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Educação das relações étnico-raciais no Brasil: trabalhando com histórias e culturas africanas e afro-brasileiras nas salas de aula (UNESCO, 2014)TRANSCRIPT
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Educao das relaes
tnico-raciais no Brasil:
trabalhando com histrias e culturas africanas e afro-brasileiras nas salas de aula
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Educao das relaes tnico-raciais no Brasil:trabalhando com histrias e culturas africanas e afro-brasileiras nas salas de aula
Braslia, 2014
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2014 Fundao Vale.
Todos os direitos reservados.
Coordenao: Setor de Cincias Humanas e Sociais da Representao da UNESCO no Brasil
Organizao: Amilcar Araujo Pereira
Reviso tcnica e reviso pedaggica: Milena Rodrigues Fernandes do Rgo, Cristina Teodoro Trinidad
Reviso editorial: Unidade de Comunicao, Informao Pblica e Publicaes da Representao da UNESCO no Brasil
Projeto grfico e diagramao: Unidade de Comunicao, Informao Pblica e Publicaes da Representao da UNESCO no Brasil
Foto de capa: Pedro Gravat
Educao das relaes tnico-raciais no Brasil: trabalhando
com histrias e culturas africanas e afro-brasileiras nas
salas de aula. / Organizado por Amilcar Araujo Pereira Braslia :
Fundao Vale, 2014.
88 p.
ISBN: 978-85-7652-192-1
1. Relaes tnico-raciais 2. Educao 4. Formao de professores
5. Histria da frica 6. Histria afro-brasileira 7. Cultura africana 8. Cultura
afro-brasileira 9. Brasil 10. frica I. Fundao Vale
Esta publicao tem a cooperao da UNESCO no mbito do projeto 570BRZ3002, Formando Capacidades e Promovendo
o Desenvolvimento Territorial Integrado, o qual tem o objetivo de contribuir para a melhoria da qualidade de vida de
jovens e comunidades.
Os autores so responsveis pela escolha e apresentao dos fatos contidos neste livro, bem como pelas opinies nele expressas,
que no so necessariamente as da UNESCO, nem comprometem a Organizao. As indicaes de nomes e a apresentao do
material ao longo desta publicao no implicam a manifestao de qualquer opinio por parte da UNESCO a respeito da condio
jurdica de qualquer pas, territrio, cidade, regio ou de suas autoridades, tampouco da delimitao de suas fronteiras ou limites.
Esclarecimento: a UNESCO mantm, no cerne de suas prioridades, a promoo da igualdade de gnero, em todas suas
atividades e aes. Devido especificidade da lngua portuguesa, adotam-se, nesta publicao, os termos no gnero masculino,
para facilitar a leitura, considerando as inmeras menes ao longo do texto. Assim, embora alguns termos sejam grafados no
masculino, eles referem-se igualmente ao gnero feminino.
Impresso no Brasil
Fundao ValeAv. Graa Aranha, 2616 andar Centro20030-900 Rio de Janeiro/RJ BrasilTel.: (55 21) 3814-4477Site: www.fundacaovale.org
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Educao das relaes tnico-raciais no Brasil:trabalhando com histrias e culturas africanas e afro-brasileiras nas salas de aula
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A rea de Educao da Fundao Vale busca contribuir para a melhora da qualidade da educao, por meio da ampliao das
oportunidades de formao para educadores e demais atores das comunidades, em espaos formais e no formais, com foco na
educao infantil e no ensino fundamental, nas modalidades de ensino regular e educao de jovens e adultos.
Fundao Vale Conselho CuradorPresidente
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Conselheiros
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Marconi Vianna
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Luis Felipe Andrs (conselheiro do IPHAN)
Paula Porta Santos (historiadora e doutora pela USP)
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Silvio Meira (presidente do Conselho Administrativo do Porto Digital)
Diretora-presidente
Isis Pagy
Diretor-executivo
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Relaes Intersetoriais
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Educao
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Andreia Prestes
Anna Cludia DAndrea
Carla Vimercate
Mariana Pedroza
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)Reitor
Carlos Antnio Levi da Conceio
Vice-reitor
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Decana do Centro de Filosofia e Cincias Humanas (CFCH)
Lilia Guimares Pougy
Vice-decana do CFCH
Mnica Lima
Diretora da Faculdade de Educao
Ana Maria Ferreira da Costa Monteiro
Vice-diretora da Faculdade de Educao
Daniela Patti do Amaral
Dezembro de 2014
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Apresentao
No Brasil, as desigualdades sociais e educacionais entre brancos e negros ainda so grandes, respondendo este ltimo grupo pelos
mais baixos ndices de desenvolvimento humano. O preconceito racial cria um estigma, uma marca, uma relao perversa e/ou
negativa quanto a tudo o que diz respeito ao negro, s suas formas de ser e de significar o mundo. Essas elaboraes preconceituosas,
que criam ideais estticos, epistemolgicos e culturais, so reproduzidas dentro do espao escolar, local onde paradoxalmente se
atribui, na atualidade, a responsabilidade pela promoo de valores de respeito pelas diversidades.
Diante desse quadro e frente s presses realizadas pelo Movimento Negro em busca de transformaes, na segunda metade da
dcada de 1990, algumas medidas foram tomadas pelo governo federal, como a reviso de livros didticos que apresentavam
imagens estereotipadas de negros e indgenas. Ainda na dcada de 1990, diversos municpios elaboraram leis orgnicas nas
quais se estabeleceu a obrigatoriedade do ensino da histria da frica e, da mesma forma, foram criados cursos de qualificao
relacionados ao assunto e voltados para professores. Em 2003, o governo federal brasileiro aprovou a Lei n 10.639, que obriga a
insero nos currculos escolares, das escolas pblicas e particulares, de contedos referentes histria e cultura afro-brasileiras
nas salas de aula.
Passados mais de 10 anos da entrada em vigor da Lei n 10.639/2003, o quadro ainda preocupante. Muitos municpios ainda
no incorporaram nos currculos escolares contedos que tratam da histria e da cultura afro-brasileiras e indgenas. Alm disso,
boa parte dos professores em exerccio da profisso permanecem sem formao especfica com cursos que orientam para a
implementao da lei. Por isso, a Fundao Vale considera uma ao importante formar e difundir o conhecimento sobre essa
temtica, para professores e gestores.
Ciente da importncia dessa contribuio, a Fundao Vale realizou, no segundo semestre de 2013, uma parceria com a
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Secretaria Municipal de Educao de Mangaratiba, para a realizao de um curso
de extenso universitria sobre a temtica tnico-racial voltado para a formao de professores. Os encontros, que contaram com
a contribuio de profissionais que so referncias nacionais no estudo e na pesquisa em educao das relaes tnico-raciais,
forneceram subsdios a professores e gestores para a aplicao efetiva da lei, como forma de estimular a prtica docente nos
princpios da pluralidade e do respeito s diferenas.
Esta publicao foi elaborada com base nas discusses realizadas no curso de extenso acima mencionado: traz contedos sobre as
histrias da frica e da presena dos negros no Brasil; discute a educao e as relaes tnico-raciais no cotidiano escolar; e oferece
indicaes bibliogrficas e exemplos prticos de atividades inspiradoras que podem ser desenvolvidas em sala de aula. Fruto da
crena da Fundao Vale no potencial de educadores e educadoras que, em seu fazer dirio, so capazes de contribuir efetivamente
para a construo de uma sociedade mais igualitria, este material apresenta caminhos para a superao dos desafios, em prol de
uma escola mais acolhedora e mais diversa.
Boa leitura!
Fundao Vale
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Prefcio
Recriar uma sociedade um esforo poltico, tico e artstico um ato de conhecimento. Trabalho pacientemente impaciente, como diria Amlcar Cabral.
Paulo Freire, em Por uma pedagogia da pergunta
Conhecer e ensinar as histrias e culturas africanas e afro-brasileiras, com qualidade e sem abrir mo dos contedos curriculares, combater o racismo e promover a igualdade por meio da educao, sem perder de vista as relaes tnico-racias nas escolas do nosso pas, ao mesmo tempo to plural e to desigual, constituem alguns dos maiores desafios com os quais nos deparamos atualmente, como educadores e como cidados. H mais de dez anos existe uma lei, resultado de muitas lutas dos movimentos negros no Brasil do sculo XX, e que tornou obrigatrio o ensino de histrias e culturas africanas e afro-brasileiras nas escolas de todo o pas: a Lei n 10.639/2003. Lidar de maneira produtiva com os desafios descritos acima no significa apenas fazer cumprir uma lei, mas trata-se sobretudo de se recriar uma sociedade, como diria Paulo Freire, de construir uma sociedade democrtica tambm em sua dimenso educativa, nos currculos e nas prticas escolares. Temos ainda muito trabalho pela frente para conseguirmos ultrapassar o eurocentrismo to evidente na nossa educao e para consolidarmos a democracia em nossa sociedade: trabalho pacientemente impaciente, como diria Amlcar Cabral, um dos maiores lderes revolucionrios africanos do sculo XX.
Com o objetivo de contribuir para que professores da rede municipal de Mangaratiba, no Estado do Rio de Janeiro, pudessem implementar a Lei n 10.639/2003, ao trabalhar e lidar com esses desafios de maneira consequente e amparada em discusses e materiais de qualidade, em um esforo poltico e tico, Alessandra Nicodemos e eu elaboramos um projeto de pesquisa e extenso na Faculdade de Educao da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em parceria com a Gerncia de Educao da Fundao Vale. Esse projeto consiste em uma pesquisa sobre as memrias e as histrias da Ilha da Marambaia, no municpio de Mangaratiba, e em um curso de extenso sobre a temtica histrias e culturas africanas e afro-brasileiras, voltado para a formao continuada de professores.
Este livro que o leitor tem em mos o resultado das reflexes e dos debates realizados ao longo do referido curso de extenso. Sua organizao em quatro captulos reflete a diviso do curso em quatro mdulos, nos quais foram trabalhados os seguintes contedos programticos: histria da frica; histria e cultura afro-brasileira; histria das relaes tnico-racias; e educao e relaes tnico-raciais no Brasil.
No primeiro captulo, Mnica Lima discute alguns dos principais aspectos da histria da frica, indica possibilidades de trabalho sobre a temtica nas escolas e sugere atividades para os professores da educao bsica, sempre atenta s articulaes das diversas histrias desse continente com a histria do Brasil. No segundo captulo, Amauri Mendes Pereira realiza uma ampla discusso bibliogrfica acerca de contedos referentes s histrias das populaes negras no Brasil, destaca aspectos importantes das lutas das populaes negras no pas desde a poca da escravido at o perodo contemporneo, e sugere vrias possibilidades de atividades a serem realizadas nas escolas. No terceiro captulo, sob minha responsabilidade, proponho uma srie de reflexes sobre a constituio da ideia de raa, recente na histria da humanidade, sobre o racismo, que persiste como elemento estruturante das desigualdades, bem como sobre os seus impactos na formao da nossa sociedade; discuto tambm elementos de uma srie de pesquisas e estudos realizados sobre as desigualdades raciais no Brasil desde a dcada de 1950, estudos que tm sido, em boa medida, desenvolvidos em interlocuo com as demandas dos movimentos negros em nosso pas. O quarto e ltimo captulo, escrito por Alessandra Nicodemos e Pablo das Oliveiras, apresenta e problematiza os elementos do planejamento e da execuo didtica encontrados ao longo do mdulo Educao e relaes tnico-raciais no Brasil, o ltimo do curso de extenso que deu origem a este livro.
Esperamos que esta obra seja uma contribuio, tanto para os professores que participaram do curso, quanto para os que no tiveram a oportunidade de participar, mas que desejam realizar o importante trabalho de recriar nossa sociedade, por meio da implementao da Lei n 10.639/2003, e da busca da complexificao dos currculos escolares e da insero de histrias e culturas africanas e afro-brasileiras no cotidiano escolar. Acreditamos que a implementao da legislao vigente tem o potencial para promover a construo de uma prtica docente que questione preconceitos e que seja pautada pelos princpios da pluralidade cultural e do respeito s diferenas. Entretanto, compreendemos que a implementao desse dispositivo legal, com a seriedade e a qualidade necessrias,
depende, indubitavelmente, do que professores e alunos, ao fim e ao cabo, tm feito e ainda faro em suas escolas.
Boa leitura e mos obra.
Amilcar Araujo Pereira
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Histria da frica 11Introduo 11Parte I: A frica na histria do Brasil e do mundo 11Parte II: Histria da frica alguns cuidados importantes 12Parte III: Conhecendo a frica 13Parte IV: Fontes para o estudo sobre a histria da frica 16Os quatro grandes princpios 16Parte V: Temas da histria da frica para a sala de aula 171. frica: onde nos tornamos humanos 17Sugesto de atividade 17
2. A histria da frica e a crtica ao termo pr-histria 17Sugestes de atividades 18
3. As sociedades africanas e as tradies orais 18Sugestes de atividades 19
4. A frica na Antiguidade 19Sugestes de atividades 20
5. A expanso banta 21Sugestes de atividades 23
6. A expanso do Isl e o comrcio de longa distncia 23Sugestes de atividades 26
7. A formao do mundo atlntico e o comrcio de africanos escravizados 26Sugesto de atividade 28
8. Colonialismo, resistncias e lutas pela independncia 28Sugestes de atividades 30
Consideraes finais 30Referncias bibliogrficas 30
Histrias do negro no Brasil 33Tema 1: A importncia da histria da frica na formao do Brasil 331. Sobre esteretipos e distores 33Sugesto de atividade 34
Tema 2: Dispora, escravido e interpretaes da escravido 34Sugesto de atividade 34
1. Interpretaes da escravido 34
2. Escravido: terror ou benignidade? 36Sugesto de atividade 37
3. Quilombos e rebeldia negra 37
4. Zumbi e a saga de Palmares 38Sugesto de atividade 40
5. A nova historiografia versus a reabilitao da escravido 40
Tema 3: A trajetria do Movimento Negro Brasileiro 421. Resistncia negra 42
2. Movimento Negro: definio 43
Sumrio
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3. Imprensa negra 44Sugesto de atividade 44
4. Frente Negra Brasileira 45Sugesto de atividade 46
5. Um quadro com nfase na ao poltica 47
6. Um exemplo nas manifestaes culturais 50
7. A emergncia do Movimento Negro nos anos 1970 e 1980 51Sugesto de atividade 55
Referncias bibliogrficas 56
Relaes tnico-raciais na histria e no Brasil 61Introduo 61Sugesto de atividade 63Sugesto de vdeo 63
1. A construo da ideia de raa 63Sugesto de atividade 67
2. A tradio estruturalista nos estudos das relaes raciais 67
3. Os novos estudos sobre as desigualdades raciais no Brasil 72
Consideraes finais 73Referncias bibliogrficas 74
Conhecimento ou ao: por onde principia? Educao e relaes tnico-raciais no cotidiano escolar 77Uma experincia prtica no municpio de Mangaratiba 77Abordagens temticas e prticas didticas do mdulo 801. Anlise de situaes-problema da realidade social e escolar brasileira 80Sugesto de atividade 81
2. A Lei n 10.639/2003 e o currculo escolar 81Sugesto de atividade 82
3. Construo de possibilidades didticas 83Sugesto de atividade 84
4. Possibilidades avaliativas no processo de construo de relaes tnico-raciais no racistas na escola 85Sugesto de atividade 86
Uma conversa que continua, para alm do ponto 87
Referncias bibliogrficas 87
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Trabalhando com histrias e culturas africanas e afro-brasileiras nas salas de aula 11
Histria da frica
Mnica Lima e Souza*
Introduo
Neste texto, sero discutidos alguns dos desafios enfrentados pelos professores brasileiros para trabalhar com a histria da frica na
educao bsica, bem como ser apresentada uma seleo de temas para o ensino-aprendizagem desses contedos em sala de aula.
Sabe-se que, a partir da Lei n 10.639/2003, a incluso da histria da frica e dos africanos no Brasil, da cultura afro-brasileira e das
lutas dos negros no Brasil tornou-se obrigatria nos currculos escolares de estabelecimentos de ensino pblicos e privados no
pas. Essa lei, dirigida educao bsica, tem seus desdobramentos na formao de professores do ensino superior expressos nas
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-raciais e para o Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira e
Africana. Em maro de 2008, essas medidas foram ampliadas com a incluso da obrigatoriedade do ensino da histria indgena,
mas o escopo deste trabalho ser limitado s questes relativas histria africana.
Os temas sero apresentados em tpicos selecionados, seguidos de indicaes bibliogrficas que podero servir para os educadores
pensarem os contedos e as abordagens mais adequadas ao seu trabalho pedaggico. Estes so, portanto, apenas alguns pontos
de partida. O que se pretende informar sobre alguns dos principais aspectos e indicar caminhos para um maior aprofundamento
do tema. Foram privilegiados tpicos que oferecessem possibilidades de uma abordagem interdisciplinar nos currculos escolares
e que tivessem relao com as grandes questes da histria geral e do Brasil.
Parte I: A frica na histria do Brasil e do mundo
No so unicamente os aspectos legais que colocam as pessoas frente histria da frica. Muito antes e alm deles, sabia-se no
ser possvel entender a histria do Brasil sem compreender suas relaes com o continente africano. A frica est nos brasileiros,
em sua cultura e em sua vida, independentemente da origem familiar pessoal. Sendo brasileiros, carrega-se dentro de si muito da
frica. Portanto, conhecer a histria da frica um caminho para se entender melhor a si prprio.
Deve-se lembrar ainda que a histria da frica parte indissocivel da histria da humanidade, na sua expresso mais completa. A
frica o bero da espcie humana, pois l surgiram as primeiras formas gregrias de vida dos homens e mulheres no planeta Terra.
Em toda a sua longa histria, os nativos do continente africano relacionaram-se aos habitantes de outras regies e continentes. Seus
conhecimentos, produtos, criaes e ideias circularam o mundo, assim como os seus criadores.
A histria do comrcio de escravos africanos constituiu o mais longo e demograficamente expressivo processo de migrao forada
da histria. Para as Amricas vieram cerca de 11 milhes de pessoas escravizadas, e destes, 40% foram trazidos para o Brasil, em
mais de trs sculos de trfico. Esse doloroso e duradouro movimento histrico trouxe a presena africana ao Brasil e s diferentes
partes do mundo atingidas pela chegada dos cativos. Mais do que isso: fez com que amplas reas do planeta passassem a manter
contatos permanentes e sistemticos com a frica, em um intercmbio de pessoas, ideias, tecnologias, ritmos, vises de mundo etc.
Ento, depara-se com o fenmeno da dispora africana: africanos e afrodescendentes foram espalhados pelo mundo, contra sua
vontade, retirados de suas aldeias, cidades, de suas famlias e de sua terra natal; no carregavam consigo nada alm de si prprios
seus corpos, suas tradies, suas memrias. Atualmente, culturas de matriz africana se fazem presentes em diferentes sociedades
no mundo. Cabe aos educadores conhec-las e estud-las, para entender o mundo de ontem e de hoje, e ajudar a pensar o de
amanh. Isso significa mais do que cumprir uma determinao: fazer valer o compromisso com uma educao que combata a
excluso e estimule o conhecimento e o respeito pelas diferentes origens da cultura e da sociedade brasileira.
Nos ltimos anos, foi desenvolvida uma srie de projetos para apoiar a implementao da legislao mencionada anteriormente,
que trouxe, de forma obrigatria, a histria da frica, as relaes entre o Brasil e a frica, e a histria dos africanos no Brasil para as
* Doutora em histria pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professora de histria da frica e coordenadora do Laboratrio de Estudos Africanos do Instituto de Histria da UFRJ.
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Educao das relaes tnico-raciais no Brasil12
salas de aula brasileiras. No h como fazer referncia a todas as boas iniciativas, mas sabe-se que existem vrias espalhadas pelo
Brasil, levadas a cabo individualmente por professores ou por pequenos grupos, por escolas e secretarias de educao, assim como
h projetos de outros tipos de instituies, de maior dimenso, e com suas propostas e contedos disponveis na internet. Entre
estes ltimos, recomenda-se o projeto educativo A Cor da Cultura, que pode ser conhecido e ter seus programas e livros copiados
no site1, assim como o Programa Brasil-frica: Histrias Cruzadas, da Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia
e a Cultura (UNESCO), que tambm d acesso, em sua pgina, a textos e materiais multimdia, e tem como objetivo promover o
reconhecimento da importncia da interseo da histria africana com a brasileira para transformar as relaes entre os diversos
grupos raciais que convivem no pas.2
Parte II: Histria da frica alguns cuidados importantes
Ao iniciar os estudos sobre a histria da frica, estar-se- lidando com uma matria-prima fascinante e delicada: os diversos
matizes da formao cultural brasileira, a memria dos ancestrais africanos e suas heranas, invisveis durante tanto tempo. Todo
o cuidado ser pouco para no resvalar nas trilhas aparentemente fceis do maniquesmo, da simplificao e da folclorizao. Por
isso, reflete-se sobre a preveno desses perigosos males, que podem enfraquecer a percepo e provocar o distanciamento dos
objetivos propostos. Alguns desses cuidados podem parecer bvios, mas, muitas vezes, o aparentemente bvio merece ser revisto
e revisitado, para que se reflita sobre ele.
Assim, seguem algumas reflexes:
a) Os africanos e seus descendentes nascidos a partir da dispora no Novo Mundo (as Amricas, incluindo o Brasil) eram
seres humanos, dotados de personalidade, desejos, mpetos e valores. Eram tambm seres contraditrios, dentro da
sua humanidade. Tinham seus interesses, seu olhar sobre si mesmos e sobre os outros. Tinham suas experincias de
vida muitas vezes, vinham de sociedades no igualitrias na frica ou nasciam aqui em plena escravido. No h
como uniformizar atitudes, condutas e posturas, e idealizar-se um negro sempre ao lado da justia e da solidariedade.
O que se pode e deve ressaltar so os exemplos desses valores humanos, presentes em muitos e, durante tanto tempo,
injustamente negados e tornados invisveis pela sociedade dominante. Assim, sugere-se veementemente evitar dividir o
mundo em brancos maus e negros bons, o que no ajuda a perceber o carter complexo dos grupos humanos. A ideia
valorizar o positivo, mas sem idealizar.
b) O desconhecimento sobre a histria e a cultura dos africanos e dos seus descendentes, no Brasil e nas Amricas, muitas
vezes pode fazer com que se opte por utilizar esquemas simplificados de explicao para um fenmeno to complexo
como a construo do racismo em tais socidades. O racismo um fenmeno que teve e tem influncia nas mentalidades,
em um modo de agir e de se ver no mundo. As diferentes sociedades interagiram com ele de diversas maneiras: o Brasil
no tem a mesma histria de relaes raciais que os Estados Unidos, para utilizar um exemplo clssico. No entanto, durante
muito tempo, defendeu-se a ideia de que aqui no havia discriminao e, ainda, que o que separava as pessoas era apenas
sua condio social. Na atualidade, no somente se observa pelos dados da demografia da pobreza brasileira que ela tem
uma inequvoca marca de cor, como se sabe que um olhar mais atento histria e vida dos afrodescendentes no pas
revela a convivncia permanente com o preconceito e seus efeitos perversos. Contudo, para que seja possvel ver isso, foi
preciso ouvir relatos, analisar dados e entender como ocorreu essa histria. Apenas dessa forma foi possvel desnaturalizar
as desigualdades e encarar a face hostil do racismo envergonhado brasileiro. O que isso quer dizer? Que se deve dedicar
ao tema: estudar, ler, informar-se, sempre e mais. Afinal, o que est em jogo muito mais do que a competncia profissional
dos educadores: o compromisso com um pas mais justo e com um mundo melhor para todos e todas.
c) Acostumou-se a ver as manifestaes culturais de matriz africana, no Brasil, reduzidas ao campo chamado de folclore.
O conceito de folclore, que remete s tradies e prticas culturais populares, no tem em si nenhum aspecto que
1 Disponvel em: 2 UNESCO. Programa Brasil-frica: Histrias Cruzadas. Disponvel em: .
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Trabalhando com histrias e culturas africanas e afro-brasileiras nas salas de aula 13
o desqualifique, mas o olhar que foi estabelecido sobre o que se chama de manifestaes folclricas, sim. Sobretudo
no mundo contemporneo, em que a modernidade est repleta de significados positivos, o folclore e o popular se
identificam no poucas vezes com o atraso algo curioso, extico, mas de menor valor. Logo, se no se problematiza
a insero da cultura africana nesse registro, corre-se o risco de no se criar uma identidade, nem estimular o orgulho
de se pertencer a ela. Pode-se desmistificar a ideia de folclore presente no senso comum e, igualmente, mostrar como
complexa e sofisticada a cultura negra brasileira. So matrizes culturais que trazem saberes, tcnicas e toda uma
engenharia mental para ser elaborada e se expressar. Alm disso, assim como as pessoas, ela est em permanente
mudana e no nada bvia. Assim, pode-se estar atribuindo um carter restrito histria africana se ela ficar limitada
s manifestaes culturais mais aparentes.
d) Seria uma viagem perdida frica se se fosse buscar l as origens puras das religies de matriz africana, ou dos ritmos, danas
e brincadeiras que atualmente existem na cultura popular brasileira. O candombl, a capoeira, a congada e o maracatu
so manifestaes culturais nascidas no Brasil, e tm fortes marcas da histria da escravido no pas, da mistura de povos
africanos que ocorreu aqui e das relaes que criaram entre si e com a sociedade local. Na frica, so encontradas algumas
de suas bases, mas nunca sua forma original. Certamente, todas essas manifestaes tm profundas razes africanas, mas
so africanamente brasileiras. Portanto, deve-se ter conscincia de que aqui se vai ao encontro da histria da frica, e que
nela sero encontados muitos conhecimentos para se entender melhor a histria do Brasil e do mundo , mas no todas
as chaves para se compreender a diversidade cultural brasileira.
Alm desses cuidados mencionados acima, h outros pontos sobre os quais deve haver reflexo e constante ateno:
a) A frica um continente amplo, em que vivem e viveram, desde os princpios da humanidade afinal, foi l onde a
raa humana surgiu , diferentes grupos humanos, com lnguas, costumes, tradies, crenas e formas de ser prprias,
construdas ao longo de sua histria. Assim, dizer o africano ou a africana, como uma ideia no singular, um equvoco.
Pode-se at utilizar esses termos quando se trata de processos histricos vividos por diversos nativos da frica, mas
sempre tendo em mente que no se trata de um todo homogneo, mas sim de uma ideia genrica que inclui alguns
indivduos, em situaes muito especficas. Por exemplo: pode-se dizer o trfico de escravos africanos ou seja, est-
se referindo atividade econmica cujas mercadorias eram indivduos nativos da frica, conhecida nos seus anos de
declnio como o infame comrcio, como passou a ser chamado o trfico de escravos africanos. Nesses casos, vale dizer,
de modo geral, africanos ou negros africanos. Contudo, deve-se evitar atribuir a essas pessoas qualidades comuns, como
se fossem tipos caractersticos.
b) Um dos preconceitos mais comuns quanto aos africanos e afrodescendentes ocorre com relao s suas prticas religiosas
e um suposto carter maligno contido nelas. Esse tipo de afirmao no resiste ao confronto com nenhum dado mais
consistente de pesquisas sobre as religies africanas e a maioria das religies afro-brasileiras. A figura do demnio, ou
seja, de um ser que rene em si toda a maldade, no existe nas religies africanas. Em quase todas as prticas religiosas
surgidas no continente, sobretudo na frica Subsaariana, no h nenhum ser ou entidade que personifique o Mal. As
religies de matriz africana no Brasil, em sua maioria, tampouco reconhecem a existncia espiritual de uma entidade
completamente m. O que pode acontecer uma reao s atitudes ou omisses de seus fiis. As divindades africanas
e suas derivadas no Brasil, em geral, encolerizam-se se no forem cultuadas ou consideradas, e podem se vingar; mas
jamais agem para o mal de forma independente dos agentes humanos que a elas demandam. No existe um grande
adversrio das foras do Bem, no h esse poder em nenhum ente do sagrado africano, a no ser naquelas religies
influenciadas pelos monotesmos cristo e islmico.
Parte III: Conhecendo a frica
A frica o segundo continente mais populoso do mundo, com mais de 800 milhes de habitantes. L, vivem 13 de cada 100
habitantes, e a taxa de crescimento da populao uma das mais altas do planeta: quase 3% ao ano. o terceiro continente do
mundo em extenso, com cerca de 30 milhes de quilmetros quadrados, o que corresponde a 20,3% da rea total da Terra. So 54
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Educao das relaes tnico-raciais no Brasil14
pases, sendo 48 continentais e 6 insulares, e ainda h territrios dominados por pases estrangeiros3 sendo que a maioria destes
so ilhas. Aproximadamente 75% da superfcie do continente se situa nos trpicos; somente as suas extremidades norte e sul tm
clima temperado. o mais quente dos continentes, ainda que tenha regies de altas montanhas, sempre cobertas de neve, como
o Monte Kilimanjaro, na Tanznia.
Mapa atual da frica (diviso poltica)
Fonte: Disponvel em: .
Na frica, so faladas aproximadamente duas mil lnguas, as quais, por sua vez, tm suas variantes: os dialetos. Entre essas lnguas,
mais de 50 so faladas por mais de um milho de pessoas. O rabe, por exemplo, falado por cerca de 150 milhes de africanos, e
a lngua oficial de sete pases da frica. O hau, idioma da regio norte da Nigria, tem quase 70 milhes de falantes.
3 A Repblica rabe Saharaui Democrtica (RASD), conhecida como Saara Ocidental, ocupada parcialmente pelo Marrocos. Ceuta e Meliha, cidades situadas no norte do continente, pertencem Espanha. Alm desses, os seguintes territrios insulares no espao martimo africano pertencem a pases europeus: no Oceano Atlntico, a Ilha da Madeira (Portugal), as Ilhas Canrias (Espanha), as Ilhas de Santa Helena, Ascenso e Tristo da Cunha (Reino Unido); e no Oceano ndico, as Ilhas Reunio, Tromelin, Gloriosas e Mayotte (Frana).
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Trabalhando com histrias e culturas africanas e afro-brasileiras nas salas de aula 15
Os estudiosos localizaram cinco grandes famlias lingusticas na formao dos idiomas do continente africano. As famlias lingusticas
so a afro-asitica (no Norte, Nordeste e Noroeste, cobrindo o Saara e as regies limtrofes do deserto); a nilo-saariana (partes centrais
do deserto e arredores da nascente do Rio Nilo); khoisan (Nambia, partes do Sudoeste e regies pontuais no Centro-leste); austronsia
(ilhas do ndico, em especial Madagascar) e nger-cordofoniana (frica Ocidental, Central e Sudeste). A famlia nger-cordofoniana, assim
como as outras, dividiu-se em troncos lingusticos e estes, por sua vez, em idiomas. Um dos troncos lingusticos derivados da famlia
nger-cordofoniana o banto, que deu origem a vrias lnguas africanas faladas ao sul da linha do equador. As lnguas bantas, trazidas
pelos escravos para o Brasil, contriburam com muitas palavras para o portugus que se fala e se escreve no pas. Alm disso, existem
tambm lnguas na frica resultantes da mistura de lnguas estrangeiras com lnguas locais so as chamadas lnguas crioulas.
Grupos lingusticos da frica
Fonte: Disponvel em: .
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Educao das relaes tnico-raciais no Brasil16
O que possvel concluir com essas breves informaes gerais sobre a frica?
Fundamentalmente, a sua grande e enriquecedora diversidade. Essa diversidade africana aparece nas paisagens e acompanhada
pela diversidade de opes religiosas, costumes e modos de vida. O mesmo ocorre nas muitas lnguas que so faladas. H pases,
como a Nigria, por exemplo, em que foram catalogadas 521 lnguas, das quais 510 so consideradas lnguas vivas (com falantes
nativos do pas, e em uso), duas segundas lnguas sem falantes, e nove lnguas extintas. Em algumas regies, grupos tnicos falam
mais de uma lngua, e algumas, mais difundidas, so conhecidas por muitos habitantes do pas. Normalmente, em um pas com
essa caracterstica, utiliza-se mais de um idioma no dia a dia, no contato das pessoas umas com as outras. Para os brasileiros isso
pode parecer complicado, mas surpreendente como essa diversidade no cotidiano se torna algo vivido com naturalidade.
Parte IV: Fontes para o estudo sobre a histria da frica
A frica tem uma histria: com essa frase, o grande historiador Joseph Ki-Zerbo, nascido em Burkina Faso (frica Ocidental), abriu
a sua Introduo Coleo Histria Geral da frica, organizada e patrocinada pela UNESCO nas dcadas de 70 e 80 do sculo XX,
depois do perodo das independncias de vrios pases africanos nos anos 60 daquele sculo. Foram publicados oito volumes e,
por iniciativa da UNESCO e do governo brasileiro, todos esto disponveis na internet para os interessados em ler e estudar.4 Para
tanto, basta acessar: Essa foi a primeira vez em que se reuniram tantos historiadores, inclusive africanos, para se debruar sobre um
projeto geral de histria do continente. Anteriormente, a frica ainda era vista como uma terra desconhecida para a maioria dos
estudantes e profissionais das chamadas humanidades. Para muitos, ainda era um continente perdido em um passado com lees,
florestas e selvagens.
A viso sobre a histria da frica que esse projeto da UNESCO teve com objetivo combater, em grande parte, foi construda no
perodo colonial que se iniciou em fins do sculo XIX e chegou at a segunda metade do sculo XX , mas tambm se alimentou
da longa histria do trfico atlntico de escravos, quando foram criadas justificativas para o infame comrcio. Essa era uma viso
que negava frica o direito sua prpria histria e, aos africanos, o papel de sujeitos, e no apenas objetos de dominao,
converso ou escravizao, como de costume.
Depois dessa iniciativa, muito foi criado e discutido sobre a histria da frica, nas dcadas seguintes. A contribuio dos estudiosos
do prprio continente, com agendas prprias e slidos trabalhos de pesquisa, trouxe novas luzes para esse campo. Seus trabalhos,
ao mesmo tempo, enriqueceram a anlise geral com os dados dos processos histricos locais e inseriram os africanos, de forma
ativa, na construo de uma histria que ia alm das fronteiras do seu continente.
Essa importante coleo tambm tem uma sntese, lanada pela UNESCO no Brasil em 21 de maro de 2014, que est publicada em
dois volumes e pretende fornecer subsdios para pesquisadores e estudantes, bem como para a prtica pedaggica de professores
responsveis pela educao bsica, com o objetivo de ampliar seus conhecimentos em relao histria e a cultura africana. O volume
1, dividido em quatro captulos, contm, de forma criteriosa, o resumo dos temas publicados nos quatro primeiros volumes da edio
completa da Coleo Histria Geral da frica. O volume 2 aborda os temas tratados nos quatro ltimos volumes da edio completa
da coleo, abrangendo desde o sculo XVI at o sculo XX.5
Os quatro grandes princpios
No presente estudo sobre a histria da frica, procura-se sempre resgatar os quatro grandes princpios que J. Ki-Zerbo destacou
na Introduo da Coleo Histria Geral da frica, pois, apesar do tempo passado, ainda so de grande atualidade. O primeiro,
a interdisciplinaridade: para se entender a conjuntura, os processos ocorridos e a forma como as informaes so transmitidas,
4 UNESCO. Coleo histria geral da frica. Disponvel em: .
5 UNESCO. Sntese da Histria Geral da frica e contedos para a educao infantil: evento de lanamento. Disponvel em: . Acesso em: 24 mai. 2014.
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Trabalhando com histrias e culturas africanas e afro-brasileiras nas salas de aula 17
fundamental o auxlio de outras disciplinas, como a geografia, a sociologia, a antropologia e a lingustica, entre outras. Outro
ponto de partida fundamental buscar sempre apresentar a histria do ponto de vista africano, e no de fora para dentro. Isso
no significa ignorar os processos compartilhados e suas conexes, mas sim perceber as reciprocidades das influncias, as aes
que partiram dos africanos na construo da sua histria. O terceiro princpio o de apresentar a histria dos povos africanos em
seu conjunto, no em uma perspectiva simplista e homogeneizadora que no considera a pluralidade e a diversidade na frica,
mas sim entendendo as conexes e as trocas, bem como a presena de aspectos de semelhana e identidade entre as muitas
sociedades do continente. Finalmente, o quarto princpio o de evitar o factual, ou seja, uma histria de eventos dissociados, que
tanto mal fez e faz aprendizagem crtica, ao entendimento das relaes entre as diversas partes do mundo e compreenso da
atuao dos sujeitos histricos em toda a sua complexidade. Por essa razo, trabalha-se sobre grandes temas e questes, situados
historicamente e contextualizados no tempo e no espao. No se pretende contar toda a histria da frica, mas destacar nela
assuntos e problemas, sem deixar de seguir uma linha lgica e cronolgica na apresentao deles.
Parte V: Temas da histria da frica para a sala de aula
1. frica: onde nos tornamos humanos
A frase a frica o bero da humanidade bastante conhecida. Ela faz recordar que os primeiros registros da presena humana
no planeta foram encontrados no continente africano. No apenas a presena humana, mas de grupos humanos vivendo em
conjunto, buscando formas de sobrevivncia e criando artefatos para isso. As pesquisas tm mostrado que a frica teria sido o
cenrio das primeiras e fundamentais etapas da evoluo humana. L, foram encontrados vestgios dos primeiros homindeos
os antepassados dos humanos , como os recentemente (em 2002) achados no Chade, datados de 7 milhes de anos
atrs. Tambm foram descobertos vrios e importantes exemplares do Homo habilis humano que produzia ferramentas e
demonstrava raciocnio complexo , que viveram, entre 2 milhes e 2,5 milhes de anos atrs, entre outros lugares na frica, no
desfiladeiro de Olduvai (Tanznia), cenrio de tantas descobertas arqueolgicas importantes para o conhecimento das origens
da humanidade.
H muitas discusses sobre como esses primeiros humanos se espalharam pelo mundo, e se saram da frica como Homo
erectus ou Homo sapiens. Contudo, o que se pode afirmar sem erro que, na frica, encontram-se os vestgios dos mais antigos
antepassados dos humanos. Alm disso, em territrio africano foram achadas as pistas de uma srie de tipos diferentes dos
primeiros humanos. Com isso, a frica revelou informaes fundamentais, para a histria, sobre a vida dos homens e das
mulheres que iniciaram a humanidade.
Sugesto de atividade
Utilizando com os alunos um mapa poltico atual da frica, localizar no continente os lugares onde foram encontrados
vestgios de presena da espcie humana mencionados neste texto.
2. A histria da frica e a crtica ao termo pr-histria
Toda essa histria tem, entre outras, duas consequncias muito importantes: a primeira, que revela que os estudos de campo
realizados na frica permitiram um maior conhecimento sobre o processo da evoluo humana. O territrio africano , portanto,
uma fonte para a histria da humanidade. A segunda deve-se ao fato de que os estudos de histria da frica sobre tempos to
remotos tambm contriburam para se rever o conceito de pr-histria.
Durante muito tempo, marcou-se o incio dos tempos histricos a partir do surgimento da escrita. Tal linha divisria deixava
fora da histria os povos que no criaram formas de escrita. Alm disso, marcava para sempre como gente fora da histria
aqueles que, apesar de viverem em pocas com a escrita j difundida, no a utilizavam como meio de registro e comunicao.
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Educao das relaes tnico-raciais no Brasil18
De alguma maneira, associava-se a ausncia da escrita ao que era primitivo, arcaico, quase perdido no tempo. Seria um
tempo sem histria?
As pesquisas nos stios arqueolgicos da frica, de forma explcita, mostraram que no. A chamada pr-histria foi um tempo
de muitas mudanas, criaes, inventos e descobertas que revolucionaram a vida de homens e mulheres. Ela no pode ser vista
como um perodo em que os dias se sucediam de forma igual, e no qual a histria das relaes humanas no poderia ser lida
muito ao contrrio. O controle sobre a natureza, o desenho de novos territrios pelas migraes e a descoberta de novas formas
de sobrevivncia todos esses passos que construram a evoluo dos humanos mais antigos ocorreram em tempos histricos
e consistiram em mudanas radicais na trajetria humana.
A arte rupestre africana tambm revelou ao mundo muitos aspectos do estilo de vida e dos padres estticos de homens e
mulheres de tempos remotos. Assim, so fontes para o estudo das antigas formas de vida, bem como de sonhos, religiosidades
e simbologias dos primeiros grupos humanos. Em paredes de pedra de diferentes regies da frica encontram-se registros de
cenas do cotidiano, e tambm de desejos e sonhos, o que faz das pinturas documentos reveladores das formas de representao
caractersticas de homens e mulheres h milhares de anos.
Portanto, vemos que a histria da frica ilumina aspectos da histria do mundo em seus perodos mais remotos, ao trazer
inmeras fontes sobre o incio da vida humana em sociedade. Alm disso, auxilia na reviso de conceitos consolidados como o
de pr-histria, levando a se repensar o modo de entender povos e grupos contemporneos que no dominam a escrita, mas
que ainda assim registram sua histria.
Sugestes de atividades
a) Conversar com os alunos sobre a importncia da descoberta do fogo em que ela ajudou os humanos?
b) Discutir com a turma sobre o porqu do uso da escrita ter sido considerado, equivocadamente, como critrio para
determinado grupo ser tido como integrante da histria. Colocar em pauta: conhecimento apenas o que est escrito?
3. As sociedades africanas e as tradies orais
Outro aspecto da histria africana que contribui para o desenvolvimento da histria da humanidade como um todo o trabalho
com as fontes orais. Para pesquisar sobre vrios povos no continente africano, os historiadores tiveram de aprender a lidar com
esse tipo de fonte e criar metodologias que fossem capazes de extrair delas informaes e valid-las como registro. Todo um
aprendizado e grandes passos foram dados no sentido da criao de um mtodo de trabalho com as fontes orais, o que trouxe
desdobramentos para a histria de muitas sociedades, inclusive para aquelas que utilizavam a escrita, mas que tinham, em
seu meio, grupos que no o faziam. Ou ainda sociedades que tinham uma srie de aspectos fundamentais de sua histria
registrados apenas oralmente, apesar de fazerem uso da escrita.
Inicialmente, todo esse trabalho tinha como desafio encontrar fontes que fornecessem informaes sobre a histria africana.
Porm, isso acabou trazendo desafios para a histria de amplos grupos humanos e, sobretudo, fez a historiografia entender
essas pessoas como autores de registros histricos. Com isso, grupos de analfabetos ou semianalfabetos, indgenas e nmades
excludos do registro escrito, vivendo em pases do mundo desenvolvido no Ocidente, graas ao reconhecimento das
metodologias de trabalho com fontes orais, recuperaram seu lugar na histria das academias e das instituies cientficas.
Um passo importante para a histria da frica foi o aprendizado sobre o trabalho com as tradies orais. Mais do que fontes informativas
sobre a histria de povos africanos, as tradies orais revelam muito da relao dos seus autores com o conhecimento histrico. Na frica,
as tradies orais so o espao simblico de preservao de dados histricos, bem como da interpretao desses mesmos dados.
A coleta de relatos da tradio oral africana no foi obra exclusiva de historiadores africanos ou africanistas. Alguns
administradores letrados no perodo colonial fim do sculo XIX e princpios do sculo XX, principalmente realizaram esse
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Trabalhando com histrias e culturas africanas e afro-brasileiras nas salas de aula 19
trabalho, acompanhados por estudiosos africanos formados em escolas coloniais. No entanto, faltava-lhes uma metodologia
que ajudasse a compreender melhor e a dar legitimidade a essas fontes. Essa metodologia surgiu no incio da dcada de 1960,
a partir do trabalho pioneiro de um estudioso belga, chamado Jan Vansina. Em seus estudos, ele indicou as possibilidades de
controle e crtica necessrias para a utilizao cientfica das tradies orais. Em seguida e paralelamente, seminrios acadmicos
realizados na frica em Dacar (Senegal), em 1961, e em Dar es Salaam (Tanznia), em 1965 trouxeram contribuies de outros
estudiosos da histria africana, e destacaram o papel insubstituvel das tradies orais como fontes.
A palavra memria viva na frica, disse Amadou Hampate-B, historiador e escritor nascido no Mali (frica Ocidental) e um
dos grandes nomes nos estudos das tradies orais no continente. Isso tambm o que se percebe nesse trecho de um artigo
seu, considerado um texto clssico sobre o tema:
Para alguns pesquisadores, o problema se resume em saber se a transmisso oral, enquanto testemunho de acontecimentos passados, merece a mesma confiana concedida transmisso escrita. A meu ver, esta colocao errnea. Em ltima anlise, o testemunho, escrito ou oral, sempre um testemunho humano, e seu grau de confiabilidade o mesmo do homem. O que se questiona, alm do prprio testemunho, o valor da cadeia de transmisso qual o homem est ligado, a fidelidade da memria individual e coletiva e o preo atribudo verdade em determinada sociedade. Ou seja, o elo que une o homem Palavra. Ora, nas sociedades orais que a funo da memria mais desenvolvida, e mais forte o elo entre o homem e a Palavra. Na ausncia da escrita, o homem se liga sua palavra. Tem um compromisso com ela. O homem a sua palavra e sua palavra d testemunho do que ele . A prpria coeso da sociedade depende do valor e do respeito pela palavra. Nas tradies africanas pelo menos nas que conheo, que so de toda a zona de savana ao sul do Saara a palavra falada, alm de seu valor moral fundamental, possui um carter sagrado que se associa sua origem divina e s foras ocultas nela depositadas. Sendo agente mgico por excelncia e grande vetor de foras etreas, no pode ser usada levianamente (B, 1973, p. 17).
Em obra mais recente, publicada no Brasil, o mesmo autor fala sobre a sua formao e de outros historiadores da tradio oral africana:
que a memria das pessoas de minha gerao, sobretudo a dos povos de tradio oral, que no podiam apoiar-se na escrita, de uma fidelidade e de uma preciso prodigiosas. Desde a infncia, ramos treinados a observar, olhar e escutar com tanta ateno, que todo acontecimento se inscrevia em nossa memria, como em cera virgem (B, 2003, p. 13).
Com isso, o trabalho com relatos orais na frica abriu novas fontes para o estudo da histria como um todo, em uma perspectiva
antieurocntrica e antielitista, que incorpora novas vozes e vises de mundo.
Sugestes de atividades
a) Programar uma srie de entrevistas a serem realizadas pelos alunos sobre algum tema do momento na escola. Pedir para
que eles comentem aspectos da fala dos entrevistados (tom de voz, expresso facial e corporal) alm do contedo, bem
como as razes pelas quais esses aspectos ajudam a entender aquilo que eles pensaram e quiseram dizer.
b) Localizar, nas proximidades da escola, alguma comunidade ou associao com lideranas mais velhas que transmitem seus
conhecimentos pela tradio oral. Programar com antecedncia visitas a esse local, organizando a atividade de forma que
os estudantes possam escutar e perguntar sobre os conhecimentos adquiridos. Ao retornar, solicitar um relatrio oral.
4. A frica na Antiguidade
Os estudos de histria geral sobre o perodo conhecido como Idade Antiga quase nunca ou muito raramente contemplam o
continente africano, ou, se o fazem, no o revelam. Isso particularmente perceptvel quando se apresenta a histria do Antigo Oriente
Prximo e, nela, a histria do Egito. O Egito, apesar de em todos os mapas e referncias geogrficas se encontrar no continente africano,
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Educao das relaes tnico-raciais no Brasil20
mostrado como se fosse parte de um mundo oriental no especificado. Privilegia-se o enfoque de seus contatos com a Pennsula
Arbica e a antiga Mesopotmia, e menos a sua ralao com as terras africanas ao sul, onde atualmente se localizam a Etipia e o Sudo.
No entanto, sabe-se mais sobre a importncia das relaes entre o Egito e o interior do continente africano, em grande parte,
devido aos longos e criteriosos estudos realizados nas dcadas de 1950 e 1960 por Cheikh Anta-Diop, intelectual de muitos
saberes nascido no Senegal. Ele afirmou, comprovando com fontes pesquisadas, que o Egito se relacionava de forma profunda
com o mundo africano. As bases da chamada civilizao egpcia se encontravam ao sul, dentro da frica, e para l recorriam
faras e sacerdotes em busca de proteo, inspirao e sabedoria. A fundao do Imprio egpcio, que ocorreu h cerca de 5 mil
anos, se deu a partir do sul, e dali com a conquista da regio do Delta do Nilo. Assim, o Egito e foi sempre africano, ainda que
muito prximo do Oriente e do mundo mediterrneo. As trocas culturais e demogrficas com outras regies da sia Ocidental
no retiram o lugar geogrfico e histrico do Egito Antigo.
Da mesma forma, quando se estuda a histria do Mediterrneo Ocidental na Antiguidade, ouve-se falar de Cartago e das guerras
dessa cidade africana contra a poderosa Roma, sem se mencionar os dados internos quela cidade. O que fazia de Cartago
uma cidade to rica e poderosa? O seu papel comercial, sem dvida. No entanto, o que Cartago comerciava de to valioso,
que enriquecia seus governantes a ponto de torn-la uma temida rival da cidade mais poderosa do Mediterrneo? Cartago
possua frteis campos de trigo, base para a alimentao dos povos naquela poca, e contato com os berberes, povos do
deserto do Saara que traziam, pelas rotas das caravanas, o ouro do interior do continente. De Cartago saam os navios fencios
que costeavam a frica em direo ao ocidente, os quais chegavam ao litoral ao sul do Marrocos em busca de produtos locais.
O domnio sobre Cartago, a partir de 146 a.C., significou no apenas o incio do poder de Roma sobre o norte do continente
africano, mas tambm o estreitamento das relaes do mundo europeu mediterrneo com os povos do deserto. Provavelmente
graas aos romanos, os berberes tomaram contato com os camelos os navios do deserto, animais de carga e transporte que se
adequaram especialmente s condies do Saara. Assim, com os camelos, os africanos do deserto chegaram ainda mais longe
dentro do continente, levando e trazendo pessoas, produtos, tcnicas e conhecimentos.
Outro tema da histria da frica que tem estreita relao com a histria geral na Antiguidade a expanso do cristianismo
nas terras africanas. Isso se deu sob o domnio de Roma; a presena de religiosos fez surgir, na frica, ramos do cristianismo
muito antigos e profundamente influenciados por crenas locais. No Egito dominado por Roma, muitos grupos oprimidos se
cristianizaram e fizeram da nova f um motivo de consolo e de resistncia contra os opressores. Porm, no sculo IV, Roma se
tornou um imprio cristo e fundou uma nova capital em Bizncio, na Europa Oriental. De Bizncio partiram misses para a
frica, e essas misses africanas deram origem a muitos estudiosos e lderes do cristianismo. Santo Agostinho, nascido em 354,
na Numdia (na costa oriental da atual Arglia), foi um dos mais importantes. Alm disso, surgiram comunidades crists que
criaram Igrejas locais, como os cristos coptas no Egito e a Igreja crist etope, nascidas nos primeiros sculos da Era Crist.
Esses e outros temas interligam a histria africana e a histria de grandes movimentos de expanso poltica, religiosa e econmica
da Antiguidade. Aqui, entra-se em contato com apenas alguns aspectos e, no entanto, possvel perceber como se enriquece
a compreenso da histria que se acreditava j conhecer. Ao se acrescentar esses aspectos da histria africana aos estudos de
histria geral, est-se ampliando e aprofundando o olhar do profissional e o dos alunos sobre o continente dos antepassados
dos brasileiros, bem como sobre as relaes entre eles e o restante do mundo.
Sugestes de atividades
a) Pedir para que os estudantes tragam um mapa do continente africano. Na sala de aula, solicitar que eles localizem no
mapa o Egito, o Rio Nilo e, em seguida, a regio dos antigos reinos da Nbia. Onde estariam localizados os reinos da
Nbia na atualidade? Consultar em sala o mapa poltico atual.
b) Solicitar que os alunos localizem, neste mesmo mapa, o lugar para onde foram os primeiros cristos na frica.
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Trabalhando com histrias e culturas africanas e afro-brasileiras nas salas de aula 21
5. A expanso banta
Para muitos, o nome banto pode soar familiar. Alis, ele j foi mencionado neste texto, quando se caracterizou a diversidade
africana, sobre o tronco lingustico banto e a importncia das lnguas dele derivadas para o portugus do Brasil.
Porm, o que significa essa palavra? Banto um termo que resulta da combinao de ntu (ser humano) acrescido do prefixo ba,
que designa o plural. Assim, banto que em alguns lugares escrito bantu significa: seres humanos ou gente.
Os bantos, isto , os grupos de lnguas bantas, no formam uma etnia, muito menos um povo: eles compartilham uma
origem, em termos dos idiomas e dos dialetos que falam. No entanto, sabe-se que compartilhar a origem lingustica, em geral,
tambm significa compartilhar aspectos culturais. Em outras palavras, isso indica que possvel encontrar, entre os povos de
lnguas bantas, algumas semelhanas nas formas de interpretar a realidade. Contudo, isso no os torna um povo ou mesmo
um grupo tnico.
A ocupao dos bantos sobre grandes reas do continente africano ao sul da linha do equador ocorreu muito lentamente, ao
longo de milhares de anos. A primeira grande leva teria se deslocado ainda no final do segundo milnio a.C., partindo de uma
regio que atualmente corresponderia ao norte da fronteira entre Camares e Nigria. Esses grupos cruzaram a regio que na
atualidade se localiza a Repblica Centro-Africana, ocupando reas dentro e fora da floresta equatorial, a oeste e a leste. Ao se
estabelecerem, de forma sedentria ou semissedentria, eles introduziram dois sistemas diferentes de produo de alimentos,
que se adaptaram, respectivamente, s florestas e savana. Eram agricultores e foram os primeiros nessa regio a se organizar
em aldeias, bem como a agrupar tais aldeias em unidades mais abrangentes, com cerca de 500 pessoas cada.
Uma segunda leva migratria ocorreu por volta do ano 900 a.C., quando terminava a longa expanso inicial. A essa altura, havia
dois grandes grupos, falando lnguas aparentadas, mas diversas: os bantos do oeste (no norte da atual Repblica Popular do
Congo e leste do Gabo) e os bantos do leste (atual Uganda). Os do oeste se destinaram para onde , na atualidade, o norte de
Angola, e chegaram a uma regio mais seca. Outros permaneceram na fronteira entre a savana e a floresta, seguindo os cursos
dgua. Enquanto isso, os bantos do leste deslocaram-se em direo ao sul, para o sudeste do Zaire e a Zmbia atuais.
importante lembrar que esses processos expansionistas no foram invases: eles fizeram parte de um movimento de
populaes, lento e com intensidade irregular, e que no poucas vezes levou os bantos a estabelecer contatos e a se misturar
com grupos que j habitavam as regies ou regies prximas aonde chegavam. As pesquisas lingusticas e arqueolgicas
demonstram que, por vezes, os bantos alteraram seu modo de vida, tornaram-se pastores nmades e chegaram, em alguns
casos, a transformar sua prpria lngua, sendo absorvidos pelos grupos khoisan.
Novas ondas migratrias dos grupos banto do leste em direo ao sul, nos sculos iniciais da Era Crist, parecem ter levado
consigo as importantes tcnicas de metalurgia para essas reas. A essa altura, esses grupos seriam, alm de agricultores, tambm
ferreiros. O domnio dessas tcnicas modificou enormemente a vida desses grupos. A partir desse momento por volta do
sculo V , e como resultado dessa verdadeira rede de deslocamentos de populaes, expandiram-se as tcnicas de metalurgia
e de produo de alimentos e entre os povos da frica ao sul do equador.
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Educao das relaes tnico-raciais no Brasil22
Migraes dos grupos banto
Fonte: Disponvel em: .
Uma vez que a produo de alimentos estava assegurada de forma mais efetiva, ocorreu uma maior tendncia a que esses
grupos se tornassem sedentrios. Com isso, as populaes se tornaram mais fortemente ligadas aos seus territrios. Os contatos
entre os grupos se intensificaram com as trocas entre produtores de diferentes tipos de alimentos, dependendo da regio.
Por exemplo, o inhame e o azeite de dend, juntamente com a caa e a pesca das reas mais prximas s florestas, podiam
ser trocados por cereais e outros produtos inclusive artesanais de reas prximas. Todos esses desenvolvimentos foram
acompanhados por transformaes na organizao social desses grupos. Surgiram novos modos de se reconhecer e de se
relacionar, interna e externamente. Em alguns casos, apareceram divises sociais mais profundas e, em outros, foram criadas
autoridades a partir do histrico de liderana da ocupao da terra. Em todos os casos, essas criaes para o funcionamento da
vida em sociedade foram referendadas no mundo espiritual, parte inseparvel do entendimento da vida para essas populaes.
Assim, e paralelamente a essa evoluo da ocupao de grandes partes da frica ao sul do equador, foram surgindo grupos que,
por uma histria, lngua, crenas e prticas em comum, passaram a constituir povos. Isso ocorreu lentamente, entre o sculo V
a.C. e o sculo V da nossa era. Foram surgindo, assim, identidades de grupo.
A situao ambiental sempre foi bsica para essa construo. Alm disso, a identidade coletiva passou a dar sentido vida
das pessoas: o pertencimento comunidade tornou-se o elemento definidor da pessoa. No existia a ideia de indivduo: o
ser humano era parte da comunidade ou no era ningum. Por isso, quando ocorria a escravizao, o escravo passava a ser
considerado um estrangeiro, algum sem vnculos com a comunidade.
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Trabalhando com histrias e culturas africanas e afro-brasileiras nas salas de aula 23
Sugestes de atividades
a) Utilizando um atlas geogrfico, na pgina correspondente, ou um mapa fsico (com relevo, hidrografia e vegetao) da
frica em separado, pedir para que os alunos descrevam as principais dificuldades possivelmente encontradas pelos
migrantes de lngua banto em seus trajetos.
b) Pesquisar, na internet, palavras de origem africana que so utilizadas cotidianamente no Brasil atual. Solicitar que os alunos
elaborem pequenos textos, utilizando essas palavras de forma correta e criativa, e fazendo referncia histria da frica.
6. A expanso do Isl e o comrcio de longa distncia
Muitas vezes, os seguidores da religio islmica so associados a esteretipos: pessoas fanticas, intolerantes e ligadas ao
terrorismo. H uma enorme ignorncia, que alimenta um preconceito talvez ainda maior, com relao ao Isl e sua histria.
Essa histria tem na frica captulos especialmente importantes.
Sabe-se que o islamismo surgiu na Pennsula Arbica, na primeira metade do sculo VII. Dali, expandiu-se para a sia e para o
Norte da frica. Inicialmente, a expanso islmica no ocorria pela fora: a tarefa dos muulmanos nome dado aos fiis do Isl
era a de convencer os descrentes, que deveriam, voluntariamente, aceitar a nova f. No entanto, medida em que os fiis ao Isl
dominaram politicamente o Norte da frica, seus sistemas de justia e de governo colocavam suas bases na religio. Muitos dos
governados, por convencimento real ou por considerarem estrategicamente mais interessante, converteram-se. Pouco a pouco,
a religio muulmana dominou do Egito ao Marrocos.
A partir do norte do Egito, os muulmanos tentaram ir para o sul, mas se depararam com os exrcitos da Nbia crist. Derrotados,
foram forados a reconhecer a autonomia do reino cristo nbio. Porm, do norte eles conseguiram expandir-se para o oeste
que, em rabe, diz-se Magreb, nome pelo qual essa regio da frica ficou conhecida. Essa expanso ocorreu durante toda a
segunda metade do sculo VII. A partir dali, os muulmanos atravessaram o Mar Mediterrneo e conquistaram partes do sul da
Europa, incluindo toda a Pennsula Ibrica (Espanha e Portugal).
Ao conquistarem o Norte da frica, tambm estabeleceram as bases da cultura islmica, em especial as escolas de ensinamento
religioso. No entanto, no ocorreram maiores expanses do islamismo ao sul das plancies costeiras antes do sculo XI. Antes
disso, aconteceram algumas converses entre os nmades berberes, mas suas prticas religiosas estavam longe do que
pregavam os ensinamentos do Alcoro o livro sagrado do islamismo, assim como a Bblia para os cristos. Foi somente no
sculo XI que a adeso de um chefe berbere iniciou uma srie de mudanas e uma onda de converses em direo ao sul,
incluindo os povos do deserto e a regio limtrofe do deserto, na frica Ocidental.
Essa expanso fez com que o Isl atingisse no apenas os povos e as aldeias daquela regio da frica, como o poderoso reino de
Gana, que se localizava na fronteira sul dos atuais pases Mauritnia e Mali, entre os sculos V e XIII; Gana era conhecido como
o pas do ouro. Por meio dos grandes comerciantes desse reino, o ouro da frica Ocidental chegava at a Europa, cruzando
o Deserto de Saara nas caravanas rumo ao norte e dali atravessando o Mediterrneo. Contudo, as reservas de ouro no se
localizavam propriamente no territrio do reino, mas sim mais ao sul, e os comerciantes de Gana tinham acordos com o povo
da rea das minas que lhes davam exclusividade em sua obteno.
Os soberanos de Gana no se converteram ao Isl, mas abriram as portas do reino aos muulmanos. Estes ltimos, ligados ao
comrcio caravaneiro, incluram o reino em uma rede mercantil que atravessava o Saara, e chegava no apenas Europa, mas
ao Oriente Mdio e ao Extremo Oriente, nas rotas de longa distncia. Entretanto, o Isl no inaugurou o comrcio transaariano,
pois este j existia desde h muito e fora fortalecido especialmente com a disseminao do uso dos camelos como animais de
transporte, a partir do sculo V.
A religio muulmana tambm se estendeu para o Oriente, chegando at a ndia e s fronteiras da China. O pertencimento ao
Isl fortaleceu esse comrcio e inseriu Gana, assim como outros reinos da frica Ocidental, em uma dimenso transcontinental.
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Alm disso, uniu os mercados da frica Ocidental s cidades italianas sobretudo Gnova e Veneza ao Oriente Mdio, Europa
Oriental, chegando at a ndia, a China e o Japo.
Questiona-se: como o Isl fortaleceu esse comrcio de longa distncia? Ora, um dos pontos mais importantes para a religio
muulmana a questo da formao de uma relao de irmandade entre os fiis. Como se trata de uma religio sem autoridades
e hierarquias centralizadoras diferente, por exemplo, da Igreja catlica , os fiis fortalecem sua f e encontram orientao
juntando-se a outros. Eventualmente, um estudioso, um sbio do Isl, serve como referncia, mas a irmandade continua sendo
a base. Isso faz dos vnculos entre os muulmanos algo muito forte, que inclui apoio e compromisso.
Logo, ao aderir ao islamismo, os comerciantes tambm entravam nesses grupos, e passavam a fazer parte das confrarias
muulmanas. Por outro lado, as normas relativas honestidade nos negcios e hospitalidade a um irmo de f em viagem
eram consideradas algo sagrado. Portanto, o comrcio entre muulmanos se tornava muito mais seguro. Alm disso, um fiel do
Isl realizaria negcios com muito mais boa vontade com um seu irmo de f. E ainda mais: as redes muulmanas se estendiam
em rotas muito amplas, que chegavam at Pequim, passando por Bagd e pela regio da Caxemira, entre tantos outros lugares
de produtos cobiados pelo grande comrcio.
Depois de Gana, outros reinos surgiram nas regies limtrofes do deserto, na frica Ocidental, regio tambm chamada de Sudo
Ocidental. Estes foram os reinos de Mali (sculos XIII a XV) e de Songai, tambm conhecido como Gao (sculos XV a XVII). Alm
desses reinos, as cidades haus, no norte da Nigria, tambm se destacaram nas relaes comerciais transaarianas. Nos reinos
de Mali e de Songai, os soberanos se converteram ao Isl, o que fortaleceu ainda mais as conexes dessa regio com as rotas de
longa distncia comandadas por muulmanos. A poltica dos mansa palavra que significava rei no Mali atraiu mercadores,
professores e profissionais de diferentes reas para seu reino, tal era a prosperidade local. Em Tombuctu, uma das mais famosas
cidades da regio do Sudo Ocidental localizada atualmente no Mali , entre as mercadorias mais valorizadas estavam os livros,
tal a concentrao de sbios e estudiosos.
Gana
Fontes: Disponvel em: .
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Trabalhando com histrias e culturas africanas e afro-brasileiras nas salas de aula 25
Mali
Fonte: Disponvel em: .
Songai (e Gao)
Fonte: Disponvel em: .
Alm de serem conhecidos como destinos de rotas comerciais, os reinos do Sudo Ocidental englobavam, em suas fronteiras, povos de agricultores e mineradores os trabalhadores que criavam as grandes riquezas controladas por reis e nobres. Essas pessoas homens e mulheres criaram instrumentos, tecnologias e sistemas de trabalho que contriburam para o desenvolvimento da minerao e da produo agrcola, no apenas em suas regies: quando foram escravizadas, tais elementos foram trazidos, pelo trfico negreiro, para o Brasil.
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Como foi visto, o islamismo, na frica, significou a ampliao de conexes com amplas reas do mundo e o estmulo para o
surgimento de uma srie de prticas culturais. Foram historiadores, gegrafos e viajantes do mundo islmico que produziram
as primeiras fontes escritas sobre os reinos do Sudo Ocidental. Esses estudiosos muulmanos tambm constituram a maioria
dos que levaram notcias, para alm da frica, sobre o movimento das rotas de longa distncia e a vida nas cidades e aldeias
africanas ao sul do Saara.
Sugestes de atividades
a) Consultar na internet e assistir ao documentrio Tombuctu, a cidade dos livros. Esse vdeo tem apenas 9min, e pode
ser utilizado em sala de aula. Realizar um trabalho com os alunos a partir desse recurso.6
b) Consultar o site Viajando pela frica com Ibn Battuta, que traz vdeos, depoimentos de especialistas, textos, mapas e imagens
sobre as viagens do explorador marroquino por diferentes regies da frica no sculo XIV. Se possvel, visitar o site com os
alunos em pequenos grupos, e permitir que eles naveguem pelas diferentes opes e recursos do projeto audiovisual. Caso
se prefira, direcionar as buscas. A partir do contato com o site, muitas atividades podem ser propostas, utilizando-se mapas e
criando roteiros pelo continente africano, nos quais os grupos de estudantes podem ser os viajantes e elaborar seus relatos.7
7. A formao do mundo atlntico e o comrcio de africanos escravizados
Foram mais de 11 milhes de africanos trazidos para as Amricas como escravos, no mais longo processo de migrao forada
da histria da humanidade. Destes, aproximadamente 4 milhes ou mais foram trazidos para o Brasil. Ou seja, quase a metade
dos africanos escravizados foram trazidos para trabalhar no pas: plantar gneros alimentcios e produtos agrcolas de exportao
(como cana-de-acar, tabaco, algodo, cacau e caf), extrair ouro e diamantes das minas, carregar tudo o que fosse necessrio,
construir casas, igrejas e ferrovias, abrir e pavimentar ruas. Tudo isso, e ainda para ensinar vrias tcnicas produtivas e remdios para
a populao brasileira. Enfim, alm da sua fora de trabalho, os africanos trouxeram sua civilizao, seus conhecimentos e saberes.
O comrcio atlntico de africanos escravizados conectou no somente o Brasil e a frica. Como parte do Imprio portugus,
que se estendia at as cidades costeiras da ndia e Macau (na China), essa ampla rede colocou todo um conjunto de locais
distantes em contato permanente e sistemtico. As naus de carreira da ndia chegavam carregadas ao litoral brasileiro, pois
antes passavam pelo litoral da frica, trocando os tecidos que traziam do sul da sia conhecidos como panos de negros
por escravos e, no Brasil, estes por acar e aguardente. Era uma ampla rede de comrcio, que envolvia diferentes parceiros em
diferentes partes do mundo, durante o perodo que durou o trfico de escravos.
Essas relaes, que atravessavam os oceanos, levavam e traziam pessoas e mercadorias. Junto a estas, novos produtos agrcolas,
novos alimentos, novas maneiras de cultivar, e instrumentos de trabalho at ento desconhecidos. E mais, muito mais: outras
formas de falar e de se expressar, ideias, religies etc.
Porm, no se deve esquecer: o comrcio de africanos escravizados trazia principalmente pessoas. Eram seres humanos retirados
de sua terra natal, de suas aldeias, de suas casas e de suas famlias. Por meio de guerras, mais do que tudo, mas essas pessoas
tambm eram aprisionadas em expedies de captura especialmente planejadas para esse fim. Inicialmente, os envolvidos
nesse processo, que depois ficou conhecido como o infame comrcio, eram africanos e europeus; contudo, principalmente a
partir do sculo XVIII, esse comrcio passou a contar com a participao de brasileiros ou residentes no Brasil.
Existe o seguinte questionamento: como puderam os africanos vender seus prprios irmos? Para comear, eles no se sentiam
como irmos naquela poca. Deve-se lembrar que a frica um continente, e um continente dividido em pases e com diversos
povos. Naquela poca no havia os pases, mas sim povos, organizados em unidades menores. Eram mais do que tudo pequenos
grupos, conjuntos de aldeias, algumas cidades e, poucas vezes, reinos.
6 Disponvel em: .7 Disponvel em: .
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Trabalhando com histrias e culturas africanas e afro-brasileiras nas salas de aula 27
Fluxos do comrcio de escravos africanos
Fonte: Disponvel em: .
Anteriormente, falou-se que a identidade das pessoas nas sociedades africanas se vinculava s suas comunidades. Tais comunidades eram os povos de cada um. Com isso, no havia nada que os irmanasse acima de suas fronteiras tnicas: um dila no se via como irmo de um mandinga, no Senegal; um habitante de Oi no que veio a ser chamado pas ioruba, na Nigria no se identificava com um hau que habitava o que depois veio a se tornar o mesmo pas, a Nigria, mas que na poca do trfico eram identificados apenas como os grupos do norte, muitas vezes inimigos de guerra; um bacongo e um mbundo, na atual Angola, tinham histrias distintas, apesar de estarem prximos no espao. Assim, a guerra havia pautado essas relaes no sempre, mas em muitas ocasies.
A ideia de africano como unidade surgiu somente no sculo XIX, vinculada fortemente ao contexto da luta contra o trfico e a escravido. , a um s tempo, uma resposta aos europeus e um novo significado atribudo ao tratamento dado aos nativos da frica pelos mesmos europeus.
Na frica, o trfico enfraqueceu comunidades inteiras, mas enriqueceu mercadores e reis. Enriqueceu tambm alguns pequenos comerciantes, bem como agricultores que vendiam alimentos para as cidades porturias e vveres para os navegantes. Encheu os cofres de grandes senhores alguns destes mestios de africanas com europeus e tornou miserveis os grupos mais fracos militarmente. Empobreceu muitos povoados e deixou famlias sem filhos e sem pais. Enfim, o trfico criou e fortaleceu redes de proteo e de clientelismo, que submetiam pessoas e povos a um determinado chefe que lhes garantia a no escravizao.
A escravido j existia na frica, mas o trfico atlntico de escravos a fez aumentar e assumir novos formatos e, sobretudo, outra dimenso muito mais ampla em termos mundiais e mais profunda em termos de penetrao no continente. O trfico aprofundou divises entre grupos locais, e as rivalidades se intensificaram. Estas j existiam, mas assumiram faces mais radicais.
A histria de quase trs sculos e meio de comrcio escravista para as Amricas transformou o mundo ocidental. Alm disso, fez com que a frica perdesse vidas humanas em seu momento mais produtivo em termos de reproduo demogrfica e de criao de alternativas para o seu desenvolvimento. Muito do que aconteceu em grandes reas do continente, depois da longa histria do trfico, no deixa de estar relacionado a esse longo processo de espoliao.
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Educao das relaes tnico-raciais no Brasil28
Sugesto de atividade
Utilizando como inspirao trechos do poema Navio negreiro, de Castro Alves, e da letra da cano Todo camburo tem
um pouco de navio negreiro, do grupo O Rappa, pedir que os alunos escrevam um texto sobre o comrcio escravista, que
abordasse a questo dos efeitos da escravido nos dias atuais.
8. Colonialismo, resistncias e lutas pela independncia
At o sculo XIX, o interesse de grupos privados prevalecia sobre as aes dos Estados europeus. O trfico era um negcio de
comerciantes, e no de governos da Europa ou da Amrica escravista. Os locais de efetiva presena europeia se restringiam
quase que totalmente costa da frica. As excees estavam na frica do Sul e no norte do continente. Na Cidade do Cabo e
arredores, havia a presena de imigrantes da regio dos Pases Baixos desde o sculo XVII. Por outro lado, a Arglia foi ocupada
pelos franceses em 1830, e at o final do sculo XIX estes lutaram para dominar a regio.
Durante toda a histria do comrcio escravista e das relaes comerciais que ocorriam paralelamente a ele, os negcios com os
europeus eram realizados entre os chefes locais e os representantes comerciais. Os governos europeus raramente entravam nas
negociaes. No entanto, isso mudou, em especial a partir da segunda metade do sculo XIX. Inicialmente, os pases europeus
enviaram exploradores e estudiosos patrocinados por seus governos; da mesma forma, apoiaram missionrios religiosos que
tambm foram para a frica. A justificativa era conhecer e civilizar o continente e, em alguns casos, combater o trfico de escravos
que, nessa poca, passou a ser visto com maus olhos. Juntamente a essas iniciativas, havia os interesses econmicos e polticos.
As expedies de reconhecimento e mapeamento do continente africano trouxeram informaes preciosas para as empresas
e os governos dos pases europeus, interessados em obter matrias-primas e expandir mercados. Em seguida, travou-se uma
complexa corrida poltico-diplomtica para se obter relaes privilegiadas com os africanos. Um exemplo: entre 1819 e 1890,
a Frana realizou 344 tratados com chefes africanos. No entanto, para estes, muitas vezes no era explicado o real significado
da relao de protetorado reivindicada pelos parceiros europeus. Por outro lado, muitos chefes que se apresentaram aos
europeus eram inventados e assinaram tratados sobre regies e povos que nunca existiram.
De qualquer forma, pouco a pouco, a presena europeia se fortaleceu e foi se impondo em diversas partes da frica. Para isso,
alm dos tratados, tornaram-se mtodos de conquista a presso sobre os chefes africanos e a utilizao de efetivos militares para
convencer os mais resistentes.
A partilha da frica no ocorreu com a Conferncia de Berlim (1884-1885) . Esta representou um momento em que as potncias
europeias tentaram organizar a corrida sobre o continente africano. Antes mesmo da realizao desse encontro, Inglaterra e
Frana principalmente j estavam em diversas reas do continente, como foras de dominao. Por outro lado, Portugal
procurava garantir sua presena nas regies onde j se encontrava. No entanto, esse domnio no era nem total, nem completo.
A seguir, um trecho da Ata da Conferncia de Berlim, em que so traados os objetivos dessa reunio:
Querendo regular, num esprito de boa compreenso mtua, as condies mais favorveis ao desenvolvimento do comrcio e da civilizao em certas regies da frica, e assegurar a todos os povos as vantagens da livre navegao sobre os dois principais rios africanos que se lanam no Oceano Atlntico; desejosos, por outro lado, de prevenir os mal-entendidos e as contestaes que poderiam originar, no futuro, as novas tomadas de posse nas costas da frica, e preocupados ao mesmo tempo com os meios de crescimento do bem-estar moral e material das populaes aborgines, resolveram sob convite que lhes enviou o Governo Imperial Alemo, em concordncia com o Governo da Repblica Francesa, reunir para este fim uma Conferncia em Berlim [...].8
8 ATA DA CONFERNCIA GERAL, Berlim, 26 de fevereiro de 1885. Disponvel em: .
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Trabalhando com histrias e culturas africanas e afro-brasileiras nas salas de aula 29
Logo no incio da expanso sobre a frica, os europeus perceberam que era fundamental obter apoio local, o que se deu
por diferentes meios e estratgias. A antiga prtica de explorao das rivalidades locais passou a ser muito utilizada: era o
velho mtodo do dividir para dominar. O mesmo ocorreu em relao s alianas comerciais realizadas sob certas condies de
submisso poltica. O apoio a chefes e a grupos marginalizados do poder foi outro eficiente modo de provocar guerras para, em
seguida, entrar-se como governo pacificador. Todos esses caminhos abriram a frica para que se desse a colonizao europeia
sobre regies do continente, no sculo XX.
Questiona-se: e na frica, no houve resistncias a esse avano do domnio europeu? Houve, sim. Ocorreram movimentos que
pretenderam, inclusive, unir grupos de diferentes povos para lutar contra os invasores. Foram os casos de Omar Tall (Senegal),
Samori Tur (Mali) e Mohamed Ahmed, conhecido como Mdi (Sudo). Na Etipia, o rei Menelik II, um cristo ortodoxo,
combateu os italianos com um exrcito de 70 mil soldados e conseguiu o reconhecimento da soberania de seu pas. Contudo, o
caso etope foi uma exceo e certamente teve relao direta com o fato de se tratar de um imprio de longa durao.
O fim do trfico de escravos e o avano europeu caminharam juntos, e no sem razo. Neste momento, para os europeus, o
interesse era explorar a mo de obra africana na sua prpria terra. Essa, sem dvida, foi um das razes mais fortes para o combate
ao trfico transatlntico de escravos, e no um interesse de alcance distante na formao de um mercado consumidor nas
Amricas escravistas. As consequncias desagregadoras do trfico e do seu trmino tambm facilitaram a entrada europeia
e o seu estabelecimento no continente africano. Houve resistncias ao colonialismo europeu comandadas por traficantes de
escravos e seus aliados, as quais foram combatidas com fora pelos conquistadores com ajuda de grupos locais afinal, as
marcas da histria do trfico ainda estavam muito visveis.
As aes de resistncia e de combate aos europeus continuaram por todo o perodo colonial. Muitas e constantes, elas
dificultaram, abalaram e finalmente derrotaram os dominadores. Alm disso, ocorreram sob as mais diversas modalidades:
Samuel Kimbango, no Congo Belga, fez do discurso religioso sua base e sua arma de luta; em Angola, o culto a uma deusa de
nome Maria, que iria libertar os negros, forneceu a base para uma revolta em Cassange, em 1960; nas cidades da regio iorub,
no sudoeste da Nigria, o boicote de mulheres comerciantes aos impostos cobrados fez parar os mercados, na dcada de 1920;
no Qunia, o movimento conhecido como Mau-Mau provocou uma revolta armada na forma de guerrilhas, na dcada de 1950;
o mesmo ocorreu em outros lugares, como Congo Belga, Arglia e Camares. Em muitos pases africanos colonizados surgiram
organizaes polticas, abertas e clandestinas, em oposio ao domnio europeu, que se expressavam por meio de jornais,
clubes e associaes culturais. Em diferentes lugares, de forma individual ou coletiva, muitos africanos tentavam se articular para
dar uma resposta ao colonialismo.
Fora da frica, africanos se articularam na Europa, e o mesmo fizeram afrodescendentes nas Amricas; com isso, foi-se
desenvolvendo uma srie de manifestaes no sentido de valorizar as culturas africanas e dos povos negros no mundo. Essa
luta pela valorizao das culturas negras era uma forma de combater uma das bases do colonialismo: a suposta inferioridade
dos negros em termos de civilizao. Estudantes e intelectuais africanos fizeram das letras uma trincheira de luta para obter
adeptos e mostrar a riqueza da produo literria e potica africana; o mesmo ocorreu nas artes, como a msica. A luta contra o
racismo se fortaleceu simultaneamente luta pela descolonizao africana, com a articulao de duas frentes de combate pela
soberania e pela dignidade dos africanos e seus descendentes na dispora.
Os processos de independncia dos pases africanos ocorrem a partir dessas diversas formas de luta, que encontraram nos
colonizadores europeus diferentes formas de reao. Assim como seus opositores, as diferentes formas do colonialismo europeu
no adotaram uma estratgia nica. Os resultados dessas histrias se traduziram em dcadas de enfrentamento, que deixaram
uma herana nada favorvel frica, cenrio da quase totalidade dos conflitos. A conquista da autonomia poltica tampouco
significou a paz nesses pases, nascidos em grande parte da luta anticolonial, e no de uma construo de fronteiras que fosse
fruto da histria local.
Ainda assim, os processos de independncia, sobretudo a partir dos anos 60 do sculo XX, representaram um marco na histria
mundial. Recuperando sua condio de protagonistas em sua prpria terra, lderes africanos tambm passaram a se destacar
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Educao das relaes tnico-raciais no Brasil30
no cenrio internacional. Intelectuais e acadmicos africanos iniciaram a reescritura da histria de seus pases e regies; no
estavam sozinhos e tampouco na condio de parceiros menores. Contudo, eles se encontravam frente de uma enorme tarefa:
pesquisar, conhecer, discutir e criar parmetros para a histria da frica. A partir desse ponto, eles dariam a conhecer ao mundo
uma longa e fundamental parte da histria da humanidade, sob novos pontos de vista e enriquecida com relatos e fontes locais,
revistas e analisadas luz de novos mtodos.
Da mesma forma, na Amrica marcada pela dispora, passou-se a ter, nessa recuperao da memria histrica, novos parmetros para a
construo da identidade. Portanto, foram criadas novas bases para entender o passado, intervir no presente e, assim, construir o futuro.
Sugestes de atividades
a) Pedir para que os alunos localizem no mapa da frica atual (diviso poltica) os pases que tm o portugus como
lngua oficial. So eles: Angola, Cabo Verde, Guin-Bissau, Moambique e So Tom e Prncipe. Se possvel, apresentar
poemas, msicas cantadas em portugus e imagens desses pases, para que os alunos conheam.
b) Dividir a turma em grupos e pedir para que eles realizem uma pesquisa sobre as lideranas africanas que tiveram papel
relevante nas lutas de libertao no continente: Amlcar Cabral, Agostinho Neto, Eduardo Mondlane, Patrice Lumumba
e, mais recentemente, Nelson Mandela. A internet apresenta muitos dados sobre essas personalidades ilustres. Caso
os alunos tenham dificuldades em acessar a rede, procurar trazer com antecedncia algumas informaes para eles.
Pedir para que cada grupo leia e exponha para a turma sobre a histria e a vida do personagem que lhe coube.
Consideraes finais
Ao longo deste texto, foram vistos temas e questes relevantes para o estudo da histria da frica, buscando-se sempre pens-
la a partir do seu interior e, ao mesmo tempo, de forma conectada com o mundo. A abordagem desses assuntos foi rpida e,
certamente, deixou muitas dvidas e assuntos a serem tratados. Espera-se que, a partir desse rpido encontro com a histria
da frica, surjam novas perguntas e vrias reflexes. Somente assim ser possvel conhecer melhor as fricas que brasileiros e
cidados do mundo levam dentro de si.
Referncias bibliogrficas
B, Hamadou. Amkouell, o menino fala. So Paulo: Palas Athena, Casa das fricas, 2003.
B, Hamadou. A palavra, memria viva da frica. O Correio da UNESCO. Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas, a. 1, 1973.
BELLUCCI, Beluce (Org.). Introduo histria da frica e da cultura afro-brasileira. Rio de Janeiro: UCAM/CEAA, CCBB, 2003.
BITENCOURT JUNIOR, Iosvaldyr Carvalho; SABALLA, Viviane Adriana. Procedimentos didticos-pedaggicos aplicveis em histria e cultura afro-brasileira. Porto Alegre: EdUFRGS, 2012.
BRASIL. Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educao nacional, para incluir no currculo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temtica Histria e Cultura Afro-Brasileira, e d outras providncias. Dirio Oficial da Unio, Braslia, 10 jan. 2003. Disponvel em: .
BRASIL. Ministrio da Educao. Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao, Diversidade e Incluso. Aes afirmativas e combate ao racismo nas Amricas. Braslia, 2005.
BRASIL. Ministrio da Educao. Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao, Di