologia-filosofia e ciência, política e ciência e conhecimento cientifico eaplicação. Cf. Lovisolo, H.(1994).

5 Cf. capítulo I.•A versão original deste lexto foi apresentada na Reunião Anual da SBPC.

Vitória, julho de 1994.

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