educação e felicidade na cultura do consumo -

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Educação e felicidade na cultura do consumo Solange Jobim e SOUZil metem. A busca da felicidade pautada nos ideais consumistas tem nos levado, com muita freqüência, à situação oposta. Adorno (1995), citando Freud, diz que a civilização, por seu turno, origina e fortalece progressivamente o que é anticivilizatório. Esta ob- servação perspicaz nos oferece um ponto de partida para discutirmos o sentido da felicidade nos dias de hoje. A técnica, uma das principais metas da civilização ocidental, é responsável pela expansão da cultura do con- sumo, criando tendências à fetichização. O amor é absorvido por coisas, máquinas, mercadorias enquanto tais, incapacitando as pessoas de amar pessoas. Ele, então, nos alerta sobre a dificuldade de atuarmos contraria- mente a isto, posto que esta tendência está vinculada ao conjunto da civilização, e combatê-la significa ser contra o espírito do mundo. É ur- gente adquirirmos consciência das razões geradoras deste espírito do mundo, pois desacreditá-lo é salvar a condição humana do seu próprio deperecimento. Adorno (1995) nos chama a atenção para o movimento de expansão do que ele muito apropriadamente denominou "consciência coúificada", exemplificando-a com a seguinte frase: "... No começo as pessoas desse tipo se tornam por assim dizer iguais a coisas. Em seguida, na medida em que o conseguem, tornam os outros iguais a coisas" (p.130). Esta reificação dos sujeitos tem uma história que deve ser contada a par- tir das transformações nos modos de produção no capitalismo tardio!. Vale lembrar que tanto os processos de produção quanto os processos de consumo são integrantes da organização do capitalismo. Entretanro, a própria concepção de trabalho na sociedade ocidental vem sofrendo mu- danças radicais, posto que a tecnologia (informática, robótica e outras áreas afins) enfraquece as forças de trabalho tal como eram concebidas nos primórdios do capitalismo, enquanto contribui para a expansão das forças de consumo. O sistema já não precisa tanto do trabalhador, mas não pode prescindir do consumidor. Na passagem de uma ordem social produtiva para uma que seja reprodutiva está o cerne da cultura do consumo. Esta nova ordem sócio- cultural implica a "educação" - termo utilizado aqui no sentido de do- mesticação - de novos públicos consumidores que se habituem rapida- men te com a velocidade com que as relações se criam e se desfazem. Na medida em que se reduz o tempo da experiência e a qualidade das rela- Sendo a felicidade, então, uma certa atividade da alma conforme à excelên- cia perfeita, é necessário examinar a natureza da excelência. (...) É evidente que a excelência a examinar é a excelência humana, pois o bem e a felicida- de que estam os procurando são o bem humano e a felicidade humana. A excelência humana significa, dizemos nós, a excelência não do corpo, mas da alma, e também dizemos que a felicidade é uma atividade da alma. (Arisróteles, em ttica a Nicômacos) Nosso primeiro desafio na abordagem deste tema é compreender o sentido da felicidade nos dias de hoje. Quando nos referimos à felicida- de, é comum haver um acordo de que ela é um bem supremo que todos almejam conquistar. Entretanto, quando nos indagamos o que é real- mente a felicidade para cada um de nós, as divergências são inúmeras e poucos são aqueles que sustentam a sabedoria dos filósofos, definindo- a como a atividade da alma que visa à excelência humana. O sentido da felicidade não escapa aos atravessamentos culturais e vem sofrendo urna radical mutação antropológica no contexto da cultura do consumo. Como definir tal mutação e suas conseqüências nos sujeitos contemporâneos é O nosso propósito inicial. Entretanto, discutir o que é possível à educa- ção para promover felicidade, nos termos que a sabedoria filosófica sem- pre procurou apontar, é a nossa preocupação principal. A mutação radical na vida do homem contemporâneo revela o en- fraquecimento dos sentimentos essenciais. Em contrapartida, observa- mos o recrudescimento de necessidades fabricadas no contexto de uma nova universalidade ocidental, a cultura do consumo. Através dos obje- tos, o mercado cria imagens que prometem a felicidade e nos induz a acreditar que acabaremos conquistando-a se tivermos acesso aos bens que ele coloca à nossa disposição. A imagem da felicidade do homem atual está indissoluvelmente relacionada à posse de objetos descartáveis. Con- tudo, não é difícil perceber que a expansão do consumismo não tem sido garantia da felicidade, pois permanecemos constantemente frustrados com os objetos, porque nunca coincidem com os sonhos que nos pro- 88 89

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Educação e felicidade na cultura do consumo

Solange Jobim e SOUZil

metem. A busca da felicidade pautada nos ideais consumistas tem noslevado, com muita freqüência, à situação oposta.

Adorno (1995), citando Freud, diz que a civilização, por seu turno,origina e fortalece progressivamente o que é anticivilizatório. Esta ob-servação perspicaz nos oferece um ponto de partida para discutirmos osentido da felicidade nos dias de hoje. A técnica, uma das principais metasda civilização ocidental, é responsável pela expansão da cultura do con-sumo, criando tendências à fetichização. O amor é absorvido por coisas,máquinas, mercadorias enquanto tais, incapacitando as pessoas de amarpessoas. Ele, então, nos alerta sobre a dificuldade de atuarmos contraria-mente a isto, posto que esta tendência está vinculada ao conjunto dacivilização, e combatê-la significa ser contra o espírito do mundo. É ur-gente adquirirmos consciência das razões geradoras deste espírito domundo, pois desacreditá-lo é salvar a condição humana do seu própriodeperecimento. Adorno (1995) nos chama a atenção para o movimentode expansão do que ele muito apropriadamente denominou "consciênciacoúificada", exemplificando-a com a seguinte frase: " ... No começo aspessoas desse tipo se tornam por assim dizer iguais a coisas. Em seguida,na medida em que o conseguem, tornam os outros iguais a coisas" (p.130).Esta reificação dos sujeitos tem uma história que deve ser contada a par-tir das transformações nos modos de produção no capitalismo tardio!.Vale lembrar que tanto os processos de produção quanto os processos deconsumo são integrantes da organização do capitalismo. Entretanro, aprópria concepção de trabalho na sociedade ocidental vem sofrendo mu-danças radicais, posto que a tecnologia (informática, robótica e outrasáreas afins) enfraquece as forças de trabalho tal como eram concebidasnos primórdios do capitalismo, enquanto contribui para a expansão dasforças de consumo. O sistema já não precisa tanto do trabalhador, masnão pode prescindir do consumidor.

Na passagem de uma ordem social produtiva para uma que sejareprodutiva está o cerne da cultura do consumo. Esta nova ordem sócio-cultural implica a "educação" - termo utilizado aqui no sentido de do-mesticação - de novos públicos consumidores que se habituem rapida-men te com a velocidade com que as relações se criam e se desfazem. Namedida em que se reduz o tempo da experiência e a qualidade das rela-

Sendo a felicidade, então, uma certa atividade da alma conforme à excelên-cia perfeita, é necessário examinar a natureza da excelência. (... ) É evidenteque a excelência a examinar é a excelência humana, pois o bem e a felicida-de que estam os procurando são o bem humano e a felicidade humana. Aexcelência humana significa, dizemos nós, a excelência não do corpo, masda alma, e também dizemos que a felicidade é uma atividade da alma.

(Arisróteles, em ttica a Nicômacos)

Nosso primeiro desafio na abordagem deste tema é compreender osentido da felicidade nos dias de hoje. Quando nos referimos à felicida-de, é comum haver um acordo de que ela é um bem supremo que todosalmejam conquistar. Entretanto, quando nos indagamos o que é real-mente a felicidade para cada um de nós, as divergências são inúmeras epoucos são aqueles que sustentam a sabedoria dos filósofos, definindo-a como a atividade da alma que visa à excelência humana. O sentido dafelicidade não escapa aos atravessamentos culturais e vem sofrendo urnaradical mutação antropológica no contexto da cultura do consumo. Comodefinir tal mutação e suas conseqüências nos sujeitos contemporâneos éO nosso propósito inicial. Entretanto, discutir o que é possível à educa-ção para promover felicidade, nos termos que a sabedoria filosófica sem-pre procurou apontar, é a nossa preocupação principal.

A mutação radical na vida do homem contemporâneo revela o en-fraquecimento dos sentimentos essenciais. Em contrapartida, observa-mos o recrudescimento de necessidades fabricadas no contexto de umanova universalidade ocidental, a cultura do consumo. Através dos obje-tos, o mercado cria imagens que prometem a felicidade e nos induz aacreditar que acabaremos conquistando-a se tivermos acesso aos bens queele coloca à nossa disposição. A imagem da felicidade do homem atualestá indissoluvelmente relacionada à posse de objetos descartáveis. Con-tudo, não é difícil perceber que a expansão do consumismo não tem sidogarantia da felicidade, pois permanecemos constantemente frustradoscom os objetos, porque nunca coincidem com os sonhos que nos pro-

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ções materiais e interpessoais, mudam também os sujeitos. Objetos ecoisas são, com freqüência, utilizados para demarcar relações sociais,estilos de vida, hábitos e preferências entre as pessoas. As relações entrecrianças, e também entre os adultos e as crianças, são demarcadas pela"cultura das coisas", ou seja, pelos bens materiais e simbólicos que circu-lam entre nós, originando noções de bem-estar, felicidade, prazer e, tam-bém, o seu oposto, a infelicidade e o desprazer. A cultura do consumo é oalicerce da expansão sem fronteiras da consciência coisificada.

Diante deste contexto, a economia da descartabilidade tomou o lugarda economia da permanência, tornando mais vantajoso substituir do queconsertar, onde o novo fica velho no instante que tomamos posse damercadoria. Na sociedade de consumo, os objetos não têm história. Man-temos com eles relações fugazes, dinâmicas, descartáveis. Diferentementedas mercadorias geradas em série na produção auto matizada, o artesãoimprime no objeto o tempo da criação e; deste modo, o objeto materia-liza um pouco da sua história. Melhor dizendo, detém a alma do seucriador. Clarice fala sobre este tema com beleza exemplar:

Nunca lhe ocorreu ter pena de um objeto? Tenho uma caixa de prata detamanho médio e sinto por ela piedade. Não sei o que nesse silente objetoimóvel me fazentender-lhe a solidão e o castigo da eternidade. Não ponhonada dentro da caixa para que ela não tenha carga.

tos e crianças, alterando, por assim dizer, as relações interpessoais quepassam igualmente a sustentar a descartabilidade entre as pessoas.

Uma criança que foi entrevistada por nós disse "... quando todo mun-do tem uma coisa, dá vontade de ter também, porque se você não tem, vocêé diferente". Uma outra criança continuou a conversa dizendo "... quan-do você tem um amigo na sala e ele tem algum brinquedo legal assim, aívocê sempre quer ter, você quer ter mais que ele... "Estas cenas, m ui to sim-ples e corriqueiras, não têm tido a atenção que merecem por parte denós, adultos e educadores. Por que somos indiferentes, ou melhor, coni-ventes, ao admitirmos que a única felicidade possível está na posse dosobjetos sem história e sem alma que circulam em nossa cultura? Talvezporque este sentimento tenha se naturalizado de tal forma entre nós quenos tornamos todos, crianças e adultos, absolutamente iguais na volúpiado consumir. Esta é a ordem a que todos, inconscientemente, obedecem,sob pena de se sentirem infelizes. Constatamos, assim, que estas duascategorias sociais, adultos e crianças, se diferenciam apenas porque al-gumas vezes seus objetos e desejos variam. Nada além de uma superfi-cialidade material demarcando o tato e o contato entre as gerações.

Vale observar que as diferenças entre adultos e crianças são cada vezmenos enfatizadas. Com isto, a necessária dimensão alteritária na for-mação do jovem perde suas referências. A tensão que sempre existiu en-tre as gerações assume, hoje, um caráter novo. Por um lado, observamosuma infância esprimida entre uma adolescência precoce e uma juventu-de que se prolonga. O próprio corpo da criança e do jovem, os modosde se vestir, de circular pela cidade, são signos que refletem a nossa épo-ca. Por outro, observamos também um adulto infantiJizado, com difi-culdade de exercer sua liderança diante da sua prole. Há nisto tudo umainversão de papéis que precisa ser amplamente discutida por pais e pro-fessores, pois as crianças e os adultos de hoje são moldados, através do 4;-consumo, para o culto do prazer efêmero e sem restrições. A própria pu-blicidade, e mesmo a programação televisiva direcionada ao público in-fantil, apresenta a imagem de uma criança líder, capaz de tomar deci-sões, resolver problemas, algumas travestidas de intelectual mirim, ou-tras precocemente erotizadas. Em contraposição, assistimos a imagensde um adulto atônito e dependente, incapaz de assumir o seu suposto

E a tampa encerra o vazio. Eu sempre ponho flores nas suas vizinhançaspara que elas suavizem a vida-morte da caixa - as flores são também umahomenagem ao artesão anônimo que esculpiu em pesada prata de lei umaobra de arte (Clarice Lispector, 1978, p.112)

Os objetos são signos e, como signos, exigem ser decifrados por nós.Entretanto, são necessárias sempre novas leituras dos objetos que cria-mos e passam a circular em nossa cultura. Eles são, por assim dizer, jane-las da nossa alma, ou, se quisermos utilizar um sentido equivalente, modosde acesso à nossa subjetividade em permanente transformação. O que osobjetos sem alma e sem história estão a dizer sobre a nossa cultura às crian-ças, aos jovens e aos adultos? O que dizem sobre nós? Entendemos queo que deve ser o foco de nossa atenção é o modo como esta cultura vai setornando central no processo de construção social da identidade de adul-

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saber e que desconhece profundamente a criança que ele gerou. Estas con-cepções de adulto e de criança veiculadas pela mídia revelam os modoscomo a cultura produzida no campo social nos constitui subjetivamen-te, controlando nossos modos de ser e agir.~~_~!.:!!.~.ie.ste

?J2:l~2_~_upla.-Q..lLsej~.?'l <;~.ltJ,lrª.g!:1~e_j.r~Y.Sl"1tal11o~(<tq,:e .nos. <;orlstit~i.. Quando falamos de subjetividade, é inevitável considerar a cultura como

um modo de expressão da nossa interioridade. Não há dentro e nem háfora, mas o sujeito se constituindo na grande temporalidade histórica.

Neste contexto é que observamos a mídia invadindo o cotidiano ealterando o modo como as pessoas passam a se comunicar. Grande partedo tempo que dedicávamos às conversas são agora dedicadas aos apare-lhos. Vale lembrar que num passado recente as informações chegavamàs crianças pelo crivo dos mais velhos. Hoje, pela janela da TV, tudo épara todos, não havendo distinção entre gerações ou classes sociais. Hoje,todos assistem a tudo o tempo todo. "É uma coisa que vicia, diz Vivianede 10 anos, você chega em casa ejá vai na teLevisão. Se vou tomar banho,deixo a TV ligada. Até pra dormir, durmo escutando a TV É por causa doruído. "Este depoimento confirma algo que não é propriamente umanovidade, mas exige uma tomada de consciência em relação ao fato deque a cultura da mídia invadiu inexoravelmente nosso planeta, transfor-mando nossa experiência temporal e espacial. Este acontecimento his-tórico chamou a atenção de Neil Postman (1999), autor que se tornouconhecido por advogar que a mídia é responsável pelo desaparecimentoda idéia de infância, pois ela rompeu definitivamente com a possibilida-de de haver segredos e sentimento de vergonha do adulto frente à crian-ça. Sem cairmos nas armadilhas de uma discussão moralista e ingênuasobre esta questão, vale destacar que a cultura do consumo é a Linguagemda mídia, e que este fato não é de menor importância quando nos da-mos conta de que a televisão é um dos mais eficazes instrumentos de for-mação das novas gerações. E o lugar do adulto na relação com as novasgerações? Será que estamos assistindo passivamente às crianças nos subs-tituírem pela TV, pelos jogos eletrônicos, pela lnternet. .. ?

Numa entrevista concedida a Contardo Calligaris1, Oliviero Toscani,fotógrafo conhecido por ser autor das polêmicas imagens publicitáriasda Benetton, nos lembra que o gasto com a publicidade é maior em nos-

sa cultura do que o gasto com a educação pública e que, portanto, a pu-blicidade veiculada pela mídia é hoje mais formadora de nossa subjetivi-dade do que o ensino escolar. Não podemos deixar de nos indignar quan-do nos damos conta de que o consenso da razão contemporânea é cons-tituído pelas imagens dos sonhos publicitários. Entretanto, é prudenteque nossa análise vá além do reconhecimento da ameaça que os novosmeios de comunicação apresentam para nós, fazendo com que possamosenxergar nestes instrumentos culrurais a possibilidade de criação de di-versas formas de expressão que podem ser constirutivas de outros "devires"de homens, mulheres e crianças, capazes de enfrentar com lucidez o mal-estar da civilização. Será que temos analisado o modo como nos relacio-namos com a mídia em geral? Será que temos observado com o devidocuidado a qualidade do que nos chega pela janela da TV? Será que sabe-mos como a criança compreende o mundo midiático? Será que, algumavez, nos sentamos simplesmente junto à criança para indagar a respeitode sua experiência como espectadora? Afinal, o que é possível à educa-ção? Que lugar devemos ocupar junto às novas gerações diante das mu-danças nos processos de informação e produção de conhecimento?

Em primeiro lugar, é necessário tomarmos consciência de nossas li-mitações e trabalharmos no sentido de aperfeiçoarmos as qualidadeshumanas. Isto requer olhar para dentro de nós a partir de nossas experi-ências de vida, de nossas histórias, que precisam ser reconhecidas comoparte das histórias que antecedem a história da criança. É neste momen-to que nos convencemos de um outro sentido possível para a felicidade,ou seja, de que ela pode estar na satisfação que experimentamos no atode contar e ouvir histórias, enfim, na sociabilidade advinda deste privi-légio que os usos criativos da linguagem nos concedem.

Com esta constatação, outras questões se colocam para nós. Quetempo dedicamos às conversas com as crianças? Como conversamos comelas? Escutamos o que elas dizem? Sabemos o sentido que as crianças dãopara as palavras que elas escutam de nós? Ao buscar repostas para estasquestões, percebemos que o tempo compartilhado entre pais e f-llhos écada vez mais escasso. Trabalha-se cada dia mais para o aumento do po-der aquisitivo e, conseqüentemente, do consumo. Pais chegam tarde emcasa, e as crianças estão atarefadas e solitárias. A família se reúne cada vez

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menos para conversas cotidianas. Este afastamento da criança do mundodo adulto, ou, melhor dizendo, a falência do diálogo entre as gerações,favorece a expansão do contato da criança com o mundo virtual e em-pobrece aquelas experiências de vida pautadas nas trocas interpessoais.Os adultos deixam de contar suas histórias às crianças. Quando não con-tamos mais nossas histórias, estamos contribuindo para a extinção da-queles que sabem escutar. Sem as histórias, desaparece com elas a comu-nidade dos ouvintes. Sem narradores e sem ouvintes o individualismo

recrudesce.3O mero questionamento sobre como as pessoas se tornam assim já

encerraria um potencial esclatecedor, diz Adorno. É necessário compre-ender o que se passa para promover o desenvolvimento do que está sedeteriorando. Nossa convicção é de que a consciência destes mecanis-mos que deturpam o ideal humano de felicidade está presente no coti-diano das práticas sociais e sua compreensão pode ser atingida se estiver-mos disponíveis para uma auto-reflexão crítica.

Nossa análise sugere olhar a criança e ler no seu modo de brincar,agir, falar e se vestir, enfim, na maneira como ela circula na cidade, nacasa e nas imagens produzidas pela mídia, os sinais do que aqui denomi-namos mutação antropológica proporcionada pela cultura do consumo.Uma nova subjetividade infantil emerge, não mais sustentada apenas pelafamília e pela escola, instituições que até bem pouco tempo eram res-ponsáveis pelos mecanismos de socialização da criança e dos jovens. Hoj e,não temos mais dúvida em relação ao papel exercido pela mídia e pelacultura do consumo na produção da infância. Mas, se enfocamos a criançaprioritariamente, é para entender os rumos de nossa civilização e, nestesentido, estamos todos incluídos, adultos e crianças, e submetidos a umanova ordem cultural que precisa ser profundamente avaliada. Esta avali-ação é urgente, pois é cada vez mais cmcial educar as novas gerações paraserem capazes de resgatar os sentimentos essenciais. Quando nos con-vencemos de que a felicidade é a mercadoria, nos tornamos vazios dehistórias para as gerações futuras, abdicamos de trocar experiências que

desencadeiem nos mais jovens sonhos e utopias.Mas, o que é possível à educação? O que é educar para a felicidade

nos termos defendidos por Aristóteles em nossa epígrafe? Entendemos

que a educação para a felicidade supõe o combate aos mecanismos atra-vés dos quais criamos as condições da nossa miséria espiritual. Neste sen-tido, a tarefa da educação, hoje, é assumir o compromisso de alterar sig-nificativamente os sentidos e os valores hegemônicos do consumismo,enfim, questionar as representações simbólicas que predominam na so-ciedade contemporânea e que deturpam o ideal de felicidade como ati-vidade da alma voltada para o bem comum. Adorno afirma de modoperemptório: './1educação tem sentido unicamente como educação dirigidaa uma auto-reflexão crítica" (p. 121). Mikhail Bakhtin (1992) reforça di-zendo que "... quanto maú o homem compreende que é determinado(reificado), mais perto está de compreender também, e de realizar, a sua ver-dadeira Liberdade"(379). A consciência crítica é a arma para enfrentar-mos com lucidez o mal-estar da civilização na cultura do consumo.

Retomando Aristóteles através de Walter Benjamin, afirmamos que''a imagem da felicidade está indissoLuvelmente ligada à da salvação '~. Éurgente viver cada presente na plena consciência da nossa frágil forçamessiânica. Existe um encontro secreto marcado entre as gerações pre-cedentes e a nossa. A educação não pode negligenciar este fato, sob penade abdicar de sua função mais fundamental, qual seja, educar as novasgerações para ter inveja do futuro. Aristóteles e Walter Benjamin sabemdisto e nos transmitem a sabedoria necessária para acreditarmos na pos-sibilidade de criarmos, no presente, um futuro melhor. Terminamos dei-xando livres as palavras dos filósofos, na intenção de que suas reflexõescontinuem a reverberar em nós, tal como as ondas concêntricas geradaspor uma idéia lançada no fundo do pensamento.

"Entre os atributos mais surpreendentes da alma humana, diz Lotze, está,ao lado de tanto egoísmo individual, uma ausência geral de inveja de cadapresente com relação a seu futuro." Essa reflexão conduz-nos a pensar quenossa imagem da felicidade é totalmente marcada pela época que nos foiatribuída pelo curso da nossa existência. A felicidade capaz de suscitar anossa inveja está toda, inteira, no ar que já respiramos, nos homens com osquais poderíamos ter conversado, nas mulheres que poderíamos ter pos-suído. Em outras palavras, a imagem da felicidade está indissoluvelmenteligada à da salvação. O mesmo ocorre com a imagem do passado, que ahistória transforma em coisa sua. O passado traz consigo um índice miste-rioso, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro do

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ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos devozesque emudeceram? Não têm as mulheres que cortejamos irmãs queelas não chegaram a conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto,marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Alguém na terra está ànossa espera. Nesse caso, como a cada geração, foi-nos concedida uma frá-gil força messiânica para a qual o passado dirige um apelo. Esse apelo nãopode ser rejeitado impunemente. O materialista histórico sabe disro".(Walter Benjamin, em "Sobre o conceito de história", 1994, p. 222)

ARlSTÓTELES. Ética a Nicômacos. São Paulo, Martin CIaret, 2001.

BAKHTIN, MikhaiI. Estética da criaçào verbal. São Paulo, Martins Fon-tes, 1992.

BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa, Edições 70,1991.

BAUMAN, Zygmum. O mal-estardapós-modernidade. Rio de Janeiro,Jorge Zahar Editor, 1998.

_______ Globalização. As conseqüências hUrlJanas. Rio deJaneiro,Jorge Zahar Editor, 1999.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas.Magia e técnica, arte epolítica. VaI.1, Rio de Janeiro, Brasiliense, 1994.

"Parece que a felicidade, mais que qualquer outro bem, é tida como estebem supremo, pois a escolhemos sempre por si mesma, e nunca por causade algo mais; mas as honrarias, o prazer, a inteligência e todas as outrasformas de excelência, embora as escolhamos por si mesmas (escolhê-ia-ía-mos ainda que nada resultasse delas), escolhemo-Ias por causa da felicida-de, pensando que através delas seremos felizes". (Aristóteles em Ética aNicômacos, p.23) CAIAFA, Janice. Nosso século XXI. Notas sobre arte, técnica e poderes.

Relume Dumará, Rio de Janeiro, 2000.

CALLIGARIS, Comardo. Crônicas do individualismo cotidiano. Ática,São Paulo, 19%.

Notas

I Fredric ]ameson adota este conceito de Ernest Mandei para definir a chegadada sociedade pós-industrial, também denominada sociedade das mídias, socie-dade da informação, sociedade eletrônica ou high-tech, como um terceiro está-gio na evolução do capital, considerando-o, inclusive, como o estágio mais purodo capitalismo, quando comparado a qualquer dos estágios que o precederam.Ver ]ameson, E, "Pós-modernismo: A lógica cultural do capitalismo tardio",1996, São Paulo, Atica.

2 Esta entrevista está no livro Crônicas do individualismo cotidiano, ContardoCalligaris, São Paulo, Ática, 1996.3 Este tema é desenvolvido por Walter Benjamin especialmente nos seguintestextos: "O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov" e "Experi-ência e pobreza", ambos publicados em WaIter Benjamin. Obras Escolhidas, voI.1, São Paulo, Brasiliense, 1996.

4 WaIter Benjamin, tese 2 do texro "Sobre o conceito de história", publicado emWalter Benjamin, Obras escolhidas, vol. 1, Brasiliense, São Paulo, 1994.

CASTRO, Lucia Rabello. Infância e adolescência na cultura do consumo.Rio de Janeiro, NAU, 1998.

JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: A lógica Cultural do CapitalismoTardio. São Paulo, Ática, 1996.

)OBIM E SOUZA, Solange. Subjetividade em questão. A infância comocrítica da cultura. Rio de Janeiro, 7 Letras, 2000.

________ Mosaico: Imagens do conhecimento. Rio de Ja-neiro, Rios Ambiciosos/FAPERJ, 2000.

________ . Infância e Linguagem. Bakhtin, Vygotsky e Ben-j~min. Campinas, Papirus, 2000.

LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio. Ensaio sobre o individualismo con-temporâneo. Lisboa, Relógio d'Água, 1983.

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SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna. Rio de Janeiro, EditoraUFRJ, 1997.

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PARTE II

Ficções científicas