educaÇÂo ambiental e socioeconomia

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Educao e Scio-Economia Solidria

Educao e Scio-Economia Solidria

EDUCAO E SCIO ECONOMIA SOLIDRIAInterao Universiadade - Movimentos Sociais

Srie Sociedade Solidria

Laudemir Luiz Zart Josivaldo Constantino dos Santos(Orgs.) Srie Sociedade Solidria - Vol. 2 - 2005

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Educao e Scio-Economia Solidria

Editora Capa Projeto Grfico/Diagramao Superviso de Editorao

Marilda Fatima Dias Jos Roberto Mercado Jos Roberto Mercado Valter Gustavo Danzer

Copyright 2006/Editora Unemat

Ficha Catalogrfica elaborada pela Coordenadoria de Bibliotecas Unemat - Cceres

Educao e Scio-Economia Solidria. Interao Universidade Movimentos Sociais. Srie Sociedade Solidria. Vol. 2 (2006). Organizado por: Laudemir Luiz Zart e Josivaldo Constantino dos Santos. Cceres-MT: Editora Unemat, 2006. 275 p. Anual. 1. Scio-economia solidria 2. Movimentos sociais 3. Universidade I. Zart, Laudemir Luiz e Santos, Josivaldo Constantino dos II. Ttulo

ISBN - 85-89898-34-2

CDU: 316-334-2

EDITORA UNEMAT Av. Tancredo Neves, 1095 - Cceres - MT - Brasil - 78.200.000 Fone/Fax (0xx65) 3221-0081 - www.unemat.br - [email protected]

Todos os Direitos Reservados. proibido a reproduo total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio. A violao dos direitos de autor (Lei n 5610/98) crime estabelecido pelos artigo 184 do Cdigo Penal.

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Educao e Scio-Economia Solidria

Educao e Scio-Economia SolidriaInterao Universidade Movimentos Sociais

Srie Sociedade Solidria Vol. 2 - 2006

Laudemir Luiz Zart Josivaldo Constantino dos Santos(Orgs.)

Srie Sociedade Solidria - Vol. 2 - 2005

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Educao e Scio-Economia Solidria

Universidade do Estado de Mato GrossoReitor Vice-Reitor Pr-Reitoria de Administrao e Finanas Pr-Reitoria de Ensino e Graduao Pr-Reitoria de Extenso e Cultura Pr-Reitoria de Pesquisa e Ps-Graduao Pr-Reitoria de Planej. e Desenv. Institucional Taisir Mahmudo Karim Almir Arantes Wilbum de Andrade Cardoso Neodir Paulo Travessini Solange Kimie Ikeda Castrillon Laudemir Luiz Zart Marcos Francisco Borges

Presidente Conselho Editorial

Marilda Ftima Dias Agnaldo Rodrigues da Silva Afonso Maria Perreira Almir Arantes Evanil de Almeida Cardoso Jocineide Macedo Karim Laudemir Luz Zart Marcos Figueiredo Marco Antonio Aparecido Barelli Paulo Alberto dos Santos Vieira Taisir Mahmudo Karim

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SUMRIOAPRESENTAO Panoramas e Prticas Sociais para a Construo da Educao e da Scio-economia Solidria .. 007

CAPTULO I A Construo da Universidade Aberta e os Referenciais de Scio-economia Solidria A Universidade como Fator de Articulao e Adensamento entre a Organizao Popular e Polticas Pblicas ...................................................................................................................... 019 Alejandro Labale Possibilidades de Fazimento da Universidade: caractersticas e opes entre a globalizao e a planetariedade ........................................................................................................................ 028 Laudemir Luiz Zart Educao Ambiental e Scio-economia Solidria: a persistncia nas maneiras alternativas de entender e viver a vida .............................................................................................................. 035 Josivaldo Constantino dos Santos O Mister de Reaprender os Vnculos entre a Economia e a Vida Social ................................... 050 Gabriela dvila Schttz e Luiz Incio Gaiger Significado e Perspectivas da Economia Solidria Hoje ............................................................ 065 Armando Lisboa A Economia Solidria como Poltica Pblica no Governo Lula ................................................. 073 Fernando Kleimann Globalizao, Trabalho e Sociedade em Rede: perspectivas da redefinio da sociedade capitalista e a constituio das empresas autogeridas ............................................................. 082 Josiane Magalhes O Capital Marginaliza e a Barbrie Responde .......................................................................... 095 Fiorelo Picoli

CAPTULO II Metodologias Formativas e Experincias de Processos Organizacionais e de Incubao Por uma Pedagogia Coletiva ...................................................................................................... 109 Ilma Ferreira Machado Dimenses Formativas para a Construo de Prticas Sociais Relativas ao Cooperativismo Solidrio .................................................................................................................................... 116 Laudemir Luiz Zart Os Processos Grupais: uma anlise das relaes interpessoais dos moradores da Gleba Tringulo ... 129 Wilson Luconi Jr, Sandro Benedito Sguarezi

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Educao e Scio-Economia Solidria A Experincia da ADSAgncia de Desenvolvimento Solidrio e seu Papel na Economia Solidria ... 136 Maria Eunice Dias Wolf A Incubao de Empreendimentos Econmicos Solidrios e Sustentveis e a Educao e Scio-economia Solidria na Incubadora da UNEMAT ............................................................ 140 Clovis Vailant; Dilma Lourena da Costa e Rogrio de Oliveira Costa Incubando uma Cooperativa Agrcola na Gleba Mercedes V, Regio Centro Norte do Estado do Mato Grosso ....................................................................................................................... 146 Juvenal Melvino da Silva Neto e Aleido Diaz Guerra A Consolidao da Incubadora Tecnolgica de Cooperativas Populares da Universidade Regional de Blumenau - ITCP/FURB ..................................................................................................... 152 Maril Antunes da Silva A Incubadora Tecnolgica de Cooperativas Populares e Empreendimentos Solidrios da UFPA: um campo de articulao entre ensino, pesquisa e extenso ..................................................... 159 Maria Jos de Souza Barbosa; Armando Lrio de Souza; Ana Maria Mendes Pires; Euzalina da Silva Ferro e Adebaro Alves Rei

CAPTULO III A Educao do Campo e a Agricultura Familiar Camponesa-Agroecolgica Ensino Superior do Campo e no Campo: uma ao coletiva e solidria em assentamentos da regio norte do Estado de Mato Grosso ................................................................................... 169 Josivaldo Constantino dos Santos Escola do Campo: uma proposta solidria ............................................................................... 177 Odimar J. Peripolli Uma Experincia Metodolgica em Educao para a Organizao, a Cooperao e a Solidariedade Popular ............................................................................................................... 185 Joo Ivo Puhl Educao do Campo e Agricultura Familiar Camponesa: perspectivas solidrias .................... 207 Sandro Benedito Sguarezi Novos Rumos da Agricultura na Amaznia Legal: da colonizao dirigida produo familiar rural em Mato Grosso .............................................................................................................. 220 Paulo Alberto dos Santos Vieira e Ronaldo Santos Freitas Agroecologia, Sustentabilidade, o Caminho da Universidade e Perspectivas dos Assentamentos de Reforma Agrria ................................................................................................................... 233 Jorge Luiz Schirmer de Mattos; Marilza Machado e Willian Marques Duarte Certificao Social: o comrcio justo como alternativa agricultura familiar brasileira ............ 254 Gilmar Laforga; Farid Eid

Proposta da Srie Sociedade Solidria ............................................................................... 270 Sobre os Autores ..................................................................................................................... 271

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APRESENTAO PANORAMAS E PRTICAS SOCIAIS PARAA CONSTRUO DA EDUCAO E DA SCIO-ECONOMIA SOLIDRIA importante ter a clareza de que a scio-economia solidria tem crescido no Brasil como reflexo da organizao dos movimentos sociais na construo de alternativas que viabilizem polticas pblicas para a incluso social e, mais profundamente, para a transformao das estruturas e das relaes sociais geradoras da marginalizao humana e da degradao ambiental. No obstante, essas iniciativas so acompanhadas nos trs ltimos anos por proposies governamentais que esto operacionalizando aes, crditos e tecnologias para a sua viabilizao. Ligadas s proposies e s prticas sociais no campo da scio-economia solidria, ocorrem processos sociais de educao que tm como perspectiva a gestao de uma conscincia crtica e propositiva que possa ser capaz de promover a superao das excluses cognitivas. H, nessa direo uma clara definio para o desenvolvimento de processos educacionais que tenham como pressupostos ticos e cognitivos a solidariedade, a cooperao, a incluso social, a humanizao e, por fim, a valorizao da vida. A universidade deve fazer-se uma instituio que tenha profundos e radicais compromissos sociais. Deve co-responsabilizar-se para a consolidao de referenciais sociais, culturais, epistemolgicos, econmicos, ecolgicos etc, que simbolizam as relaes, as organizaes e as cognies da sociedade que seja orientada pelo princpio da solidariedade. Na UNEMAT Universidade do Estado de Mato Grosso, iniciamos um processo de forma mais aberta e dinmica em 2002, quando, no ms de agosto, realizamos o I EMESOL Encontro Mato-grossense de Educao e Scio-economia Solidria no Campus Universitrio de Cceres. Este foi um marco pblico que ocorreu aps a Instituio ter celebrado um convnio com a UNITRABALHO Rede Interuniversitria de Estudo e Pesquisa sobre o Trabalho, a partir do Ncleo Unemat-Unitrabalho ter realizado diversas atividades para mobilizar e preparar os pesquisadores na Instituio para efetivamente desenvolver a temtica em tela. Uma das respostas que temos deste comear a organizao da REMSOL Rede Mato-grossense de Educao e Scio-economia Solidria. Estamos ainda formalizando o Programa Institucional de Educao e Scio-economia Solidria. Outros resultantes so a publicao da Srie Sociedade Solidria e tambm as psgraduaes em Economia Solidria, Cooperativismo Solidrio e da Pedagogia da Cooperao, que so proposies para a formao de agentes solidrios. No podemos esquecer de mencionar o projeto de incubao de dez empreendimentos solidrios que se iniciaram em 2005, no Estado de Mato Grosso, a partir dos Campi Universitrios da UNEMAT de Sinop, Colider, Barra do Bugres eSrie Sociedade Solidria - Vol. 2 - 2005

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Tangar - DRT Delegacia Regional do Trabalho. Aps o II EMESOL, ocorrido no Campus Universitrio de Sinop, no ms de setembro de 2004, avaliamos que os encontros tm aberto espaos para que polticas pblicas sejam difundidas e que os trabalhadores possam tomar conscincia da necessidade e tecnolgicos disposio em programas governamentais. O I EMESOL teve como tema de reflexo o surgimento de novos paradigmas no conhecimento e na sociedade. No segundo, tratamos da proximidade e da interao da universidade-sociedade. Nesses momentos, tivemos a participao efetiva de organizaes populares. O movimento, at agora feito, objetivou, principalmente, sensibilizar para a Educao e Scio-economia Solidria. Esse percurso est, na verdade, recm-iniciado. Necessitamos promover, cada vez com maior intensidade, o conhecimento, a conscientizao e as prticas solidrias e cooperativas, no esquecendo da extensidade. Haveremos de avanar na elaborao de um pensamento que tenha como propsito uma provocao mais prxima das necessidades e das demandas de grupos sociais que se prope a se organizar e/ou se consolidar para o fazimento e desenvolvimento de empreendimentos solidrios. A temtica em tela um procedimento coletivo para a reflexo e a tomada de decises que possibilitam a concretizao de polticas pblicas e a efetivao de entidades que promovam a educao para o exerccio efetivo da scio-economia solidria. A economia entendida no como simples frmula de administrar negcios e mercados, mas como o pensar e o agir em relao ao bem-viver e o cuidar do ambiente natural e social no qual vivemos. Dessa forma, centrar-se na discusso dos empreendimentos solidrios discutir e compreender os complexos processos societais pelos quais se organizam a produo, a distribuio da renda, a tica, a educao, a profissionalizao, o cuidado ecolgico, a capacidade de sonhar e de humanizar o ser humano desumanizado, pela conquista da cidadania, pela participao e pela esperana de construo da Sociedade Solidria. Aps o lanamento da primeira obra da Srie Sociedade Solidria, em 2004, que tem como discusso os paradigmas de conhecimento e de sociedade, trazemos a pblico a segunda obra, que tem como tema transversal a interao da universidade e dos movimentos sociais. Para orientar a leitura, organizamos a presente obra em trs captulos. O primeiro, intitulado A Construo da Universidade Aberta e Referenciais de Scio-economia Solidria, rene textos que tratam e discutem a universidade na perspectiva de se configurar como instituio que se abre para temticas que encontram na diversidade dos grupos sociais, nas suas problemticas e nos seus sonhos a necessidade de desenvolvimento de polticas e de aes de produo e de socializao de conhecimentos. Associada a essa temtica, inclumos debates relativos scio-economia solidria como organizao e concepo que advm dos movimentos sociais, que se constitui em polticas pblicas e se configura como espao e tempo das universidades nas aes da pesquisa, do ensino e da extenso. No segundo captulo, denominado Metodologias Formativas e Experincias de Processos Organizacionais e de Incubao, esto as produes textuais que refletem sobre as proposies de formao, de referenciais metodolgicos e epistemolgicos geradores de competncias que relacionam o desenvolvimento 8Srie Sociedade Solidria - Vol. 2 - 2005

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da pessoa e do coletivo. Constitui-se nas multidimenses para a apreenso cognitiva e organizativa de empreendimentos e de saberes prprios de grupos sociais que se mobilizam para a gerao e a distribuio de bens materiais e imateriais para o bem viver. nesse direcionamento que a metodologia da incubao representa a dialogicidade da universidade com os movimentos e os grupos sociais. No terceiro captulo, A Educao do Campo e a Agricultura Familiar Camponesa-Agroecolgica, esto expressas reflexes que se direcionam para a realidade do campo. A perspectiva dos autores associar a organizao camponesa com a matriz tecnolgica de agroecologia, com a educao popular e com a organizao econmica solidria. A viso de mercado est presente na concepo do comrcio justo que tem como referncia a construo de prticas sociais que aproximam o produtor e o consumidor. Ilustramos a seguir referenciais dos textos apresentados, cujo objetivo provocar e problematizar a leitura da presente obra. Destacamos que todos os captulos ou textos podero ser lidos autonomamente. No entanto, no conjunto da obra h uma complementaridade entre os temas desenvolvidos. Compreendemos que a educao e a scio-economia solidria um campo complexo. Apreend-lo e gerar atitudes individuais e coletivas correspondentes o grande desafio que nos provoca. Iniciamos a apresentao. Articular e adensar a organizao popular e as polticas pblicas so fatores centrais para a universidade. Essa tese explorada por Labale ao analisar as aes de incubao, aes de intensa relao na Universidade Regional de Blumenau. O autor realiza a crtica universidade quando esta se fecha sobre si mesma e realiza a funo de emissora de juzos de valores que estabelecem verdades petrificadas. Essa forma de fazer cincia e tecnologia assenta-se numa perspectiva de neutralidade do mtodo cientfico. Sob esse olhar, a universidade no teria a prerrogativa da imerso social. Ao romper com as atitudes e os conceitos da pseudoneutralidade, a universidade toma rumos que a fazem construir referenciais prticos e tericos, de insero, de abertura e de participao da sociedade. O autor evidencia que h a necessria relao da universidade que deve estar aberta sociedade. No diferente devem ser os procedimentos dos grupos sociais ao se fazerem presentes, ocupando os espaos e os tempos da universidade. Sob esse olhar, Labale coloca a extenso, compreendendo-a como ao de imerso e comprometimento da universidade, no caso especfico para o desenvolvimento da economia solidria. Zart, ao questionar sobre a universidade e suas possibilidades, expressa a dinmica de dois projetos para a humanidade: a globalizao e a planetria. Embudo pelos cenrios adversos, tomados de valores e ideologias distintas e distintivas, visualiza as aes e as opes da universidade. A globalizao constitui-se no projeto dominante orquestrado pela burguesia internacionalizada que tem na concorrncia, na competio, no indivduo e no mercado suas regras fundamentais de edificao dos espaos sociais. Ao formar para a competitividade a universidade torna-se acessria do projeto liberal. Em termos de contradio, desenvolve-se o projeto da planetariedade que tem como fundamentos ticos e cognitivos a construo de relaes sociais solidrias, cooperativas, ecolgicas, democrticas e sustentveis. Centra-se na utopia da possibilidade real de convivncia em sociabilidades fraternas. A universidade, ao se comprometer com o projeto da planetariedade, implica-se em aes populares, gesta e desenvolve projetos afirmativos, de formaSrie Sociedade Solidria - Vol. 2 - 2005

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o e de desenvolvimento de alternativas scio-econmicas, de participao poltica e de uma epistemologia aberta e criativa. Santos traz a anlise que aborda o encontro dialtico dos paradigmas educacionais e sociais da Educao Ambiental e da Scio-economia Solidria. A complexidade destes campos epistemolgicos e polticos est atravessada pela persistncia nas maneiras alternativas de entender e viver a vida, como afirma de forma potica e lcida o autor. Para realizar a anlise, encontra no Assentamento da Gleba Mercedes o desafio maior para expressar a contradio entre uma realidade vivida, de destruio ambiental, de explorao e de desesperana, para a afirmao de uma utopia fundadora da esperana ativa, embasada na solidariedade e na sustentabilidade. O autor trabalha com professores/as-agricultores/as conceito que forja na evidenciao dos fenmenos vivenciados pelos sujeitos que fazem educao e agricultura e que sonham com uma perspectiva social que flui para o conceito de comunidade. Neste, concebe a capacidade de construir o indito vivel, concepo freiriana que faz visualizar e promover prticas sociais fundantes da cooperao e da solidariedade. nesta perspectiva que Santos revela tambm a insero compromissada da universidade, enquanto ela ter que possuir a ousadia de uma auto-avaliao re-criadora. Schttz e Gaiger fundamentam que a sociedade moderna, sob os auspcios do modo de produo capitalista, gerou a separao entre a economia e a vida social. No modelo dominante, a sociedade subordina-se economia e esta aparentemente adquire autonomia sobre todas as esferas da vida. O mercado e suas leis regem as relaes humanas gerando rupturas dos laos sociais. Contrariamente, a economia solidria recoloca a questo da ligao intrnseca entre economia e sociedade gerando movimentos inauguradores de redes e estruturas cidads de solidariedade. Orientados pelo esprito de construo social solidria, os autores chamam a ateno, primeiro carncias intelectuais de empreendedores econmicos solidrios e por outro compromissos dos intelectuais como agentes de mediao que atuam com os movimentos populares na formao, na comunicao e na anlise. Neste direcionamento apreende-se a economia solidria como uma prxis educativa, buscando a configurao de prticas sociais e de saberes que representam o cenrio de inaugurao de um movimento paradigmtico. Significado e Perspectivas da Economia Solidria, o texto de Lisboa que trata dos desafios da economia solidria e das razes da sua emergncia como prtica social e sistema que se contrape ao fundamentalismo de mercado. Nesse sentido, a perspectiva da economia solidria de representar e de tornar possvel a transio paradigmtico-civilizatria. Assim, vrias caractersticas predominantes havero de ser superadas: o modelo cientfico disciplinar, o poder do financeiro, da era industrial, do lucro fcil e rpido, da autonomizao do econmico, da identificao do mercado como instrumento auto-regulador. Por outro, valores e atitudes como a solidariedade, o cuidado, a liberdade emancipatria, a permacultura, a agroecologia, a ecopedagogia, as ecovilas, a autogesto so conquistas de vrios movimentos, prticas cotidianas e sistmicas que esto sendo construdas e que tm na economia solidria um conceito agregador e gerador de cenrios sociais, polticos, econmicos, epistemolgicos alternativos ao capitalismo dominante. A Economia Solidria como Poltica Pblica no Governo Lula tematizado por Kleimann que desenvolve uma reflexo recuperando a histria do movimento da economia solidria. No Brasil, elucida que a prpria configurao 10Srie Sociedade Solidria - Vol. 2 - 2005

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das polticas pblicas implementadas no governo Lula resultam dos movimentos sociais populares que se mobilizaram e a propuseram a partir das participaes nos Fruns Sociais Mundiais. A primeira iniciativa foi a criao do Frum Brasileiro de Economia Solidria como um mecanismo de participao livre e criativa. Neste se prope a organizao da Secretaria Nacional de Economia Solidria, ligada ao Ministrio do Trabalho e Emprego. O autor elucida ainda, de forma pertinente, as dificuldades que representam a institucionalizao (burocratizao) das necessidades e dos desejos que so criados e articulados nos movimentos sociais. As estruturas de Estado, que sofreram aes persistentes das concepes neoliberais de polticas pblicas, necessitam, para atender s demandas populares, refundar concepes e prticas. Magalhes envolve na sua reflexo duas temticas distintas. No primeiro momento do texto realiza uma leitura crtica do desenvolvimento no mundo denominado de globalizao. Este no se constitui uma formao nova de sociedade, seno a sistemtica de inovaes inerentes ao sistema capitalista de produo. A inovao no modo de produo dominante exigente na quantidade e na qualidade de renovaes tecnolgicas. Traz igualmente pontuaes objetivas quanto s dinmicas de gesto dos processos produtivos e da co-responsabilizao dos trabalhadores com o capital, como processo que requer no o cumprimento de ordens hierarquicamente estabelecidas, mas o procedimento observador atento e criativo. A globalizao no rompe com a lgica do capital. Na segunda parte da reflexo, a autora ilustra o movimento de constituio de empresas autogeridas que se configuram como reao terica e prtica dos trabalhadores, gerando processos produtivos e sociais que re-inventam a lgica de produo, de distribuio e necessariamente de convivncia social. Para a concretizao desse processo, organizamse no Brasil movimentos sociais e organizaes no-governamentais que ensaiam cotidianamente esse novo saber e fazer. Picoli, em seu artigo O Capital Marginaliza e a Barbrie Responde, reconhece e descreve a perversidade sistmica da dominao do modelo econmico que se globalizou e que promove a marginalizao em todos os cantos do mundo e realiza simultaneamente a concentrao de riquezas. Sabendo das contradies existentes, o autor traz a possibilidade de o homem pobre no perder a perspectiva da luta social e poder organizar o trabalho que no seja o que se exclusiva pela explorao e a submisso ao capital. Realizar o projeto do trabalho libertado extremamente dificultado pelo apartheid social, pela competitividade, pelo desespero social reinante. Mas se faz mister repensar a sociedade e os atores sociais, vidos pelas mudanas sociais no podero enfraquecer perante os fatores limitantes para a construo e consolidao da solidariedade. Por uma Pedagogia Coletiva a proposio apresentada por Machado. A autora centra a discusso nas prticas sociais que possibilitam a mudana social. Reconhece a complexidade dos processos transformadores. Nesse sentido, a passagem da pedagogia que se assenta na formao da personalidade re-colocada para a formao da integralidade do sujeito como ser poltico, econmico, cultural etc. A Pedagogia Coletiva uma educao para o coletivo e se fundamenta nas relaes sociais, polticas e produtivas. Tem como objetivo a democratizao das relaes de poder e do sistema de comunicao, a afirmao da eticidade, da diversidade e da natureza poltica das relaes humanas. A Pedagogia Coletiva percebe a escola como espao da educao, do trabalho, de atividades culturaisSrie Sociedade Solidria - Vol. 2 - 2005

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recreativas, da disciplina, da responsabilidade e do esttico. Esta, inauguradora da auto-organizao, da autonomia, da dignidade, da felicidade, da participao e da criticidade. A Pedagogia Coletiva constitui-se e apreende a totalidade, como relacionalidade dinmica tendo como princpio histrico a construo da solidariedade. No texto Dimenses Formativas para a Construo de Prticas Sociais Relativas ao Cooperativismo Solidrio Zart prope a questo da gerao de competncias que so necessrias para a prtica social do cooperativismo como meio para a construo de alternativas pedaggicas, ecolgicas, polticas e econmicas fundamentadoras de um paradigma social e epistemolgico capaz de promover no somente a incluso social, mas relaes sociais que rompam com as estruturas e os fundamentos que so as fontes causadoras da miserabilizao do ser humano e da natureza. A prxis educativa que desenvolve as dimenses formativas centram-se nos princpios e nas aes da tica, da solidariedade e da cooperao. , portanto, o desafio de implicao da universidade com os movimentos sociais e com os grupos populares que poder se constituir em processos estruturantes de saberes e de competncias que simbolizam a scio-economia solidria. No texto Os Processos Grupais: uma anlise das relaes interpessoais dos moradores da Gleba Tringulo, Luconi e Sguarezi explicita referenciais tericos e situaes de proximidade e de conflito que so experimentados por grupos sociais, organizaes entre o individual e o coletivo. A compreenso deste contexto fundamental para a organizao e institucionalizao de processos de cooperao. Wolf, no texto A Experincia da ADS Agncia de Desenvolvimento Solidrio e seu Papel na Economia Solidria, apresenta o cenrio de lutas prprias da classe trabalhadora nos anos 1980 que significou um processo de resistncia contra o regime autoritrio no Brasil, instituindo campanhas e organizaes para a abertura poltica e a democratizao do pas. Essas lutas levaram igualmente a competncias organizacionais propositivas, surgindo, dessa forma diversas mobilizaes e entidades representativas que so a expresso da vontade e dos interesses polticos e econmicos dos trabalhadores. Dentre estas, a autora destaca a Central nica dos Trabalhadores e a ADS cuja finalidade a proposio de aes que se fundamentam em princpios e procedimentos superadores da relao capital-trabalho para instituir metodologias e prticas sociais que exercitam a democracia poltica, econmica e social no campo do trabalho. As finalidades e as aes da ADS significam decerto um passo avante na organizao da classe trabalhadora. Vailant, Costa e Costa desenvolvem um pensamento que traduz as primeiras e relevantes experincias desenvolvidas na incubao de empreendimentos econmicos solidrios e sustentveis, embasado no campo epistemolgico interrelacional da educao e scio-economia solidria. A incubao uma metodologia de interao da universidade com grupos sociais determinados, pela qual se busca construir, por meio de um processo dialgico, condies e situaes superadoras da alienao, da pobreza material-cultural e do atraso organizacional. H, na experincia de incubao, uma diretriz que orienta objetivamente para o respeito e para a incluso dos saberes e das prticas sociais dos sujeitos, envolvidos na construo do empreendimento solidrio e sustentvel. A perspectiva envolvente e participativa da incubao tem na educao popular um forte referencial porque 12Srie Sociedade Solidria - Vol. 2 - 2005

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no popular, visto como contradio ao modelo econmico-educacional-poltico hegemnico que a educao e a scio-economia se implicam. Respeitando a dialogicidade do movimento incubador, os autores refletem sobre a pr-incubagem que se constitui no espao-tempo necessrio para o aprender a se reconhecer no grupo, isto , os sujeitos identificam-se pela histria de vida, narrando dificuldades e possibilidades. Traduzem os autores pressupostos fundamentais para a incubao solidria. H entre os participantes um compromisso tico, o respeito e a incluso de saberes dos/as trabalhadores/as. A formao para a auto-gesto, a centralidade o grupo social e se constri a autonomia do grupo social. Silva Neto e Guerra trazem um processo em construo. No texto, Incubando uma Cooperativa Agrcola na Gleba Mercedes V, Regio Centro Norte do Estado do Mato Grosso, os autores elucidam o contexto de polticas econmicas geradoras da concentrao da propriedade fundiria. A mesma conduo gera, como contraste, a pobreza de pequenos agricultores assentados em territrios os que no possuem a infra-estrutura necessria para o desenvolvimento integrado, sustentvel e solidrio da terra. Para contrapor aos processos de excluso, a metodologia de incubao de cooperativa representa um processo ativo de insero de pesquisadores universitrios com os assentados, promovendo a interao para a resoluo de problemas concretos vivenciados pelo grupo de agricultores. Maril da Silva ilustra os processos constituintes da Incubadora Tecnolgica de Cooperativas Populares da FURB Universidade Regional de Blumenau, ligada UNITRABALHO. As reflexes e as prticas sociais ligadas ao mundo do trabalho desafiam as universidades e as organizaes dos trabalhadores a configurarem um modo de produo que se ope aos procedimentos e aos valores do sistema capitalista. A incubao constitui-se numa metodologia de ao e de investigao que desenha cenrios participativos e interativos da universidade com grupos sociais populares. As aprendizagens resultantes desse embricamento demonstram uma saudvel re-aprendizagem, tanto para os agentes da universidade quanto dos movimentos e organizaes populares. Simboliza um processo que forja competncias e valores ticos e epistemolgicos que tornam visvel as possibilidades de configuraes sociais solidrias. Nesse direcionamento, a incubao problematiza o mundo do trabalho, da cooperao, das experincias e provoca os sujeitos implicados a serem criativos, inventando novas formas de vivncias sociais e intersubjetivas. Barbosa et all trazem as experincias da Incubadora Tecnolgica de Cooperativas Populares e de Empreendimentos Solidrios da UFPA. Comeam o texto demonstrando a relevncia da incubadora como espao para o exerccio da articulao entre ensino, pesquisa e extenso. No diferente a importncia atribuda para a interdisciplinaridade que faz dialogar os diversos saberes e atores, no somente dentro da universidade, mas da relao com as prticas dos grupos sociais em incubao. um processo de encontros e conflitos que resultam em construes de prticas polticas, insistindo na aprendizagem democrtica, bem como processos pedaggicos que constituam sistemas cognitivos geradores de saberes que devem responder a problemas concretos e imediatos. A incubao, nesse sentido, uma experincia que relaciona sujeitos diversos que vivenciam situaes contraditrias, mas que tm em comum a busca coletiva de alternativas de renda e de trabalho. Sob esses auspcios, a incubadora da UFPA constitui-se num espao de pesquisa e de formao, revelando as condies e os homens/mulheres amaznicos.Srie Sociedade Solidria - Vol. 2 - 2005

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Santos traduz as articulaes para a efetivao da Educao do Campo na regio norte de Mato Grosso. Reflete sobre as concertaes entre os movimentos sociais, secretarias municipais de educao, a universidade e o INCRA-Pronera para o planejamento, organizao e implantao de um curso de formao de educadores e de alfabetizao de jovens e adultos. Aponta o abandono histrico do meio rural para o qual no foram gestadas polticas pblicas adequadas para o desenvolvimento integral do homem e da mulher do campo. A certeza que se tinha que quem do campo no precisa das letras. Essa assertiva retrata um passado que desmerecia o campo. No podemos imaginar que essa ideologia preconceituosa tenha desaparecido em muitos meios, como o autor demonstra, mas podemos avaliar e acreditar que muitos espaos simblicos, pedaggicos e polticos foram conquistados pelos movimentos sociais. As universidades esto se abrindo e aprendem com os atores sociais que no haviam ainda ocupado os tempos e os espaos das universidades como movimentos organizados. um dilogo que se constri e que se refaz continuamente. Essa se constitui num fazer que busca a gerao da qualidade de vida no campo, por isso do compromisso da UNEMAT com a Educao do Campo. Tendo a perspectiva de construo de uma proposta solidria para a escola do campo, Peripolli recupera o pensar sobre a escola rural no Brasil. A histria da educao evidencia que predominava no pensamento poltico-filosfico brasileiro uma ideologia que colocava como desnecessrias as letras para o homem e a mulher do meio rural. Conduzido em conformidade com uma organizao social elitizante, os nicos que tinham direito de ter acesso aos estudos eram os filhos dos senhores de terra. Este pensamento comea a ser rompido quando os movimentos sociais, associados s universidades principiam um processo de pesquisa e de ao que aliceram um pensar que constitui novos fundamentos para a educao escolar que no ser mais concebida simplesmente como uma educao no campo, mas como educao do campo. Vale afirmar, a educao do campo tem como proposio o desenvolvimento educacional que problematiza as condies e as situaes do meio campons, gerando respostas para aqueles que vivem do e no campo. No texto Uma Experincia Metodolgica para a Organizao, a Cooperao e a Solidariedade Popular, Puhl desenvolve uma reflexo que se volta para a prxis histrica vivenciada com agricultores familiares camponeses na regio do Vale do Guapor em Mato Grosso. A experincia de organizao e educao popular analisada contextualizada num territrio de conflitos agrrios prprios de regies de colonizao recente. O autor percebe os camponeses no como vtimas de um destino pr-destinado, mas os concebe como sujeitos de uma historicidade construda a partir de relaes scio-econmicas e ideolgicas que configuram estruturas de explorao e de empobrecimento do ser humano. Complementarmente, Puhl elucida processos societais organizativos de movimentos sciopolticos e pedaggicos que problematizam os limites e as possibilidades de uma educao popular inauguradora da cooperao e da solidariedade. Educao do Campo e Agricultura Familiar Camponesa: perspectivas solidrias a orientao reflexiva desenvolvida por Sguarezi. O autor explicita os contrastes sociais vividos no Brasil. Pas forte economicamente, ocupa a 14 posio mundial, e em desenvolvimento humano est na 65 posio. Esse quadro que ilustra a extrema contradio da estrutura social necessita ser destruda. A agri14Srie Sociedade Solidria - Vol. 2 - 2005

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cultura familiar, na perspectiva da agroecologia, da scio-economia solidria e da educao do campo so metodologias que ilustram aes dos movimentos sociais e das universidades no redirecionamento da organizao das instituies e das prticas sociais. No distinto a concepo relativa cincia que deve ultrapassar o quadro dominante da linearidade e do reducionismo para alcanar a configurao epistemolgica e cognitiva que apreende a complexidade. nessa direo que o autor expressa o fundamento da formao do professor, mais profundamente do educador, objetivando a superao da educao voltada para a sociedade de consumo, tendo como horizonte a construo da sociedade solidria. Vieira e Freitas constroem um argumento fazendo visualizar as dinmicas sociais para a concretizao de projetos sociais que codificam evidncias que se contrapem ao modelo econmico dominante. O enfoque a modernizao do Brasil a partir da dcada de 1930. Os fundamentos e os planos elaborados, principalmente ps-64, so destacados para ilustrar o pensamento gerador das polticas e dos instrumentos que viabilizaram a implantao da modernizao do campo. A ocupao da Amaznia est na linha de concordncia com a filosofia modernizadora. Integrar para produzir e gerar mercados. Esse esprito torna vivel a expanso da agricultura de preciso em territrios antes no integrados aos mercados. O modelo econmico dominante faz crescer quantitativamente o volume de mercadorias, simultaneamente ao processo gerador de misria. Os autores defendem a tese de que h um movimento em execuo que se contrape ao modelo excludente. A realidade em perspectiva assenta-se na agricultura familiar, organizada nos princpios da scio-economia solidria e da agroecologia, que representam prticas sociais viabilizadores de um sistema social que se embasa na plenificao da qualidade de vida. Agroecologia, Sustentabilidade, o Caminho da Universidade e Perspectivas dos Assentamentos da Reforma Agrria so as proposies apresentadas por Mattos, Machado e Duarte. Tem como perspectiva a consolidao de tecnologias e de prticas sociais que se fundamentam em pressupostos que apreendem a complexidade dos sistemas naturais e sociais. Contrapondo ao modelo de agricultura intensiva, que se assenta no paradigma cientfico moderno, simplificador das relaes, os autores constroem argumentos e exemplos para a proposio de modelos e prticas sociais que percebam a diversidade dos ecossistemas. Neste caminhar cognitivo, elucidam a agroecologia como concepo e ao que tem como princpio e finalidade a apreenso da complexidade da natureza e dos contextos scio-culturais. Neste sentido, a universidade assumir um compromisso novo, ou seja, de produzir cincias, tecnologias e de instituir processos formativos capacitadores de competncias relacionais que apreendam a complexidade tanto nas concepes quanto nas prticas sociais. Para a completude desse caminhar a universidade deve ser uma instituio aberta, que dialoga com os saberes de diversos grupos sociais, dentre os quais, como destacam os autores, as comunidades tradicionais, os indgenas e os camponeses. Laforga e Eid apresentam uma reflexo que trata da certificao social, um instrumento do comrcio justo, no caso especfico, aplicado agricultura familiar. Os autores visualizam a questo do comrcio justo e da certificao social como processos alternativos de viabilizao da agricultura familiar. A certificao traduz a idia da existncia de um comrcio amplo e complexo que tem a intermediao de organismos que atentam para a qualidade dos produtos, para a origem social eSrie Sociedade Solidria - Vol. 2 - 2005

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comrcio apropriado e tambm para a promoo da justia social e ambiental. As redes que se formam so possibilidades de romper com o consenso que, mesmo inconscientemente, legitimador de estruturas de trabalho exploradoras e de ambincias ecolgicas predatrias. Constitui-se uma gesto que complementar aos procedimentos de relaes de confiabilidade entre o produtor e o consumidor, gestados historicamente por movimentos populares e eclesiais. A certificao social constitui-se num processo de conscientizao do consumidor que, ao adquirir um produto, indaga-se sobre a origem e sobre a sociedade que estar ajudando a construir pela atitude do consumo. Almejamos que possamos gestar uma rede de aprendizagens e atitudes solidrias. Que o dilogo entre a universidade e os movimentos sociais possa gerar conhecimentos pertinentes, provocar polticas pblicas e relaes sociais comprometidas com a cooperao, a solidariedade e a sustentabilidade. Que a epistemologia transdisciplinar possa se constituir numa caminhada constante na construo de saberes que apreendam a complexidade dos fenmenos sociais e naturais. Aos leitores e estudiosos desta obra, desejamos uma viagem crtica e criativa que faa vislumbrar a utopia ousada e transformadora. Laudemir Luiz Zart Josivaldo Constantino dos Santos Organizadores

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CAPTULO I

A Construo da Universidade Aberta e os Referenciais de Scio-economia Solidria

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A UNIVERSIDADE COMO FATOR DE ARTICULAO E ADENSAMENTO ENTRE A ORGANIZAO POPULAR E POLTICAS PBLICASAlejandro Labale Comeo off-the-records, semanas atrs acompanhei o professor Paul Singer at o aeroporto depois de um encontro acontecido em Blumenau. De aquela extensa fala, marcou-me especialmente o momento em que o professor Singer comentava sobre um curso que ministrara para alunos que no s provinham da academia, seno tambm de Ongs e organizaes de base. Na sua avaliao, segundo me confiou: - Foi um curso muito interessante, quanto aprendi... Resgato dessa lembrana o que entendo como atitude paradigmtica tanto para o docente quanto para o pesquisador, norteada pela extrema humildade e, ao mesmo tempo, avidez de conhecimento. Atitude esta que nos aproxima mais da curiosidade da criana que da certeza do legislador. Animado por esse esprito, quero frisar que as reflexes contidas neste documento provm de nossa experincia junto a organizaes populares e empreendimentos de economia solidria do Vale do rio Itaja, como e tambm de nossa prtica na implementao de polticas de qualificao profissional no estado de Santa Catarina. Este trabalho tenta alicerar a seguinte afirmao: a universidade vem se constituindo em um gestor flexvel e altamente capacitado para articular a complexa relao entre polticas pblicas, terceiro setor e organizao de base. Para tanto, num primeiro momento, vou contextualizar minha fala com alguns dados da realidade latino-americana. Depois, desenharei um breve retrospecto da funo da instituio universitria e sua relao com a sociedade e o Estado, dando destaque extenso universitria. Para, finalmente, a partir da reflexo sobre a atuao em campo da Universidade Regional de Blumenau na rea especfica de gerao de trabalho e renda, pensar uma relao possvel e desejvel com as polticas pblicas e seus destinatrios. Onde estamos? Velhos problemas, novos atores. Para comear vou me apropriar aqui de alguns dados contidos num excelente trabalho de recopilao feita recentemente por Eduardo Galeano. A estatstica de ingresso per-capita internacional mais antiga de que se tenha conhecimento remete ao ano de 1780. Segundo Javier Iguiz, economista diretor da Revista Sur de Medicus Mundi, ao comparar produo e demografia naquele momento, a desigualdade entre os pases mais ricos e os mais pobres era de trs por um, enquanto hoje de setenta por um. A populao do planeta atualmente de aproximadamente 6.000 bilhes de habitantes, dos quais perto do 47%, tem ganho inferior a dois dlares, algo assim como seis reais dirios, dados do Banco Mundial. Mais de 44% dos latino-americanos e caribenhos 227 milhes de pessoas vivem abaixo da linha de pobreza e 79% ou seja, 177 milhes so crianas e jovens menores de 20 anos. O nmero de indigentes ronda os 100 milhes; ou seja, quase 20% dos habitantes da regio. A metade dos maiores de 60 anos no possui ganho algum.Srie Sociedade Solidria - Vol. 2 - 2005

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No final da dcada passada, 11% da populao da Amrica Latina e Caribe 55 milhes sofria algum grau de desnutrio; aguda em 9% dos menores de 5 anos e crnica em 19,4% das crianas segundo Estudos da CEPAL e do Programa Mundial de Alimentos da FAO. A Amrica Latina uma das regies do mundo de maior desigualdade no que se refere distribuio da riqueza gerada: os 20% mais ricos abocanham 60% da receita total, enquanto que os 20% mais pobres ( deles que estamos falando aqui e em grande medida constitui nosso pblico) apenas arranham uns 3%. A economista estadunidense Nancy Birdsall fez uma projeo economtrica a fim de comparar a situao da Amrica Latina de finais dos anos 60 com a existente depois do ciclo de ditaduras militares dos anos 70 e 80 e da aplicao dos ajustes e reformas econmicas dos 90. O resultado do estudo foi que o autoritarismo seja poltico ou econmico, duplicou o nvel de pobreza que teria a regio de subsistirem s polticas econmicas anteriores. Galeano cita, aqui, Bernardo Kliksberg, diretor da Iniciativa sobre Capital Social, tica e Desenvolvimento programa com auspcio do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Para concluir, mas infelizmente, no para terminar com esse lamentvel relato contextual, em finais de 2003, tnhamos na Amrica Latina e Caribe 20 milhes de pobres a mais que em 1997; ou seja, em valores do ano base, os pobres vm aumentando razo de quase 1% ao ano. No Brasil, durante o governo militar, existia um lugar para a universidade. Este surgia de sua efetiva insero num projeto nacional. Merece ateno a noo de projeto nacional a respeito deste ponto que abordarei depois. Adianto, por enquanto, o fato que tanto provenham da esquerda quanto da direita, estes projetos sempre adotaram um vis de imposio tecnocrtica. Dizia que no Brasil, diferentemente de outros autoritarismos da regio, no se via na universidade um celeiro de subverso e, em sua necessria desestruturao, um ato de segurana nacional. A ditadura militar no Brasil, obviamente no sem perseguies pessoais nem se poupando de colocar setores inteiros do conhecimento sob suspeita, deu Cincia e Tecnologia (C&T) em geral e universidade em particular, um lugar de destaque em seus planos de desenvolvimento. Insisto em que a avaliao que proponho a respeito da poltica de estado e dos objetivos propostos para a universidade na poca, no nos centramos aqui em seus resultados efetivos. Infelizmente, no temos o tempo suficiente para abordar a complexidade desse problema, podemos sim opinar que esse problema tem a ver com o modelo universitrio herdado da tradio lusa diferente do resto de Europa e que determinou o aparecimento tardio de uma universidade no sentido pleno desta palavra; qual seja, o de integrar a pesquisa docncia. Esse modelo s se estruturar tardiamente no Brasil, j avanado o sc. XX. A partir da experincia da Universidade de So Paulo, poderamos assim relativizar o protagonismo do governo militar na medida em que s lhe tocou gerir uma transformao da Universidade j em processo, o que no quita o mrito de t-lo feito em determinado sentido. Esse lugar dado universidade no se desmancha na democracia j que ficam e se consolidam os rgos de fomento, as novas universidades federais, os canais de financiamento e os institutos criados para auspiciar e estreitar as relaes entre capital e conhecimento aplicado. Surgindo assim tambm foros como a 20Srie Sociedade Solidria - Vol. 2 - 2005

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SBPS de atuao crtica e avaliao constante da relao entre Cincia, Tecnologia e Sociedade. Porm, o jogo democrtico trouxe uma novidade, abriu a possibilidade de entender o desenvolvimento no j como um plano estratgico, a viso tecnocrtica e monista da que falava anteriormente, seno como a conseqncia de um confronto permanente entre diversos fatores, atores e setores. Conseqentemente, com a perda de uma orientao poltica mais ampla, a universidade (pensamos, revelia de muitos seus prprios integrantes) foi gradativamente encaixada numa funo de mediador tecnolgico alm da clssica tarefa de formao de quadros qualificados e profissionais liberais. No podemos negligenciar nesta anlise que esse processo no deve ser avaliado exclusivamente desde uma viso internalista. Isto , que isole o complexo de C&T, tambm houvera e h a mudana no padro de acumulao que o capitalismo em seu conjunto vem sofrendo desde meados dos anos 70. Esta etapa, amide conceitualizada como ps-fordismo, submete ao complexo C&T ao arbtrio das transformaes e ajustes de mercado dentre os quais o do trabalho foi dos mais profundamente afetados. Desregulao, terceirizao, perda de protagonismo da atividade sindical e, concomitantemente, retrocesso das conquistas trabalhistas, poderiam oferecer-se como exemplos de seus efeitos. Outra vertente de meu argumento, cultural desta vez, a suspeita generalizada a que foi submetido o potencial emancipatrio de que seria portador o conhecimento per se. Da crtica realizada pelos integrantes da Escola de Frankfurt at o cepticismo ps-moderno de final do milnio, a confiana na razo, na cincia e na tecnologia foi sendo minada e colocada sob crtica. Um ponto central dessa crtica estava dirigido a tomar a cincia como detentora do saber por excelncia. Seja entendida como o conjunto de mtodos e experimentao orientados pelo uso da razo e a dvida metdica, pelos quais o conhecimento avana e validado. Ou como o conjunto de conhecimentos acumulados atravs da aplicao desses mtodos que, por sua vez, transformam-se em valores culturais e costumes, tendo por funo principal liberar as massas de obscurantismos e sujeies. Nessa viso, os cientistas atuariam margem de qualquer influncia exterior, moral ou individual assegurando assim a pureza e objetividade de seu produto que podemos denominar: prticas cientficas. Sendo que, a adequao deste conhecimento, os interesse dos diversos setores, ou os riscos de sua aplicao, explicitamente eram deixados de lado como interferncia nociva objetividade. Epistemologicamente, institui-se o paradoxo: a maior conscincia social do cientista, menor confiana em seus resultados. Alm dessa crtica da academia pela prpria academia, o campo social tambm gerou a sua, que se expressou nos ltimos tempos com o advento dos movimentos ecologistas e anti-globalizao. Essa mobilizao social junto ao mal-estar poltico provocado pelos efeitos negativos da aplicao das medidas atribudas ao assim chamado Consenso de Washington (que lembremos, propugna entre outras medidas: ajustes macro-econmicos, liberalizao de mercados, privatizaes, controle exclusivo da varivel monetria, ajustes oramentrios) galvanizou um movimento de opinio mundial que vem gerando consensos e adquirindo fora. Uma parte de sua crtica radical, sem desdenhar num todo a cincia, indica que muitas vezes sua neutralidade epistemolgica serve para gerar o contrrio daquilo que se entendia como sendo a misso do conhecimento: criar condies para a felicidade e o desenvolvimento de todos os seres humanos sem distines.Srie Sociedade Solidria - Vol. 2 - 2005

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Estes e outros movimentos podem-se objetivar e identificar com os valores propostos nos multitudinrios eventos do Frum Social Mundial. Longe de querer avaliar o mrito ou o peso poltico destas manifestaes no posso, porm, deixar de perceb-los como indicadores da procura de alternativas viso nica representada pelo conjunto: poder poltico/concentrao econmica/tecnocincia. Este ltimo simbolicamente reunido, ano aps ano, na mesma poca, no foro de Davos. A luta ecologista motivada pelo efeito estufa ou contra os transgnicos, reclamos transnacional financeira ou contra o intervencionismo militar, dentre outras questes da agenda multilateral, provocaram mobilizaes massivas mundo afora. Falamos menos de uma estratgia planetria que da procura por expressar uma viso global contra-hegemnica. Esse movimento conjunturalmente perdeu virulncia depois do New York/11 de setembro, mas no deixou de decantar a peremptria necessidade de mudanas nas agendas polticas, sociais e cientficas. Com muito menos voluntarismo e utopia que nos revolucionrios anos 60, este novo paradigma, socialmente mais justo, ecologicamente mais saudvel, politicamente mais plural, vem firmando, na opinio pblica, simpatia por reivindicaes por vezes muito distantes do cotidiano das pessoas. Podemos afirmar que se trata de uma luta desigual que se trava, principalmente, contra a inrcia do sistema e do senso comum imperante. por isso que ela contra-hegemnica. A modo de exemplo, pensemos nas mediaes necessrias para explicar ao pblico no especialista os sacrifcios de curto prazo que implicam polticas orientadas pela sustentabilidade, as mais das vezes contraditrias lgica orientada pelo consumismo e o individualismo. Assim como tambm podemos pensar nas reivindicaes propostas pela clivagem de gnero que quase sempre, na sua procura de democratizar a relao entre sexos e opes sexuais, afeta arraigados costumes culturais. Apesar de suas multifacetadas origens e objetivos, esses movimentos tm na solidariedade um valor que orienta e organiza sua disperso identitria, equacionando interesses e reivindicaes.

A Universidade: um percursoPara pensar a universidade nesse novo contexto, o primeiro passo que a experincia histrica nos indica que o conceito de Universidade tem variado muito no espao e no tempo. Em sua forma original, na Idade Mdia, as universidades eram corporaes de professores e alunos que, como outras corporaes, protegiam seus membros e intentavam legitimar sua reserva de mercado. Essas universidades formavam predominantemente profissionais em Leis, Medicina e Teologia. Logo, o conhecimento experimental comeou a se desenvolver fora dos claustros universitrios como forma menor e emprica, fruto da experincia de arteses e artistas. No havia lugar para as novas cincias na universidade tradicional que marcava uma clara distino entre a prtica das idias e dos ofcios anloga distino hierrquica entre ideal e emprico que a filosofia manteve por sculos relegando a um segundo plano o conhecimento obtido pela experincia (em algumas interpretaes empricas equivalente a senso comum). A impossibilidade de uma cincia instrumental, til e prtica exclua o experimentalismo de uma universidade centrada na filosfica procura da verdade. A universidade em suas primeiras pocas no olhava para a sociedade nem intentava resolver seus problemas prticos, to s formava os quadros necessrios sua reproduo. 22Srie Sociedade Solidria - Vol. 2 - 2005

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Finalmente, a cincia experimental encontrou um lugar mais central na universidade alem do sculo XIX, especificamente com von Humbold e com a criao da Universidade de Berlin, escola que associava pesquisa e docncia, um modelo que seria mais tarde transferido e adaptado para os Estados Unidos. J no Brasil, as primeiras escolas superiores ecoam a velha tradio europia e a cincia experimental ensaia seus primeiros passos fora do mbito universitrio. Indica-se habitualmente para alicerar essa afirmao, o Instituto de Manguinhos, as experincias de Oswaldo Cruz ou a Escola Politcnica de Otto de Alencar, marcos que firmariam essa tendncia. Fizemos j meno criao da Universidade de So Paulo e como ela representa a possibilidade de juntar pesquisa cientfica e docncia, mas deveramos mencionar tambm as misses estrangeiras, o impulso dado formao de professores, a nova escola de Filosofia, tambm figuras como Jlio de Mesquita, Armando de Salles Oliveira, Paulo Duarte e Fernando de Azevedo como tambm salientar seus atritos com o grupo carioca de Amoroso Costa. Enfim, uma fascinante histria que deixamos para os especialistas. Entretanto, esse modelo proposto pela USP comea a se espalhar e vir, com a Reforma Universitria, durante os anos 60, a se transformar na estrutura de base com que atualmente contamos, o que, sem dvidas, representou na poca um avano a respeito da conservadora universidade herdada do Imprio. Tnhamos, assim, ao cabo, uma universidade que servia cincia. Mas o problema, como j indicado anteriormente, : a quem serve a cincia? Essa preocupao foi colocada ao longo do sc. XX, com muita fora e determinao, em duas oportunidades, especialmente e sempre por movimentos de estudantes. Na Argentina, mais precisamente no movimento pela Reforma Universitria de Crdoba, em 1918, e animou tambm as revoltas nos campus universitrios de vrios lugares do mundo nos anos 60. Ambos movimentos, respeitando suas particularidades, chamaram ateno para a serventia real do produto do conhecimento e sobre a responsabilidade social da instituio universitria. Ambas premissas se reconhecem na tardia incluso da extenso na misso da universidade. De sua formulao, surge que a misso da universidade no se reduz a formar profissionais para o mercado de trabalho e para as burocracias do Estado, como se pensava nas escolas tradicionais. Nem que, acessoriamente, a atividade de pesquisa tem como finalidade nica produo de servios prticos para o Estado ou para a produo. Herdeira da tradio da reforma universitria europia do primeiro quartel do sc. XIX, a Universidade de So Paulo, como mencionado anteriormente, trouxe para o Brasil, pela primeira vez, a idia de uma comunidade cientfica que no se subordina prtica do Estado nem s demandas do mercado de trabalho, mas desenvolve o conhecimento por seus mritos prprios, baseada na certeza de que assim serve melhor aos fins ltimos do bem-estar da sociedade. Este modelo que se estendeu na forma de paradigma de excelncia, atualmente est em crise, mas pode vir a servir de base para sua prpria superao. Dentre os trs princpios bsicos que estruturam a atividade universitria: docncia, pesquisa e extenso; este ltimo, aquele que mais tardiamente se incorporara, penso, pode vir a ajudar universidade a superar sua crise. Os modelos tecnolgicos de alta sofisticao no so neutros e, sobretudo, no se pode pensar que servem por igual em todas as latitudes e a todas as sociedades. este umSrie Sociedade Solidria - Vol. 2 - 2005

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problema muito complexo que no abordaremos aqui. Porm alertamos que a C&T devem ser pensadas tanto em sua adequao tcnica quanto na pertinncia social. Coincidimos com o vice-reitor da UNEMAT, Almir Arantes, quando em suas palavras de boas-vindas na abertura do II EMESOL chamou a ser terica e metodologicamente consistentes, mas sabendo que devemos fazer uma opo. A questo que se coloca : como justific-la? Esta apenas ideolgica? Significa isto um voluntarismo? Recapitulemos os passos dados at aqui 1 - Vivemos numa sociedade crivada de desigualdade e excluso. 2 - A cincia, por neutralidade epistemolgica, no pode por si mesma ser considerada um fator para acabar com esse estado de coisas, j que, sem contradio, pode ser utilizada para qualquer fim. 3 - A inexistncia de um claro projeto nacional que subordine a C&T incluso dos excludos. 4 - Historicamente, a universidade no tem desenhado um modelo de articulao com a sociedade (no caso que alguma vez tenha existido um) que no seja paternalista, elitista ou tecnocrtico. Para resolver a questo proposta acima, peo agora consideremos alguns pressupostos que no sero aqui discutidos e, portanto, constituir-se-o em petio de princpios. Deve-se manter um sistema oficial (federal, estadual ou municipal) de ensino garantindo sua autonomia acadmica. Deve ampliar esse sistema, assegurando a gratuidade e a universalidade. Pesquisa, docncia e extenso constituem de forma indissocivel a tarefa central da universidade. A universidade deve sociedade uma avaliao permanente que garanta que o esforo social por mant-la no vo. Apontamentos para uma prtica possvel A viso da excelncia do conhecimento identificada de hbito com a imagem dos Institutos de Altos Estudos, em que uma elite tcnica se habilita a emitir juzos ltimos. Se esta legitimidade colocada em dvida, logo admitimos que a universidade forma parte da sociedade e no paira no ar acima dela. Assim esses juzos no dependeram de uma avaliao tcnica exclusivamente baseada em critrios internos da cincia. Se, assim mesmo, afirmarmos que a universidade deve-se abrir sociedade, por sua vez a sociedade tem de entrar na universidade. Esse no um fato que se d de uma vez e para sempre, constitui uma relao sempre em construo e sempre sujeita avaliao. Apesar de no constituir o centro de nossa argumentao, penso que na constante avaliao que se encontra a chave deste particular modo de integrao. Muito se tem debatido sobre isto e existe um grande grupo de colegas inquirindo sobre um lugar possvel para a universidade e nas mudanas que deveriam acontecer para tanto. Conseqentemente, e em resposta ao interrogante antes-posto, a agenda ao mesmo tempo tcnica e tica. A solidariedade e incluso social devem-se constituir em valores para as prticas que, nesta conjuntura histrica, tendam a diminuir o dficit da relao universidade/sociedade. 24Srie Sociedade Solidria - Vol. 2 - 2005

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Pensar essa problemtica a partir da Universidade Regional de Blumenau pode servir apenas como caso de esta relao, longe estamos de resolver o problema proposto. Fundada h quarenta anos, uma instituio pblica mantida por uma Fundao Municipal. Seu estatuto prev a autonomia acadmica, administrativa e financeira. Basicamente se financia com o aporte das mensalidades de seus alunos, situao que veio a ser agravada nos ltimos anos pela perda do monoplio do ensino superior na regio. Concorre por matrcula atualmente com outras instituies de ensino superior, mas que no desenvolvem pesquisa nem extenso. Ao contrrio, destas a FURB mantm ambulatrios, uma excelente biblioteca, uma agenda cultural nacionalmente reconhecida, dentre outras atividades de pesquisa e extenso que a firmam como nica universidade na Regio em sentido estrito. A FURB, em 2003, contava com 861 professores, aproximadamente 13.000 alunos de graduao distribudos em 36 cursos, 1434 alunos de ps-graduao (20% deles em nvel de mestrado), 503 servidores e ainda mantm uma escola de aplicao de nvel mdio. A tradio de servios comunitrios remonta a 1972, quando comea a funcionar um servio de assessoria jurdica no frum local. Foi por ocasio de duas grandes enchentes na cidade que se elaborou um projeto que realizou sistemticos estudos hidromtricos que, depois de 1986, quando j reconhecida como universidade, se incorporam s polticas pblicas de preveno de desastres. Essa a base para a criao do Instituto de Pesquisas Ambientais (IPA). Tambm marco dessa universidade a criao da Pr-reitoria de Extenso que articula diversos programas culturais, docentes e comunitrios, porm aqui no sero detalhados, por no ser meu objeto principal. H uma necessria meno de destaque para o Festival Nacional de Teatro Universitrio da FURB, que contou, em suas ltimas verses com a participao de grupos advindos de diversos pases, e do atendimento em sade, que conta com um programa de formao no nvel de especializao em sade comunitria, para mdicos, enfermeiros, psiclogos, e outras especialidades da rea. O IPA junto ao Instituto de Pesquisas Tecnolgicas (IPT) e ao Instituo de Pesquisas Sociais (IPS), conformam um setor dedicado a desenvolver a relao pesquisa e interveno social. no marco do IPS que vimos trabalhando em um programa orientado pela Economia Solidria. Esse Instituto tem duas grandes reas de atuao: o de indicadores scio-econmicos e pesquisas de opinio e a pesquisa aplicada ou interveno, na qual funcionam trs programas: o Ncleo Local da Rede UNITRABALHO, a Incubadora Tecnolgica de Cooperativas Populares (ITCP) e, finalmente, o Programa de Qualificao Profissional. Estes ltimos atravessados pela temtica comum da Economia Solidria que os orienta e motiva. Professores, alunos de graduao e ps-graduao, tcnico-administrativos, estagirios e bolsistas conformam um grupo que combina as trs tarefas bsicas da vida universitria: ensino, pesquisa e extenso. As limitaes oramentais fizeram com que os programas em seu conjunto procurassem constantemente se auto-financiarem estabelecendo parcerias com rgos pblicos municipais estaduais e federais. Assim como desde o ano passado um contrato de assessoria nos vincula a o programa de responsabilidade social de uma transnacional do setor metal-mecnico.Srie Sociedade Solidria - Vol. 2 - 2005

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O Ncleo da Rede Unitrabalho foi o primeiro passo a orientar pesquisas na rea do mundo do trabalho. Como desdobramento desse Ncleo se criou a ITCP que vem atuando na incubao de empreendimentos produtivos auto-gestionrios, associaes e cooperativas da regio de Blumenau. Esse processo de incubagem basicamente est estruturado por cursos de capacitao em cooperativismo, gesto, resoluo de conflitos, marketing, combinado com os assessoramentos legal, administrativo e logstico. Mas, sem dvida, a tarefa que mais tem demonstrado xito a relao de parceria que os empreendimentos estabeleceram com a equipe como parceiro na dura tarefa de viabilizar seu cometido. A informao sobre a oferta de polticas pblicas e fontes de financiamento constitui um aporte valorado pelos grupos e consegue generalizar seu cometido aos demais empreendimentos solidrios da regio; a partir de auspiciar a constituio da Rede de Empreendimentos de Economia Solidria do Vale do Itaja (RESVI) que vem sendo um foro de debate das polticas de Economia Solidria nessa Regio. A participao no Grupo de Trabalho Estadual de Economia Solidria (GTES) tambm articulou essa rede local com o movimento no restante do Estado. Assim como possibilitou participar das reunies junto ao DRT e ao Governo de Estado para a implementao de uma poltica de Economia Solidria por parte do governo estadual. Tambm a ITCP ser a entidade executora do mapeamento nacional de empreendimentos da SENAES para o Estado. A ITCP tambm incuba incubadoras. Este repasse de know-how se realiza neste momento com o Consulado da Mulher, de Joinville, para o qual prestamos assessoria em seu acompanhamento de grupos cooperativos. Como executores e, alternativamente, avaliadores do Plano de Qualificao Profissional (FAT/Ministrio de Trabalho) conseguimos articular recursos para desenvolver parcerias com prefeituras, instituies de classe e empreendedores cooperativos ou individuais. poltica da Reitoria da FURB no colocar a Universidade como subsidiria do Estado. No atuamos para suprir o dficit de polticas para setores desfavorecidos ou excludos. Entretanto, a possibilidade de articulao junto a diversos atores institucionais faz com que possamos intermediar e acessar recursos, nem sempre financeiros, de serventia na consolidao do processo de cada grupo. A experincia em campo na aplicao de polticas pblicas de Qualificao, assim como a promoo e apoio a alternativas de gerao de trabalho e renda podem se formular desde um slido comprometimento com os atores de base e se constitui na conformao de uma rede solidria mais ampla. A universidade tem um rol de destaque pela prescindncia poltica que a autonomia lhe outorga e como ator privilegiado na implementao e gesto da rede de economia solidria, porm no na sua liderana. Seu privilgio provm do fato de gerir informao e brind-la rede e se constituir, assim, em mediador do principal insumo que potencializa a trama de empreendimentos e entidades de apoio. A universidade, por no se tratar de um ator poltico, no sentido da acumulao habitual do sistema representativo, conforma parte de uma frente por uma alternativa de organizao e participao dos setores excludos pelo sistema econmico imperante. Nesse sentido a universidade tem que exercer um monitoramento constante de suas prticas, uma autocrtica que a coloque no desempenho de uma funo mediadora a refugio das conjunturas e preserve os valores ticos da solidariedade, atuando de forma eficiente com seu quadro tcnico, mas tambm como 26Srie Sociedade Solidria - Vol. 2 - 2005

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um testemunho crtico. Apenas esse seu privilegio, estar dentro e fora, ator e testemunha, no lugar da autocrtica. O papel que se pensa desde essas linhas para a extenso universitria visa um ator que, ao mesmo tempo, atue, coordene e monitore esse processo j que sua prescindncia poltica e capacidade reflexiva o localiza numa privilegiada perspectiva dentro/fora e que, em suma, coordena e articula com um perfil tcnico de eficincia; porm, motivado nos valores de economia solidria que lhe asseguram a possibilidade subjetiva no sentido tico de estar localizada do lado correto.

REFERNCIAS BIBLIOGRFICASCALDERO, A. I. e SAMPAIO, O. J. (Org). Extenso Universitria: ao comunitria em universidades brasileiras. So Paulo: Olho dagua, 2002. GALEANO, Eduardo. http://www.pagina12web.com.ar/diario/cultura/7-339532004-04-11.html acessado em: 4/11/2004. MENDONA, Sueli et alli. Extenso Universitria: uma nova relao com a administrao pblica In: CALDERO, A. I. e SAMPAIO, O. J. (Org). Extenso Universitria: ao comunitria em universidades brasileiras. So Paulo: Olho dagua, 2002. MENEGHEL, Stela M.; KRGER, Dayane C. Produo de conhecimento e extenso universitria: apontamentos sobre a relao Universidade-Sociedade. In: PEREIRA, Gilson e LIMA de ANDRADE, Maria da Conceio. O educador-pesquisador e a produo social de conhecimento. Florianpolis: Insular, 2003. v. p. 165-186. PEREIRA, Gilson e LIMA de ANDRADE, Maria da Conceio. O educadorpesquisador e a produo social de conhecimento. Florianpolis: Insular, 2003. ROCHA, Roberto et alli. Construo Conceitual da Extenso Universitria em Amrica Latina. Braslia: ed. UnB, 2001. THEIS, Ivo et alli. Novos Olhares sobre Blumenau Contribuies crticas sobre seu desenvolvimento recente. Blumenau: ed. FURB, 2000.

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POSSIBILIDADES DE FAZIMENTO DA UNIVERSIDADE: CARACTERSTICAS E OPES ENTRE A GLOBALIZAO E A PLANETARIEDADELaudemir Luiz Zart Para discutirmos o processo de fazimento da universidade, consideramos como cenrio a existncia na atualidade de dois grandes projetos mundiais que, apesar das variaes nas suas manifestaes locais, guardam algumas caractersticas que os identificam em qualquer territorialidade. Avaliamos que ter clareza das orientaes das proposies presentes nos projetos uma condio necessria para a definio de polticas e a orientao das aes na universidade. Os projetos a que nos referimos so a globalizao e a planetariedade. Vejamos primeiro a diferena entre os dois para, em seguida, posicionarmo-nos em relao universidade. Comeamos pela globalizao. No temos como propsito exaurir as discusses, mas atravs dos caracteres gerais evidenciar os antagonismos e as contradies existentes nos processos histricos vividos neste momento por ns na configurao da cultura da humanidade. Destacamos como uma orientao perspicaz da globalizao, o valor maximizador das relaes de mercado. O mercado o demiurgo da sociedade e dos estados nacionais. Mas no um mercado qualquer. uma fora que aparenta impessoalidade, permeabilidade, flexibilidade e eficincia. As leis do mercado, a liberdade de iniciativa, a concorrncia, a competio, a qualificao para o trabalho, o controle da informao, a modernizao e o individualismo so valores do imprio que dominam as relaes das pessoas, dos governos, das organizaes no governamentais, dos sindicatos, dos partidos e dos meios de comunicaes. Na globalizao, projeto social e econmico da burguesia internacionalizada, as organizaes institucionais (empresas) so fortalecidas para responder s convenincias das projees dos grupos econmicos alocados e mobilizados nos conglomerados transnacionais que se apoderaram e monopolizaram os recursos naturais, as riquezas produzidas, as tecnologias, as cincias, o dinheiro. Vivenciamos orientaes e prticas governamentais e empresariais que jogam com o sistema financeiro, com o controle dos valores monetrios, mantidos abstratamente. As polticas nacionais dos pases da Amrica Latina obedecem s normas definidas pelos organismos internacionais como o FMI Fundo Monetrio Internacional e o BM Banco Mundial. Ns, brasileiros, recebemos constantemente visitas de especialistas que entram nas nossas instituies para nos fiscalizar, para verificar se a lio de casa foi cumprida. So frmulas sutis de dominao, embora os governos, associados grande imprensa, mostrem para a populao, que os elogios recebidos pelos tcnicos no so sinnimos de dominao e explorao dos trabalhadores dos nossos pases, mas como expresso da capacidade intelectual dos governos assentados nos palcios, gerenciando os negcios, no mais das burguesias nacionais, mas do capital internacional monopolizado. A burguesia, para realizar e concretizar a sua ideologia, promove polticas de privatizao, de venda (ou seria dao?), das empresas que deveriam organizar a economia, o sistema produtivo dos nossos pases, a poupana interna para a 28Srie Sociedade Solidria - Vol. 2 - 2005

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efetivao de polticas sociais para o bem viver do povo. Mas o que assistimos so aes governamentais que costuram polticas que atendem os interesses do capital. A privatizao no representa a capacidade de acabar com a ineficincia, com a burocracia, com o atraso tecnolgico. Ela demonstra a capacidade da cultura patrimonialista dominante no nosso meio, isto , de colocar as estruturas jurdicas e administrativas do Estado servio do capital privado monopolizado. nesse sentido que os pases criam agncias reguladoras de mercado, locais de moderao entre interesses prprios de grupos econmicos. Percebemos e vivenciamos ainda objetivamente polticas de incentivos fiscais, que so frmulas contbeis interessantes aplicadas pelo Estado, para dar mais dinheiro a quem tem dinheiro. As polticas de incentivos fiscais so o poder do fisco de tirar um pouco de dinheiro de todo mundo para dar a algum em particular, em nome de uma ideologia que supostamente vai ao encontro das necessidades do coletivo ou mais especificamente dos trabalhadores a gerao de empregos. No obstante, os nossos governos se apegam a valores morais que todos ns aprendemos desde pequenos nas nossas famlias de cultura crist: quem deve, deve pagar. Essa uma obrigao muito presente e que muito trabalhado pelo nosso sistema informacional. A imprensa oficial do pas, apesar de privada, informa que as naes do mundo subdesenvolvido devem aos cofres dos credores alguns bilhes de dlares. Os governos, j que devem, pagam. No essa a norma que aprendemos? Dessa forma, no so questionadas as cifras devidas, as razes especulativas das dvidas. Sequer conseguimos imaginar o montante da sangria de divisas e de vidas que so escorridas para os bolsos dos especuladores financeiros. Vivemos situaes tpicas de colonizao, ou como afirma Santos (2000, p. 55) vivemos numa poca de globaritarismo, muito mais do que de globalizao. Os nossos pases organizam a sua economia para atender ao mercado global. Os discursos so que devemos nos capacitar para podermos competir no mercado. Se pensarmos em construir a BR 163, no para que todos ns possamos viver bem, mas para termos acesso ao mercado. Se vacinarmos nosso gado, no para que tenhamos carne sadia, mas porque os europeus e os ianques s compram carne de gado controlado. Se abrirmos o mercado nacional para termos acesso a algumas parafernlias tecnolgicas, como computadores, celulares, carros, sistema de controle e vigilncia da Amaznia. Essas situaes colonizadoras representam nossa pobreza poltica, a nossa baixa auto-estima, a nossa incapacidade de construir um projeto para o pas. Conhecemos a histria dos portugueses quando colonizaram o Brasil, usaram, como ttica de conquista, o espelho, o faco. Estas eram parafernlias tecnolgicas avanadas para aquela poca. Os ndios gostaram, pegaram e foram dominados. Ns tambm gostamos, pegamos e somos dominados. Na histria, aprendemos como os colonizadores exploraram nossas riquezas naturais: o pau-brasil, a prata, o ouro. Plantaram e encheram as terras de cana-de-acar, s para exportar. Escravizaram os ndios e os negros porque precisavam de trabalhadores para gerar suas riquezas e acumular capitais. O que fazem nossos governos com as prticas dos incentivos fiscais, com os ajustes fiscais e estruturais se no promover a explorao dos nossos trabalhadores para a acumulao de capitais pelas multinacionais? Por que os trabalhadores devem se qualificar? No estamos, com essa poltica sendo preados para o trabalho, como eram os ndios e os negros?Srie Sociedade Solidria - Vol. 2 - 2005

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Somos violentados na nossa identidade. Sofremos agresses cotidianas com banalidades inventadas para nos alienar. Impingem-nos ideologias que nos menosprezam, que nos humilham. Depois da sangria dos juros e servios da dvida interna e externa, depois da sangria dos incentivos fiscais, no nos sobram seno migalhas para a educao, por isso nossas escolas so feias e os professores mal pagos. Sobram restos para construir estradas, por isso esto cheias de buracos, quando existem. Sobram restos para a sade, por isso nossos hospitais so caticos. Sobra nada para a habitao, por isso os pobres vivem em barracos. Sobra nada para a reforma agrria, por isso o povo marcha. Por que somos um pas de 55 milhes de miserveis? A violncia do trfico somente a expresso de uma sociedade em estado de desesperana, o resultado da misria da condio humana. As utopias so suplantadas - em nada do que poltico se cr. O fatalismo e o sensacionalismo so as imagens e os sons que tomaram o espao e o tempo dos nossos cantos privados as casas. O espao pblico: a rua, a praa, os parques so lugares perigosos, onde pessoas de bem no freqentam. Organizamos um imaginrio coletivo que se assenta na perspectiva do nopoltico, da no-participao. A idia-fora da cidadania substituda pelo consumismo desenfreado e individual. A construo coletiva de direitos desfeita pela busca de oportunidades. Na poltica predominam prticas de beneficiamento do privado. Inventamos relaes de desconfiana, de descrdito. O outro um inimigo, se no de fato, em potencial. O pblico sinnimo de no qualidade, o privado, de eficincia. Organizamos um sistema poltico de despolitizao, isto , de no pensar, de no executar e de no avaliar a arte de bem governar o pblico. Esse quadro nos rouba as utopias, as possibilidades. O pensamento liberalburgus gestou um movimento global de fechamento de idias. Inventaram o pensamento nico que fatalismo! Isto porque acreditaram que os trabalhadores no saberiam gestar experincias para contrapor ao projeto neoliberal. A esquizofrenia do mercado neoliberal deveria tomar conta das nossas mentes e dos nossos coraes. A ideologia propagada do pensamento nico constituiria fonte anestsica da nossa razo e dos nossos desejos. Visualizamos, no projeto da globalizao, um mundo formado em sistema onde tudo est integrado, onde a comunicao simultnea o auge da realizao humana, onde a tecnologia e a mquina so objetos sacralizados. Mas devemos questionar: que mundo este que promove a misria humana, que realiza a guerra, que semeia o dio? Que polticas so estas que usam o chamado sistema mundo para especular, subtrair bilhes de dlares dos povos? Que sistema este que no se percebe como um todo, mas est totalmente fragmentado, onde a especializao um processo cognitivo que nos faz ver cada vez menos, que reduz e separa as cincias, a filosofia, as religies, as artes, a vida? Que conhecimento-mundo este que efetua a degradao ambiental, que produz e aplica toneladas de txicos para os sistemas produtivos, que no reconhece a complexidade da natureza e da sociedade? (BOFF, 2000; MORIN, 2001). Temos como pressuposto que a globalizao, como projeto exclusivo da classe burguesa, no suporta a democracia profunda, amedronta-se da cidadania propositiva, no admite a participao, no h espao para o trabalho emancipador, no admite a tica solidria, no requer a cooperao, despreza a utopia. A globalizao uma realizao autoritria. Ao admitir a cidadania participativa e propositiva, os idealizadores liberais do sistema mundo globalizado sabem que esta a autodestruio do modelo idealizado. 30Srie Sociedade Solidria - Vol. 2 - 2005

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Mas, ento o que fazer? Levantamos agora um projeto solidrio, da cooperao, da participao, da compaixo, do encontro, da colaborao, da politizao e da conscincia. Este projeto chamado de planetariedade (GUTIERREZ e PRADO, 2000; GADOTTI, 2000). A planetariedade um projeto universal considera as condies nas quais vive a humanidade. Reconhecemos primeiro a existncia de um suporte tecnolgico possibilitador da intercomunicao entre os grupos sociais e os povos. A tecnologia no , nesse sentido, um fim, mas um recurso que deve ser empregado para a promoo da humanizao do ser humano. Essa concepo que defendemos no condiz com um vazio de opo, mas como aferiu Lazlo (2001, p. 66) a escolha da nova direo no est nas mos das grandes empresas e dos governos fortes, mas nas mos de uma massa crtica de pessoas em todas as partes do mundo. Aqui devemos fazer um destaque para diferenciarmos duas concepes. Enquanto no projeto da globalizao todo o poder se centra nas empresas capitalistas internacionalizadas, no projeto da planetariedade tem-se como orientao que haver uma conscincia planetria a partir das atitudes dos indivduos. Deixamos claro que a conscincia dos indivduos no resulta de uma capacidade isolada, mas resultante da prxis inserida e participativa de organizaes e movimentos que tm como objetivo a construo do projeto de sociedade e de conhecimento que sejam solidrios e sustentveis. A planetariedade reconhece a complexidade da organizao dos sistemas culturais e ecolgicos. Visualiza o perigo da destruio do planeta terra, e, portanto, da necessidade de um movimento que abranja a universalidade de todos os locais para formar uma frente que inter-relaciona aes e vises cujo propsito o enfrentamento das situaes-limites vivenciadas pela humanidade, e ao mesmo tempo, a possibilidade de construir um projeto alternativo (FREIRE, 1996). Para a concretizao da planetariedade, parte-se das diversidades experienciais dos grupos sociais, das organizaes no governamentais, dos sindicatos, das igrejas, das universidades, das pastorais sociais, das mulheres, dos grupos de jovens. Leva-se em considerao que os homens e as mulheres lutam em favor da vida em todos os lugares do planeta. Apreende-se que h aprendizagem para o desenvolvimento coletivo, que j avaliaram suas experincias, erraram, superaram limites e transpuseram fronteiras. Estas diversas iniciativas no podem ficar isoladas, mas devem ser compartilhadas, estabelecendo-se redes de colaborao, de intercmbio de conhecimentos e de produtos (MANCE, 1999). Promove-se o encontro entre pessoas que lutam para conquistar o direito vida, constituindo-se sujeitos construtores de uma sociedade solidria e sustentvel. Este projeto tem muitos desafios. H de se superar as desesperanas, os fatalismos, a passividade, o patrimonialismo e os assistencialismos. H de se desconstruir o individualismo, a explorao, a dominao, o medo, a destruio ecolgica, o economicismo e a alienao. H de se construir relaes polticas de poder participativo, democrtico e cidado. H de se forjar uma cultura da coletividade, da alteridade, da dialogicidade e da complexidade. H de se aprender prticas coletivas de organizao, de produo e de distribuio da renda. H de se valorizar o trabalho criativo em detrimento do trabalho alienante. H de ter uma utopia militante (SINGER, 1998). O projeto da planetariedade reconhece a problemtica ecolgica como um desafio para os povos. Relevam-se prticas de produo que reconheam e executam a gesto integral dos recursos. Para tanto, h a necessria organizao doSrie Sociedade Solidria - Vol. 2 - 2005

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consumo solidrio que se ope aos desvios desenfreados do consumismo predatrio. O mercado entendido como um processo de intercmbio entre os povos e no um sistema de predomnio da lei do mais forte e do mais eficiente. O projeto planetrio necessita de um projeto educacional que eduque os indivduos a viver em sociedade enquanto projeto coletivo emancipatrio (HORKHEIMER e ADORNO, 1985). Para tanto, so necessrias aprendizagens que desenvolvam habilidades de dinmicas e avaliaes grupais. A educao necessita ser um processo que se centra no dilogo, na integridade do ser humano, na viso da totalidade, na compaixo (BOFF, 2000). O amor comprometido pela vida, pela terra e pelo futuro. Uma educao, uma poltica e uma economia que saibam ser solidrias com as geraes do presente e com as geraes futuras. Mas quem deve executar este projeto? So os trabalhadores organizados e a se organizar. So as instituies comprometidas com uma perspectiva social solidria, com a justia social, com a sustentabilidade e com a tica. So os homens e as mulheres que sabem e que aprendem metodologias, epistemologias, ideologias, tcnicas, polticas, capazes de gestar procedimentos superadores da excluso social (TVODJR, 2002). nesse quadro que queremos colocar a universidade. Como instituio pblica tem ela um compromisso fundamental com a construo de um projeto de sociedade solidria. A universidade deve ser um centro fluido de competncias solidrias, superando a indolncia da razo (SOUSA SANTOS, 2000). Esta se concretiza nas aes pedaggicas, administrativas, avaliadoras e projetivas da instituio. Para corresponder ao iderio da sociedade solidria e sustentvel, a universidade tem como compromisso o investimento em polticas de pesquisa que respondam aos anseios e necessidades da sociedade, como foi explicitado por Brando (1990). Nesse sentido, ela deve fazer-se presente, inserir-se, ser um agente forte de proposio e de gesto de polticas, organizaes e aes alternativas de consolidao de processos prticos e tericos relativos aos princpios solidrios, de cooperao e de sustentabilidade. Podemos propor que a universidade o local privilegiado necessrio para o desenvolvimento do pensamento. Compreendemos por pensamento a estrutura e a organizao que mobilizam os sujeitos cognoscentes a sedimentar uma concepo filosfica sobre si mesmos. O pensamento um conjunto de idias que representa um grande espelho que reflete a diversidade de rostos e de rastros que formam a multiplicidade de culturas dos sujeitos constituintes da territorialidade do espao onde ela est colocada. Nesse sentido, problemticas como a sustentabilidade biolgica, a diversidade cultural, a scio-economia solidria, a pedagogia da cooperao, os intercmbios entre os grupos humanos, o universo lingstico e representacional, os modelos de ao em diversos campos, as metodologias mobilizadoras e organizadoras, as polticas pblicas, a tica e a esttica, so exemplos de campos necessrios para a formao e o desenvolvimento de um pensamento que reflita a perspectiva da sociedade que se percebe autnoma (FREIRE, 1996). A universidade , assim, a ponta de lana condutora de um projeto social e epistemolgico capaz de superar as delinqncias socioeconmicas, ecolgicas e polticas dominantes nas relaes e nas estruturas sociais. Para a consecuo desses objetivos faz-se mister que a universidade seja aberta, dialgica, problematizadora. Que a poltica institucional seja participativa, propositiva, de32Srie Sociedade Solidria - Vol. 2 - 2005

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mocrtica. Que a cincia seja sbia, isto , aberta para outros saberes, configurada em bases que abranjam as mltiplas dimenses que estruturam as atitudes sociais, culturais e ambientais. nessa direo, como mostra Marcovitch (1998), a universidade necessita ser generosa, ter compromissos sociais e ambientais, orientar-se pela cultura e valores humanos, afirmar o pluralismo, a solidariedade, a tica e as artes. A universidade no pode prescindir da utopia, do senso da justia. Para tanto, a universidade necessita ser aberta, ouvir e ser ouvida, estar atenta aos movimentos histricos, s dinmicas dos movimentos sociais, aos rumos das polticas pblicas. Ao que propomos, a universidade uma instituio com fortes compromissos com a vida cotidiana e com a vida futura de povos. A universidade compromete-se na relao, no isoladamente. Para encerrar, afirmamos que a universidade uma instituio que tem como compromisso desenvolver um pensamento a partir da realidade e com os sujeitos com os quais convive, no para neles permanecer, mas se constituir na capacidade mobilizadora de competncias crtico-propositivas, para aes transformadoras que continuamente promovam a reflexo sobre o feito e o no realizado, vislumbrando caminhos novos para alternativas novas. Esse um desafio que podemos associar idia de macrotransio lanada por Lazlo (2001), quando analisa diversos cenrios que vivenciamos na histria da humanidade e que representam situaes extremadas de destruio das possibilidades da vida no planeta terra. Queremos absorver uma proposio que, para ns, significa uma leitura de mundo e nos alicera para a mobilizao criativa a fim de inventarmos relaes sociais e ambientais capazes de compreender a complexidade que formam, modificando essencial e profundamente a nossa conscincia e as nossas atitudes. Assim expressa Lazlo (2001, p. 64): Ao novo sentimento da urgncia de viver e agir com eficcia e eficincia, une-se uma percepo renovada do compromisso de cada um com todos os outros e com o futuro comum. Cada pessoa comea a perceber que um elo vital numa rede altamente complexa que, porm, profundamente sensvel s aes e valores humanos. As pessoas tm um senso de potencializao individual e uma espiritualidade mais profunda. Em nmero cada vez maior, elas comeam a ver o planeta como um organismo vivo e a si mesmas como elementos conscientes desse organismo. Esse pensamento expresso, na nossa compreenso, da superao da filosofia moderna que marcada pela reduo da realidade social e natural ao simples. Faz-se mister o desenvolvimento de pensamentos que aprendem e exercitam a complexidade das relaes das mltiplas dimenses que constituem os contextos vividos em territorialidades mais diversas e desiguais e projeta nossas competncias individuais e coletivas para a const