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COMISSÃO MARANHENSE DE FOLCLORE - CMF CORRESPONDÊNCIA COMISSÃO MARANHENSE DE FOLCLORE Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho Rua do Giz (28 de Julho), 205/221 – Praia Grande CEP 65.075–680 – São Luís – Maranhão Fone: : (0xx98) 3218-9924 As opiniões publicadas em artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores, não comprometendo a CMF. BOLETIM DA CMF Nº 35 DIRETORIA Presidente: Maria Michol P. de Carvalho Vice-presidente: Mundicarmo M. R. Ferretti Secretária: Roza Maria Santos Tesoureira: Lenir Pereira dos S. Oliveira CONSELHO EDITORIAL: Carlos Orlando de Lima Izaurina Maria de Azevedo Nunes Maria Michol Pinho de Carvalho Mundicarmo Maria Rocha Ferretti Roza Santos Sérgio Figueiredo Ferretti Zelinda de Castro de Lima SUMÁRIO EDIÇÃO: Maria Michol P. de Carvalho Mundicarmo M. R. Ferretti Roza Maria Santos REVISÃO DE TEXTO: Antonio Regino de Carvalho Neto VERSÃO PARA A INTERNET: www. cmfolclore.u fma.br ISSN: 1516-1781 AGOSTO 2006 Editorial .............................................................................................................................................................. 2 Semana de Cultura Popular 2006 .......................................................................................................................... 2 Um presente para Oxum ...................................................................................................................................... 3 Mundicarmo Ferretti Bancada dos Cachorros: Um ritual da Festa de São Lázaro no “Terreiro de Mamãe Oxum e Pai Oxalá” em São Luís–MA ...... 5 Maria Ivana César de Oliveira Bumba-Festa! Bumba-Trabalho! Bumba-Lazer! Bumba-Turismo! Bumba-Meu-Boi!? ................................................. 7 Maria do Socorro Araújo Culturas Popular e erudita nas linhas de maranhensidade ...................................................................................... 9 Antonio Evaldo A. Barros Novos personagens, outros significados: o Bumba-meu-boi de encantado em terreiros de mina de São Luís ............ 13 Gerson Carlos Pereira Lindoso Aspectos do Turismo contemporâneo: a produção do não-lugar na cultura ........................................................... 15 Karoliny Diniz Carvalho Janela do Tempo – São José de Ribamar .............................................................................................................. 17 Nuno Alvares Agenda de Cultura Popular - Festejo do Divino de 01/08 a 31/12/2006 ........................................................................... 19 Lenir Pereira dos S. Oliveira Resumos e resenhas: Monografias sobre cultura popular do Maranhão ................................................................. 18 Maria do Socorro Araújo Notícias, .................................................................................................................................................................................. 19 Roza Maria Santos Perfil Popular – Luís de França ............................................................................................................................................ 20 Carlos de Lima

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COMISSÃO MARANHENSE DE FOLCLORE - CMF

CORRESPONDÊNCIACOMISSÃO MARANHENSE DE FOLCLORE

Centro de Cultura Popular Domingos Vieira FilhoRua do Giz (28 de Julho), 205/221 – Praia Grande CEP 65.075–680 – São Luís – Maranhão

Fone: : (0xx98) 3218-9924

As opiniões publicadas em artigosassinados são de inteira

responsabilidade de seus autores,não comprometendo a CMF.

BOLETIM DA CMF Nº 35

DIRETORIAPresidente: Maria Michol P. de CarvalhoVice-presidente: Mundicarmo M. R. FerrettiSecretária: Roza Maria SantosTesoureira: Lenir Pereira dos S. Oliveira

CONSELHO EDITORIAL:Carlos Orlando de LimaIzaurina Maria de Azevedo NunesMaria Michol Pinho de CarvalhoMundicarmo Maria Rocha FerrettiRoza SantosSérgio Figueiredo FerrettiZelinda de Castro de Lima

SU

RIO

EDIÇÃO:Maria Michol P. de CarvalhoMundicarmo M. R. FerrettiRoza Maria Santos

REVISÃO DE TEXTO:Antonio Regino de Carvalho Neto

VERSÃO PARA A INTERNET:www.cmfolclore.ufma.br

ISSN: 1516-1781AGOSTO 2006

Editorial .............................................................................................................................................................. 2

Semana de Cultura Popular 2006 .......................................................................................................................... 2

Um presente para Oxum ...................................................................................................................................... 3Mundicarmo Ferretti

Bancada dos Cachorros: Um ritual da Festa de São Lázaro no “Terreiro de Mamãe Oxum e Pai Oxalá” em São Luís–MA ...... 5Maria Ivana César de Oliveira

Bumba-Festa! Bumba-Trabalho! Bumba-Lazer! Bumba-Turismo! Bumba-Meu-Boi!? ................................................. 7Maria do Socorro Araújo

Culturas Popular e erudita nas linhas de maranhensidade ...................................................................................... 9Antonio Evaldo A. Barros

Novos personagens, outros significados: o Bumba-meu-boi de encantado em terreiros de mina de São Luís ............ 13Gerson Carlos Pereira Lindoso

Aspectos do Turismo contemporâneo: a produção do não-lugar na cultura ........................................................... 15Karoliny Diniz Carvalho

Janela do Tempo – São José de Ribamar .............................................................................................................. 17Nuno Alvares

Agenda de Cultura Popular - Festejo do Divino de 01/08 a 31/12/2006 ...........................................................................19Lenir Pereira dos S. Oliveira

Resumos e resenhas: Monografias sobre cultura popular do Maranhão ................................................................. 18Maria do Socorro Araújo

Notícias, ..................................................................................................................................................................................19Roza Maria Santos

Perfil Popular – Luís de França ............................................................................................................................................20Carlos de Lima

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Boletim 35 / agosto 20062222222222

EditorialO número 35 do Boletim da Co-

missão Maranhense de Folclo-re, programado para agosto de 2006, de-verá ser lançado na Semana do Folclore- evento realizado anualmente pela Su-perintendência de Cultura Popular doestado do Maranhão em parceria com aCMF.

Esse número dá destaque ao Bum-ba-boi, manifestação que tem o seu pe-ríodo áureo no mês de junho, não desta-cada no número anterior, lançado natemporada junina, em virtude da ocor-rência naquele mês da Festa do Espíri-to Santo e, no mês de julho, do cente-nário da morte de Nina Rodrigues, doistemas que não poderiam passar “embranco” em nosso Boletim. O Boletim35 fornece ainda a relação de festas doDivino de São Luís programadas para osegundo semestre.

No número 35 o Boi aparece nos seusmúltiplos aspectos, inclusive na religiãoafro-brasileira, como Boi de Encantado,e no grupo de sambistas de Luís de Fran-ça (Perfil). Outro tema de destaque nes-se número do Boletim da CMF é o tu-rismo, destacado também na programa-ção do 12º Congresso Brasileiro de Fol-clore, que deverá acontecer em Natal(RN), de 29/8 a 1/9. Além de artigossobre turismo, o nº 35 divulga váriasmonografias de graduação defendidas,em São Luís, sobre esse tema. O temada “maranhensidade”, tratado no Bole-tim 31, reaparece em outro artigo deAntônio Evaldo.

Aproveitando a realização em agostoda Festa de São José de Ribamar, a ses-são Janela do Tempo reedita o artigo SãoJosé de Ribamar, do jornalista Nuno Ál-vares, publicado em 1867, no Semaná-rio Maranhense. E, devido a grandeimportância da cultura negra no Mara-nhão, o nº 35 traz dois artigos sobre reli-gião afro-brasileira.

Em notícias foram registrados even-tos significativos para a cultura popularmaranhense ocorridos ou programadosem torno do mês de agosto.

Esperamos continuar a nossa “conver-sa” no próximo número do Boletim, quedeverá ser lançado em dezembro, tra-zendo vária matérias sobre a temáticada temporada natalina e alguns traba-lhos apresentados no 12º Congresso Bra-sileiro de Folclore por membros daCMF.

Semana da Cultura Popular 2006

Domingo • dia 20/0814h Abertura da Semana da Cultura Popular com a “Tarde da Criança”• Casa da FÉsta / CCPVDF15h Cine Popular • Auditório Rosa Mochel da Casa da FÉsta / CCPDVF15h30 Oficina de mímica “A Arte do Palhaço” • Pátio Valdelino Cécio da Casa da

FÉsta / CCPDVF16h30 Espetáculo teatral infantil “Um dia de clown” • Pátio Valdelino Cécio da Casa

da FÉsta / CCPDVF17h30 Apresentação do Tambor de Crioula Mirim da Madre Deus • Pátio Valdelino

Cécio da Casa da FÉsta / CCPDVFSegunda-feira • dia 21/08

10h Cine Popular • Casa da FÉsta, Casa de Nhozinho e Casa do Maranhão15h Cine Popular • Casa da FÉsta, Casa de Nhozinho e Casa do Maranhão

Projeto Farinhada: Demonstração do processo de fabricação da farinha, Ofici-na de confecção de cofo, abano e meançaba e Oficina de dança “Tambor deCrioula” • Pátio externo da Casa do Maranhão

18h Apresentação do espetáculo teatral “A Festa da Clareira Maior” • Pátio daCasa de Nhozinho

19h30 Apresentação do Tambor de Crioula do Piqui da Rampa, de Vargem Grande •Pátio da Casa de NhozinhoTerça-feira • dia 22/08 (Dia Internacional do Folclore)

09h Quadro Coreográfico “Vistas do porto e vivência em teatro de sombras” •Salão de Eventos da Casa do Maranhão - participantes: alunos da UnidadeIntegrada Fernão de Magalhães

10h Cine Popular • Casa da FÉsta, Casa de Nhozinho e Casa do Maranhão14h Seminário "Patrimônio Nacional e Identidades Locais" • Auditório Rosa Mo-

chel da Casa da FÉsta / CCPDVF - Palestrantes: Ricardo Gomes Lima e Ma-ria Dina Nogueira

14h30 Oficina de dança e toque com o “Terecô das Velhas” • Pátio da Casa de Nhozinho15h Cine Popular • Casa de Nhozinho e Casa do Maranhão

Projeto Farinhada: Demonstração do processo de fabricação da farinha, Ofici-na de confecção de cofo, abano e meançaba e Oficina de dança “Tambor deCrioula” • Pátio externo da Casa do Maranhão

18h Apresentação do Terecô das Velhas, com aboio, do povoado São Simão / Ro-sário • Pátio Valdelino Cécio da Casa da FÉsta / CCPDVFQuarta-feira • dia 23/08

10h Cine Popular • Casa da FÉsta, Casa de Nhozinho e Casa do Maranhão14h Seminário "Patrimônio Nacional e Identidades Locais" • Auditório Rosa Mo-

chel da Casa da FÉsta / CCPDVF - Palestrantes: Ricardo Gomes Lima e Ma-ria Dina Nogueira

15h Cine Popular • Casa de Nhozinho e Casa do MaranhãoProjeto Farinhada: Demonstração do processo de fabricação da farinha, Ofici-na de confecção de cofo, abano e meançaba e Oficina de dança “Tambor deCrioula” • Pátio externo da Casa do Maranhão

18h Forró pé de serra de Inaldo Bartolomeu • Pátio da Casa de NhozinhoQuinta-feira • dia 24/08

10h Cine Popular • Casa da FÉsta, Casa de Nhozinho e Casa do Maranhão14h Seminário "Patrimônio Nacional e Identidades Locais" • Auditório Rosa Mo-

chel da Casa da FÉsta / CCPDVF - Palestrantes: Ricardo Gomes Lima e Ma-ria Diana Nogueira

15h Cine Popular • Casa de Nhozinho e Casa do MaranhãoProjeto Farinhada: Demonstração do processo de fabricação da farinha, Ofici-na de confecção de cofo, abano e meançaba e Oficina de dança “Tambor deCrioula” • Pátio externo da Casa do Maranhão

18h Lançamento do Portal da Superintendência de Cultura Popular / SECMA •Pátio Valdelino Cécio da Casa da FÉsta

19h Apresentação do Terecô de Igaraú • Pátio Valdelino Cécio da Casa da FÉstaSexta-feira • dia 25/08

10h Cine Popular • Casa da FÉsta, Casa de Nhozinho e Casa do Maranhão14h Seminário "Patrimônio Nacional e Identidades Locais" • Auditório Rosa Mo-

chel da Casa da FÉsta / CCPDVF - Mesa redonda com participantes locais -Coordenação Ricardo Gomes Lima

15h Cine Popular • Casa de Nhozinho e Casa do MaranhãoProjeto Farinhada: Demonstração do processo de fabricação da farinha e Oficinade confecção de cofo, abano e meançaba • Pátio externo da Casa do Maranhão

18h Apresentação do Tambor de Crioula Tijupá • Salão de Eventos da Casa doMaranhão

19h Apresentação da Dança do Lili e outras danças de Caxias / MA • Salão deEventos da Casa do Maranhão

20h Show Musical com o grupo Urubu Malandro • Salão de Eventos da Casa doMaranhãoLançamento do Boletim da Comissão Maranhense de Folclore nº 35.

Patrimônio popular: uma questão de identidade

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Boletim 35 / agosto 2006 3333333333

Ouvi falar mais de uma vez que a reli-gião afro-cubana acabara depois do re-

gime socialista. Conhecendo a persistênciadas tradições religiosas africanas no Brasil,apesar da imposição do catolicismo e de ou-tras dificuldades enfrentadas pelos negrospara dar continuidade a elas, quando moreiem São Paulo (1987-1991), fui duas vezes aCuba em companhia de Ferretti e de outrospesquisadores. Entre outras coisas, estavaminteressados em conhecer o que restara da-quela religião. Numa dessas viagens assisti-mos em Santiago de Cuba, um ritual na casade um pai-de-santo palero (congo-angola),quando tive a oportunidade de falar comOxum. Na outra, fomos a uma festa paraOxum, em Havana, e desta vez Xangô faloucom Ferretti. Publicamos um artigo com asnossas impressões dessas viagens (FER-RETTI, S e FERRETTI, M, 1990). Voufalar aqui da minha conversa com Oxume de seus desdobramentos posteriores.

Chegando a Santiago de Cuba, umadas cidades de maior concentração denegros do país, e entrando em contatocom pessoas de religião de origem africa-na, conhecemos um pai-de-santo que es-tava querendo dar uma “obrigação” a seusorixás, mas ainda não dispunha de re-cursos suficientes para custeio de todasas despesas. Como o nosso grupo se com-prometeu a ajudá-lo, a obrigação foi rea-lizada durante a nossa permanência nacidade e nós tivemos a oportunidade de ob-servar um ritual religioso afro-cubano. Comessa colaboração foi possível comprar: umcabritinho, um galo, um pombo, algumas gar-rafas de rum, amendoim e vários doces.

De noite, quando chegamos ao localonde ia ser realizado o ritual, vimos que acasa onde residia o sacerdote havia se trans-formado em um templo. A matança foi rea-lizada nos fundos da casa, onde já estava apanela com o assentamento de ancestrais.Os animais sacrificados foram depois cozi-dos e nos foram oferecidos durante o toque,que foi chamado de bembê por uma meninada casa. Eu e um dos nossos companheirospreferimos ficar na sala durante a matança,mas, em dado momento, o pai-de-santo veioaté nós, trazendo nas mãos um pombo ain-da vivo, e passou rapidamente em nossoscorpos o daquele animal.

O toque foi realizado na sala da frente,onde foi armado um altar e a bancada (mesano chão), e podiam ser vistas as jarras dosorixás homenageados e vários pratos comoferendas (“comidas secas”). Durante o to-

UM PRESENTE PARA OXUMMundicarmo Ferretti*

que uma moça recebeu Iemanjá, um rapazrecebeu Xangô e um outro recebeu Oxum.A primeira não foi paramentada e foi logoembora. Um dos pesquisadores brasileiros meexplicou que a moça dançava num balé fol-clórico e que não tinha o mesmo grau iniciá-tico dos outros. Alguém amarrou uma faixaamarela na cabeça e outra na cintura do moçoque recebeu Oxum. Xangô recebeu uma fai-xa vinho, com lenços coloridos penduradosem ponta, que foi amarrada na cintura deseu filho. Fazia repetidamente um gesto comas mãos abaixo da cintura, o que me foi expli-cado pelo mesmo pesquisador como estandoacentuando o seu lado erótico.

Os tambores batá, tocados no colo dostocadores e não sobre cavaletes como os aba-tás de terreiros maranhenses, tinham um

diâmetro menor no meio. A música era ale-gre e tinha-se a impressão de que dançavamcom os orixás, não só os filhos-de-santo, mastambém outros membros da família e ami-gos do pai-de-santo. Num momento do ritu-al, várias pessoas da assistência levaram al-gum dinheiro para a Oxum e ela depois, parasurpresa minha, deu quase todo a uma pes-soa da assistência, que, por sinal, era umabrasileira que estava conosco. Em outromomento a Oxum passou a distribuir, demodo nada eqüitativo, os doces que lheshaviam sido ofertados. Eu recebi muitos,outros receberam poucos e houve quem nãorecebesse nada. Depois saiu circulando pelosalão em companhia de sua ajudante (ekedi),com as mãos na cintura e andar faceiro, dan-do risadas bem parecidas com as que ouvi deuma pombagira em ritual de umbanda. Aquie acolá abraçava e/ou falava com algum dospresentes. Chegando na minha frente, pas-sou as mãos nos meus olhos e disse para eunão sair sem falar com ela. Concentrada naobservação do ritual, não vi quando a Oxumsaiu da sala, mas, olhando para outro com-

partimento da casa, vi que ela estava ali, sen-tada em um banquinho, tal como Preto-Ve-lho em um terreiro de umbanda de SãoLuís, e que sua ajudante estava ao seu lado.

Quando que se afastou uma pessoa quefalava com ela, me aproximei. A Oxum, de-pois de perguntar com quem eu morava (naépoca com meu marido e meu filho), me fa-lou que estava para acontecer algo tão ruimcom alguém da minha família que moravacomigo que eu iría chorar um ano inteiro.Mas logo me tranqüilizou dizendo que íaevitar, mas para isso, ao chegar no Brasil, euprecisava fazer uma oferenda. Mandou quecomprasse cinco doces amarelos, regassecom mel de abelha, botasse “axé de Orumilá”,colocasse sobre ela - a Nossa Senhora da Cari-dade, padroeira de Cuba - com a qual era sin-

cretizada, acendesse uma vela e chamassepor ela, pedindo a sua ajuda. Como nãoentendi bem a fala dela (geralmente umespanhol misturado com palavras africa-nas) e não conhecia todos os ingredientesnecessários, a moça que a acompanhavaescreveu na cadernetinha que eu tinhana mão o que eu deveria fazer1. Continu-ando confusa perguntei a ela o que era“axé de Orumilá” e ela respondeu: “per-gunte a um padriño (pai-de-santo)”.

Naquela época, o meu envolvimentocom a religião de origem africana era bempequeno e eu nunca havia feito ou meimaginado fazendo uma oferenda a ori-

xá. Mas, voltando a São Paulo, não conseguiesquecer as palavras de Oxum. Como o meufilho fora para São Luís e ia passar lá o Car-naval, comecei a ficar nervosa, com medo deque alguma coisa ruim acontecesse com ele.E, depois de alguma relutância, resolvi fazero que me fora recomendado por Oxum emCuba. Procurando saber o que é “axé de Oru-milá”, recorri mais uma vez ao meu amigopesquisador, que levou a pergunta a um pai-de-santo paulista e trouxe como resposta onome de várias coisas que são oferecidas nocandomblé a Orumilá. Mas disse que o pai-de-santo me aconselhou a solicitar a ajudade Xangô. Deveria pegar um orobô (semen-te oferecida na África a Xangô), levantar asmãos e olhar para o sol com ele nas mãos,pedindo a ele para me fazer ver as coisas an-tes delas acontecerem e aceitar o que nãofosse possível mudar. Em seguida mastigas-se a semente e passasse no meu corpo.

Apesar de considerar aquele conselhomuito sábio e mais fácil de por em prática,não desisti da oferenda para Oxum e conti-

* Antropóloga; Vice-presidente da Comissão Maranhense de Folclore.1 Na época uma amiga me aconselhou a guardar em segredo o ensinamento recebido de Oxum (não sei se para não dividir com os outros ou se para não quebrar a sua força),

mas não segui o conselho, embora, tenha deixado de revelar o outro nome do “axé de Orumilá”...

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Boletim 35 / agosto 20064444444444

CONTINUAÇÃO

nuei procurando o Orumilá”. Um dia, vol-tando da USP, passei em frente a uma lojade umbanda, no Largo de Pinheiros, e resol-vi entrar e procurar o “axé de Orumilá”. Apessoa que me atendeu, que parecia ser adona da loja, depois de me olhar com surpre-sa, me entregou um vidrinho contendo al-gumas gramas de um pó amarelo. Notandoque eu ficara surpresa com o preço do pro-duto, ela me esclareceu que era africano, ti-rado de uma árvore. Perguntei em seguidapara que costumava ser procurado e ela merespondeu: “para coisas de destino”. Satis-feita com a resposta e certa de ter encontra-do o que procurava, levei o vidrinho paracasa, comprei os outros ingredientes, fiz aoferenda e fiquei mais aliviada.

Mas, logo que a vela acabou de queimar,tive que recorrer ao meu amigo pesquisadorpara saber onde entregar o presente (ondefazer o despacho). Fui aconselhada a colocá-la num rio, mas, como achei a tarefa muitodifícil, ele me disse que poderia deixá-la norio que passa no Campus da USP (onde eu emeu marido estávamos fazendo doutoradoe ele era, professor). Ao chegar lá vi sob umaárvore várias frutas, o que me fez compreen-der que outras pessoas escolhiam aquele lu-gar para suas oferendas a orixás.

Cerca de 18 anos depois, quando estavame preparando para ir a São Paulo acompa-nhando o meu marido, que deveria ir pelaterceira vez em 8 meses, para o Hospital doCoração, devido um aneurisma na aorta, re-cebi uns colares em sonho e um presente deaniversário, que logo associei a orixás, que mefizeram lembrar a Oxum de Cuba e o presen-te oferecido a ela. No sonho eu havia recebi-do, não sei de quem, um colar nitidamenteinspirado nos que são usados na mina, porpessoas ligadas a Xangô, e dois que lembra-vam os usados no candomblé por filhos deOxum e de Oxossi. O primeiro, de contasvermelhas e brancas, estava quebrado (as con-tas precisavam ser reenfiadas); o segundo ti-nha vários fios de miçanga amarela e algunsdeles íam se rompendo ao menor movimentodas minhas mãos; e o terceiro, igual ao anteri-or, mas de cor turquesa, estava inteiro, masparecia não ter nada a ver comigo.

No dia seguinte recebi de uma amiga, depresente de aniversário, duas velas amarelasem panelinhas de barro, o que reforçou omeu pensamento em Oxum e a minha deci-são de oferecer outro presente a ela. De noi-te comprei o que precisava para o presentede Oxum, que pretendia fazer na manha se-guinte, e comecei a arrumação das malas,mas resolvi interromper esse trabalho paraenfiar umas contas para Xangô. Sabia queguardara algumas contas vermelhas que fo-ram de um colar de uma das minhas irmãs eque deveria ter algumas contas brancas. Ocolar não ficou como eu gostaria: alternei ascontas vermelhas com umas não tão bran-

cas como deveriam, que eu havia compradoem Salvador e em São Luís. No outro dia eutinha um colar novo, representando Xangô,para usar na viagem.

De manhã cedo, antes de começar a pre-paração da oferenda para Oxum, uma amigaque é mãe-de-santo me telefonou só para sa-ber como estávamos – deve ter visto ou pres-sentido alguma coisa ruim conosco. Quandofalei do problema de saúde, da viagem e que iafazer uma oferenda para Oxum, ela disse paraesperá-la, pois iria cantar e rezar para Oxum efazer também alguma coisa para Obaluaiê(orixá da saúde) e para Ogum (dono de suacabeça e orixá que representa o vodum domeu marido). Chegou logo depois, trazendoa ekedi de Oxum, que é minha afilhada.

Nem é preciso dizer que o segundo pre-sente para Oxum foi melhor do que o primei-ro. Além de contar com o axé de duas pessoasiniciadas e devotadas ao culto aos orixás, teve:reza e canto em ioruba, acompanhados por´maraca´ cubana; 5 velas de 12 horas e 1 de 7dias; recipiente de barro; e, além da estampada Nossa Senhora da Caridade (cubana), umaimagem de Nossa Senhora de Nazaré (tam-bém sincretizada com Oxum), que me foipresenteada por um pai-de-santo de Belém(PA). E desta vez, tudo foi oferecido a Oxumcom abundância, até mesmo o “axé de Oru-milá” que guardara comigo desde o primeiropresente. E, apesar de atribulada e totalmen-te envolvida com o que estava sendo realiza-do, não pude deixar de apreciar a beleza da-quele ritual e de lamentar não estar sendofotografado ou registrado em vídeo.

Tentando depois entender o significadodos colares no meu sonho, achei que, embo-ra os colares que recebera em sonho fossemuma espécie de “voltas” (usados como enfei-te e não para proteção, ao contrário dos quesão denominados “guias” e “fios de conta”),significavam em primeiro lugar a minha re-lação com três orixás e a proteção que espe-rava deles. Com Oxum a minha relação sur-gira do candomblé e era anterior a minhaida a Cuba. Começou quando fui madrinhade uma de suas filhas, foi reforçada com opresente oferecido a ela ao voltar de Cuba efoi reafirmada ao ser madrinha de mais umade suas filhas. Com Xangô a minha relaçãose deu na mina, por ele ser o chefe da Casade Nagô, ser considerado na Casa das Minaso mesmo Badé Queviossô e apresentadonessa última como o protetor de todos ospesquisadores e professores. Com Oxossi aminha relação ocorrera também no candom-blé, às vésperas da minha viagem para SãoPaulo, onde fiz doutorado, quando, numafesta de deká de uma de suas filhas, ele, in-corporado em um pai-de-santo que passavapor São Luís, me apontou para ekedi. Comopor diversas razões não pude assumir o car-go e depois passei a tocar cabaça na Casa dasMinas, não me considerava relacionada a êle

e muito menos merecedora de sua proteção– daí a minha estranheza no sonho em rela-ção ao colar turquesa.

Desde a época do meu primeiro presen-te a Oxum eu passara a encarar Oxum eXangô como meus protetores: Xangô, alémde protetor dos professores e pesquisadores,podia mostrar as coisas antes que elas ocor-ressem e ajudar a aceitar o que não poderiaser mudado; Oxum, atuando junto a Oru-milá, poderia impedir que desgraças aconte-cessem. E talvez eles estiveram juntos naépoca do meu primeiro presente a Oxum eno sonho que me levou a oferecer a ela umsegundo presente porque suas missões sãoou me parecem complementares. Mas porque no sonho o colar que representava Xan-gô e a mina estava quebrado, enquanto pelomenos um dos que representavam o candom-blé (de vários fios de miçanga) estava intei-ro? Será que isso teria alguma coisa a vercom o fato da minha guia (colar de proteçãoda mina) e a do meu marido estarem na Casadas Minas para serem consertadas? Mas, sea fragilidade do colar amarelo for interpreta-do como sinal da necessidade de oferecer umpresente para Oxum a fim de obter delamaior proteção, não teria que admitir a exis-tência de uma necessidade ainda maior defazer na mina, com o mesmo propósito, umaoferenda a Xangô/Badé Queviossô? E, seassim fosse, o colar enfiado para Xangô ependurado no pescoço na viagem a São Pau-lo seria suficiente? Pelo sim ou pelo não,antes de viajar deixei varias velas de 7 dias naCasa das Minas para serem acesas para Ave-requete, vodum da família de Queviosso que,por ser jovem, tem a função de fazer a liga-ção com ele e todos os mais velhos...

Mas, alem de Oxum, Xangô, Obaluaiê,Ogum, Oxossi e Averequete, muitas forçasespirituais foram invocadas por nós, por nos-sos familiares e amigos, no caso do meu mari-do. Por isso temos também muito que agra-decer a Deus, ao Divino Espírito Santo, aoMenino Jesus, a Nossa Senhora, São José deRibamar, a São Cosme e Damião, a SantoAntonio, a Frei Galvão e a tantos outros san-tos, orixás, voduns, encantados, espíritos deluz e ancestrais que, certamente, nos ajuda-ram a enfrentar mais um problema de saúdee que contribuíram para que ele fosse detec-tado a tempo e que os médicos encontrassema melhor solução para o caso. Muitos foramos pedidos feitos por pessoas de diversos cre-dos, e muitos foram os santos que nos ajuda-ram, pois entre as forças espirituais não exis-tem as disputas de poder tão comumenteencontradas entre seus devotos.

REFERÊNCIAS

FERRETTI, Sergio & FERRETTI, Mundi-carmo. Cuba: as religiões de origem africana– impressões de viagem. Comunicações doISER. Rio de Janeiro, ISER, 9 (37), p. 26-35.

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Boletim 35 / agosto 2006 5555555555

BANCADA DOS CACHORROSUm ritual da Festa de São Lázaro no “Terreiro de

Mamãe Oxum e Pai Oxalá” em São Luís–MAMaria Ivana César de Oliveira*

Este ensaio tem por objetivo a análise deum ritual conhecido entre os iniciados e pra-

ticantes do tambor de mina - religião afro-des-cendente no Maranhão - como Bancada ou Ban-quete dos Cachorros e Bancada ou Obrigaçãode São Lázaro, onde são oferecidos alimentos acachorros em homenagem ou em devoção a SãoLázaro, Santo da Igreja Católica sincretizado namina maranhense como o vodum Acossi Sapata,chefe da família de Dambirá, que correspondeno candomblé a Obaluaiê e a Omulu, e que éconsiderado o patrono espiritual da legião prote-tora dos enfermos em geral, e executor de justiçade todos os transviados e pervertidos.

Segundo Sergio Ferretti, de acordo com amitologia da mina, os voduns da família de Dam-birá são reis caboclos que combatem a peste eas doenças. Alguns deles se espalharam pelomundo, ficaram doentes e passaram a morarseparados dos outros. Acossi é curador e cien-tista. Ele conhece remédios para todas as doen-ças e comanda outros cientistas. Há cânticosexplicando que ele ficou doente por estar tra-tando as pessoas. O trono era dele, mas, comoele é doente, foi assumido por seu irmão Azon-ce (Xapanã na Casa de Nagô). Há um cânticona mina-jeje em que Nochê Naê (a grande mãeda mina-jeje) une os irmãos sãos e os doentes,que moram separados. No dia de São Sebasti-ão, as vodunsis que entram em transe com eles,dançam com os dedos das mãos tortos, como sefossem aleijados. Fala-se que Acossi não tempernas e nem os dedos das mãos e que aparecedeformado para mostrar o que a doença faz,pois só se cura uma doença sabendo-se comoela é. Mas, segundo dona Denis, atual chefe daCasa das Minas, ele se apresenta a alguns vi-dentes com o corpo manchado por doenças,mas a outros com o corpo “limpo” (FERRETTI,1986, p. 110-115).

Nos terreiros de mina do Maranhão o ritualdenominado Bancada ou Banquete dos Cachor-ros e Bancada de São Lázaro é encarado comouma obrigação (como os iniciados e praticantesno culto denominam as atividades espirituaisque não podem deixar de ser realizadas) emhomenagem a entidades sobrenaturais funda-mentais para o “compartilhamento” das cren-ças e valores religiosos. No caso específico damina maranhense, as oferendas na forma dealimentos são destinadas, como já dissemos, àsentidades da família de Acóssi Sapatá.

Segundo Câmara Cascudo (1962) e SérgioFerretti (1986) nos Estados do Ceará e do Piauíexiste um ritual conhecido como Jantar dosCachorros. No Maranhão o ritual apresenta al-gumas especificidades e é realizado principal-mente em terreiros de religião afro-brasileira oupor pessoas ligadas a eles, mas varia muito deum terreiro para outro. É realizado principal-

mente durante festas em homenagem a entida-des espirituais e a santos católicos a elas associ-ados, que são invocados principalmente pararesolver problemas de saúde: São Sebastião (emjaneiro), São Lázaro (em fevereiro) e outras.

O TERREIRO DE MAMÃE OXUM E PAIOXALÁ: DO CAMPUS PARA O CAMPO

No ano de 2001 desenvolvemos trabalho decampo (para fins de elaboração de monografiade conclusão do Curso de Ciências Sociais, daUniversidade Federal do Maranhão) no Terrei-ro de Tambor de Mina Mamãe Oxum e PaiOxalá, localizado no bairro da Vila Nova, nacapital do estado do Maranhão. O terreiro demina da Vila Nova, fundado há aproximada-mente 25 anos, é apresentado por seu pai-de-santo como tendo raízes no já extinto Terreiroda Trindade, de Maria Lopes.

O Terreiro dispõe de um conjunto de cons-truções e de espaços sagrados destinados aoculto dos voduns, orixás, caboclos, pretos ve-lhos, exus e de outras entidades espirituais. Éconsagrado a dois orixás (entidades africanas).Dentre as construções, destaca-se o barracão,como é conhecido pelos iniciados e praticantesdo culto o local destinado à realização dos ritu-ais, entre eles a Bancada dos Cachorros.

Como grande parte dos terreiros do Mara-nhão, o Terreiro de Mamãe Oxum e Pai Oxalá éum terreiro de mina e essa prática religiosa écaracterizada pelo transe ou possessão e peloculto a entidades sobrenaturais recebidas pe-los praticantes iniciados ou não no culto, gene-ricamente denominados de filhos ou filhas desanto. Inúmeros rituais são executados ali nodecorrer do ano, especialmente durante as cha-madas festas de santo - culto às divindades afri-canas e a santos da Igreja Católica com elassincretizadas. Os rituais realizados no interiordesse terreiro são marcados basicamente pelamanifestação de encantados, como localmenteos praticantes da mina denominam as entida-des espirituais, que ao som dos tambores e ou-tros instrumentos musicais dançam e cantam.Nossa pesquisa monográfica voltou-se essenci-almente para a compreensão do universo dasrepresentações e práticas relacionadas à curade males físicos e espirituais, realizada duranteos rituais religiosos no Terreiro da Vila Nova,como é também conhecido2. Verificamos queessas representações e práticas constituem umuniverso próprio circunscrito a uma visão demundo compartilhada pelos praticantes da minamaranhense.

Dentre as inúmeras festas realizadas noTerreiro fizemos observação direta, entrevistascom informantes chave, e anotações em diáriode campo no mês de maio dos anos de 2001 e

2002, durante os festejos em homenagem a SãoLázaro - Santo da Igreja Católica, sincretizadocom o vodun Acóssi Sapatá, conhecido no can-domblé como Obaluaê ou Omulu, que está di-retamente associado à cura de doenças.

FESTA DE SÃO LÁZARO:UM RITUAL DE OBRIGAÇÃO

No Terreiro de Mamãe Oxum e Pai Oxalá afesta em homenagem a São Lázaro é, como jádissemos, considerada entre os iniciados e pra-ticantes como uma obrigação para Acóssi Sapa-tá. De acordo com o líder religioso da Casa, PaiJoão da Vila Nova, como é mais conhecido, afesta (obrigação) para Acóssi é considerada aliuma necessidade em virtude da existência dealgumas doenças, especialmente de pele, quenormalmente acometem alguns filhos-de-santoiniciados no culto, durante os dias que antece-dem os rituais em homenagem aos voduns edurante a sua realização. Segundo aquele pai-de-santo, esse fato decorre de manifestaçõesespirituais das entidades sobrenaturais ligadasà família de Acóssi Sapatá, caracterizadas pelasua incorporação ou irradiação, como denomi-nam os momentos do transe e possessão3. Alémdessa explicação para a ocorrência das doen-ças e para o culto aos Acossis, outras tambémsão acionadas para justificar a devoção a SãoLázaro, dentre elas a “determinação” do Guia(a entidade espiritual que lidera os cultos noTerreiro) para a realização da festa.

Segundo ainda o depoimento daquele líderreligioso, a exigência para a realização da festa eo número significativo de devotos daquelas enti-dades no Terreiro deve-se também ao fato deleter sido construído num local propício para amanifestação de entidades sobrenaturais lidera-das por Acóssi, pois está situado, como já menci-onamos, no bairro da Vila Nova, onde se localizao Hospital Aquiles Lisboa, especializado no tra-tamento dos pacientes com hanseníase. Nestaunidade hospitalar, bem como em outras quecuidam de doentes de hanseníase, a proteçãoespiritual está sob a evocação de São Lázaro.

No Terreiro de Mamãe Oxum e Pai Oxalá afesta em homenagem a Acóssi Sapatá aconteceanualmente entre os dias 29 e 31 de maio. Du-rante esses três dias, vários momentos são ritu-alizados e vivenciados pelos iniciados e prati-cantes do culto4.

BANCADA DOS CACHORROS: UMAOBRIGAÇÃO PARA O “MÉDICO DE

LÁZARO”

A Bancada dos Cachorros é um ritual quevaria bastante nos terreiros de mina maranhen-ses. Registram-se casas de culto onde são ofere-

* Graduada em Ciências Sociais pela UFMA; Presidente da Associação de Cultos Jeje-nagô, mantenedora do Terreiro de Mamãe Oxum e Pai Oxalá.2 Dentre os rituais existentes para a prática de cura de males físicos e espirituais, observamos as chamadas: Sessão de Caboclo, Sessão Astral e Tambor de Cura ou

Pajelança. Para um aprofundamento, consulte-se: OLIVEIRA (2002).3 Como ele mesmo afirma, as vodunsis “são muito acometidas com mal de pele” – refeindo-se a erupções cutâneas que surgem em diferentes regiões do corpo dos iniciados

ou devotos de São Lázaro durante os dias de festejo.4 O festejo em devoção a São Lázaro, engloba diferentes rituais que são realizados nos três dias de festa. Genericamente podem ser descritos da seguinte maneira: toques

de tambor de mina, obrigação fechada para os filhos de santo, salva para Obaluaê ou Omulu, bancada dos cachorros, “passagem” de Acossi, visita ao Hospital AquilesLisboa e ladainha.

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CONTINUAÇÃO

cidos alimentos aos cachorros e crianças ao mes-mo tempo e num mesmo local. No Terreiro deMina Mamãe Oxum e Pai Oxalá os alimentossão servidos separadamente às crianças e paraos cachorros. O oferecimento de alimentos aoscachorros é explicado pelos iniciados e pratican-tes da Casa, devido o cachorro ser consideradoali um “animal sagrado”, pois, segundo narrativascatólicas da vida de São Lázaro, o cachorro aolamber suas chagas permitia a cura de sua doen-ça, daí porque é chamado no terreiro de “médicode Lázaro”. Esta relação entre São Lázaro e ocachorro é visível, por exemplo, nas imagens en-contradas nos altares dos terreiros e das igrejas,que representam o Santo em flagelo, apoiadopor muletas e acompanhado por um cachorro.

De acordo com outros relatos etnográficos,a Bancada dos Cachorros é geralmente ofereci-da por devotos em pagamento de promessa e éconstituída por um banquete, com comidasvariadas, para cachorros previamente escolhi-dos, em número impar de: 7, 9, 11 ou 13 (FER-RETTI, 1986, p. 147).

No Terreiro da Vila Nova a Bancada, é orga-nizada no chão do barracão. O ritual inicia-sealguns dias antes com os cuidados com as lou-ças onde serão servidos os alimentos. A lava-gem das louças específicas para o ritual da Ban-cada é feita por filhos-de-santo escolhidos pelolíder religioso do Terreiro. No dia da Bancadados Cachorros a comida é preparada pelos ini-ciados na cozinha que fica localizada no mes-mo terreno de outras construções e espaços sa-grados do Terreiro. De acordo com o depoimen-to do Pai Joãozinho da Vila Nova, a comida pre-parada para os cachorros difere daquela queserá servida, como obrigação, durante os rituaisaos iniciados no culto:

“(...) ao meio-dia, na casa, temos duas obri-gações, uma é a Bancada dos Cachorros ea outra é a comida de obrigação para osfilhos-de-santo. A gal inha que é feita paraa Bancada é cozida separada da comidados filhos-de-santo. A comida dos filhos-de-santo não leva nada dos temperos quenormalmente eles comem no dia-a-dia”.

A comida que será servida durante a Banca-da é preparada sob a supervisão permanente dolíder religioso do Terreiro, que acompanha a mor-te, o corte dos animais e tempera os alimentosque serão servidos no ritual. Nesse dia, somentetêm acesso à cozinha sete iniciados, previamen-te escolhido pelo Pai Joãozinho da Vila Nova.

Segundo dados de observação direta e de-poimentos colhidos durante o ritual, o preparoda comida tem o que se denomina “ciência”, ouseja, tem princípios e regras especiais que ori-entam a sua elaboração. Os iniciados fazemreferência, por exemplo, a maneira como deveser morto o frango para a Bancada dos Cachor-ros. No caso da Bancada, o frango a ser abatido,por exemplo, não pode se debater para não semachucar, o que acabaria tornando-o imprópriopara ser entregue como alimento ao Santo. Damesma maneira, o corte dos pedaços dos fran-

gos para a Bancada difere do realizado em ou-tras situações. Essas exigências constituem oque se denomina preceitos da Casa, ou seja, oconjunto de crenças e valores referenciados empráticas de devoção às entidades sobrenaturais.

Preparadas as comidas que serão servidasaos cachorros – arroz, frango cozido, carne assa-da, macarrão, torta de camarão, farofa e doce degoiaba, como sobremesa, inicia-se a preparaçãoda bancada (mesa ritual) com a colocação deuma toalha amarela estendida no chão do barra-cão5. A toalha de cor amarela mede aproximada-mente doze metros de cumprimento por dois delargura. Sobre esta mesa improvisada no chão,são colocados um candelabro com uma vela ama-rela acessa, uma tigela contendo vinho tinto, umaoutra com farinha seca, uma pequena bacia comágua e uma toalha de mão branca. Todas as eta-pas de organização da bancada (mesa) são con-duzidas pela guia da casa (a iniciada no cultoresponsável pela condução dos rituais). Dentroda hierarquia dos terreiros de mina, a função deguia é normalmente ocupada pela iniciada maisvelha da casa, considerada possuidora dos fun-damentos religiosos da mina6.

Depois de preparado o local para o ritual daBancada é a hora de acomodar os filhos-de-san-to - iniciados encarregados de servir os cachor-ros. A Bancada é preparada para servir setecachorros machos, por sete iniciados homensou mulheres, escolhidos pelo líder religioso, nor-malmente entre devotos de São Lázaro ou fi-lhos da Casa que possuem “fundamentos religi-osos” associados à família de Acóssi7. Na cabe-ceira da bancada senta-se a guia e do outro ladofica a contra-guia. Os filhos-de-santo sentam-seem volta da mesa aguardando a determinaçãopelo líder religioso o momento de servir os ali-mentos. Os cachorros, que aguardavam fora doterreiro, depois de preparados com os seus res-pectivos donos, são em seguida apresentadosao líder religioso para serem servidos no ritual.O preparo dos cachorros consiste num banhocom água e outros produtos que garantam alimpeza do animal. Na Casa, os cachorros esco-lhidos participam todos os anos do ritual e sãoconsiderados pelo líder religioso como “inicia-dos” e “praticantes” do culto, pois são cachorrosde promessa. Tal como os sete filhos-de-santoque participam diretamente do ritual, os donosdos cachorros são também devotos de São Láza-ro. Os cachorros são finalmente conduzidos aointerior da Casa e ao local onde vai ser realizadoo ritual e são acomodados próximos aos inicia-dos, que já se encontram sentados. Após a aco-modação de todos começa-se a servir a comidaaos cachorros da direita para a esquerda, par-tindo do que está com a guia da casa (a segun-da pessoa na hierarquia do terreiro). Os pratossão depositados na frente dos iniciados e, emseguida, o líder religioso autoriza todos a serviros cachorros. O banquete dura aproximadamen-te trinta minutos. Observamos que nem todosos cachorros comem tudo e que alguns conso-mem alimentos depositados nos pratos de ou-tros cachorros. Quando todos os cachorros pa-recem saciados, começa a lavagem da boca dos

animais. O líder religioso levando uma baciacom água percorre a mesa montada no chão paraque um a um dos iniciados lavem a boca do ani-mal e enxugue com a toalha. Durante esse mo-mento e silêncio é quase que total entre os inici-ados e os que acompanham o ritual. Concluída alavagem da boca dos animais os pratos são reco-lhidos um a um pelo líder religioso e conduzidosà cozinha, onde serão lavados e guardados nova-mente para o ritual do próximo ano.

A comida que sobrou no prato ou que te-nha se derramado sobre a bancada (mesa) écuidadosamente recolhida para ser depositadana mata, despachada, como os iniciados deno-minam o ato de se desfazer dos materiais utili-zados nos rituais. Os cachorros são entreguesaos seus donos e a guia da casa providencia,com a participação dos iniciados, a retirada docandelabro com a vela e a toalha que fora es-tendida sobre o chão.

CONCLUSÃO

A festa em homenagem a São Lázaro, ape-sar de ser considerada nos terreiros maranhen-ses uma obrigação fina, como os iniciados de-nominam os rituais que exigem conhecimentosprofundos dos seus fundamentos, envolve umconjunto de atitudes, comportamentos e práti-cas que reafirmam as crenças e os valores religi-osos da mina, e é uma estratégia usada pelosdevotas para conseguir a cura de doenças.

No Terreiro de Mina Mamãe Oxum e PaiOxalá, o culto ao vodum Acóssi Sapata e aosorixás Omolu e Obaluaê, sincretizados com SãoLázaro, é um momento da reprodução do con-junto de valores e crenças religiosas, reafirman-do práticas que permitem a construção de umaidentidade religiosa, demarcada por um univer-so que classifica os de dentro e os de fora, dosque crêem no poder de cura de Acóssi. Atravésda realização da festa em homenagem a SãoLázaro, os iniciados e praticantes da mina pro-curam manter, comunicar, manifestar em cadaobjeto, gesto e palavra as crenças e valores queorganizam a sua vida religiosa. O ritual apontatambém para a existência de comportamentos epadrões estéticos que traduzem uma forma deser. O ritual da Bancada dos Cachorros revelauma forma de entender o cotidiano, reeditandomecanismos claros de sobrevivência, onde prati-camente tudo está em torno de “comprometimen-tos” ancestrais, recriados e adaptados pelas ex-periências dos iniciados e praticantes da mina.

REFERÊNCIASCASCUDO, Luis da Câmara. Dicionário doFolclore Brasileiro. Rio de Janeiro: INL-MEC,1962.FERRETTI, Sérgio. Querebentam de Zo-madonu: etnografia da Casa das Minas. SãoLuís, EDUFMA, 1986.OLIVEIRA, Maria Ivana César: Práticas deCura num Terreiro de Mina. 2002. (Mono-grafia de Conclusão de Curso de CiênciasSociais) – Centro de Ciências Sociais, Uni-versidade Federal do Maranhão.

5 A cor amarela, utilizada também nas vestimentas dos iniciados e praticantes, cumpre uma função simbólica no ritual. Nas religiões afro-brasileiras cada cor estáassociada a uma entidade sobrenatural. No caso de Obaluaê, sua cor-insígnia simbólica na Casa é o amarelo-acácia ou ouro, que representa a alquimia da transformação.

6 No Terreiro de Mamãe Oxum e Pai Oxalá prevalecem a seguinte estrutura hierárquica: Pai-de-santo, tido como a autoridade máxima na condução dos trabalhosespirituais, guia e contra-guia. Outros iniciados desempenham funções importantes para o desenvolvimento do culto no terreiro. No caso específico deste Terreiro, osrecursos materiais necessários para a realização das festas são mobilizados pelos iniciados e praticantes do culto.

7 No ano de 2002, observamos que durante o ritual outro cachorro adentrou ao Terreiro e foi solicitado pelo líder religioso que se providenciasse um prato de comida paraser servido ao cachorro que estava de passagem.

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Bumba-Festa! Bumba-Trabalho! Bumba-Lazer! Bumba-Turismo! Bumba-Meu-Boi!?

Maria do Socorro Araújo*

Para o melhor entendimento dessa temática, torna-se necessário discorrer breve-

mente sobre as festas juninas maranhenses.São festas religiosas e profanas que apre-

sentam uma grande variedade de manifesta-ções folclóricas, enriquecidas de forma, rit-mos e cores. Essas manifestações não sãosimplesmente da religiosidade popular nasquais se louva Santo Antonio, São João, SãoPedro e São Marçal, mas são muito mais queisto! São verdadeiras formas de expressãopopular que transmitem força, alegria e vi-bração – elementos significativos que dãosentido à existência das pessoas que dançame legitimam essas manifestações.

Nesta época do ano, as cidades mara-nhenses e, principalmente São Luís, trans-formam-se num grande arraial, com apresen-tações folclóricas das mais variadas em to-dos os lados, tais como: Tambor de Crioula,Cacuriá, Dança do Côco, Dança de SãoGonçalo, Dança do Lelê, Dança da Fita,Dança Portuguesa, Quadrilha, Casamentona Roça, Baile da Caixa, Baião Cruzado e oBumba-meu-boi.

O Bumba-meu-boi é quem comanda ocorre-corre do povo nas praças e avenidas noritmo alucinante das zabumbas, das matra-cas e das orquestras. Logo, o boi está associ-ado ao mês de junho; neste período o rufardos tambores-onça, o ritmar das matracas eas toadas vibrantes rompem o silêncio dasmadrugadas das noites maranhenses. A ruagrande é o grande palco, onde o povo mostraa sua habilidade nas músicas e danças, comritmos extremamente contagiantes.

Toda essa animação é que consideramoscomo festa, Carlos Rodrigues Brandão(1974, p.28) coloca que as festas são

Acontecimentos sociais de envolvimento par-cialmente coletivo que geralmente observamuma ruptura com a rotina seqüente na vidasocial, que cria comportamentos sobretudo,rituais, logo expressivos e relações interativasde fora e efeitos de períodos longos da rotina.

Enfatizo ainda que estas festas se referemaos acontecimentos que possuem toda umadimensão histórica, com significados acumu-lados nas relações de vivências do dia-a-dia.Estes acontecimentos muitas vezes são disper-sos de uma globalidade devida a coerção, a de-pendência econômica, que geram o compro-misso, o medo, o conformismo e a absorção deuma ideologia do sistema dominante.

É importante observar que, embora asmanifestações muitas vezes sejam usadascomo veículo para a reprodução das idéias

dominantes, elas também servem de supor-te para manifestar as reivindicações e as lu-tas dos estratos populares. Estas reivindica-ções são traduzidas

[...] no canto, na dança, nas roupas, nas fanta-sias e outros recursos visuais. A expressividadeé sobretudo social criadora de igualdade: ocanto manifesta a fala grupal, cheia de poesiae alegria, em contraste com a comunicaçãocotidiana em que se é obrigado a ouvir caladoe obediente. A dança rompe com a fadiga dosmovimentos automatizados, retilíneos, soli-tários. (RIBEIRO, 1982, p.25)

Essas festas que o povo faz e brinca, nãoapenas com a intenção de fazer um espetá-culo, mas também para sua satisfação pesso-al e seu divertimento, os autores conside-ram como lazer. Este lazer “contém grandeparte de traços culturais de uma sociedade,incluindo atividades lúdicas, artísticas e re-ligiosas” (BOSI, 1981) Assim, percebo obumba-meu-boi como forma de lazer, o povobrinca, fica alegre, se diverte, fala de seumodo de vida, das suas condições de sobrevi-vência; e também cumpre um ritual religio-so. É interessante notar de que maneira osbrincantes definem o boi:

O boi é uma brincadeira, é um pensamentoda noite. A pessoa vem para passar a noite,para brincar. É relaxar, amanhecer; a brinca-deira amanhece, aí a gente amanhece, é isso.Quando a gente diz: eu vou pro boi brincar,você brinca até de manhã.(Brincante de Bumba-meu-boi. IN: ARAÚ-JO, 1986, p. 113)

Conforme exposto acima, fica claro queo boi é uma forma de lazer das classes popu-lares, principalmente quando se verifica aintrodução de um novo aspecto: vai-se aoboi também para relaxar. É importanteressaltar que

[...] A gestação do fenômeno lazer, como esfe-ra própria e concreta, dá-se paradoxalmente, apartir da Revolução Industrial, com os avan-ços tecnológicos que acentuam a divisão dotrabalho e a alienação do homem de seu pro-cesso e do seu produto. (MARCELINO, 1983,p.1983)

O trabalho industrial é fragmentado, es-pecializado e obedece ao ritmo da máquina.Com isto, há um afastamento dos indivídu-os entre si, devido aos contatos pessoais se-rem limitados e desarticulados. Seguindoessa perspectiva, o lazer na sociedade indus-trial é uma atividade escapatória, que o ho-mem possui para refazer a sua força de tra-

balho. Considerados aqueles aspectos, o la-zer dentro de uma visão histórica é de vitalimportância na sociedade moderna.

Agora, torna-se oportuno introduzir opensamento de Dumazedier (1976, p.32),estudioso que define o lazer como:

Um conjunto de ocupações às quais o indiví-duo pode entregar-se de livre vontade, sejapara repousar, seja para divertir-se, recrear-see entreter-se ou, ainda para desenvolver suainformação ou formação desinteressada, suaparticipação parcial ou voluntária ou sua livrecapacidade criadora após livrar-se ou desem-baraçar-se das obrigações profissionais, fami-liares e sociais.

O autor coloca que só podemos fazer la-zer após livrarmos-nos de todas as nossasobrigações. Fica então, uma questão funda-mental: qual a classe social que possui opor-tunidade de fazer este tipo de lazer? A rigor,a classe subalterna não tem esse privilégio!

Ora, tomando-se essa concepção como crité-rio de definição de lazer, poder-se-á dizer queos membros da família operária, praticamen-te não têm lazer. Isto porque, considerando-se a experiência cotidiana dos indivíduos, pra-ticamente não existiriam espaços vitais livresde obrigações profissionais, sociais e familia-res para o indivíduo se divertir.( FAUSTONETO, 1982, p 54).

É o caso também dos brincantes do bum-ba-meu-boi, em que suas profissões normal-mente são de pescadores, estivadores, serra-lheiros, pedreiros, mecânicos, biscateiros, fun-cionários públicos e outros. Fica implícito, deacordo com Dumazedier (1976), que não só afamília operária não tem direito ao lazer, mastambém o homem da periferia que brinca oboi, que trabalha na pesca, na estiva, a domés-tica, etc. Entretanto, eu percebo o lazer nãocomo uma atividade separada das outras, massim, como uma atividade dinâmica, que fazparte do processo de vida do homem.

Justifico essa colocação acima porquepara mim as atividades não são absolutamen-te irreconciliáveis, porque no momento emque o pescador está consertando a sua redede pescar, ele está cantando as toadas do boi,ele está fazendo toada, ele está contandohistória,conversando com os amigos, etc. Amulher que vai para o boi acompanhar omarido, para cuidar de seus pertences, aomesmo tempo também está com sua matra-ca ali do lado, batendo e dançando, isto sig-nifica dizer que o lazer não ocupa um espa-ço único e separado do trabalho, mas espa-ços intersticiais. Assim não há total disso-

* Mestre em Serviço Social (PUC-SP) e professora do Curso de Turismo da Universidade Federal do Maranhão.

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ciação: os brincantes, às vezes, têm momen-tos de lazer dentro do próprio trabalho.

O bumba-meu-boi faz parte do contextoda vida deste povo. Ele não é apenas umafesta sazonal, mas uma atividade muito for-te, intrinsecamente ligada a ele no seu dia-a-dia. O boi, com todo seu processo de prepa-ração, ensaios e festas é o próprio lazer destagente. Estas características culturais de de-terminadas formas de expressão e de lazerdas classes populares maranhenses tornam-se um grande atrativo para o desenvolvimen-to da atividade turística local.

BUMBA-TURISMO!

Consideramos atrativos culturais as pe-culiaridades que despertam a curiosidade doturista gerando motivação nas pessoas a sedeslocarem de determinadas regiões paraoutras. Um aspecto a se levar em considera-ção quando se fala das relações entre o turis-mo e a cultura, é que o turismo é visto ape-nas como uma atividade econômica e comofator de descaracterização e destruição dasformas de expressão da população. Não sepode negar que o turismo é uma atividadeeconômica, mas que além desse aspecto eletambém pode ser um agente de resgate dosvalores culturais, haja vista o turismo bus-car não só a unificação da cultura, mas simexplicitar a diversidade cultural.

Pela dimensão que as programações turísticaspodem apresentar, torna-se imprescindível quealém do aspecto econômico que a atividadegerencia, vislumbra-se todo um processo deplanejamento preliminar que evite a degrada-ção de localidades. O lucro que um roteiropossa oportunizar está diretamente relaciona-do à necessidade de preservar. Roteiros quepossibilitam uma exposição temática ampla ebaseada em conteúdo cultural-natural desper-tam o interesse das pessoas e preenchem assuas necessidades de evasão e deslocamentomotivando a viajar (BAHAL, 1981, p.08).

Partindo dessas colocações, as minhasobservações recaem principalmente sobre osatrativos culturais, que preservados, podemter uma função importante junto ao desen-volvimento do turismo, e ao mesmo tempo,a possibilidade de continuidade desses atra-tivos nas gerações subseqüentes, haja vistaque elas vão poder subsistir sem interferên-cia direta do Estado. Além de poucos recur-sos, esse Estado cria a dependência a partirdos incentivos financeiros, “doados” à cul-tura popular. E o bumba-meu-boi tambémestá inserido nesse processo, seja através dasublevação dos aspectos mercantis em rela-ção às características de lazer, de trabalho, ede festa que permeiam o universo dessamanifestação, seja pelas estratégias de salva-guarda da brincadeira popular objetivandoexclusivamente a fruição turística local.

Assim, torna-se necessário o desenvolvi-mento de políticas de conscientização so-

CONTINUAÇÃO

bre a valorização das culturas locais, assimcomo, de políticas que privilegiem o turis-mo brando, ou seja, a modalidade turística“que apresenta fluxo compatível com a ca-pacidade de recepção de determinado localem determinado tempo (‘portanto oferecepoucas condições de ocasionar impactosambientais e culturais’)” (PELEGRINNI,1993, p.12).

REFERÊNCIAS

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Logo, com o desenvolvimento dessaspolíticas para o turismo é importante que asmanifestações populares façam parte dosroteiros turísticos de suas cidades, pois pre-servar não é só guardar uma coisa, um obje-to, uma construção histórica, preservar tam-bém é mostrar, é contar sua história, paraque se conheça, valorize e preserve a riquezae a beleza de cada localidade.

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Historicamente, as relações entre ma-ranhensidade – ou, se preferirmos, iden-tidade maranhense – e produções cul-turais (eruditas e populares) manifestam-se de modo incompleto e descontínuo.8

Neste texto, tentamos elaborar um qua-dro sinóptico dessas relações, entenden-do que não é possível identificar ummomento em que final e indubitavel-mente uma daquelas formas e dinâmi-cas culturais ascende a símbolo total eúnico da identidade regional, controlan-do todos os meios através dos quais essaidentidade é imaginada e vivenciada. Oque podemos observar são períodos emque, ao se falar sobre o que é “tradicio-nal” na região, os contemporâneos acio-nam seus elementos eruditos e/ou po-pulares. Obviamente, identificar comoe quais elementos são acionados estádiretamente relacionado aos grupos aque damos voz para dizer o que é carac-terístico da região. Ou aos indivíduos egrupos que identificamos como os por-tadores dos canais através dos quais asrepresentações sobre o estatuto identi-tário regional são divulgadas.

Discutir identidade regional é tratarda fixação de símbolos identitários quefundam a crença em uma região comuma determinada forma, com certas li-nhas que passam a se repetir em discur-sos e práticas, e que embora sendo sig-nificativamente instáveis e mutantes,manifestam-se como identificadoresnaturais e atávicos da região. Ora, fre-qüentemente práticas e representaçõesque alimentam a construção de umaidentidade regional fixa, homogênea ebem demarcada, acabam por mostrá-lacomo dinâmica, heterogênea e fluida.Desse modo, quando nos referimos amaranhensidade estamos tratando deuma identidade de caráter regional, in-terpretando-a como um processo e nãouma entidade ou condição natural imu-tável, enfocando dinâmicas através das

CULTURAS POPULAR E ERUDITANAS LINHAS DE MARANHENSIDADE*

Antonio Evaldo Almeida Barros**

quais ela é feita e imaginada.De fato, pensar identidade mara-

nhense implica destacar sobretudo ocampo das manifestações culturais, umavez que estas se constituem como ele-mentos ora destacados ora obliterados naformação daquela identidade e meiosatravés dos quais se imagina a região.Na história do Estado, é possível notaralguns momentos em que maranhensida-de e as culturas popular e erudita se en-contram e desencontram. Especialmen-te durante a República Velha (1889-1930)e os primeiros anos da Era Vargas (1930-1937), as elites valorizam, de modo parti-cular, a Atenas Brasileira9 e a São Luisfundada por franceses10 – elementos quemarcam a identidade regional em padrõeseruditos e europeus, brancos – em detri-mento de suas manifestações culturaispopulares, predominantemente mestiçase negras. Estas, nesse período, são imagi-nadas e vividas sobretudo por membrosdos grupos subalternos. Posteriormente,a partir dos anos 1930 e, de modo maisinstitucionalizado, a partir dos anos 1960,inicia-se um processo de valorização ge-neralizada das manifestações culturaispopulares, mestiças e negras, cuja linhacentral é o bumba-meu-boi.

Desse modo, para além de esquema-tismos, podemos assinalar três grandesmomentos no processo por meio do qualculturas populares, mestiças e negrasascendem a símbolo de identidade ma-ranhense, (des)articulando-se com seuselementos eruditos. Em todos eles, apossibilidade de imaginação e feitura demaranhensidade se relaciona a(des)encontros entre “raça”, cor e povo,cultura, identidade e tradição, além desituar-se em transformações mais am-plas, de caráter nacional e mesmo glo-bal que, obviamente, só fazem sentidoquando se coadunam aos usos do local.Sobretudo a partir dos anos 1930, é im-portante salientar os intensos trânsitos

entre diferentes grupos sociais, o quetambém será fundamental para se de-marcar a região (Maranhão) e seu tiporegional (maranhense).

O primeiro momento a se destacarno processo de valorização do popular,isto é, uma primeira aproximação – porsinal, extremamente tímida – entre cul-tura popular e identidade maranhensesitua-se nos estudos folclóricos do séculoXIX a meados dos anos 1930 no contextoda “descoberta do povo” e da tentativa deformação da identidade nacional. Aqui,lembramos o romantismo em sua verten-te indianista e nacionalista, bem repre-sentada pelo maranhense GonçalvesDias, principal ícone do Maranhão alcu-nhado de Atenas Brasileira. Neste perío-do os símbolos da identidade regional,como definida pelas elites locais, são eru-ditos e brancos, europeiamente pensados.Não à toa, em 1908, é fundada a Acade-mia Maranhense de Letras e em 1925 oInstituto Histórico e Geográfico do Ma-ranhão. (MARTINS, 2002) Por isso, nãopodemos dizer que, neste contexto, hajatentativas de inflexão nas noções de cul-tura e tradição capazes de redefinir aimagem da região a partir de temas não-brancos. Opinião esta que compartilha-mos com Albernaz (2004).

Entretanto, este período não pode sertotalmente desconsiderado. Afinal decontas, apesar de ser um momento deperseguição às manifestações culturaismestiças e negras, o que vinha aconte-cendo pelo menos desde a primeira me-tade do século XIX (ASSUNÇÃO, 1999),nele, aspectos do popular são trazidos àtona, ainda que de maneira preconcei-tuosa e sob mediações da cultura erudi-ta. Lembremos, por exemplo, dos mara-nhenses Celso de Magalhães, precursordos estudos do folclore no Maranhão eno Brasil e, seu sobrinho, Antonio Lo-pes, que continua sua obra no Estado.11

* Este texto faz parte de uma pesquisa mais ampla em desenvolvimento no Mestrado do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos(PMPGEEF), Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO), Universidade Federal da Bahia (UFBA).

** Licenciado em História pela UFMA. Mestrando do PMPGEEF, CEAO, UFBA. Membro do Grupo de Pesquisa Religião e Cultura Popular.8 Discutindo o “perfil do homem maranhense na perspectiva da Antropologia”, FERRETTI nota que falar de “maranhensidade” é falar de “muitas faces”. Há um rosto do

maranhense nas religiões afro-maranhenses, nos brincantes de boi, no dançante do tambor de crioula, no pescador, dentre outros. (FERRETTI, 2003, p. 6-7) Este nossotrabalho pretende mostrar que identidade maranhense é processual, resultando de dinâmicas e conflitos sócio-culturais.

9 Na tentativa de construção de uma identidade nacional sob o patrocínio do Estado Imperial, no início do século XIX, uma série de intelectuais e poetas daquele Estado(como Gonçalves Dias) começou a se destacar no plano nacional. Por causa dessa cultura inclinada às letras, a região recebeu o aposto de “Atenas Brasileira”. Essacondição, de ateniense, de prosperidade, foi transposta a todos os maranhenses como sua condição essencial. Um provincianismo tão ou mais refinado que onacionalismo. (CORRÊA, 1993).

10 Supostamente fundada em 1612, é somente a partir de fins do século XIX, o século do galicismo, quando a economia maranhense entra em processo de declínio, que secomeça a falar de fundação francesa da cidade de São Luís, singularização construída por grupos locais. A imaginada condição de ludovicense-francês foi transformadaem característica de todo maranhense. (LACROIX, 2002)

11 Apesar de pesquisar até os anos 1940, situamos Lopes (1967) neste contexto devido à temática de sua obra, que se encaixa nas agendas de folcloristas que lhe antecedem,como Magalhães (1973). Quando Lopes preparava Presença de Romanceiro, obra concluída em 1948, nacionalmente mudava a direção dos estudos do folclore, que passavada valorização da poesia (posição de Lopes) para o destaque dos folguedos, pois se entendia que nestes últimos (dança e canto) poderiam ser encontradas as contribuiçõesde negros e índios, ao passo que na primeira (poesia) sobressair-se-ia a contribuição portuguesa (ALBERNAZ, 2004, p. 177-178; VILHENA, 1997).

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Magalhães integra a segunda geraçãode atenienses (1868-94) (MARTINS,2002). Ele faz parte do conjunto de pen-sadores que durante o século XIX ten-tou encontrar termos para uma autode-finição da nação. Nesse século, continu-ando um movimento que se inicia naEuropa oitocentista com a “descobertado povo” (BURKE, 1989), a emergênciada “rusticofilia” (CERTEAU, 1995), parateóricos brasileiros e latino-americanos,“raça”, povo e cultura se constituemcomo elementos fundamentais no pro-cesso de definição da nação. Enfim, ofato é que pelo menos desde a segundametade do século XVIII, tornam-se cadavez mais constantes as intersecções en-tre folclore, povo, “raça”, cultura e iden-tidades nacional e regional.

Posteriormente, observamos uma pri-meira e uma segunda inflexão substan-ciais. A primeira ocorre de meados dosanos 30 a meados dos anos 60.12 Um pe-ríodo que temos recortado de modomais preciso entre 1937 e 1962. Esta pri-meira inflexão pode ser visualizada atra-vés de três múltiplos e interdependen-tes movimentos. Trata-se de uma nego-ciação que reestrutura identidade ma-ranhense e que se processa em meio atrânsitos inter-regionais, envolvendo di-versos indivíduos, grupos e setores soci-ais. Em primeiro lugar, manifestações decultura e religiosidade popular e negra,especialmente tambor de mina, pajelan-ça e bumba-meu-boi, são lidas por po-pulares e membros da imprensa escrita,do clero e da intelectualidade como he-rança perniciosa dos antepassados índi-os e pretos do povo maranhense. Trata-se da perseverança de velhas idéias quetomam uma certa Europa como mode-lo, sendo os ideais de civilização e pro-gresso os nortes que guiavam a produ-ção de textos e falas. Se, de um lado,aquelas manifestações são identificadascomo sinais de atraso e barbarismo, de“decadência” da região e de sua gente,13

de outro, maranhensidade é repetida-mente construída como refinada, erudi-ta e branco-européia, o Maranhão é re-atualizado como Atenas Brasileira e SãoLuís como única capital brasileira fun-dada por franceses. Estes os elementosque remeteriam às então ditas “verdadei-ras tradições maranhenses”. Perseguiçõesa terreiros de tambor de mina e casas de

pajelança são justificadas por que estesseriam heranças de África e de nativos.O bumba-meu-boi é proibido de ser rea-lizado ou de ir ao centro das cidades porque seria barafunda de pretos e da “se-mibárbara caboclada”. Nos anos 1940,vozes denunciam que o Maranhão era umEstado débil e doente resultado do san-gue de pretos, negros e índios circulandonas veias dos regionais, o que só a imigra-ção européia poderia sanar.

O segundo movimento se refere aointeresse de membros das elites intelec-tuais e políticas pela cultura popular enegra e por uma tentativa de integra-ção, de caráter simbólico, do negro ma-ranhense na história da região. Aqui nãonos referimos somente a vozes dissiden-tes, mas sim ao surgimento de um con-junto cada vez mais crescente de vozes,livros, artigos, textos (escritos e imagéti-cos) em jornais e revistas que passam ase interessar por elementos ditos popu-lares, mestiços e negros e que os inscre-vem como idéias-imagem e práticas cul-turais essenciais da região. Uma açãoque foi seletiva, sendo pinçados algunsdeles para compor maranhensidade.Entre os intelectuais, tiveram participa-ção significativa neste processo Domin-gos Vieira Filho, Fulgêncio Pinto e As-tolfo Serra. Os sons dos tambores, em-bora ainda representassem “zoada” e “ba-rafunda”, já começavam a ser sentidoscomo produtores de harmonia, de umacadência encantadora, passando a cons-tituir a sinfonia da identidade regional.O estudo do negro maranhense emergecomo um resgate, a paga de uma dívi-da, algo necessário para se entender aformação histórico-social da região. Ten-ta-se construir a idéia de que a AtenasBrasileira só teria sido possível por cau-sa da mistura racial; que o fundamentaldo maranhense havia sido infiltrado pelaseiva imaginativa do africano; e que des-te viera o elemento essencial da identi-dade regional: o amor e apego à terra.

Em terceiro lugar, este é um momen-to em que populares resistem de diver-sas formas aos preconceitos e persegui-ções em relação às práticas e conheci-mentos que lhes são característicos. Ospopulares constituíam um conjuntomúltiplo e diverso de existentes que podi-am ou não desenvolver coletivamente es-

tratégias e redes de sociabilidade, mas quecomumente conformavam um campo decontínuo encontro entre práticas culturaise religiosas e construção de identidades.Há muito a região por eles vivida e imagi-nada era fundada em elementos popula-res e negros. Era forte o poder de negoci-ação desses grupos, predominantementenão-brancos, cujos conhecimentos, visõesde mundo e práticas eram constante, es-tratégica e criativamente comunicados,transformados e ressignificados.

Esses movimentos podem ser obser-vados sempre em meados do século XX.Um momento marcado por ambigüida-des. É somente a partir da centraliza-ção política nacional estabelecida como Estado Novo (1937-1945), quando go-vernadores são substituídos por interven-tores federais, num contexto de estabe-lecimento de uma política de dupla faceem relação às manifestações culturaispopulares e negras, que haverá condi-ções reais para que, no Maranhão, a iden-tidade regional comece a ser feita emnegritudes e em padrões mestiços e nãosomente em branquitudes, como atéentão predominantemente ocorrera. Seo processo de centralização do poderpolítico estatal nacional se acentua como Estado Novo, o caso do Maranhãomostra que ele também contribuiu, atra-vés da estruturação de máquinas admi-nistrativas nos estados (dando poder po-lítico a homens da região) e da ambiva-lente relação com o “povo”, para a pro-moção de novas formas de pensar dife-rentes regiões no território nacional. Apartir de então, no Maranhão, onde foiindicado para Interventor Federal Pau-lo Ramos, intelectuais, políticos, mem-bros da imprensa escrita, juntam-se apopulares e imaginam a região comopopular e negra, ainda que o façam cadaum a seu modo.

A ano de 1962 é um ano simbólicopara o Estado, ano em que ocorre umacelebração oficial de comemoração doaniversário de 350 anos de São Luís (OIMPARCIAL, 1962a; b). Na ocasião, lou-vava-se, ao mesmo tempo, a origem fran-cesa e ateniense da cidade e suas cultu-ras de marca predominantemente mes-tiça e negra. Evento que pode ser lidocomo marco da emergência de um ou-tro cenário, aquele da “cultura [afro-bra-

12 Em relação a este período histórico temos nos dedicado mais detidamente. Ver BARROS (2005).13 Nas primeiras décadas do século XIX o Maranhão vivia um momento de forte desenvolvimento econômico que não se manteve até o final daquele século. No início do século

seguinte, intelectuais, em sua maioria membros das duas mais prestigiadas instituições do período, o IHGM e a AML, tentando explicar aquele processo, construíram ahistória da economia do Maranhão novecentista como uma passagem da prosperidade à decadência. Essas representações especificamente sobre a vida econômica doMaranhão do século XIX foram transpostas para a história, cultura e identidade do Estado. O Maranhão (e o maranhense) passou então a ser lido como decadente, maspronto para reergue-se e reviver supostos tempos de prosperidade. (ALMEIDA, 1983) .

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sileira] no poder ‘instituído’”, para usar-mos a expressão de Santos (2005). O quese intensificará no Maranhão, a partirdos anos 1970/80, com a criação, pelogoverno estadual, de diversos órgãos queprivilegiam a cultura de caráter popu-lar (ALBERNAZ, 2004). E aqui chega-mos à segunda significativa inflexão, àqual retornaremos mais adiante.

Portanto, entre 1937 e 1962, ocorre oentrecruzamento de uma maranhensi-dade ateniense e francesa supostamen-te branca e erudita com uma identida-de maranhense pretensamente popular,mestiça e negra. Nesse momen-to, ao mesmo tempo, essas duasimagens são (des)articuladas, sãodistanciadas e aproximadas pe-las representações e experiênci-as que as conformam.

Nesse contexto, práticas e re-presentações de caráter nacionale mesmo global precisam serconsideradas uma vez que se co-adunam aos usos do local, comoo Estado Novo, que institui umapolítica ao mesmo tempo pater-nalista e repressiva em relação àcultura popular, de “louvação” à“raça negra” (modelo de traba-lhadores), mas também períodode forte perseguição a elemen-tos das manifestações de cultu-ra popular e negra em pratica-mente todo o território nacional;o processo de institucionalizaçãoda ação do Estado brasileiro nocampo da cultura, quando entre1937 a 1966, a preservação dosbens de valor cultural visava de-senvolver atividades como estudar, docu-mentar, consolidar e divulgar os bens cul-turais isolados, promovendo um mapea-mento cujo objetivo era não deixar queesses bens desaparecessem; a imaginaçãoda nação como democracia racial a par-tir dos anos 1920 e de modo mais intensoa partir da década de 30; reivindicaçõese protestos de organizações e movimen-tos negros que contribuíram significati-vamente tanto para colocar em pauta pro-blemas enfrentados por afro-brasileirosquanto para a inclusão simbólica dos ne-gros em ideários regionais e na imagina-ção nacional.

Também o modernismo, um projetocomprometido com a tradição e que bus-cava nas classes populares os motivos dacultura nacional, ocupando a atençãodos intelectuais modernistas a aprecia-ção de um bloco de questões em que seimbricavam modernidade, brasilidade,tradição e origens populares; o movimen-to regionalista, segundo o qual, a região

– no caso, o Nordeste – para ser e contri-buir com a nação, precisa antes ser regi-onal; ambos movimentos iniciados nosanos 1920 e intensificados na décadaseguinte; o movimento folclórico, que seacentua na década de 1940 e pensavaencontrar nas “obras do povo” os sinaisde brasilidade comumente identificadoscom tradições, culturas e identidadesafro-brasileiras; a “passagem”, em mea-dos do século XX, da ideologia do bran-queamento, que até então dominara opensamento racial da elite brasileira,para o mito da democracia racial; as dis-

cussões levantadas pelos congressos afro-brasileiros em torno do “problema donegro” no território nacional e a institu-cionalização acadêmica das discussõessobre as relações entre negros e brancosno Brasil, a partir dos anos 1930; inter-câmbios entre intelectuais de diferen-tes regiões; intercâmbios entre intelec-tuais e alguns populares, bem como trân-sitos cada vez mais contínuo de popula-res, mestiços e negros entre si tanto den-tro quanto fora da região, isto é, umacultura popular e negra viajante que re-conceitualiza idéias, símbolos e valoresem uma perspectiva translocal; o ques-tionamento, que se acentua em 1914,com o início da Primeira Guerra Mun-dial, da Europa enquanto modelo de ci-vilização para o mundo, especialmenteno que concerne às relações entre pes-soas de cor e etnia diferentes; e a emer-gência da negrofilia nos anos 1920 na Eu-ropa e nas Américas. De certo modo, asfeituras de maranhensidade são, ao mes-

mo tempo, produtos e agentes dessastransformações.

A segunda substancial inflexão ocor-re a partir dos anos 1960 e foi muito bemdiscutida por Albernaz (2004). Trata-sedo momento em que a cultura popularascende ao poder político estatal, noMaranhão (ALBERNAZ, 2004) e no Bra-sil. Período em que a cultura afro-brasi-leira (e popular) “se ‘reifica’ como estra-tégia de luta e embate, pois se há umpoder nas representações culturais, exis-te um duplo poder nas representaçõesculturais quando estão no poder” (SAN-

TOS, 2005, p. 234).Como sabemos, será só

a partir dos anos 1960, nocontexto da modernidadedesenvolvimentista, que,no Brasil, a “convivialidaderacial” emergirá como ma-téria-prima na implemen-tação de políticas estataisregionais e nacionais. Oque foi mostrado por San-tos (2005), enfocando sobre-tudo o contexto da Bahia,analisando como a “cultu-ra afro-brasileira” adentrano universo simbólico dopoder através de implemen-tações oficiais, e Albernaz(2004), abordando relaçõesentre culturas popular e eru-dita em meio a políticas,narrativas e instituições de-marcando identidade mara-nhense. Momento em que,dentre outras coisas, serãofundados uma série de ór-

gãos da cultura como a Secretaria deEstado da Cultura (SECMA) e a Funda-ção Cultural do Maranhão (FUNCMA).Uma inflexão que guarda uma certa cor-respondência com o momento de moder-nização da cidade de São Luís, quandoas elites começam a deixar o centro his-tórico. (ALBERNAZ, 2004)

A identidade regional é um constru-to em transformação. A comunidaderegional, se assim podemos caracterizá-la, é um forte referencial para formaçãode identidades. Para além de uma enti-dade de caráter político, a região é umespaço de produção de sentidos. Dessemodo, maranhensidade pode ser lidacomo um construto que serve de refe-rência para elaboração de práticas iden-titárias, dinâmicas culturais e tradiçõesde diversos grupos; por seu turno, essaselaborações imaginam e fazem os senti-dos da região e de seu tipo regional.

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A construção regional não é um pro-duto de mão única. A identidade regio-nal é um processo em construção por ato-res e grupos sociais variados. Obviamen-te, eles estão socialmente posicionados demodo diverso e desigual. Se as elites cons-troem uma identidade regional modelo,este paradigma é continuamente vazadopelas práticas e discursos de indivíduos egrupos não localizados no lugar da elite.Os populares também redefinem as ima-gens sobre a região mesmo quando fabri-cadas pelas elites. Identidade maranhen-se não se refere unicamente à vitória daresistência de uma cultura popular ou deuma cultura negra cujos elementos pas-sam a ser termos-chave no discurso quedefine a identidade regional. Também nãopodemos escrever esta história tão somen-te como um movimento de apropriaçãodas “coisas do povo”, “de preto” e “da cabo-clada” por uma cultura de elite ou culturabranca. Este é um terreno de ambigüida-des, de contradições, e é desde este lugarque se reinstitui a identidade da região.

Regiões são imaginadas não a partirdo nada, mas em torno de comunidadesde sentido. Desse modo, analisar movi-mentos que entornam processos de reins-tituição de maranhensidade implica ob-servar que há certos elementos que repre-sentam e imaginam o Maranhão, que esseimaginário é conformado e transformadoe que são diversos os conceitos, sujeitos edinâmicas sociais que inserem novos tra-ços no imaginário regional. De certomodo, é no próprio ato transgressor debarreiras e pavimentos culturais (ditos fi-xos) que idéias e práticas imaginam e fa-zem regiões e regionais. É na confluênciadesses (des)encontros culturais, desses pro-cessos de renegociação, que se dá a for-mulação de identidade maranhense.

Maranhensidade é uma comunidadeimaginada, idealizada e construída cujo cor-pus não pode ser pensado fora de transfor-mações históricas e sociais específicas, deexperiências vividas. Desse modo, só fazsentido analisá-la se a colocamos dentro dasrelações sociais e mudanças históricas dasquais ela própria é agente e produto.

A simbolização da região inclui pro-cessos através dos quais alguns grupos (esuas práticas e conhecimentos) de umasociedade se tornam visíveis ou invisíveis.Sendo assim, é fundamental perceberviolências simbólicas em que diferençassão destacadas e, em seguida, oblitera-das. Ao longo da história do Estado,manifestações de cultura e religiosida-de de marca predominantemente popu-lar e negra ora são destacadas ora sãoobliteradas de textos e práticas que de-finem maranhensidade. É considerando

este campo de tensão que melhor pode-mos analisar processos de construção daidentidade regional.

Se uma nova feição é dada para o Ma-ranhão, sendo socialmente aceita e difun-dida, é porque um bom número de textose imagens, de práticas e experiências per-mitiu a interiorização progressiva dessa re-presentação para aquela região. O casodo Maranhão mostra que processos deconstrução de identidades regionais estãodiretamente relacionados a instituição desupostas singularidades. As regiões costu-mam se autodefinir como singulares, emcomparação a outras regiões e, muitas ve-zes, distinguindo-se também da próprianação. Para além da singularidade, hácomo que um desejo de ser “superior”. Umdesejo que pode ser velado, mas que cons-tantemente se faz presente.

Parafraseando Mbembe (2001, p. 28-29), quando analisa e critica diferentesformas com as quais se tentou construire representar identidade africana, pode-

REFERÊNCIAS

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mos afirmar que, geralmente, tentativasde definir identidade maranhense demaneira simples e clara têm falhado.Acreditamos que não existe nenhumaidentidade maranhense que possa serdita em um único termo, nomeada emuma única palavra ou explicada em umaúnica categoria. Ela é constituída, de va-riadas formas, através de uma série depráticas, experiências e discursos. As for-mas desta identidade não são sempreidênticas, elas são móveis, reversíveis, einstáveis. Assim, elas não podem ser re-duzidas a uma ordem puramente bioló-gica, racial, temporal ou espacial. Tam-bém não pode se reduzir à tradição, hajavista que o significado desta está em con-tínua mutação. A densidade que consti-tui o passado e o presente maranhensepoderá ser melhor analisada se atentar-mos para os diversos (interconectados ounão) discursos e práticas através dos quaisos maranhenses estilizam sua conduta evivenciam sua cotidianidade.

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“Boi, boi, boi, vaqueiro meu,Vai te preparar para brincar!Se tu vai no Codozinho, vai passar no Areial,Vai dizer pra Seu Légua,que aqui tá melhor do que lá”14

No cenário da cultura popular maranhensedestacamos a riqueza das inúmeras manifesta-ções folclóricas ou brincadeiras existentes noperíodo festivo do Estado como constituintes deexpressividade, diversidade e sustentáculos deidentidades. Podemos citar várias festas impor-tantes provenientes de nossa cultura como asfestas devocionais aos santos católicos (São Joséde Ribamar, São Benedito, São Raimundo dosMulundus,, São João, etc.); festas natalinas (foliade Reis, Reisados e Pastores); festejo do DivinoEspírito Santo; Carnaval e festejos juninos.

Abordamos ou focalizamos aqui as festasou os festejos juninos nas comunidades afro-religiosas de São Luís do Maranhão, onde ana-lisamos as reinterpretações ou ressignificaçõesque o bumba-meu-boi assume no espaço-terrei-ro (religiões afro)

Pretendemos observar no presente ensaioas representações do bumba-meu-boi dentro dealguns terreiros de Mina e também de Umban-da em São Luís, a partir de um estudo etnográ-fico já desenvolvido sobre o ‘boi ou boizinho deencantado’. Boi ou bumba-meu-boi de encanta-do é uma brincadeira ou manifestação folclóri-ca de cunho estritamente afro-religioso organi-zada por alguns terreiros de Mina e Umbandano Estado, sendo dedicada a entidades espiri-tuais desses próprios terreiros (encantados e ca-boclos) em face de pedidos, promessas, devo-ção aos santos juninos (Antônio, João e Pedro)ou por puro divertimento dos encantados e deseus filhos (afro-religiosos).

Geralmente durante os festejos juninos tantona cidade de São Luís, quanto em muitos inte-riores do Maranhão há uma acentuada movi-mentação em torno da celebração/devoção asanto Antônio, São João, São Pedro e São Mar-çal (esse último com festa mais conhecida emSão Luís, especificamente), através das come-morações e exibições de brincadeiras folclóri-cas em inúmeros arraiais. Os terreiros de Minae Umbanda maranhenses também têm suasformas e maneiras próprias de louvar esses san-tos do catolicismo, além das suas entidades es-pirituais geralmente relacionadas a eles, ocor-rendo um paralelismo (devoção do catolicismopopular e entidades africanas, não-africanas,etc.). As homenagens e festividades nas comu-nidades-terreiro nessa época ocorrem por meiode festas e toques de Mina e Umbanda, apre-

‘NOVOS PERSONAGENS, OUTROS SIGNIFICADOS: OBUMBA-MEU-BOI DE ENCANTADO EM TERREIROS

DE MINA DE SÃO LUÍS’*Gerson Carlos Pereira Lindoso**

sentações de brincadeiras folclóricas nos terrei-ros, distribuição de comidas típicas (mingau demilho, bolo de tapioca, etc.) e organização dosbois de encantado.

Ferretti, M. (1996) mostra que a devoção demineiras a santos católicos é muito antiga e estárelacionada com a catequese dos negros africa-nos ocorrida no período colonial e como os ter-reiros fazem uma associação dos voduns e en-cantados aos santos católicos, usualmente quan-do se festeja um santo católico em casa de Mina,festeja-se o vodum e encantado a ele associado.Ferretti, S. (1996) pondera que os terreiros deculto afro são núcleos dinamizadores da cultu-ra popular maranhense, principalmente na ca-pital e que as entidades espirituais da Minaapreciam ou gostam de festas e de manifesta-ções folclóricas: o vodum Toy Averequete e Pre-to-Velho gostam de tambor de crioula e SeuLégua gosta de Bumba-meu-boi. A Casa dasMinas, terreiro de Mina fundado por africanosem meados do séc. XIX e que ainda sobrevivena atualidade, no mês de junho homenageiaalguns voduns importantes como Badé Quevi-ossô, que representa o corisco e é encantadonuma pedra de raio (Ferretti, S., 1996, p.123),equivalendo a Xangô (orixá do fogo) entre osnagôs. Uma festa já desaparecida e importantedessa casa no dia 24 de junho era a das ‘gonjaís’(filhas-de-santo ou vodunsís com todos os grausde iniciação completos e que recebiam tobós-sis, entidades infantis femininas), na qual asvodúnsis gonjaís mais novas reverenciavam ehomenageavam as mais antigas (formas de agra-decimento). Outra festa importante da Casa dasMinas, mas já desaparecida acontecia no dia13 de Junho, sendo dedicada a Poliboji, vodummasculino que pertence a família de Dambirá(voduns da terra) e que adora Santo Antônio.Na Casa de Nagô, templo afro-religioso mara-nhense que também foi fundado em meadosdo séc. XIX, e que continua funcionando até ospresentes dias sendo ao lado da Casa das Mi-nas os terreiros mais antigos do Maranhão, asfestas do período junino homenageiam Xangô(24 de junho), o vodum Badé (29 de junho) e nodia de Santo Antônio se reza apenas uma lada-inha15 para o santo. Já no terreiro de Iemanjá,situado no bairro da Fé em Deus e que foi co-mandado pelo babalorixá Jorge Itaci por maisde quarenta anos, há uma programação festivacom ladainhas e toques de Mina nas três datas(13, 24 e 29 de junho). No dia de Santo Antôniocomemoram o aniversário do vodum de mãeFlorência (toy Agongono), já as festas de SãoJoão e São Pedro são organizadas por Magali deXangô Dadá e Mãe Zeca de Avereço (24 de

Junho) e Werberth de Badé (29 de junho). Asentidades espirituais reverenciadas no dia deSão João são orixá Xangô, encantados DomJoão, João do Leme, comandante João de Limae o vodum Zomadônu e no dia de São Pedro, ovodum Badé, orixá Xangô e encantados DomPedro Angaço e Pedro Peleja (OLIVEIRA, 1989,p.153). Ponderamos que outros terreiros de Minae Umbanda apresentam também suas festas,homenagens, ladainhas e variadas maneirasespecíficas de expressarem suas devoções aossantos católicos, orixás, voduns, encantados ecaboclos festejados nessa época. Uma dessascasas é o Ilê Ashé Ogum Sogbô (Liberdade-PaiAyrton) que comemora no mês de junho o ani-versário dessa casa de Mina e faz reverênciasao Barão de Guaré, encantado do líder desseterreiro e demais entidades. Como o foco denosso interesse é o boi de encantado reiteramosa própria dimensão do bumba-meu-boi em ter-ritório nacional, assumindo de acordo com a lo-calidade em questão categorias intrínsecas: BoiBumbá ou Boi de Reis no Amazonas e Pará; BoiCalembá ou Bumbá em Pernambuco; Boi Su-rubim em várias regiões nordestinas, Boi Duro,Mulinha de Ouro ou Dromedário na Bahia; Boi-de-Mamão no Paraná e Santa Catarina; Boizi-nho ou Boi Jacá em São Paulo e Rio Grande doSul; Boi de Reis no Espírito Santo, Folguedo doBoi ou Reis do Boi em Cabo Frio e outros locaisdo Rio de Janeiro e bumba-meu-boi no Mara-nhão (CARVALHO, 1995, p. 39).

A brincadeira do boi de encantado vai terinício no período junino (batizado e apresenta-ções), embora algumas casas possam se dife-renciar como o Ilê Ashé Toy Abidigá (descen-dente da casa Iemanjá) liderado por pai Antô-nio Raquel, que fez o batizado dos seus bois deencantado esse ano no mês de julho. Usual-mente as mortes de bois de encantados podemacontecer um mês depois do batizado (mês deJulho-Tenda Santa Teresinha) ou nos outrosmeses do ano, de acordo com a organização decada terreiro. As etapas rituais do boi de encan-tado são: batismo do boi, apresentação (inter-nas-próprio terreiro ou externas, locais convida-dos) e a morte do boi. Essas etapas rituais dosbois de encantado procuram seguir o modelodos bois comuns ou os não dedicados especial-mente a entidades espirituais (caboclos e en-cantados) das religiões afro. Ferretti, S. (1996)diz que o início da brincadeira dos bois de en-cantado se dão, a partir dos pedidos desses en-cantados por uma festa dessa natureza e queseus devotos a organizem com comidas e bebi-das, além do oferecimento de um boizinho pe-queno. É importante destacar que os bois de

* Trabalho apresentado em forma de ensaio a disciplina de Cultura Popular e Políticas Públicas do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais - Mestrado daUniversidade Federal do Maranhão, coordenada pelo profº Dr. Sérgio Ferretti e profª Dra. Mundicarmo Ferretti e na 25ª Reunião da Associação Brasileira de Antropologia-ABA (11-14 jun.) em Goiânia, 2006

** Jornalista e Mestrando em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Maranhã -UFMA e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científicoe Tecnológico do Maranhão-FAPEMA.

14 Toada para guarnecer da brincadeira de boi de encantado do terreiro de Iemanjá, finado Pai Jorge Oliveira (bairro da Fé em Deus).15 Segundo Cardoso Junior (2001, p.128) existe uma grande devoção da Casa de Nagô por Santo Antônio, mas nesse dia não há toque de tambor de Mina acontecendo

apenas uma ladainha católica e distribuição de esmolas aos pobres a pedido de Dona Lúcia (atual chefa da casa).

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CONTINUAÇÃO

encantado não apresentam modelos fixos ou seadequam a um estilo único ou de sotaque comomuitos bois comuns no Estado. Sanches (2003,p.115) ao falar sobre o boi de encantado afirmaque a concepção de sua festa é diversificada eque a sua constituição não se caracteriza porsotaques e estilos individualizados ou únicos,apresentando instrumentos musicais de varia-dos estilos. Apesar de não haver modelos ouestilos únicos para os bois de encantado, perce-bemos nas comunidades afro-religiosas analisa-das em nossa pesquisa (área da Fé em Deus-Liberdade), que eles se aproximam do sotaqueda Ilha ou de Matraca* e que a sua identifica-ção com os sotaques e estilos é algo muito ínti-mo aos próprios terreiros, como a Casa Fanti-Ashanti de pai Euclides que classifica o boi deencantado de lá com o sotaque de Pindaré*.(FERREIRA, 1987, p.137). Ferretti, S. (1996) lan-ça mão de uma hipótese sobre o início da brin-cadeira de boi de encantado nos terreiros deMina de São Luís, com a festa do “Carneirinhode São João” em dois terreiros já desaparecidos:terreiro do Engenho (bairro do Tirirical) e terrei-ro de Zé Negreiros (bairro do Turú). Vamos des-crever aqui a morte do boi de encantado do IlêAshé Ogum Sogbô, terreiro de Mina descen-dente da Casa de Iemanjá e chefiada por paiAyrton de Ogum, bairro da Liberdade e quetem aproximadamente duas décadas de exis-tência. Essa festa da morte do boi ‘Orgulho deCodó’, aconteceu no dia 18 de setembro de 2005durante o maior festejo da casa ‘Festa de SãoCosme e Damião e do Divino Espírito Santo’. Afesta da morte do boizinho de encantado foiorganizada por Leandro de Nanã (guia do ter-reiro), que incorpora o encantado Domingui-nhos Légua, encantado da família de Légua edono da brincadeira nesse terreiro. Segundo opróprio Leandro (entrevista maio 2006) o boi deencantado lá teve início, a partir do pedido deseu Dominguinhos Légua, pois na casa não ti-nha boi de encantado e também, devido ele tersido presenteado por uma cliente dele com umboizinho na vareta, que logo foi identificadopelos outros filhos-de-santo do terreiro como oboi daquele encantado. Antes do ritual de mor-te do boi orgulho de Codó foi feito um toque deMina, ritual público com cânticos e danças parao ‘povo de Légua’ (encantados de Codó, lidera-dos por Légua Bugi Buá e que são bastantecomunicativos, festeiros e que apreciam muitobebida alcoólica). Depois do toque os encanta-dos já incorporados trocaram de roupa e forampara a rua, pois eles iriam buscar o boizinho, omourão e o bolo da festa, que estavam guarda-dos (escondidos!) em casas da vizinhança e,quando o grupo chegava nessas residências, odono (a) oferecia uma bebida (refrigerante/vi-nho) em agradecimento pela posse de um des-ses elementos. Um cantador de bumba-meu-boi foi convidado para aquela ocasião para aju-dar a puxar as toadas daquele ritual, Seu Ro-naldinho, do boi do bairro de Fátima. Todoscomeçaram a festa pelas ruas da Liberdade aosom de matracas, pandeirões e tambor-onça(instrumentos musicais observados na brinca-deira). Eles recolheram o bolo, o boizinho e porúltimo o mourão, colocado em frente ao terreirodando início ao ritual de morte. Organizaram omomento de matar o boi e logo trouxeram umalguidar (vaso de barro) e vinho tinto (represen-tação do sangue do boi) e aos pés do mourão foiposta uma imagem de São João e uma vela gran-

de branca acesa. Seu Dominguinhos Légua la-çou o boi Orgulho de Codó e o levou para omourão com a ajuda dos seus padrinhos, dentreeles Wender (chefe do Ilê Ashé Obá Yzou-Liber-dade) matando o boi e despejando o seu sangue(vinho) no alguidar, depois distribuído aos pre-sentes. Mauss & Hubert (2005, p.26) diz que osacrifício é um ato religioso operado por agentesessencialmente religiosos. Logo em seguida en-tramos todos no terreiro, depois do ritual da mor-te para cantarmos parabéns ao encantado Do-minguinhos Légua e lá dentro do terreiro tevemais toada de despedida. Por volta das 20:15h afesta terminou, mas os encantados ainda fica-ram na rua, pois havia música mecânica e o trân-sito de ir e vir era constante, muitas pessoas con-

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versando, bebendo e sorrindo, clima de diverti-mento. O boi de encantado é uma verdadeirarepresentação folclórica de cunho afro-religioso,porque provém de casas de religião afro no Esta-do não tendo um caráter comercial de apresen-tação sendo oferecido a determinadas entida-des espirituais (Légua Bugi, Dom João, Domin-guinhos Légua, Seu Tombassé, Seu CravinhoLégua, etc.) dos terreiros de Mina e Umbandano Maranhão no intuito de se divertirem tam-bém nas festas juninas. Dentre os aspectos im-portantes que destacamos sobre o boi de encan-tado é que ele tem a sua organização feita deacordo com as demandas das casas de religiãoafro e da própria vontade e desejos dos encanta-dos (constituintes dos domínios sagrados).

GLOSSÁRIO

* SOTAQUE DE MATRACA: É identificado como sotaque da Ilha ou de São Luís e congrega o maior número de pessoas em tornodo boi. Um de seus traços distintivos é o uso das matracas de madeira, pandeirões (CANJÃO, 2001, p.78).

* SOTAQUE DE PINDARÉ: Uma das característica desse sotaque são as matracas tocadas de uma forma mais lenta e um emblemados bois desse ritmo são os cazumbás, personagens que utilizam grandes máscaras e têm como função distrair antes do auto (AZEVEDONETO, 1997).

ANEXO: ALGUNS BOIS DE ENCANTADO

* Informação fornecida por Socorro Aires, estudante de Ciências Sociais, membro do GPMINA (UFMA), queatualmente desenvolve pesquisas no Terreiro Fé em Deus (de Mãe Elzita).

Terreiro/residência entidade (s) nome(s) do(s) boi(s)Terreiro de Iemanjá (Fé em Deus

- Mãe Florência, Abília e Dedé)

Seu Légua/ D. João Prometido de São João e Flor do Mar

Ilê ashé Ogum Sogbô

(Liberdade-Pai Ayrton)

Dominguinhos Légua Orgulho de Codó

Ilê Ashé Obá Yzou (Liberdade-

Pai Wender)

Cravinho Légua Carrasco Encantado

Ilê ashé Toy Abidigá (Monte

Castelo - Pai Antônio Raquel)

Seu Periquitinho Brilho da Meia -Noite; Tienfica e Fica

por Trás

Casa Fanti -Ashanti (Cruzeiro do

Anil - Pai Euclides)

Antônio Luís Garotos do Cruzeiro

Casa de Nagô Centro - Mãe

Lúcia (festa extinta)-

Preto-Velho Bela União

Tenda Santa Teresinha (Angelim

- Mãe Mariinha)

Tombassé Boi Mimoso, Brilho da Fazenda,

Brilho da Bandeira e Prenda da Casa

Residência de Márcio Xapanã

(filho-de-santo de Jorge)

Seu Areinha Brilho da Areia

Terreiro de Mina Pedra de

Encantaria (Maiobão - Pai

Itaparandi)

Caboclo da Ilha Brilho da Ilha

Terreiro Fé em Deus (Sacavém -

Mãe Elzita)*

Seu Surrupirinha; Caboclo

Velho

Touro da Mata; e Raio do Sol

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As diferentes práticas culturais expres-sas por um determinado grupo social em suavivência cotidiana constituem o campo se-mântico do termo cultura. Através dela opovo compõe e (re)compõe permanentemen-te a sua identidade, configurada nos cons-trutos patrimoniais, assim como nos folgue-dos, nos contos e nas lendas, no linguajar,no artesanato, na gastronomia, na literatu-ra, nos ritos, nas danças religiosas, nas cele-brações, nos rituais e demais elementos com-ponentes do denominado patrimônio ima-terial ou intangível das sociedades.

As manifestações populares contribuempara o entendimento dos processos históri-cos por que passa a sociedade e para o forta-lecimento dos laços simbólicos, afetivos eétnicos entre membros partícipes de umacoletividade. No contexto turístico, o patri-mônio cultural figura como fator catalisa-dor de fluxos de visitantes, e conseqüente-mente, oportunizando a dinamização daseconomias locais, legitimando, assim, a in-ter-relação que se estabelece entre a culturapopular e o turismo.

O turismo como fenômeno social emergecomo importante fator de valorização da di-versidade cultural, propiciando a geração deemprego e renda, o aumento da visibilidade enotoriedade dos agentes culturais. Estimula ointercâmbio cultural ao estimular o contatocom diferentes culturas, fortalece o sentimen-to de pertencimento, o orgulho cultural e oresgate de bens culturais que porventura este-jam sofrendo um processo de desaparição, efundamentalmente, promove a melhoria daqualidade de vida da comunidade.

Considerando-se que o turismo configu-ra-se como um importante vetor ou propaga-dor de valores, modos, costumes, hábitos eestilos de vida, e outras implicações decorren-tes do intercâmbio cultural e do mecanismode aculturação, a atividade turística vem im-primindo novos valores que redimensionamos espaços naturais e urbanos e o próprio es-tilo de vida das comunidades locais:

À medida que o Turismo se transforma numagrande indústria, de alcance mundial, mui-tos ou a maioria dos países são invadidos poruma onda turística. É uma onda que não seconfina a determinados lugares, mas na qualtodos os espaços, histórias e atividades soci-ais podem ser material e simbolicamente re-feitas [...] as sociedades contemporâneas sedesenvolvem menos na base da vigilância eda normatização dos indivíduos e mais nabase da democratização do “olhar do turista”e da espetacularização dos lugares (URRY,1996, p. 208).

ASPECTOS DO TURISMO CONTEMPORÂNEO:::::a produção do não-lugar na cultura

Karoliny Diniz Carvalho*

* Bacharel em Turismo ( UFMA) e graduanda em História ( UEMA).

O resultado desse mecanismo consistenuma crescente homogeneização dos luga-res turísticos e das práticas culturais cultu-ralmente estabelecidas nas sociedades recep-toras, que se materializa na produção cadavez mais acentuada de não-lugares, “o espa-ço dos outros sem a presença dos outros, oespaço constituído em espetáculo” (AUGÉ,1999, p. 145). Criam-se cenários turísticosdestinados ao consumo serializado, no qualas particularidades ambientais e urbanastornam-se recriações de imagens, signos erepresentações. Contudo, a produção dosnão-lugares para o Turismo não se restringesomente à cultura edificada, construída pe-los grupos sociais ao longo do tempo, masestende seu raio de atuação ao âmbito dacultura imaterial.

Adentrando ao universo de consumo eda homogeneização do capital simbólico, osfatos culturais podem vir a ser adaptados,obliterados, abreviados, e, portanto, mercan-tilizáveis. A cultura reproduzida e encenadapara os turistas orienta-se para o consumovisual, na qual o enraizamento comunitárioé substituído pela artificialidade das relaçõesentre os visitantes e a população local.

CULTURA E NÃO-LUGAR

Aspecto relevante na formação de não-lugares incide-se na formatação de eventosturísticos planejados e artificiais e na altera-ção na dinâmica própria da cultura popular.Nas apresentações destinadas aos visitantes,confrontam-se a dimensão simbólica queestas possuem para os agentes culturais e anecessidade de atendimento das expectati-vas da demanda turística. O redimensnio-namento dos fatos culturais para a notorie-dade turística ocasiona a perda da continui-dade cultural, em face da sublevação do as-pecto mercantil ao aspecto identitário.

Em determinadas instâncias turísticas,as festas e danças populares são ressignifica-das quando da sua inserção ao sistema deprodução e consumo turístico, destacando-se a banalização das festas tradicionais, bemcomo a transformação de rituais sagradosem rituais de entretenimento. Conformeadvoga Ruschmann (2003, p. 53)

As ações mercadológicas do turismo, geral-mente, apresentam aos turistas dos países de-senvolvidos cenas e manifestações culturais dospaíses em desenvolvimento de forma inexatae romantizada, contribuindo para a criação deuma imagem simplista e estereotipada. A fim

de atender a estas expectativas, as cerimôniastradicionais, os festivais e os costumes sãoapresentados como um “show”, especialmen-te preparado para atender à curiosidade e ointeresse dos visitantes. São espetáculos estu-dados, pré-arranjados e que transformam acultura local em rituais de entretenimento.

Nota-se nessa proposição, que o turismotorna-se um agente adensador de desestabi-lizações na cultura popular, determinando-lhe uma dinâmica que não resulta da capaci-dade inventiva e criativa dos atores sociais.As manifestações populares são expropria-das e reinventadas pelos promotores turísti-cos, os quais privilegiam seus aspectos visu-ais, e em alguns casos, impõe-lhes uma pa-dronização - seja no figurino, na coreogra-fia, ou na substituição dos instrumentosmusicais originais, sobrepujando a diversi-dade da tradição cultural.

Como arquétipos de não-lugares na cul-tura popular, podemos elencar os diversoscarnavais fora de época em várias capitais dopaís, e o surgimento de grupos parafolclóri-cos, tais como o Bumba-meu-boi de Parin-tins. No estado do Maranhão constata-se abanalização da cultura popular, com a realiza-ção do evento “Vale Festejar”. Realizado noConvento das Mercês no Centro históricode São Luís, o evento constitui-se num espa-ço destinado à apresentação de grupos debumba-meu-boi em um período não corres-pondente ao ciclo da brincadeira popular.

Este acontecimento expressa a proble-mática da construção do não-lugar na cultu-ra local, através da expropriação de uma ma-nifestação popular - o bumba-meu-boi, como seu posterior redimensionamento para aatividade turística. Pode-se distinguir o as-pecto de higienização e de estetização dabrincadeira, associado a um caráter nitida-mente mercantil, bem como a sua consagra-ção como uma “tradição” recentemente in-corporada à cultura maranhense.

Implícito está a refuncionalização do sig-nificado mítico-religioso da cultura popularpara uma função explicitamente espetacula-rizada e assistida pelos incentivadores turís-ticos, que podem ainda exaltar ou privilegiardeterminadas manifestações sociais passíveisde converterem-se em “símbolos” da identi-dade local e regional, e portanto, de incremen-tarem o Turismo. Na visão de Carlos:

A indústria do Turismo transforma tudo oque toca em artificial, cria um mundo fictícioe mistificado de lazer, ilusório, onde o espaço

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CONTINUAÇÃO

se transforma em cenário para o“espetáculo” para uma multidãoamorfa mediante a criação de umasérie de atividades que conduzema passividade, produzindo apenasa ilusão de evasão, e, desse modo,o real é metamorfoseado, transfi-gurado, para seduzir e fascinar.(CARLOS, 2002, p.26)

Rosa (2002) enuncia o aspec-to normativo existente nos pseu-do-eventos culturais, evidencia-dos no compromisso com a pro-gramação, no apelo estético, noscomportamentos dirigidos dosagentes locais que diferem subs-tancialmente da festa enquan-to celebração, mobilização e par-ticipação popular. Essas modifi-cações comprometem a espon-taneidade das manifestaçõesculturais, com a perda de suascaracterísticas singulares:

A autenticidade torna-se ques-tionável quando a destinaçãotenta esconder a encenação deum evento, dando aos visitan-tes a impressão de que eles es-tão vendo é real, quando na rea-lidade, pode ser um evento cria-do artificialmente ou pertencera um tempo passado e não terlugar na vida atual da comuni-dade ( COOPER, 2001, p.343).

A produção da cultura emum não-lugar sugestiona umduplo impacto: de um lado, nãoocorre uma compreensão da di-mensão simbólica da culturapopular por parte da demandaturística. Para Meneses (2002),a visitação turística resultanuma experiência desterritoria-lizante, que não contribui paraa compreensão intercultural.Isso significa que a experiênciaturística não se constitui numaextensão da vida cotidiana, masa sua total ruptura ou oposição.Os turistas limitam-se à meracontemplação dos bens cultu-rais, não se estabelecendo umaligação intrínseca entre os visi-tantes e a população local.

Essa constatação é descritatambém por Swarbrooke (2000),ao analisar os impactos culturaisde um pretenso turismo nas co-munidades receptoras; para oautor, a prática atual dessa ativi-dade resulta na co-transforma-ção da vida natural da popula-ção residente em um bem deconsumo ou um objeto, numprocesso de reificação das rela-

ções entre turis-tas e comunida-des; estas são vis-tas meramentecomo produtosa serem consu-midos por umperíodo de tem-po limitado sen-do sumaria-mente substitu-ídos, num cír-culo vicioso queorienta as ações,em consonân-cia com as ne-cessidades im-postas pelo mer-cado turístico.

Do outro lado, a descontex-tualização de fatos culturais por-tadores de referências simbólicas,historicidade e memória socialocasiona o sentimento de estra-nhamento da comunidade, namedida que os espetáculos insti-tucionalizados adquirem poucarepresentatividade local, sendodestituídos de significação cultu-ral. Ressalta-se ainda o caráter desustentabilidade das produçõesinventadas para o turismo, namedida em que conforme atestaRodrigues (1997), os não-lugaresnão se traduzem na dinamizaçãodas economias locais.

Considerando que a cenari-zação dos eventos culturais parao turismo insere-se no âmbitodas transformações assentes nassociedades contemporâneas, deque forma a atividade turísticapode contribuir para a promo-ção da equidade social, econômi-ca e cultural?

REINVENTANDO O NÃO-LUGAR NO TURISMO

A autenticidade dos eventos,festas e celebrações populares tor-na-se um aspecto relevante nosestudos que versam sobre as im-pactações do turismo na cultura.No entendimento de Getz ( 2001)a autenticidade de uma manifes-tação tradicional ou emergenteestá associada ao maior ou menornível de aceitação da comunida-de local, e dos sentidos, usos e sig-nificados a ela atribuídos.

Isso significa que a injunçãode elementos não identitáriosnas manifestações populares tra-dicionais, promovem uma resse-

mantização de sua dimensãosimbólica, e a posterior adapta-ção ou reapropriação do fatocultural pelos atores que o legi-timam, tornando-o parte inte-grante de suas tradições. Háuma fronteira muito tênue, eem alguns casos, transponível,entre o que se postula autenti-cidade e artificialidade dos fatossociais e das produções tangíveise intangíveis de uma sociedade.

Isso ocorre porque a tendên-cia à padronização e homogenei-zação das sociedades contempo-râneas e a desterritorializaçãodas culturas locais, reflete-senum processo inverso, o qualrefere-se à rearticulação das cul-

turas locais e regionais, e de umfortalecimento de suas particu-laridades e tradições, uma vezque “a cultura externa não che-ga a ser dominante, como se podeimaginar. As populações tradici-onais encontram mecanismosde adaptá-la, de resistir a ela oude incorporá-la em alguns casos”(FONTELES, 2004, p.159).

Para que a atividade turísti-ca contribua eficazmente parao desenvolvimento local faz-senecessário promover a articula-ção entre turismo e sustentabi-lidade, envolvendo a comunida-de na gestão do turismo cultu-ral e evitando ou minimizandoos seus efeitos negativos. Namedida em que a comunidadereconhece e redimensiona osvalores e significados do patri-mônio cultural, torna-se o prin-cipal agente do encadeamentoda gestão turística em uma loca-lidade, desenvolvendo mecanis-mos de controle, monitoramen-to e avaliação das atividades de-senvolvidas. Estabelecem-se, des-ta forma, possibilidades efetivasde ingresso da população em seg-mentos ligados direta ou indire-tamente a essa atividade, demodo a garantir que a mesmatenha acesso aos benefícios doTurismo.

REFERÊNCIAS

AUGÉ, Marc. Não-lugares. Introdução à uma antropologia dasupermodernidade. São Paulo: Papirus, 1994.________. O sentido dos outros. Atualidade da Antropologia.Petrópolis: Vozes, 1999.CARLOS, Ana Fani Alessandri. O Turismo e a produção do não-lugar. In: YÁZIGI, Eduardo (org). Turismo: espaço, paisagem ecultura. São Paulo: Hucitec, 2002. p.25-36FONTELES, José Omar. Turismo e impactos socioambientais.São Paulo: Aleph, 2004.GETZ, Donald. O evento turístico e o dilema da autenticidade.In: COOPER, Chris et al. Turismo, princípios, práticas e filoso-fias. Porto Alegre: Bookman, 2001MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. A paisagem como fato cultu-ral. In: YÁSIGI, Eduardo (org). Turismo e paisagem. São Paulo:Contexto, 2002. p.29-64.RODRIGUES, Adyr Balastreri. Turismo e espaço: rumo a umconhecimento transdisciplinar. São Paulo: Hucitec, 2001.ROSA, Maria Cristina. Festar na cultura. In: ________ (org).Festa, lazer e cultura. São Paulo: Papirus, 2002. p.11- 41.RUSCHMANN, Doris Van de Meene. Turismo e planejamentosustentável: a proteção do meio ambiente. São Paulo: Papirus,2003.SWARBROOKE, John. Turismo Sustentável: Turismo Cultu-ral, Ecoturismo e Ética. São Paulo: Aleph, 2000.URRY, John. O olhar do turista: lazer e viagens nas sociedadescontemporâneas. São Paulo: EDUSC, 1996.

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JANELA DO TEMPOJANELA DO TEMPOJANELA DO TEMPOJANELA DO TEMPOJANELA DO TEMPO

Na parte meridional da ilha do Maranhão,onde o mar impetuosamente quebra as

suas ondas enfurecidas, e a vista se perde emlongo extasi de admiração, ergue – se uma mo-desta e elegante capella.

É o tempo dedicado pela fé do christão aomilagroso São José.

Nada de mais poético pode apresentar–se áimaginação do que esse asylo de paz e do amorperdido, como uma concha marinha, nessaspraias alvejantes e continuamente beijadas pelafresca brisa do oceano!

Existem harmonias tão intimas na creação,as pompas da natureza são tão majestosas, avoz do verbo creador revela-se tanto na maisíntima das cousas, que a intelligência a maisrobustecida sente-se mesquinha diante d’essasgrandezas que attestão um poder occulto e so-berano.

Não há scepticismo, nem descrença algu-ma, que não desappareça do coração, quandoo homem, vendo-se longe do ruído da vida, daagitação e dos prazeres, lança os olhos em tornode si e percebe n’esse isolamento absoluto aonnipotência o Creador.

No meio da mais completa solidão, aquellesimples templo parece attestar ao viajante a pi-edade christã, estendendo-lhe um olhar de paze de amor.

Uma lenda muito conhecida na provínciadá-lhe uma origem cheia de poesia e mystério; éesta a história que os velhos dos tempos, que seforão, legarão aos moços da geração presente.

Era ainda no tempo colonial. Uma embar-cação portuguesa vinda de além-mar, e deman-dando o porto de São Luíz, desgarrou-se do ver-dadeiro rumo que devera seguir. O perigo eraeminente, porque os baixios de areia ahi se viãouns após outros, dessiminados, como as estre-llas no céu.

E longe estava o canal que conduzia aoalmejado destino. A ventania impellia a velacom desmedido valor; a maruja luctava em vãopara suster a morte que lhe sorria desastrosa ehorrivel.

E o barco corria sempre, como impellido poruma força desconhecida e mysteriosa. De re-pente galgou uma onda que lhe flanqueava odorso; mais um instante, eil-o montado um ban-co de areia que sinistro e ameaçador lhe acena-va a quilha...

Foi um instante de suprema agonia, aquel-le! A palidez da morte cobriu os semblantesrudes e afeitos ao perigo!

O sangue gelou-se-lhes nas veias, e o frio domedo roçou-lhes a medulla dos ossos...

- Milagre! tres vezes milagre! bradou o ma-rujo prostrando-se de joelhos.

O navio acabava de passar o banco de areiasem que um leve roçar do leme accusasse aque-lla passagem

S. JOSÉ DE RIBA-MAR*Nuno Alvares**

- Milagre, meus filhos! exclamou a voz docapitão. N’aquelle momento de angustia, euprometi ao esposo da Virgem erguer-lhe ali napraia um altar, se escapassemos todos da morteque nos ameaçava!

E, como se Deus quizesse mostrar-lhe a gran-deza do seu eterno poder, as vagas amortece-rão-se brandamente e uma tepica brisa, enfu-nando as velas, fazia o barco singar as aguas dooceano, como se as suas quilhas cortassem aplacida superficie de um lago.

E o navio d’alli a algumas horas lançava aancora no porto o seu destino.

Passarão-se muitos mezes e já a população,sabedora do milagre, duvidava do cumprimen-to da promessa, quando em um bello dia cheu apromettida imagem de Lisboa.

E a capella, poucos mezes depois, erguia-seelegante e senhoril n’aquella mesma praia ondeo milagroso S. José livrou de sossobrar a galera.

Foi um belo dia de festa aquelle! foi umalinda romaria, segundo rezão as chronicas deentão! De todas as partes o povo alfluia; as mo-ças com os seus trajes domingueiros e os moçoscom o doce contentamento de vel-as; e as ve-lhas e os velhos, exaltando aos moços e às mo-ças as virtudes e os milagres do piedoso sancto.

Sete leguas separão a bella cidade de S. Luizda costa onde se ostenta a capella; todo essecaminho foi percorrido em religiosa procissão; nafrente ia o sancto em um rico andor carregadopelos marinheiros da galera, que alternavão en-tre si de espaço a espaço. O capitão não os per-dia de vista, e assim elles se ião ufanos com assuas camisas de collarinhos azues e os negroschapeos de oleado cobertos de fitas e flores. E ospadres cantavão aquellas rezas tão bonitas queelles sabem cantar quando estão alegres, e o povoas repetia tambem por sua vez.

Assim, chegou a procissão primeiramente aum pequeno arraial hoje elevado a categoria devilla. E o arraial tinha a sua igrejinha tambem,mas não tinha, entre todos os sanctos do altar,um tão lindo e tão guapo como era S. José. Opovo do arraial sentiu a inveja penetrar-lhe nocoração, e desde então, os maiores determina-rão roubar a imagem da capella de Riba-mar!

E o sancto que lhes conhecia a intenção,diz a chronica ria-se do logro que lhes havia depregar ao depois.

Já ha algumas semanas elle vivia na sua bellacapellinha à borda do mar, quando os habitan-tes do arraial forão em procissão executar o seuplano.

Em vão se oppuzerão alguns pescadores quepara ali se tinhão mudado desde o dia da festa;nada os demoveu do seu proposito e lá se foi osancto caminho do arraial e n’essa mesma noitecollocado no altar que de antemão lhe tinhãopreparado. Houve um esplendido TeDeum noarraial e já muito tarde cada um recolheu-se

para casa confiado no futuro e abençoando opoderoso S. José.

- Fugiu! bradava no dia seguinte o sachris-tão da capella correndo pelo adro, fugiu!

E o povo corria em cardumes para a igreja,todos os olhos se fitavam no altar do S. José e osancto lá não estava!

- Fugiu! fugiu! exclamarão todas as bocas, ea consternação e o despeito se pintavão em to-dos os semblantes.

- Vamos buscal-o novamente! bradou umavoz; e foi unânime a voz do povo – vamos!

E chegárão a Riba-mar, e lá estava o sanctocom seu cajado na mão e sempre sorrindo como sorriso ineffavel dos sanctos.

Eil–o novamente em caminho para o arrai-al! D´essa vez os pescadores não se oppuzerãoque fosse, sómente dizião entre si – elle ha devoltar!

O povo desconfiou dos pescadores e, postoo sancto no altar, os maioraes determinarão queficasse uma guarda na igreja, e forão-se os ou-tros deitar.

Era mais de meia-noite e já os gallos canta-vão nos terreiros quando os guardas virão o sanc-to mexer-se no altar.

E os guardas cahirão de joelhos; um d’ellestentou levantar-se, mas ficou grudado no chão;quis gritar, mas faltou-lhe a voz na garganta. E osancto, sempre arrimado ao cajado, desceu va-garosamente os degráos de capella, passou pe-los guardas e elle virão seu corpo desenhar-se áluz da lampdada e pouco a pouco desappare-cer na escuridão abrindo-se lhe de par em par aporta do templo.

D’ahi á meia hora foi que elles poderão-seerguer; gritarão todos á uma voz; cada qual seergue sobresaltado da cama e, poucos momen-tos depois, o adro da igreja estava cheio.

Sabido o milagre, alguns mais incrédulosacendem archotes e principião a ver o cami-nho; logo ao sahir do templo virão gravadas napedra as pisadas do sancto e muitas outras se-guião em direcção á capella.

- Milagre! bradavão todos. O sancto não querdeixar Riba-mar. Deixemos o sancto! bradavãooutros.

E as velhas, mais fanáticas que todos, atira-vão-se ao chão e beijavão uma e mil vezes ospassos do sancto. E d’ahi em diante, o arraial. ehoje villa, foi chrismada com o nome de Paço, eé actualmente uma das bellas povoações da ilhado Maranhão.

O sancto nunca mais foi perturbado na suabella capellinha de Riba-mar.

Quando os pescadores contão esta legendaa algum piedoso christão que ali vai em roma-ria, é bello ouvir os milagres que narrão de S.José e a risada com que arrematão o logro, que,não obstante ser sancto, pregou aos seus visi-nhos da villa do Paço!

* Publicado originalmente no jornal “Semanário Maranhense“, Ano 1, nº 09 - São Luís, 27/10/1867 (Domingo). Foi respeitada aqui a ortografia da época. Pesquisa deZelinda Lima.

** Nuno Alvares Pereira Sousa – engenheiro civil, militar, professor, tradutor, poeta e jornalista (Cloves Ramos, 2001).

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AGENDA DE CULTURA POPULAR*

Festejo do Divino Espírito Santo – 01/08 a 31/12/2006

* Organizada por Lenir Pereira dos S. Oliveira – CMF; Coordenadora da Casa do Maranhão

TURISMO CULTURALBRÁS, Celiane Singulani. Via Sacra: a

paixão de Cristo e seu potencial turístico.São Luís: UFMA, 2004. Orientadora: Profª.Ms. Maria do Socorro Araújo. RESUMO:A Via Sacra realizada no bairro do Anjo daGuarda, em São Luís, Maranhão, como umprovável atrativo turístico. Exposição dospontos positivos e negativos existentes noespetáculo, apresentando propostas para amelhoria do mesmo.

FIGUEIREDO, Wilmara Aparecida Sil-va. Ecos do patrimônio: as novas interpreta-ções do legado cultural como alternativa dedesenvolvimento local com enfoque no tu-rismo e na ecomuseologia. São Luís: UFMA,2004. Orientadora: Profª. Ms. Maria do So-corro Araújo. RESUMO: Patrimônio cultu-ral como alternativa para o desenvolvimen-to é a discussão central deste trabalho. Ofenômeno turístico e a nova museologia,

RESUMOS E RESENHASRESUMOS E RESENHASRESUMOS E RESENHASRESUMOS E RESENHASRESUMOS E RESENHASMonografias sobre cultura popular do Maranhão*

tomando-se como parâmetro a prática eco-museológica, serão apontados como instru-mentos capazes de fomentar e propiciar asustentabilidade local.

PEREIRA, Wendell Ribeiro. As embar-cações tradicionais maranhenses como com-plemento da oferta turística de São Luís.São Luís: UFMA, 2004. Orientador: Prof.Luís Antônio Pinheiro. RESUMO: O pre-sente trabalho tem por objetivo chamar aatenção para o aproveitamento das embar-cações náuticas tradicionais maranhensescomo produto da oferta turística.

SERRA, Débora Rodrigues de Oliveira.Resgatando a liberdade: estudo de caso dobairro da Liberdade em São Luís do Mara-nhão com propostas para o desenvolvimen-to do turismo local. São Luís: UFMA, 2004.Orientadora: Profª. Ms. Maria do SocorroAraújo. RESUMO: Abordagem sobre o Bair-

ro da Liberdade como celeiro cultural de SãoLuís. Estuda suas manifestações culturais epropõe ações que possibilitarão a melhoriana qualidade de vida dos seus moradores atra-vés de sua utilização como componente daoferta turística ludoviscense.

SOUSA, Samira Honelly da Costa. Ca-minhando ao som d’Os Tambores de SãoLuís, de Josué Montello. São Luís: UFMA,2004. Orientadora: Profª. Ms. ConceiçãoBelfort Carvalho. RESUMO: O tema ca-minhando ao som de os Tambores de SãoLuís constitui-se a partir da análise da obraOs Tambores de São Luís. Por meio desta,busca-se relacionar o turismo e a culturasob a ótica da literatura, descrevendo, as-sim, os atrativos culturais de São Luís epropondo, através dos roteiros turísticosliterários, um produto turístico diferenci-al para esta cidade.

* Oganizado por Maria do Socorro Araújo – Mestre em Serviço Social (PUC-SP) e professora do Curso de Turismo da Universidade Federal do Maranhão.

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NOTÍCIASNOTÍCIASNOTÍCIASNOTÍCIASNOTÍCIAS*****

Lendas do Maranhão, do escritor e pes-quisador Carlos de Lima. Um livro para desper-tar a curiosidade da criançada e rememorar, nosjovens de mais de quarenta anos, os tempos emque se ouvia estórias sentado na calçada decasa. Carlos de Lima, aos 86 anos, apaixonadopelas histórias e estórias maranhenses, passaainda a maior parte de seu tempo envolvidocom a gente do povo recolhendo a história oral,as lendas e mitos do estado. São quase quaren-ta lendas, algumas mais conhecidas como DomSebastião, A Serpente do Ribeirão, O carro deDonana Jansen e outras nem tanto como OsBarulhos do Divino, O Palácio das Lagrimas, ALenda da Juçara, A Profecia da Cigana. Carlosde Lima é autor de várias obras que abordamtemas da cultura popular, como Bumba-meu-boi; A festa do Divino Espírito Santo em Alcân-tara; História do Maranhão; Vida, Paixão eMorte da Cidade de Alcântara (história) edita-das em livro e vários artigos no Boletim da Co-missão Maranhense de Folclore.

Careta de Cazumbá, livro fotográfico dapesquisadora Maria Mazzillo lançado em SãoLuís,dia 20 de junho durante o VII Tríduo Jua-nesco. O livro é resultado final do projeto Caretade Cazumbá que teve como objetivo geral pes-quisar o processo de trabalho de alguns artistaspopulares em seus ofícios de confecção de “care-tas” - máscaras – para serem usadas pelos perso-nagens Cazumbá do Bumba-meu-boi maranhen-se. É mais uma realização da Associação Cultu-ral Caburé apoiado pelo Programa Petrobrás Cul-tural 2004/05 na categoria Patrimônio Imaterial.

Umas mulheres que dão no couro: Ascaixeiras do Divino no Maranhão, documen-tário em DVD e em livro resultado de uma pes-quisa iniciada em 2000 pela historiadora Mari-se da Glória Barbosa . Filmado em 16 municípi-os e povoados do Maranhão mostra não só adiversidade que constitui os cultos para o Divi-no como também a especificidade dessas fes-

Lançamentostas no Maranhão com a presença das caixeiras,mulheres que constroem um grande repertóriode cantos e toques dos tambores – as caixas –singularidades que diferenciam as festas doDivino do Maranhão das realizadas em outroslugares. Lançados dia 20 de junho durante oTríduo Juanesco, o projeto teve o apoio do Pro-grama Petrobrás Cultural, 2004.

CD-Rom Festas do Divino - resultado dapesquisa e Inventário de Referências Cultu-rais sobre Festa do Divino Maranhense noRio de Janeiro. Mostra a importância do cultoao Divino Espírito Santo como fator de agrega-ção familiar e comunitária entre cariocas e ma-ranhenses que migraram para o Rio de Janeirona década de 1950 . O projeto tem como pes-quisador responsável Luciana Gonçalves Car-valho e pesquisadoras Carla Rocha Pereira,Maria Beatriz Gomes Bellens Porto e WilmaraFigueiredo. Patrocínio da Petrobás. Apoio: Se-cretaria de Cultura do Maranhão, Superinten-dência de Cultura Popular/Centro de CulturaPopular Domingos Vieira Filho, Comissão Ma-ranhense de Folclore, Abassá de Mina Jeje-nagô, Cazuá de Mironga, Ilê de Iansã-Obalu-aiê, Irmandade do Divino Espírito Santo daColônia Maranhense do Rio de Janeiro, Feste-jos Gloriosos do Espírito Santo e Senhora San-tana realizado por Olga Dias.

Realização do Centro Nacional de Folcloree Cultura Popular/IPHAN-Projeto Celebraçõese Saberes da Cultura Popular, coordenação ge-ral de Letícia Vianna.

DVD Bois-Bumbás de Manaus: brinque-do de São João – resultante de pesquisa docu-mental, consulta a arquivos, entrevistas e ou-tras fontes - retrata a vida e cultura popular dosbrincantes de boi-bumbá de Manaus, no pas-sado e nos dias atuais. Direção de Sérgio IvanGil Braga, Fotografia e Imagens de Danilo Eglee Animação de Sávio Stoco. Realização da Pre-feitura de Manaus.

2º Seminário Nacional de PolíticasPúblicas e 1º Encontro Sul-

americano das Culturas PopularesO Ministério da Cultura/Secretaria da Identi-

dade e da Diversidade Cultural em parceria coma Secretaria de Articulação Institucional/Secre-taria Executiva, o Centro de Cultura Popular doInstituto do Patrimônio Artístico Nacional-IPHAN, a Fundação Cultural Palmares, a RADI-OBRÁS e a Fundação Nacional de Artes-FU-NARTE realiza Segundo Seminário Nacionalde Políticas Públicas para Cultura Populares– momento de aprendizagem coletiva sobre ossaberes, formas de expressão e celebrações dasculturas populares - e o Primeiro Encontro Sul-americano das Culturas Populares – objetivan-do promover a integração do Brasil e da Américado Sul sob a ótica das culturas populares. Os even-tos estão previstos para os dias 14, 15, 26 e 17 desetembro de 2006, em Brasília. Os organizadorespropõem a mesma metodologia do Primeiro En-contro/2005: a realização de oficinas preparatóri-as nos estados e a presença dos protagonistas dasculturas populares em Brasília.

No Maranhão, a Secretaria de Estado daCultura/Superintendência de Cultura Popularagendou a Oficina Preparatória para 02 de se-tembro, no SESC Olho D´água, durante todo odia ao final do que serão eleitos 45 delegados.

Natal capital brasileira do folclore

Com o tema Folclore e Turismo: cenário deinclusão social a Comissão Norte Riogranden-se de Folclore e a Comissão Nacional de Folclo-re realizam o XII Congresso Brasileiro de Fol-clore no período de 29 de agosto a 1º de setem-bro, em Natal/RGN.

Durante quatro dias de intensa programaçãoserão realizados debates, palestras, reuniões degrupos de trabalho (GTs), oficinas, exposições eapresentações artísticas. O grande homenageado(in memorian) do evento é o professor e estudiosopotiguar Câmara Cascudo, um provinciano incu-rável que detestava ser chamado de folclorista,preferia “antropólogo das coisas populares”.

Dia 29 – após credenciamento e abertura ofi-cial, conferência Luís Câmara Cascudo: um bra-sileiro feliz; em seguida a abertura do Salão Brasi-leiro de Arte e Cultura Popular. Dia 30 – pela ma-nhã reuniões dos GTs e oficinas. À tarde, as con-ferencias Tradições nordestinas: heranças lusita-nas; Folclore e turismo e Turismo e religiosidade

popular; fechando o dia, a mesa-redonda Culiná-ria, folclore e turismo. Dia 31 – GTs e oficinas pelamanhã e à tarde conferências Tradição oral, regis-tro e recriação e O cordel no século XXI; e asmesas-redondas Parafolclore e turismo e Patrimô-nio imaterial e turismo. Dia 1º de setembro – pelamanhã GTs e oficinas e pela tarde mesas-redon-das Ocorrências lúdico-religiosas no Folclore e Pro-moção oficial: folclore, parafolclore e turismo. En-cerramento com reunião plenária da ComissãoNacional do Folclore.

A Comissão Maranhense de Folclore parti-cipa com professores Mundicarmo e Sérgio Fer-retti na Mesa-Redonda Turismo e Religiosida-de Popular como conferencistas; professoraSocorro Araujo, como uma das conferencistasda Mesa Redonda Promoção oficial: folclore,parafolclore e turismo; e pesquisadora RozaMaria dos Santos profere aula sobre Folguedosde danças do Nordeste II, no Curso de Atuali-zação em Cultura Folclórica.

Projeto Flor da MangueiraNo propósito de oferecer uma programação

diferenciada durante as férias, o Laborarte ofere-ceu em janeiro e fevereiro a Caravana Laborarte,todas as sextas-feiras, na Praça Valdelino Cécio,com o apoio da Secretaria de Comunicação doEstado. No mês de julho, todas as quartas-feiras, oCirco da Cidade foi o palco do Projeto Flor da Man-gueira - nome também do Show de Rosa Reis.- emque apresentaram-se os artistas: Chico Nô com o“Xaxados e Perdidos”, Poeta Zé Maria, Pela-porcodo Centro do Axixá; Carimbó de Caixeiras da Casadas Minas e de outras casas de culto, cantor ecompositor Tião Carvalho, Poeta Eduardo Júlio;Tambor de Crioula de Mestre Felipe , Cacuriá deDona Teté, Poeta Joãozinho Ribeiro, cantor Cláu-dio Pinheiro; Baião Cruzado da Vila Ivar Saldanha,Poeta Lúcia Santos, cantor e compositor AntonioVieira e Show Flor da Mangueira de Rosa Reissempre encerrando a programação das quartas fei-ras. O Laborarte teve o apoio da Secretaria de Esta-do da Cultura e Fundação Municipal de Cultura.

Festa de São BeneditoA Irmandade de Nossa Senhora do Rosário

dos Pretos de São Luís realiza mais um festejo deSão Benedito. O ponto alto é a procissão no dia13, segundo domingo de agosto. Várias casas deculto afro-maranhense festejam São Benedito nes-se período pelo sincretismo com Averequete. DonaCeleste da Casa das Minas é uma das mais anti-gas vodunsis a comemorar o vodum nesse dia.

Festa do Divino deAlcântara perde caixeiraMorreu dia 20 de julho, aos 74 anos de idade,

Dona Margarida, caixeira da Festa do DivinoAlcântara desde a adolescência. Seu corpo foivelado na Igreja Nossa Senhora do Rosário dosPretos sob o ritmo do canto e do toque das cai-xeiras e salva de foguetes.* Oganizado por Roza Maria Santos – Pesquisadora CMF. Bacharel em Comunicação.

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Perfil PopularCarlos de Lima29

* Carlos de Lima - Comissão Maranhense de Folclore** Refrigerante existente há anos passados em São Luís-MA (Memória de Velhos: depoimentos. v. 2, p. 197).

Luís de França nasceu na Liberdade, pró-ximo ao Anil, em 1916, filho de Lúcio

Antônio Rodrigues, nascido no Munim, eEduviges Apolônia Rodrigues, de Alcântara.Dos dezesseis filhos do casal sobreviveramcinco. Segundo dizia sua mãe, seu avô tinhasido escravo e gostava de dançar e cantar tam-bor-de-crioula para os brancos, de fazendaem fazenda. Cantava bem, fazia versos, ti-nha boa voz...

Aos 12 anos foi, como aprendiz de car-pinteiro, trabalhar na construção do prédioda Alfândega, na Praia Grande, atual sede daCâmara Municipal de São Luís, passando,depois, para a rua do Passeio, na edificaçãoda atual Casa do Estudante.

Já senhor das artes do ofício, por estasincongruências do destino, largou tudo e foiser estivador marítimo, ou seja, trabalhadordo cais. A esse tempo os navios chegados aoporto fundeavam ao largo, obrigando a bal-deação da carga do barco para as alvarengas(grande chatas de ferro) e destas para o cais.Esta era a ocupação dos estivadores.

De estudo só o teve o Luís de França atéo terceiro ano primário. “O resto aprendi naprática”, como ele mesmo diz.

Em 1939, no Boi da Maioba, o Luís ou-viu e ficou impressionado com o cantadorLuís Costa. Inspirou-se e fez seus primeirosversos.

“Ora veja, como fui me embriagarVinho e cerveja, com Sissi** e guaraná.Caí sem tá maduro e sem ser fruta de vezO que não faz neste mundo a tal da em-

briaguez.”

Convenhamos que não eram tão brilhan-tes as rimas, mas tudo tem de ter um come-ço, não é mesmo?

Também em 39 foi fundada a “Turma doQuinto” e Luís de França, “que gostava debatucar pela rua em bela companhia”, tor-nou-se um dos poetas do grupo. O nome sur-giu como uma homenagem ao 5º Batalhãode Infantaria, sediado no antigo quartel doCampo de Ourique, demolido para dar lugarà atual Praça do Panteon. Iniciaram o blocoInocêncio (Lousa), Timóteo, Joaquim Care-ca, Carrinho, Zé Caboquinho, Sapinho e

LUÍS DE FRANÇA RODRIGUES

outros mais, “vinte-e-duas pessoas”, a tur-ma que se reunia para batucar e cantar pe-las esquinas do bairro da Madre-Deus.

Pelo São João os rapazes saíam com umboizinho – O Filho do Samba – penduradode uma vara e iam brincar no bairro do JoãoPaulo. Luís de França fazia os versos paraserem cantados:

“Eu deixar de festejarFilhos do Samba não possoFilhos do Samba é...Filhos do Samba é nosso.Vou saindo, vou saindoNa noite de São João,Vou pra vila do João Paulo,Vou soltar o meu balão.”

E foi assim que Luís de França Rodri-gues se consagrou como o poeta da Madre-Deus e da Turma do Quinto, embora hou-vesse outros como Cristóvão, Sapo, etc.

Pelo Carnaval o bloco ia até à porta do cemi-tério, reverenciar a memória dos companhei-ros mortos e depois descia a rua do Passeio,Caminho da Boiada, Rua Grande, cantandoas músicas dos compositores da Turma.

Até que veio a moda do samba-enredo,com a escolha de uma composição, em de-trimento das demais. Por isso o Luís de Fran-ça é contra o samba-enredo: “- Eu acho até

que se eu fosse fazer eu faria, mas eu nãofaço porque na hora não cantam o meu sam-ba e eu fico chateado do trabalho que eutive...”

Nesse tempo não havia organização rija,“era tudo misturado, as pequenas saíam nafrente, pulando e tal... depois chegou porta-bandeira, chegou rainha, chegou mestre-sala...” Cristóvão e Timóteo tocavam pan-deiro, o Luís, cabaça; havia ainda o tambor-de-marcação e a retinta, o tamborim, feitode lata e batido com a mão. E o clarim. “É,nós usamos muito no Quinto.”

Luís de França é um apaixonado do Car-naval autêntico do Maranhão, inconforma-do com as mudanças. Protesta veementemen-te contra as inovações estranhas: “ – Eu achoque a gente devia fazer o nosso Carnaval da-qui, o Carnaval da terra... e não fazer cópia...mas se não fizer assim não ganha, né? As au-toridades não consideram, então tem de co-piar o Rio de Janeiro. Aliás, opinião do João-zinho Trinta, que cada Estado deve fazer seuCarnaval próprio e não copiar o Carnaval doSul.” Tem saudades “daquele Carnavalzinhoque nós fazia aqui bonitinho, de tarde, maistardar oito horas tava terminado...” A épocadas brincadeiras, dos blocos, dos fofões, do-minós, pierrô e colombina, as visitas às ca-sas... os bailes... O rodó! “Era um Carnavalcheiroso, passava uma pessoa se sentia operfume”, arremata suas lembranças.

Luís de França continuou sua carreirade compositor: O filho do Samba, Isaura,Timbira voltou (sobre a re-inauguração daRádio), Demoliram o morro (urbanização daMadre-Deus), Fica 25 abençoado (25 anosde fundação do Quinto), Homem trabalha-dor, para o hoteleiro Moacir Neves, Sua au-toria, Quem viver verá, Profissão de malan-dro, uns duzentos e tantos, segundo diz. “Fizum hino para a Federação dos Motoristasdo Rio de Janeiro e outro para o Sindicatodos Motoristas.”

Luís foi também um dos fundadores daOrganização Maranhense dos Compositores,idéia de Américo Freitas, um moço empreen-dedor, e do conjunto musical “Prata da Casa”.

Luís de França é já falecido. Foi um ba-talhador intransigente do Carnaval e expo-ente da música popular do Maranhão.