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EDITORIAL

O que falta para o que chamam de “fim dos tempos”? Se tornou corriqueiro abrir a página de

algum jornal do mundo e se deparar com questões como as de fome, moradia e problemas

ecológicos. Parece-nos que o chamado “fim do mundo” está mais organizado do que a continuação

dele mesmo. No meio disso tudo, ou seja, ao mesmo tempo, tentamos pensar coisas. Pensar não

apenas por parar e refletir, mas sim por continuar se movendo e propor enfrentamentos. Em tempos

como o nosso não parece ser benéfico para nós mesmos ficarmos parados e calmos.

Façamos então outra pergunta relacionada: o que custa nos dias de hoje se posicionar contra

algo? É mais do que nítido que o fim dos tempos já acontece diariamente para os índios, negros,

mulheres, LGBTQI, etc. O fascismo às vezes se apresenta com nome próprio, porém qualquer que

seja o nome que desejam chamar-lhe, a pergunta é: a quem interessa não falarmos de fascismo?

Afirmamos aqui que a nós não. É contra o fascismo que esse texto fala.

Essa é a nossa primeira edição pós eleições de 2018 no Brasil, e seria preciso muito mais do

que um editorial ou uma revista para falar sobre ela. Contudo, é preciso que a Revista Lampejo

afirme um posicionamento perante a todos. A nossa filosofia é aquela que critica o seu tempo, que

luta contra suas intempéries, contra toda sua baixeza de pensamento. O pensamento que propomos

e tentamos defender aqui não é de algo velado pela mesquinhez ou bestialidade dos que falam pelo

bem. Tentamos nos posicionar além do bem e do mal, e de peito aberto nos envolvemos com aquilo

que é de fato antifascista.

Os recentes ataques às universidades públicas são um ataque contra nós, não apenas contra

aquilo que lemos, pensamos e falamos, mas contra aquilo que somos. Fazer o que fazemos é

intrínseco não só às leituras, aulas, produções de textos, revistas e eventos que produzimos, mas ao

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que vivemos. Não se ataca uma profissão, mas um modo de vida. Pensamos não para exegese

daquilo que acalma e prega a mesmidade, um tempo estático que é sempre em função dos que

venceram a guerra há muitos anos. Vivemos nossos pensamentos, enfrentamos o que nos aparece,

e não abriremos mão disso.

Por isso nos dirigimos diretamente e com veemência aos últimos ataques ao curso da

instituição que foi base de formação de quase todos os integrantes do grupo que produz essa revista,

o Curso de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará – UECE. Em apoio a todos os estudantes e

professores acusados de antifascistas, nós estamos aqui, sendo antifascistas juntos. Para além de

qualquer saber, há uma experiência, há vida, e estamos aqui para isso: difundir e potencializar

experiências. Uma resposta que damos a qualquer ameaça contra a filosofia, os modos de vidas

atacados pelo estado, pela “boa” moral difundida, ou qualquer outro, afirmamos que o mundo

necessita de enfrentamentos, e a Revista Lampejo está aqui para dizer a todos e principalmente

àqueles que estão aterrorizados com os acontecimentos recentes: nós estamos juntos.

Por mais que pareça que há um fim de mundo organizado por aqueles espectros estranhos e

outras entidades que regulam e controlam diversas vidas, não iremos desistir. Não estamos aqui de

modo algum para desistir, ou aderir ao discurso do medo. Há inúmeros fins de mundos acontecendo

diariamente para tantos, contudo, o que podemos dizer aqui é que isso não nos impede de lutarmos,

criarmos diversas vidas, diversas experiências. Não deixaremos de pensar a sua continuação ou o

fim do mundo. Não temos medo de experienciar o fim dos tempos, quem sabe até consigamos criar

um outro fim possível (ou outro mundo).

Se um tempo merece ter as respostas à sua altura, a filosofia deve exigir-se mais forte ainda,

porque a sua baixeza pode significar o triunfo da morte. Lembremos novamente: o intempestivo

vibra e vive. O pensamento que aqui queremos sempre incentivar e propor é um que pulse potência

e vida. É “trágicômico” que os que são pela vida só falam mesmo em armas e morte. Lutamos contra

forças, mas somos forças também, e além disso não somos poucos. Podemos estar naquele

momento que a madrugada fica um pouco mais escura, logo antes do amanhecer, e o medo quer

falar mais alto. Mas não temamos, pois pelo crepúsculo já passamos, agora passaremos a aurora.

Os editores

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ÍNDICEARTIGOS

[p.05] ONTOLOGIA DA IMAGEM CINEMATOGRÁFICA EM GILLES DELEUZEMaria Helena Lisboa da Cunha

[p.16] SUBSÍDIOS PARA A VISIBILIDADE DE MULHERES NA HISTÓRIA DA FILOSOFIAAna Carla de Abreu SiqueiraAna Carla de Abreu Siqueira

[p.32] O PERCURSO DAS VERDADES VISCERAIS EM EMIL CIORANJayme Mathias Netto

[p.46] CONSTELAÇÃO HISTÓRICA DE CRISEPedro Henrique Magalhães Queiroz

[p. 60] STAGING A NOUMENAL BODY IN THE VVORSTELLUNGSWELT, OR:DISSECTING “MATERIALITY” IN SCHOPENHAUER AND BUTLERRaiany Romanni

[p. 77] O DISCURSO TRÁGICO DA PSICANÁLISE DIANTE DO MAL-ESTAR CONTEMPORÂNEOCONTEMPORÂNEOGabriel Crespo Soares Elias

[p. 92] O MUNDO COMO FÁBULA: NIETZSCHE E A CRÍTICA AO CONHECIMENTO FILOSÓFICO Leonardo Magalde Ferreira

TRADUÇÃO

[p. 106] O QUE É AURA?WWalter BenjaminTradução:Maria Thaís da Silva da Cruz

Revista Lampejo ISSN 2238-5274

Editores Leonel Olímpio Luana Diogo Thiago Mota

Comissão editorial ÁÁtila Monteiro Daniel Carvalho David Barroso Fabien Lins Gustavo Costa Gustavo Ferreira Henrique Azevedo PPaulo Marcelo Brito Rogério Moreira Ruy de Carvalho William Mendes

Conselho editorial Prof. Dr. Ernani Chaves Prof. Dr. Ivan Maia de Mello PProf. Dr. Jair Barboza Prof. Dr. José Maria Arruda Prof. Dr. Luiz Felipe Sahd Prof. Dr. Luiz Orlandi Prof. Dr. Miguel Angel de Barrenechea Prof. Dr. José Olímpio Pimenta Prof. Dr. Peter Pál Pelbart PProf. Dr. Roberto Machado Prof. Dra. Rosa Maria Dias Prof. Dr. Sylvio Gadelha

Projeto gráfico e diagramação Herlany SiqueiraLuana Diogo Gustavo Costa

CapaCapaJuliana De BoniCaio Júlio Ary

FotoIgor de Melo

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Ontologia da imagem cinematográfica em Gilles Deleuze, pp. 05-15

Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 5

ONTOLOGIA DA IMAGEM

CINEMATOGRÁFICA EM GILLES DELEUZE

Maria Helena Lisboa da Cunha1

RESUMO: A filosofia de Gilles Deleuze é uma filosofia das formas do tempo, isto é, ela é atravessada pela relação do tempo com o pensamento objetivando uma “imagem do pensamento” que escapa a toda determinação representativa. Por isso mesmo, o filósofo faz interseções com outras velocidades do pensamento, seja a literatura, a pintura, o teatro ou o cinema, sendo a sétima arte a que ele dedicou duas obras a partir dos conceitos bergsonianos de “duração” (durée): “Imagem-movimento” e Imagem-tempo”. Este texto pretende traçar essa trajetória do pensamento do filósofo, privilegiando a imagem cinematográfica. Palavras-chaves: filosofia – tempo – pensamento – duração – cinema RÉSUMÉ: La philosophie de Gilles Deleuze est une philosophie des formes du temps, autrement dit, elle est traversée par le rapport du temps et de la pensée pour une “image de la pensée” qui échape a toute détermination representative. Pour ça, le philosophe fait des intersections avec d’autres vélocités de la pensée, soit la literature, la peinture, le théâtre ou le cinéma, cette septième art laquelle il a dedié deux oeuvres a partir des concepts bergsoniennes de “durée”: “L’image-mouvement” et L’image-temps”. Ce text a la pretention de dessiner cette trajétoire de la pensée du philosophe avec le privilège de l’image cinematographique. Mots-clefs: philosophie – temps – pensée – durée - cinéma

1 Professora-Titular de Filosofia do Departamento de Filosofia do IFCH/UERJ.

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Ontologia da imagem cinematográfica em Gilles Deleuze, pp. 05-15

Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 6

A filosofia de Gilles Deleuze é atravessada de cabo a rabo por um problema específico: a

relação do tempo com o pensamento, isto é, a maneira como o tempo configura uma imagem do

pensamento que escapa a toda determinação representativa:

A imagem do pensamento só retém o que o pensamento pode reivindicar de direito. O pensamento reivindica ‘somente’ o movimento que pode ser levado ao infinito. O que o pensamento reivindica de direito, o que ele seleciona, é o movimento infinito ou o movimento do infinito. É ele que constitui a imagem do pensamento.2

Deleuze considera os movimentos do infinito sobre o plano misturados uns aos outros,

conectados ou transversalizados de tal modo que, ao invés de romper com o UNO-TODO do plano

de imanência, acabam constituindo sua curvatura variável, as concavidades e as convexidades, sua

natureza fractal como ele, acertadamente, pondera em Mil platôs:

O pensamento não é arborescente e o cérebro não é uma matéria enraizada nem ramificada. O que se chama equivocadamente de ‘dendritos’, não assegura uma conexão dos neurônios num tecido contínuo. A descontinuidade das células, o papel dos axônios, o funcionamento das sinapses, a existência de microfendas sinápticas, o salto de cada mensagem por cima destas fendas fazem do cérebro uma multiplicidade que, no seu plano de consistência ou em sua articulação, banha todo um sistema, probabilístico incerto, um certain nervous system (2004, p. 25).

Isto porque, para o filósofo, o pensamento funciona com imagens ou idéias imagéticas,

os conceitos filosóficos têm uma imagem, a exemplo do livro raiz de Mil platôs: “A árvore já é a

imagem da árvore-mundo. É o livro clássico, como bela interioridade orgânica, significante e

subjetiva (os extratos do livro)”.3 O que Deleuze quer expressar com este exemplo é a realidade

espiritual da árvore raiz, ela necessita de uma forte unidade principal, um eixo, para chegar a duas,

o que quer dizer que esse pensamento não compreende a multiplicidade, operando sempre por

dicotomias. Afirma Deleuze que até uma disciplina avançada como a linguística, retém como

imagem de base essa árvore raiz que a liga à reflexão clássica (assim temos Chomsky e a árvore

sintagmática, começando num ponto S para proceder ainda por dicotomia). O filósofo entende que

a lógica binária e as relações biunívocas dominam também a psicanálise, o estruturalismo e a

informática.

A segunda figura do livro é o sistema radícula ou raiz fasciculada. Afirma Deleuze que, nesse

caso, o eixo principal abortou ou se destruiu na extremidade, a ele vindo se enxertar uma

multiplicidade de raízes secundárias que deflagram um grande desenvolvimento, a exemplo da

dobragem de um texto sobre outro constituindo raízes adventícias; porém, essa multiplicidade

2 DELEUZE, G. O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonzo Muñoz, p. 53. 3 DELEUZE, G./GUATTARI, F. Mil platôs, vol. I. Trad. Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa, p. 13.

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Ontologia da imagem cinematográfica em Gilles Deleuze, pp. 05-15

Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 7

ainda se encontra presa numa estrutura, seu crescimento sendo compensado pelas leis de

compensação. Nesse caso, o mundo tornou-se caos, mas o livro permanece sendo imagem do

mundo, caosmo-radícula em vez de cosmo-raiz. Segundo Deleuze, o sistema fasciculado, não rompe

genuinamente com o dualismo, com o binômio sujeito-objeto, a exemplo da psicanálise: “não

somente em sua teoria, mas em sua prática de cálculo e de tratamento, ela submete o inconsciente

a estruturas arborescentes, a grafismos hierárquicos, a memórias recapituladoras, órgãos centrais,

falo, árvore-falo”.4

Um terceiro exemplo referido por Deleuze é o livro-rizoma. Um rizoma é um sistema

absolutamente diferente das raízes e radículas, a exemplo dos bulbos e dos tubérculos, a batata e a

grama, a erva daninha. Podemos nos reportar também às tocas, no mundo animal, com todas as

funções de habitat, de provisão, de deslocamento, de evasão e de ruptura. O rizoma se diferencia da

raiz e da radícula desde que não se fixa num ponto, não tem uma ordem, é uma multiplicidade e

denuncia as pseudomultiplicidades arborescentes:

Um rizoma não cessaria de conectar cadeias semióticas, organizações de poder, ocorrências que remetem às artes, às ciências, às lutas sociais. Uma cadeia semiótica é como um tubérculo que aglomera atos muitos diversos, linguísticos, mas também perceptivos, mímicos, gestuais, cogitativos: não existe língua em si, nem universalidade da linguagem, mas um concurso de dialetos, de patoás, de gírias, de línguas especiais.5

Em Deleuze, a imanência ocupa um lugar primordial, posto que herdeiro da tradição

filosófica de Spinoza e Nietzsche, que romperam com o primado da transcendência na filosofia cuja

herança é platônico-cristã. A tradição clássica do pensamento se valia de um regime orgânico da

imagem, um modelo de verdade. Deleuze, na esteira de Nietzsche assim como também Foucault,

promove a implosão do modelo de verdade, representação ou recognição, em prol de um plano de

imanência ou de luz, planômeno, povoado de conceitos que se territorializam e se desterritorializam,

ad infinitum. No entender de Deleuze, o plano é desterritorializado desde que horizonte absoluto e

não relativo a um observador, mas é nele que se produzem territorializações, isto é, recortes ou

dobras sobre o plano, sendo a filosofia apenas uma das possíveis dobras, coexistência dos planos,

não uma sucessão de sistemas como querem nos fazer crer uma determinada vertente do

pensamento. Por isso, observa que o plano é pré-filosófico, não pertencendo apenas à filosofia, mas

à poesia, à literatura, à ciência e a outros recortes do pensamento. O tempo deixa de ser atrelado ao

4 DELEUZE, G./GUATTARI, F. Mil platôs, vol. I, p. 28. 5 IDEM, pp. 15-6.

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Ontologia da imagem cinematográfica em Gilles Deleuze, pp. 05-15

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movimento como em Aristóteles e Platão, o “número do movimento” e “sai dos eixos” conforme o

enunciado de Hamlet, I, 5 (Shakespeare): é um tempo não-reconciliado ou “tempo fora dos eixos”:

Os gonzos (dobradiças)* são o eixo em volta do qual a porta gira. O gonzo, Cardo, indica a subordinação do tempo aos pontos cardinais por onde passam os movimentos periódicos que ele mede. Enquanto o tempo está nos seus gonzos, ele está subordinado ao movimento extensivo: ele é a medida, intervalo ou número (...) O tempo fora do eixo, a porta fora dos gonzos, significa a primeira grande subversão kantiana: é o movimento que se subordina ao tempo.6

Chamamos a atenção para o fato de que Deleuze concebe a filosofia como “uma lógica das

multiplicidades”.7 Uma multiplicidade não se deixa sobre-codificar sendo sempre plana, formando

o plano de consistência das multiplicidades. A característica das multiplicidades é que elas se

definem pelo fora: linhas de fuga ou de desterritorialização, com as quais formam novas sínteses ao

se conectarem umas às outras. Uma multiplicidade não tem nem sujeito nem objeto, mas

determinações, dimensões que não podem crescer sem que mudem de natureza: “Sabedoria das

plantas: inclusive quando elas são de raízes, há sempre um fora onde elas fazem rizoma com algo ―

com o vento, com um animal, com o homem (...) Conjugar os fluxos desterritorializados”.8 Todo

rizoma compreende linhas de segmentaridade: ele é estratificado, territorializado, organizado,

significado, atribuído, “porque o rizoma é a imagem do pensamento que se estende sob a das

árvores”.9

Ao mesmo tempo, compreende também linhas de desterritorialização pelas quais ele foge

sem parar. As “linhas de fuga” fazem parte do rizoma e não param de se remeter umas às outras.

Existem, pois, territorializações mesmo em cima do rizoma. Uma das características mais

importantes do rizoma é o fato de ter múltiplas entradas e múltiplas saídas, como no caso da toca a

que se refere Deleuze. A toca é um rizoma animal, como a batata é um rizoma vegetal e consiste

numa distinção entre uma linha de fuga como lugar de deslocamento e o habitat. Nesse sentido,

também a literatura pode ser uma toca, a exemplo da seguinte afirmação do autor em sua obra

Kafka. Por uma literatura menor:

(...) um rizoma, uma toca, sim, mas não uma torre de marfim. Uma linha de fuga sim, mas de modo algum um refúgio. A linha de fuga criadora traz com ela toda política, toda economia, toda burocracia e a jurisdição; ela suga, como vampiro; para fazê-los dar sons

6 IDEM, « Sur quatre formules poétiques ». In Critique et clinique, pp. 40-1. 7 ESCOBAR, C. H. (org.) Dossier Deleuze, p. 21. 8 DELEUZE, G./GUATTARI, F., opus cit., p. 20. 9 ESCOBAR, C. H., opus cit., p. 23. *O termo (dobradiças) como explicação para gonzos é um adendo nosso por entender que o termo gonzos não se encontra no uso ordinário da língua.

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ainda desconhecidos, que pertencem ao futuro próximo-fascismo, estalinismo, americanismo, as potências diabólicas que batem à porta.10

Segundo Deleuze, quando a filosofia faz interseções com outras velocidades do pensamento,

não se trata jamais de reflexão porque a especificidade da filosofia não é refletir nem comunicar,

mas problematizar: a filosofia não fala sobre algo, mas sim com algo, trata-se sempre de uma

ressonância e não de uma reflexão, observa Arêas no seu texto, O cinema e a filosofia. Devemos

atentar para as ressonâncias entre os conceitos da filosofia e os novos tipos de imagem que o cinema

aborda: para Deleuze na esteira de Bergson, a matéria não é substrato, ela é tal como aparece, pura

superfície das imagens; agenciamento maquínico, universo como cinema, imagens que introduzem

um fator de diferença, um intervalo ou hiato. O que leva Deleuze a se interessar pelo cinema são

problemas filosóficos; ele não trabalha “sobre” o cinema, mas sobre os problemas que o cinema

suscita, posto que o cinema não precisa da filosofia para pensar, ele tem meios próprios para resolver

seus problemas.

Um problema que vai se colocar tanto para o cinema quanto para a filosofia diz respeito à

superação da cisão (chorismós) que se estabeleceu entre o tempo como atualização da duração

inextensa na consciência e o tempo quantitativo extenso no espaço. Cisão entre o subjetivo e o

objetivo, entre imagens subjetivas e movimento objetivo. Bergson entende o cinema como uma

máquina que compõe o movimento por uma série de imobilidades (fotogramas) postas em

movimento através de um movimento em geral (projetor), o que falsearia a verdadeira natureza

indecomponível do movimento, afirmando a distinção entre imagem e movimento que só se

comporiam artificialmente. No seu entender, o cinema seria como uma máquina zenoniana de

reprodução do real: “O movimento considerado por Zenão não seria o equivalente do movimento

de Aquiles, a menos que quiséssemos tratar o movimento como se trata o intervalo percorrido, isto

é, decomponível e recomponível à vontade”11, o que sabemos ser falso. No polo oposto, temos o

célebre exemplo do elástico, presente em A evolução criadora: “Suponhamos um elástico que

estiquemos de A a B; poderíamos dividi-lo em extensão? O curso da flecha é essa própria extensão,

tão simples como ela. Trata-se de um só e único salto”.12

No entanto é compondo justamente com os textos bergsonianos, inclusive com as teses

sobre o movimento do quarto capítulo de A evolução criadora (1941), que Deleuze vai reverter a

10 DELEUZE, G./GUATTARI, F. Kafka. Por uma literatura menor. Trad. Júlio Castanõn Guimarães, p. 62. 11 BERGSON, H. A evolução criadora. Trad. Nathanael C. Caixeiro, p. 270. 12 IDEM, p. 268.

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perspectiva de que o cinema é uma produção de imagens à qual se acrescenta o movimento, como

concebia a psicologia clássica, mas sim a identidade absoluta entre imagem e movimento, matéria

fluida e luminosa como Bergson a concebeu na esteira de Platão em O timeu: “O material cósmico

que, com efeito, o demiurgo molda, com os olhos voltados para as Formas, é tanto mais “difícil e

obscuro” para se compreender (49 e 4) quanto sua materialidade não reenvia a nenhuma experiência

sensível ou a uma definição racional, mas a um puro jogo de imagens”.13

O conceito de imagem deleuziano é inspirado pelo mundo em imagens de Bergson,

caleidoscópio luminoso e dinâmico não representativo do pensamento que se doa como imagens-

corpos, a meio caminho entre o realismo e o idealismo, tendo o meu corpo, que também é imagem,

como um centro de referência. No primeiro capítulo de sua obra Matéria e memória, fundamental

para essa concepção imagética do universo, a “matéria é um conjunto de imagens, e percepção da

matéria essas mesmas imagens relacionadas à ação possível de uma imagem determinada, meu

corpo”.14 Para o filósofo supramencionado, as imagens são corporais e, portanto, não se

representam na consciência, sendo esta apenas uma superfície refletora (tela negra) das imagens

materiais. A matéria imagética bergsoniana se manifesta como um conjunto de imagens em

movimento que não se distinguem do próprio movimento que executam ou que recebem, não há

móvel por debaixo do movimento15, não há uma matéria oculta para além do que aparece, são,

portanto, matéria-movimento: quando eu percebo uma serpente dando o bote, não posso dissociar

o bote do movimento que ela executa, eu percebo ‘algo’ dando o bote, mesmo que eu não perceba

quem ou o que está dando o bote.

Atrelada à ‘imagem do pensamento’ da matéria numa duração contínua (conceito de durée

em Bergson), conforme a ideia de um novelo de lã que se enrola e se desenrola no tempo: “[...] A

duração interior é a vida contínua de uma memória que prolonga o passado no presente, seja porque

o presente encerra distintamente a imagem incessantemente crescente do passado, seja, mais

ainda, porque testemunha a carga sempre mais pesada que arrastamos atrás de nós à medida que

envelhecemos”16, há a questão de que esse Todo não pode ser uma totalidade fechada porque senão

13 MATTEI, J.-F. Platon et le miroir du mythe, p. 193. 14 BERGSON, H . Matiere et mémoire, p. 17. 15 Traçando um paralelo com a física das partículas chamada de física quântica, onde no nível subatômico as interrelações e interações entre as partes do todo são mais fundamentais que as próprias partes, por isso há movimentos, mas não existem objetos moventes, há atividade, mas não existem atores, não há dançarinos, somente a dança (cfr. CAPRA, F. O ponto de mutação. Trad. Álvaro Cabral, “A ciência, a sociedade e a cultura emergente). 16 BERGSON, H. “Introdução à metafísica”. In Os Pensadores, vol. XXXVIII. Trad. Franklin Leopoldo e Silva, p. 31.

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Ontologia da imagem cinematográfica em Gilles Deleuze, pp. 05-15

Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 11

não seria possível a inovação, a criação do novo. Daí que, já no início da obra A evolução criadora,

Bergson postule a duração do universo correlata à ideia de criação, ideia cara à Deleuze que a

incorpora ao seu conceito de tempo:

Ora se o vivente é um todo, portanto assimilável ao todo do universo, não é tanto porque seria um microcosmo tão fechado quanto o todo supostamente o é, mas, ao contrário, enquanto ele é aberto para um mundo, e que o mundo, o próprio universo é o Aberto.17

Não poderia ser de outro modo em se tratando de uma filosofia que faz da novidade e da

invenção os substitutos da velha eternidade: o movimento não para de integrar as partes que se

movimentam ao Todo e o Todo não para de se dividir, mudando de natureza nas coisas que se

movimentam e entre os dois tudo muda.18 É o mundo da variação universal onde tudo reage sobre

tudo em todas as suas faces e em todas as suas partes elementares. Mundo acentrado por excelência

onde ainda não é possível se falar de coisas, centros ou sujeitos. Mundo de uma luz difusa que se

propaga ao infinito graças à ação e reação dessas imagens. Habitamos um presente vivo, estamos

sempre atrelados ao tempo. Mas nesse dentro entrevemos sempre uma abertura por onde o tempo

se inscreve. Não saímos do presente, mas observamos que o presente não para de passar. Se ele

passa, passa em função de um passado que o faz passar, sendo ele antes já passado imediato, do

contrário jamais passaria.

Mas também é preciso dizer o mesmo do futuro iminente, pois se o presente passa, o faz em

proveito de um futuro que há de vir. Não saímos do presente, mas já atestamos que ele faz a síntese

com o passado imediato e com o futuro iminente. Esta síntese intra-temporal, que se dá no

presente, mostra-nos o quanto o instante matemático não passa de uma ilusão. Somos uma duração

concreta e, dessa forma, assistimos o prolongamento do nosso passado no presente indo de

encontro ao futuro. Mas esse dentro intra-temporal é fundado por um dentro mais profundo, assim

como esse fora relativo nos faz entrever um fora absoluto. Esse fora absoluto implica um tempo

ainda por vir, enquanto o dentro absoluto é a própria memória: a “duração” como possibilidade de

o tempo se manifestar: virtualidade transcendental! Nela entrevemos um passado que nunca foi

presente, mas por isso mesmo, se institui como condição de possibilidade para que o presente passe.

Este, só poderia passar em função de um tempo que o fizesse passar.

17 DELEUZE, G. L’image-mouvement, p.20. 18 IDEM, p. 22.

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Ontologia da imagem cinematográfica em Gilles Deleuze, pp. 05-15

Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 12

O passado é o fundamento, é ele que faz com que o presente passe, mas isso implica que,

enquanto passado puro, ele nunca foi presente, pois é a razão de o presente passar. Ele, enfim,

coexiste com todo o presente que passa sob a forma de virtualidade. A duração só aparentemente

se confunde com a ideia de sucessão, sendo mais acertadamente coexistência, simultaneidade.

Trata-se de uma coexistência virtual, onde há diversos graus de “duração” superiores e inferiores,

ainda que interiores a nós, coexistimos com durações diversas, graças à onipresença desse passado

ontológico que se conserva e que faz passar todo o presente. Como observa Peter Pál Pelbart, em

sua obra, O tempo não-reconciliado, “O passado é o único que é, rigorosamente falando. Ainda que

inútil, inativo, impassível, o passado é o em-si do ser, contrariamente ao presente, que, este sim, se

consome e se coloca fora de si. O presente é o que constantemente já era, o passado o que

constantemente já é. (...) o psicológico é o presente, mas o passado é a ontologia pura”.19

Diferentemente de Bergson, Deleuze vai entender o “mundo como cinema” e o cinema como

imagens-movimento e imagens-tempo, o cinema clássico até o cinema moderno ainda atrelado ao

movimento, ainda imaturo para o mergulho na “duração”, só a atingindo indiretamente: modulação

do real cujo objetivo é renovar ou revolucionar a relação do homem com o mundo; o cinema

moderno com o nouveau realisme de De Sica, Rosselini, Antonioni, Visconti, Fellini, Resnais, Godard,

Renoir, Ophüls, a maturidade para o mergulho direto no tempo da “duração”, surge da perda do

homem com o mundo, o pensamento é aí confrontado com a sua impotência e falência, não mais se

prendendo à sucessão das imagens, mas ao recurso de imagens ópticas e sonoras puras: é preciso

fundir o pensamento com a imagem direta do tempo, uma realidade delirante, alucinatória, próxima

ao sonho, cinema de vidente: “Desfaz-se a intriga, a história, a ação, com seus espaços-tempos

qualificados. A situação dramática perde o privilégio, não há momentos fortes, qualquer instante

pode ser de vidência, qualquer miragem pode ser de espanto, de excesso, de horror, de beleza”.20

As imagens-movimento representam indiretamente o tempo, mas não dão conta do tempo na sua

pureza como explicita Bergson no conceito de “duração”:

A duração é o progresso contínuo do passado que rói o futuro e infla ao avançar. A partir do momento que o passado aumenta sem cessar, infinitamente também ele se conserva (...) Em realidade, o passado se conserva por si mesmo, automaticamente. Por inteiro, sem dúvida, ele nos acompanha a cada instante: o que sentimos, pensamos, quisemos desde nossa primeira infância nele está, na direção do presente que vai a seu encontro, pressionando contra a porta da consciência que quisesse deixá-lo do lado de fora.21

19 PELBART, P. O tempo não–reconciliado. Imagens de tempo em Deleuze, p. 36. 20 IDEM, p. 8. 21 BERGSON, H. A evolução criadora, p. 16.

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Ontologia da imagem cinematográfica em Gilles Deleuze, pp. 05-15

Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 13

A ideia de um Todo Aberto aparece no inicio da obra A evolução criadora, quando Bergson

postula a “duração” do universo: “O universo dura. Quanto mais aprofundamos a natureza do

tempo, mais compreendemos que a duração significa invenção, criação de forma, elaboração

contínua do absolutamente novo”.22 Esta ideia é solidária de outra que perpassa toda a obra, assim

como, no limite, toda a obra do filósofo, que é a ideia de criação. Em que sentido tais ideias são

solidárias? É que Bergson, quando pensa a totalidade, o faz por intermédio da ideia de “duração”.

Poderíamos dizer que, para Bergson, na “duração”, o tempo não é mais o lugar da degradação, como

pregavam os defensores da eternidade, a exemplo de Platão, Plotino, Santo Agostinho, só para

nomear alguns, o tempo é criação ou não é absolutamente nada. O Todo enquanto tempo, só

poderá ser concebido como aberto, ou melhor, como virtual enquanto aberto. Pois se o universo

dura, é mister que nele, em algum lugar, sempre haja uma abertura por onde a novidade se inscreva.

No pensamento de Bergson, duração, memória e espírito estão dentro do mesmo contexto.

Na realidade, o que Bergson problematizou, ao longo de sua obra, foi a relação entre tempo e

subjetividade. Desclassificando os valores de uma metafísica que assegurava ao sujeito uma suposta

identidade, como é o caso para Descartes, dando ao tempo o estatuto de um mero acidente –

Bergson acabou por inaugurar uma nova metafísica. Prioriza, como objeto de investigação, o tempo

e os problemas por ele suscitados quanto à subjetividade, em estreita relação com ele, se subtraindo

ao primado da identidade. É aqui que se percebe a contribuição de Bergson em relação à questão

deleuziana: “O que significa pensar?” Ao introduzir a novidade e a criação como temas de seu

pensamento, Bergson critica uma velha “imagem do pensamento”, a imagem de um pensamento

representativo. No seu entender, a consciência não representa, apenas reflete as imagens exteriores

a ela e que a estimulam a fim de obter uma resposta; meu corpo é, portanto, no conjunto do mundo

material, uma imagem que age como as outras imagens, recebendo e devolvendo movimento: “Meu

corpo, objeto destinado a mover outros objetos, é um centro de ação; ele não saberia fazer nascer

uma representação”.23

Ora, o que significa pensar quando se ultrapassa o universo da representação? Significa não

mais apostar no conhecimento verdadeiro, já que não se está mais lidando com categorias

metafísicas próprias da representação engessadas pelo princípio de identidade, ainda que, segundo

22 IDEM, p. 21. 23 IDEM, Matière et memoire, p. 14.

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Ontologia da imagem cinematográfica em Gilles Deleuze, pp. 05-15

Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 14

Deleuze, a verdade se insinue nos meandros do pensamento. Pensar, na medida em que não é mais

representar, na medida em que não é mais se reconhecer como representante do princípio de

identidade significa problematizar. Por outro lado, na medida em que o problema nos abre sempre

um novo campo de possibilidades, implica uma escolha, produz uma solução, todo um processo se

desencadeia no ser pensante conectando-o com o tempo absoluto, o sempre novo, o eterno porvir.

Bergson, a exemplo de Nietzsche e Deleuze, nunca acreditou que o pensar fosse um exercício

natural, explicitados no magnífico texto de Cláudio Ulpiano:

Todos os homens são capazes de sonhar; supõe-se. Se acaso houver uma exceção, trata-se de um caso patológico; ou pelo menos de uma originalidade. Todos os homens são capazes de amar e de sofrer. Se acaso houver uma exceção, trata-se de um caso patológico, ou pelo menos de uma estranha originalidade. Quanto ao pensamento, não é tão certo, não é tão evidente, que todos os homens sejam capazes de pensar (...) O pensamento é como uma potência, uma força, no âmago de cada sujeito, de cada ser humano: mas inteiramente independente das propriedades do sujeito, do eu pessoal. É como se fosse possível dizer que o pensamento é uma terra estranha, um bosque, um pântano, numa geografia que nos constitui (...) então cabe colocar o pensamento como aquilo que possibilita, a cada homem, a conquista da liberdade.24

REFERÊNCIAS

BAZIN, A. Q’est-ce que le cinéma? Paris: Cerf, 1987.

BERGSON, H. Matiere et mémoire. Paris: PUF, 1965.

____________. A evolução criadora. Trad. Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

____________. “Introdução à metafísica”, p. 31. In Os Pensadores, vol. XXXVIII. Trad. Franklin Leopoldo e Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1974.

DELEUZE, G./GUATTARI, F. O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonzo Muñoz, 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

________________________. Mil platôs, vol. I. Trad. Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora 34, 2004.

________________________. Kafka. Por uma literatura menor. Trad. Júlio Castanõn Guimarães. 1ª ed. Rio de Janeiro: Imago, 1977.

____________. L’image-mouvement. Paris: Minuit, 1983.

___________. L’image-temps. Paris: Minuit, 1985.

___________. « Sur quatre formules poétiques », pp. 40-1. In Critique et clinique. Paris: Minuit, 1993.

ESCOBAR., C. H. Dossier Deleuze (org.). 1a ed. Rio de Janeiro: Imago,1991.

MATTÉI, J.-F. Platon et le miroir du mythe. Paris: PUF, 1996.

24 ULPIANO, C. “Uma nova imagem do pensamento”. In Pensar de outra maneira a partir de Claudio Ulpiano, pp. 227-8.

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Ontologia da imagem cinematográfica em Gilles Deleuze, pp. 05-15

Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 15

PELBART, P. P. O tempo não–reconciliado. Imagens de tempo em Deleuze. São Paulo: Perspectiva, 2010.

ULPIANO, C. “Uma nova imagem do pensamento”. In Pensar de outra maneira a partir de Claudio Ulpiano. Rio de Janeiro: Pazulin, 2007, pp. 227-8.

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Subsídios para a visibilidade de mulheres na História da Filosofia, pp. 16-31

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SUBSÍDIOS PARA A VISIBILIDADE DE

MULHERES NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA

Ana Carla de Abreu Siqueira1

RESUMO: O objetivo deste artigo é apresentar um grupo de pensadoras pertencentes a diferentes períodos e áreas da história da filosofia como opções relevantes diante de filósofos já consagrados e amplamente explorados em nossos estudos acadêmicos. Faço uma breve lista destas dez pensadoras diante de seus respectivos contemporâneos: Aspásia de Mileto, Christine de Pizan, Anne Conway, Mary Wollstonecraft, Harriet Taylor Mill, Edith Stein, Simone de Beauvoir, Hannah Arendt, María Zambrano e Djamila Ribeiro. Em todas elas, há conceitos e temas explorados pelos autores apresentados como contraponto, permitindo-nos identificar os traços de pensamento em comum entre eles. Também serão indicadas sua originalidade e as reflexões em que estão apresentadas questões sobre mulheres. Com essa abordagem, espero mostrar a importância de incluirmos filósofas como caminho para superarmos a desigualdade de gênero ainda presente em nossas práticas filosóficas.

PALAVRAS-CHAVE: Feminismo. História da filosofia. Mulheres.

ABSTRACT: The aim of this paper is to present a group of female thinkers belonging to different periods and areas of the history of philosophy as relevant options in face of already established and widely explored male philosophers in our academic studies. I make a short list of those ten thinkers in face of their respective male contemporaries: Aspasia, Christine de Pizan, Anne Conway, Mary Wollstonecraft, Harriet Taylor Mill, Edith Stein, Simone de Beauvoir, Hannah Arendt, María Zambrano and Djamila Ribeiro. In all of them, there are concepts and themes explored by the authors presented as counterpoint, allowing us to identify the common traits of thought between

1 Doutoranda em Filosofia – UFC/Funcap

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Subsídios para a visibilidade de mulheres na História da Filosofia, pp. 16-31

Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 17

them. It will also indicate their originality and the reflections in which questions about women are presented. With this approach, I hope to bring the importance of including female philosophers as a way to overcome the gender inequality still present in our philosophical practices.

KEYWORDS: Feminism. History of philosophy. Women.

Olhando para a história da filosofia, percebemos o quanto é essencial e urgente que mais

mulheres sejam lidas, interpretadas e discutidas. Isso não significa excluir os homens ou invalidar

suas teorias – embora seja indispensável apontar e criticar cada expressão de misoginia presente em

seus textos. Cabe-nos então a tarefa de resgatar o legado deixado por tantas pensadoras que ainda

são excluídas dos currículos de universidades e escolas brasileiras. O objetivo deste texto é mostrar

que, embora ainda em proporções menores, para ilustres pensadores há também grandes

pensadoras contemporâneas a eles tratando das mesmas questões e partindo de conceitos

semelhantes. Assim, faço um breve resumo de dez filósofas – algumas já conhecidas e outras pouco

mencionadas – em comparação a dez filósofos amplamente estudados, a fim de mostrar que a

filosofia feita pelos homens não é nossa única opção de objeto de estudo. Esta é uma possibilidade

de ampliarmos o conhecimento de um tema específico da história da filosofia, mas principalmente

de entrarmos em contato com alguns trabalhos que reparam a ausência de questões sobre as

mulheres, como veremos em muitas autoras que serão apresentadas.

É importante ressaltar que não se trata de substituir um autor por uma autora. Quero mostrar

que filósofos e filósofas dialogam sobre temas em comum, não sobrando mais desculpas para que

elas estejam fora dos nossos estudos. Estamos historicamente em condição de desigualdade e

nosso pensamento, em geral, é frequentemente invalidado, como também as questões específicas

em torno de uma constituição feminina são desacreditadas por muitos acadêmicos e pensadores. E

se a transformação do contexto no qual vivemos depende dos nossos esforços, incluir mulheres em

nossas referências e ouvir o que elas têm a dizer é uma tentativa de reparar o esquecimento sofrido

na tradição filosófica. Afinal, nenhum trabalho filosófico é neutro e situado fora da história, o que

nos exige dialogar com as diversas vozes que pertencem ao nosso mundo e cujas formações são

plurais, influenciadas por situações e contextos específicos.

No mesmo sentido, a filosofia deve falar em gênero e dos problemas que marcam nossas

vivências, visto que nós, mulheres, também somos protagonistas da história. A prática filosófica das

mulheres deve ser incluída em nossos estudos não apenas em questões que dizem respeito aos

nossos corpos, comportamentos e experiências particulares. Mulheres sempre fizeram filosofia e

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Subsídios para a visibilidade de mulheres na História da Filosofia, pp. 16-31

Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 18

desenvolveram ideias referentes aos problemas comuns da humanidade, apenas não tiveram

oportunidades de estudar, pesquisar e ensinar na mesma proporção que os homens tiveram. Ou

seja, precisamos vasculhar as bibliografias sobre os temas mais relevantes da história da filosofia –

política, estética, epistemologia, linguagem, ontologia, ética, moral, hermenêutica, fenomenologia,

lógica, gênero – para encontrarmos filósofas e certamente iremos nos deparar com um amplo

material de ideias tão fecundas quanto originais. Depois desse passo, cabe-nos a leitura e a

interpretação dos textos, fazendo com que suas teorias sejam alcançadas por mais leitoras e

leitores. Esse passo é decisivo e nos permitirá modificar nosso conhecimento ao oferecer

contribuições ricas aos estudos filosóficos. E mesmo que não tenhamos um contato direto com a

obra de alguma autora específica, é essencial saber que essas mulheres existiram e existem, além

de saber que seus pensamentos resistem.

A baixa representatividade das mulheres em muitos programas de pós-graduação e no corpo

docente é consequência dos inúmeros obstáculos que encontramos no caminho: falas

interrompidas; piadas sem-graça feitas por “homens de outra geração” ou por “apenas meninos”;

mansplaining, que é o hábito que os homens têm de nos explicar tudo, mesmo quando não

entendem sobre o assunto e quando não pedimos explicação; inúmeros casos de assédio moral e

assédio sexual; dificuldades em conciliar pesquisa e maternidade por falta de suporte; racismo,

homofobia e outros preconceitos sofridos por mulheres que não estão em posição de privilégio; e a

exclusão das mulheres da tarefa de tomar algumas decisões administrativas nas universidades ou

em questões relativas às publicações, por exemplo. Do mesmo modo, ao longo da história, muitas

pensadoras encontraram dificuldades para que suas obras fossem publicadas, algumas tiveram que

usar pseudônimos e outras sequer puderam ocupar cargos em universidades. E até hoje há

resistência em adotá-las como referências, fazendo com que elas continuem sendo injustiçadas.

Quando não nos reconhecemos em um ambiente, fica mais difícil pertencer a ele. Por isso,

toda tentativa de dar visibilidade a todas essas filósofas é, em parte, uma forma de mostrar que,

quando dialogamos com elas, nós também estamos ocupando a filosofia. Trazer as questões de

gênero para nossa área de estudo é uma tentativa de construir um discurso que contemplará nossos

problemas cotidianos, além de poder incluir as diversas mulheres que não têm as mesmas

oportunidades de estudar e não aprenderam a dar um nome aos abusos sofridos. Falar de mulheres

e para mulheres é uma tarefa essencial na luta contra opressões e exclusão sistemática. Precisamos

então conhecer a história de pensadoras para que o apagamento delas não seja repetido com tantas

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Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 19

mulheres que fazem filosofia e com aquelas que pretendem fazer. Assim, além da consulta às obras

de autoria feminina na história da filosofia, é igualmente importante buscarmos o maior número

possível de comentadoras das obras de filósofas e filósofos, a fim de valorizarmos seus trabalhos.

Ressalto ainda que essas pensadoras precisam de uma representação positiva. Não podemos

enxergá-las tais como as mulheres foram historicamente retratadas, ou seja, enquanto pessoas

frágeis, submissas, sedutoras, incompetentes ou obscuras. Nem mesmo podemos ver a

sensibilidade a qual tanto nos atribuem, mas que permeia todos os seres humanos, sob o viés de

uma característica negativa. Somente modificando: a representação feita sobre nossa existência; a

linguagem que coloca o homem como único sujeito; as premissas que falam em indivíduos neutros

e desligados de uma situação de vida; as formas de pesquisa que nos orientam a valorizar mais os

trabalhos de filósofos; as bibliografias dos nossos cursos; o vocabulário com termos excludentes; as

crenças infundadas de que mulheres têm menos ideias e são biologicamente inferiores; o hábito de

que mulheres precisam pedir desculpas ao emitirem uma opinião, especialmente quando é diferente

da opinião dos homens; um contexto que normaliza casos de assédio e machismo, é que podemos

criar e revisitar filosofias com as quais possamos nos identificar e alcançar uma legítima igualdade.

Aqui está o convite à leitura e reflexão, mas em especial, à abertura de horizonte que nos permitirá

conhecer e incorporar o trabalho de mulheres aos nossos estudos.

*

Aspásia de Mileto para a filosofia de Sócrates

Falar de pensadores que estão muito distantes de nosso tempo é um desafio em relação à

veracidade dos fatos que os cercam, especialmente quando se trata de alguém que não deixou

textos escritos. O que conhecemos de Sócrates (c. 469 a.C. – 399 a.C.), filósofo grego que marca a

distinção entre eras filosóficas, chegou até nós por meio dos diálogos platônicos. Ao admitir “só sei

que nada sei”, ele partiu de um método de perguntas e respostas para chegar mais perto da verdade.

Sócrates conduziu reflexões sobre a virtude, o bem, a justiça, o conhecimento e a pólis, a fim de

modificar tradições. Por isso, foi acusado e condenado por supostamente corromper a juventude.

Se a civilização grega foi aquela que difundiu o filosofar, é importante conhecermos bem seus

pensadores, mas também é especialmente necessário encontrarmos as mulheres que fizeram parte

desse processo.

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Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 20

Aspásia de Mileto (c. 470 a.C. – c. 401 a.C.) foi uma filósofa “estrangeira” em Atenas.

Recebemos relatos sobre ela através da sua participação no debate intelectual da cidade e dos

testemunhos de outros pensadores, tais como o diálogo platônico Menêxeno e o texto Vida de

Péricles, de Plutarco. Não cabe aqui descrever qual foi seu envolvimento com Péricles, uma vez que

sua própria vida é mais interessante do que seu lugar em relação a um homem. Apenas é preciso

mencionar que conhecer tal fato foi essencial para que nos chegassem alguns registros sobre a

pensadora. Ainda é discutível se Aspásia realmente dirigiu uma escola voltada para a educação

feminina e também se era realmente uma sofista, porém, enquanto dominadora da arte retórica,

uma das teorias mais fortes sobre sua atividade diz respeito ao fato de que ela reunia à sua volta os

interlocutores que eram bastante conhecidos e ativos na cidade. Assim, até mesmo Sócrates, Platão

e Péricles teriam aprendido a discursar em sua companhia e através dos seus ensinamentos. De fato,

não nos importa qual sua relação com Péricles – se foi efetivamente sua esposa, uma amante ou sua

mentora. Mas a história nos mostra por inúmeros exemplos que, quando uma mulher se destaca por

ter opiniões e por ocupar algum lugar considerado masculino, em algum momento ela é culpada por

guerras, associada a papeis secundários ou recebe apelidos negativos em torno de sua reputação.

Que Aspásia não seja tão conhecida e Sócrates tenha se tornado uma das figuras mais ilustres do

mundo filosófico, só expressa o silenciamento ao qual as mulheres sempre foram condenadas. Essa

postura apaga as possibilidades de que elas tenham sido pensadoras originais e indispensáveis para

a história do saber, inclusive que tenham sido fundamentais para que muitos homens tenham

aprendido a filosofar, como se defende no caso da filósofa de Mileto.

Christine de Pizan para a filosofia de Pedro Abelardo

Pedro Abelardo (1079 – 1142) foi um filósofo medieval que se dedicou aos pensamentos

lógico, ético e teológico. Uma teoria muito difundida foi a dúvida metódica, quando ele defendeu

que esse passo deveria marcar o princípio do conhecimento. Seu método tinha um caráter

hermenêutico e pretendia fazer uma análise dos textos religiosos para conferi-los autenticidade.

Abelardo reconheceu os limites da mente humana, ao mesmo tempo em que atribuiu à ratio o papel

fundamental de crítica dos conteúdos apresentados a nós, chamando-a de razão dialética e

afastando-se da ideia de que os homens poderiam alcançar uma verdade absoluta. Outro aspecto

marcante da sua filosofia foi ter defendido que a moral reside na alma e só depois se reflete em atos

externos, sendo assim o pecado um ato voluntário.

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Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 21

Nascida em Veneza, mas criada na França, a filósofa e poetisa Christine de Pizan (1363 – c.

1430) escreveu alguns dos primeiros textos feministas, além de ser considerada a primeira mulher

ocidental a viver da palavra escrita. Isso lhe conferiu independência e um lugar de prestígio na

história, já que muitas mulheres foram expressivamente proibidas de escrever. Ela produziu obras

filosóficas, poéticas e biográficas, incluindo aí um poema sobre Joana D’arc. Christine de Pizan era

uma filósofa humanista e falava sobre as virtudes: por exemplo, justiça, magnanimidade, clemência,

verdade e prudência – a maior das virtudes – eram lembradas por ela como um caminho para as

melhores relações entre seres humanos. Menciono aqui dois livros essenciais para conhecermos seu

pensamento. Assim como muitos de seus textos se dirigiam a regentes e cavaleiros, Le livre de paix

(1413) é um tratado escrito para o duque de Guyenne, filho do rei francês (ela era uma frequentadora

da corte francesa) e seu objetivo é argumentar sobre a instauração da paz e seus benefícios, com a

intenção de alcançar o bem comum. Trata-se, portanto, de um texto de caráter moral e político. O

outro livro fundamental é Cité des Dames (1405), que sintetiza uma crítica feita à afirmação

aristotélica de que as mulheres são naturalmente inferiores e imprudentes. Para ela, as mulheres

eram capazes de criar sua própria realidade e essa postura foi bastante renovadora na sociedade

medieval. Embora alguns dos conselhos propostos às mulheres ainda sejam referentes à boa

conduta e à obediência ao marido através de uma relação amorosa, assim como ela sugeriu que a

mulher mantivesse uma posição de firmeza que se assemelhasse a uma postura denominada

“masculina”, não se pode negar que se trata de um trabalho feminista, pois sua preocupação era a

construção de uma cidade ideal na qual prevalecessem a defesa das mulheres e sua proteção tanto

moral como física. Apesar de não ser contemporânea de Abelardo, é interessante mostrá-los como

equivalentes, pois fizeram parte de uma época de intensa prática intelectual e algumas de suas

reflexões refletem a importância que ambos deram à palavra escrita e à construção de textos com

caráter moral.

Anne Conway para a filosofia de Baruch de Spinoza

Baruch de Spinoza (1632 – 1677) foi um filósofo racionalista holandês e seguia o ofício de

polidor de lentes. Pensador da modernidade, ele foi influenciado pelas características desse período

e escreveu utilizando um método geométrico, ou seja, seu texto era formado por definições, notas

e corolários que seguiam uma ordem lógica, rigorosa e expositiva. Spinoza dizia que cada coisa é

dotada de conatus – potência que faz os entes preservarem seu ser. Essa potência aumenta ou

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Subsídios para a visibilidade de mulheres na História da Filosofia, pp. 16-31

Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 22

diminui conforme afetos positivos ou negativos, respectivamente, encontram um corpo e resultam

em alegria ou tristeza. A alegria perfeita foi denominada por ele de beatitude e significava uma

identificação com Deus. Mas para o filósofo, este Deus não é o cristão e sim, uma substância infinita

e alcançada pela via da razão. Apesar de suas obras terem sido censuradas, Spinoza ficou bastante

conhecido em vida. Até hoje seu pensamento é admirado por outros filósofos e segue influenciando

pesquisadores de diversas áreas.

Anne Conway (1631 – 1679) nasceu em Londres e teve uma educação informal. Leitora de

Descartes, Hobbes e Spinoza, estava bastante familiarizada com os temas comuns à filosofia

moderna, a qual foi influenciada pelas novidades das ciências experimentais e pela mecânica.

Apesar de só ter sido publicada uma obra póstuma (The principles of the most ancient and modern

philosophy), suas influências são notáveis na obra do filósofo e cientista alemão Gottfried Wilhelm

Leibniz a partir da ideia de que Deus estaria no centro dos seus sistemas. Para ela, Deus seria um

agente necessário, eterno, imutável, perfeito, onipresente e fonte natural de criação. Teria sido

então a partir da criatividade e não de uma decisão deliberada que Ele gerou o mundo e os seres.

Assim, a temporalidade e a mudança só se aplicam às criaturas. Mas no momento em que Deus cria,

dá um pouco de si às criaturas dotadas de mônadas, enquanto Ele seria uma substância dotada de

características ideais. Essa harmonia entre espírito e corpo, eterno e transitório, perfeição e

imperfeição aconteceria através da figura de Cristo; a própria vida é o que estes três tipos de seres –

Deus, Cristo, criaturas – têm em comum. Isso também possibilitaria superar o dualismo entre alma

e corpo, uma vez que, ao terem alguma propriedade em comum, não seria possível haver uma

separação radical entre res extensa e res corpórea. A diferença entre Anne Conway e os mecanicistas

de seu tempo é que para eles a mecânica influencia o movimento dos corpos, enquanto a autora não

considera a mecânica determinante: o movimento se trata de uma característica vital. Apesar de

não ser uma filósofa feminista, é essencial conhecermos o pensamento de uma mulher que dialogou

criticamente com filósofos que até hoje fazem parte do cânone moderno, enquanto ela permanece

excluída.

Mary Wollstonecraft para a filosofia de Jean-Jacques Rousseau

O filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau (1712 – 1778) foi um pensador do século XVIII. Uma

de suas principais obras Emilio ou da educação (1762) é um tratado sobre a criação e a instrução de

um jovem aristocrata. Aí se encontram teorias que versam sobre um dos temas abordados pelo

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Subsídios para a visibilidade de mulheres na História da Filosofia, pp. 16-31

Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 23

autor: a natureza humana. A educação era importante para corrigir toda a corrupção que a

sociedade provoca no homem que nasce naturalmente bom. Porém, o texto é notadamente

machista, pois na sua concepção, a mulher é destinada a obedecer e agradar aos homens, a partir

da crença de que sua meta de vida seria conquistar um marido que lhe proporcionasse uma vida

digna. A consequência inevitável foi o rebaixamento das mulheres e, por isso, buscar na sua obra

apontamentos frutíferos para a educação traz consigo a urgência de procurar em outras fontes as

contribuições filosóficas que colocam homens e mulheres em igualdade.

Foi em parte como resposta às ideias de Rousseau que a filósofa inglesa Mary Wollstonecraft

(1759 – 1797) escreveu um tratado a favor de uma educação mais adequada e igualitária para as

mulheres, intitulado Reivindicação dos direitos da mulher (1792). Nessa obra, ela faz uma análise da

sociedade na qual está inserida e do modo como toda mulher é determinada a seguir um papel que

estaria de acordo com uma natureza considerada frágil, passiva, inocente, sensível e menos racional.

Um dos motivos seria o sistema de educação criado por homens e para homens, excluindo todas as

mulheres da esfera pública de decisões e trabalho, o que as impediu de desenvolver suas

habilidades, escrever, filosofar, governar e comandar. Assim, mesmo que as virtudes sejam

conquistadas pela razão, apenas os homens detinham o privilégio de adquirir uma educação voltada

para seu desenvolvimento. A tese dessa pensadora consistia em propor um modelo de educação

que buscasse permitir que mulheres adquirissem opinião própria e uma instrução voltada para suas

competências, ao invés de lhes conferir um ideal de feminilidade e obediência aos homens. Em

síntese, ela também reivindicava independência intelectual. Embora ela defendesse que a mulher

bem educada poderia se tornar melhor mãe e esposa, não se pode negar que seus ideais iluministas

foram indispensáveis para contrapor Rousseau e a educação vigente, abrindo espaço para que

mulheres superassem o silenciamento e atingissem o conhecimento através do exercício da mente.

Harriet Taylor Mill para a filosofia de John Stuart Mill

O filósofo e economista britânico John Stuart Mill (1806 – 1873) destacou-se por suas

posições políticas e por fazer parte de um grande círculo de intelectuais. Seus principais temas

versaram sobre a liberdade individual, a emancipação das mulheres e o utilitarismo. Fazendo parte

de uma tradição empirista, dedicou-se à lógica. Mas foram seus tratados sobre ética, moral e política

que mais se destacaram em uma sociedade que se modificava industrial e economicamente,

exigindo novas condições de trabalho e de distribuição de renda. Para ele, a sociedade é formada

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por uma pluralidade de indivíduos que deveriam ser capazes de escolher o melhor modo de vida,

desde que não se ferisse a liberdade do outro. A sociedade deve criar condições de respeito,

valorização e igualdade entre homens e mulheres. E isso deve ser feito sempre tendo como fim o

máximo possível de felicidade e o mínimo de sofrimento para os seres humanos, de acordo com a

máxima utilitarista.

Harriet Taylor Mill (1807 – 1858) foi uma filósofa, sufragista e ativista inglesa, que viveu e

desenvolveu seu pensamento crítico na era vitoriana. Ao conhecer John Stuart Mill, ela ainda era

casada com John Taylor que, embora a incentivasse a participar de reuniões compostas por

pensadores e a apoiasse na luta pelas causas das mulheres, não permitia que a pensadora assinasse

os trabalhos feitos em parceria com o filósofo que se tornaria seu segundo marido após ela ficar

viúva. A submissão da mulher aos homens era um tema de debates constantes para a filósofa e ela

acreditava que as mulheres poderiam encontrar um caminho para a libertação no direito ao voto,

mas isso só seria possível quando elas também pudessem representar umas às outras em cargos

políticos, tivessem igual acesso à educação e entrassem no mercado de trabalho com os mesmos

direitos que os homens tinham. Aliás, todas essas seriam condições para que as mulheres pudessem

ter autonomia na maternidade, não sofrer com violência doméstica e escolher ou não o matrimônio,

incluindo o reconhecimento do divórcio quando necessário para sua libertação. Mas enquanto a

filósofa defendia a independência feminina através do trabalho e do divórcio, Stuart Mill ainda

achava que a mulher casada deveria se dedicar ao marido, ao lar e aos filhos que viessem a ter. Outra

marca distintiva de seu pensamento foi ter se posicionado contra a tirania da sociedade em impor

regras que deveriam ser seguidas por um sujeito em detrimento da própria liberdade. Nesse caso,

ela não se refere apenas ao domínio dos homens sobre as mulheres, como também se trata em

como a classe dominante interfere nas ideias, na moralidade e no trabalho da classe operária. Apesar

de ter publicado somente dois ensaios em seu nome, traços de suas ideias estão presentes na obra

de seu ilustre marido, a partir de uma colaboração direta na escrita dos textos, das revisões feitas e

dos diálogos constantes entre os dois pensadores, de modo que ler John Stuart Mill é também ler

Harriet Taylor Mill.

Edith Stein para a filosofia de Edmund Husserl

Considerado o grande nome da fenomenologia, Edmund Husserl (1859 – 1938) desenvolveu

um método que pretendia elevar a filosofia ao estatuto de ciência rigorosa. Sua premissa é descrever

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os fenômenos a partir da consciência e sem pressupostos, o que fez com que se mantivesse preso a

uma espécie de subjetivismo. Dentre os conceitos desenvolvidos por Husserl, destacam-se os de

corpo e intencionalidade. Com a intencionalidade, ele quis dizer que toda consciência é consciência

de algo, ou seja, ela é capaz de se direcionar a qualquer objeto presente no mundo real e àqueles

presentes nas lembranças e na imaginação, além de apreender toda essência e fundamentar o saber.

Já em um período mais tardio da sua fenomenologia, Husserl passou a avaliar o homem como um

sujeito com um corpo vivo e animado, inserido no mundo e dotado de especificidades diante das

coisas materiais. Essa foi uma tentativa de superar o psicologismo a partir da ideia de que estamos

em um mundo que é campo de experiências sociais, permitindo-nos ir além da introspecção à qual

a modernidade submeteu os seres humanos.

A partir de um estudo especializado da fenomenologia, a filósofa e teóloga alemã Edith Stein

(1891 – 1942) nos apresenta grandes contribuições herdadas do método elaborado por seu

professor. Ela determina um marco filosófico ao desenvolver a noção de empatia a partir da distinção

husserliana entre o corpo físico (Körper) e o corpo vivo (Leib). Em outros termos: o corpo enquanto

algo material integrado ao mundo e o corpo de cada eu, cheio de pulsões, ligado à alma e senciente.

Por essa razão, o corpo vivo não se restringe a funções orgânicas, pois também abarca em si nossas

vontades, sensações e as vivências que temos em primeira pessoa, as quais são sempre inseparáveis

de nós e, ao mesmo tempo, comunicáveis aos outros. Ao escrever uma tese sobre a empatia, Edith

Stein trouxe elementos inovadores para a compreensão de que o outro seja levado em consideração

não apenas como um mero corpo físico, senão como um corpo vivo. Assim, o outro pode ser

compreendido em nossas relações intersubjetivas, embora eu jamais possa experimentar as

mesmas vivências do outro de forma tão originária como experimento a mim mesma. A empatia

tornou-se um conceito essencial para a fenomenologia na medida em que, ao se voltar para as coisas

mesmas, a consciência também se volta para os outros e cria uma relação de compreensão, onde

cada um amplia seus próprios horizontes a partir do pressuposto de que compreender o outro é

expandir sua visão de mundo, incluindo um olhar externo e inovador que cada um pode direcionar a

si próprio, ao mesmo tempo, ampliando o alcance da intencionalidade e a aplicação do conceito.

Hannah Arendt para a filosofia de Karl Jaspers

Karl Jaspers (1883 – 1969) foi um filósofo alemão que atuou nas áreas de psicologia,

epistemologia e existencialismo. Muitas de suas produções filosóficas tinham relação com os

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Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 26

eventos vividos por uma existência concreta. Amigo íntimo de Hannah Arendt e mantendo uma

relação conturbada com Martin Heidegger, era um pensador comunicativo e engajado no ambiente

universitário. Um dos seus pontos de discussão é a liberdade e até que ponto, em situações-limite,

nós somos livres para fazermos nossas escolhas, as quais sempre vêm com alguma

responsabilidade. Essa posição se reflete em sua abordagem do nazismo, já que ele defendia que o

povo alemão tem a obrigação de assumir a responsabilidade por esse acontecimento trágico ao

invés de fugir da culpa ou de negar suas posições diante do evento.

Judia e alemã, Hannah Arendt (1906 – 1975) talvez seja uma das pensadoras mais conhecidas

do mundo. Filósofa e teórica política, sua produção dialoga amplamente com a vida prática. As

filosofias de Aristóteles, Heidegger, Husserl e Jaspers a influenciaram fortemente, porém, foi sua

própria condição de ser uma mulher judia que conduziu seu pensamento. Ao sair da Alemanha e

migrar para os Estados Unidos, ela realizou inúmeras pesquisas, ensinou filosofia política e escreveu

obras notáveis, tais como As origens do totalitarismo (1951), A condição humana (1958) e Sobre a

revolução (1963). Todas essas obras têm em comum uma revisão dos conceitos fundamentais da

política a partir dos problemas encontrados durante a construção de sociedades sólidas. Na

tentativa inicial de compreender seu lugar na Alemanha nazista, Hannah Arendt trouxe à discussão

a realidade na qual vivia, em especial, tentando entender as causas e consequências do

antissemitismo. Portanto, suas reflexões sobre o antissemitismo e o surgimento de governos

imperialistas ganharam substância a partir de suas experiências concretas e de um olhar

investigativo para sua época, na qual regimes totalitários buscavam controlar a educação e o

trabalho, por exemplo. Certamente podemos identificar suas ideias com os eventos políticos e

sociais vividos no mundo contemporâneo. A natureza humana, a liberdade, a autoridade e o labor –

que expressa a condição natural que homens e mulheres carregam de se dedicarem ao trabalho

produtivo – foram preocupações constantes em um ambiente global ameaçado por guerras e pelo

fascismo. O espaço público no qual vivemos seria o lugar da ação humana, muitas vezes entendida

pela autora como uma atividade política e fundamental para a constituição dos eventos de um

mundo permeado por revoluções. Produzir filosofia nos tempos do nazismo a permitiu analisar

fenômenos políticos e morais para os quais não podemos fechar os olhos e devemos evitar que se

repitam. Revelando-se como uma intelectual independente, seu pensamento continua atual e, por

isso, a recepção de sua obra merece cada vez mais atenção e reconhecimento.

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Simone de Beauvoir para a filosofia de Martin Heidegger

Martin Heidegger (1889 – 1976) foi um filósofo alemão que desenvolveu a noção de

facticidade para expressar o fato de que existimos e estamos cercados por circunstâncias das quais

não podemos escapar. Ao mesmo tempo, temos o poder de nos lançarmos ao mundo para

tomarmos decisões. A facticidade é o caráter ontológico que constitui nosso modo de ser e expressa

um significado de vida que passa por nossas experiências concretas. Justamente por isso, Heidegger

destacou que uma das formas de abertura do ente humano para o ser acontece através da

afetividade, dimensão que nos coloca em sintonia com as coisas e os eventos que nos afetam para

além da consciência. Mas apesar de ter trazido à discussão o entendimento de que somos entes

concretos no mundo, Heidegger continuou preso à ideia de um ente neutro quando determinou

nosso principal modo de ser enquanto Dasein.

A filósofa francesa Simone de Beauvoir (1908 – 1986) foi uma grande leitora da obra de

Heidegger e se apropriou de alguns dos conceitos da tradição fenomenológica para criar um

pensamento original. Não é por acaso que uma das suas principais obras é tanto um rico tratado

filosófico como também um grande manifesto feminista. O segundo sexo (1949) constitui-se como

um objeto de estudo essencial para as teorias feministas porque avalia a situação concreta das

mulheres e busca superar o sexismo biológico, o qual nos impõe regras baseadas em supostas

limitações características do sexo feminino. Ser mulher não é apenas uma condição biológica, mas

principalmente, uma formação cultural e social. Assim, a ideia de vida fática é enriquecida quando a

filósofa existencialista nos mostra uma aplicação mais prática do conceito nas avaliações sobre o

sexo feminino e suas características diversas, superando aquela noção de sujeito que não dá mais

conta de avaliar nosso modo de ser no mundo contemporâneo e nossas especificidades. Nesse caso,

Simone de Beauvoir se posiciona contra o essencialismo, o qual reduziria todas as mulheres a uma

categoria fixa, isenta de diversidade e sem múltiplas possibilidades de existência. Portanto, assim

como Heidegger fez com a hermenêutica da vida fática, ela estabeleceu uma interpretação que

busca superar um ideal de natureza humana e se volta para a existência, contando com os méritos

de destacar as vivências políticas dos entes humanos. Conhecer sua obra é importante para um

entendimento mais amplo do que significa ser mulher e ainda nos permite um novo olhar sobre as

experiências concretas analisadas pelo existencialismo. Embora ela esteja sempre associada ao

pensamento de Jean-Paul Sartre, é indispensável reconhecê-la como uma difusora de ideias

propriamente fenomenológicas, tal como fizeram muitos pensadores.

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Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 28

María Zambrano para a filosofia de Benedito Nunes

Benedito Nunes (1929 – 2011) foi um filósofo e crítico literário brasileiro. Um entre os mais

importantes objetos de pesquisa deste paraense foi o legado do filósofo alemão Martin Heidegger,

além de ter sido intérprete de outros autores como Nietzsche e Sartre. A maior parte da sua

produção se concentra nos principais conceitos em torno do diálogo entre filosofia e literatura, com

ênfase na hermenêutica – campo de saber que realiza a interpretação de textos, obras literárias e da

própria vida. Além disso, realizou inúmeras pesquisas sobre escritores consagrados, tais como

Clarice Lispector, Machado de Assis e Guimarães Rosa. Com isso, a poesia adquiriu uma importância

essencial para suas meditações, transitando entre composição literária e forma de pensamento

filosófico.

María Zambrano (1904 – 1991) foi uma filósofa espanhola e seu pensamento se aproxima

bastante do estilo poético. Uma pensadora que viveu o exílio em muitos países e teve a

oportunidade de conhecer diversos intelectuais e artistas certamente não se prenderia a um método

filosófico puramente racional, já que ela mesma reconheceu que a filosofia tem a cada tempo um

gênero literário e um ritmo próprios, dotados de uma conexão com a vida que vai além do âmbito

intelectual. Suas principais influências foram: o pensamento grego, a metafísica, o vitalismo, a

fenomenologia e o existencialismo. Com isso, ela mostrou que a própria vida era o cerne da sua

produção e se expressaria muito melhor pela poesia do que pelo discurso racional. Trago em

destaque um tema que, de certo modo, faz referência às raízes da filosofia e às questões comuns de

um tempo que exigia um novo olhar que distanciava o ser humano das modificações técnicas do

mundo: a poesia. Para María Zambrano, a poesia é a linguagem que resgata o que existe em nossa

memória. E uma vez que, ao mesmo tempo, a filosofia surge como uma expressão através da palavra

e, em especial, como uma justificação, ela traz em si a necessidade de retornar às origens e dizer o

ser. Nesse sentido, filosofia e poesia criam a palavra através de elementos em comum: ambas se

baseiam na experiência do espanto; são expressões de uma existência finita ao invés de se formarem

como ideias de um sujeito absoluto; são formas de pensar onde criadores e palavras não se separam,

ao contrário, filósofos e poetas jamais deixam de se identificar com suas obras. Se é inegável que ela

tenha sido influenciada por José Ortega y Gasset, não é menos fundamental ressaltar que Zambrano

merece ser lembrada como uma mulher de pensamento único e vital.

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Djamila Ribeiro para a filosofia de Vladimir Safatle

Vladimir Safatle (1973) é um filósofo brasileiro que se destaca pelo diálogo sobre nosso papel

enquanto sujeitos políticos e psíquicos. O professor universitário assina colunas que nos fazem

refletir sobre nossa situação de vida e as condições que regem o mundo contemporâneo em diversas

esferas: trabalho, poder, amor, democracia, materialismo, estado, afetos. A intersecção entre

filosofia, estética e psicanálise serve como suporte para que possamos responder e levantar

perguntas que nos cercam em um cotidiano que passa por crises políticas cada vez mais intensas.

Diante da fragilidade da democracia, sua crítica social é cada vez mais urgente, em especial, na

tentativa de possibilitar que intelectuais sejam ativos em questões que atingem diretamente as

vivências do povo.

Djamila Ribeiro (1980) não é popular apenas nas redes sociais: a jovem e experiente filósofa

brasileira tem percorrido o país e o mundo ministrando falas que abordam problemáticas relativas à

sociedade contemporânea. Negra e feminista, ela traz discussões indispensáveis sobre a condição

das mulheres negras e periféricas, embora algumas de suas reflexões também se traduzam a favor

de toda pessoa que se identifique com o gênero feminino. Além disso, a pensadora é atuante em

diversas questões sociais, em especial, diante de experiências que temos vivido no Brasil em relação

a estas questões: racismo, identidade, vida pública, novas epistemologias, relações de domínio,

cultura, linguagem e ética. Um dos principais conceitos tratados por Djamila Ribeiro é o lugar de fala,

o qual surge contra toda forma de silenciamento instituído pelo racismo estrutural e se refere a um

lugar que não é imutável, mas que na verdade se torna mais profundo conforme a opressão

aumenta. No caso, mulheres negras são mais vulneráveis do que mulheres brancas; mulheres

lésbicas e transexuais são mais vulneráveis do que mulheres heterossexuais e assim por diante. A

condição da mulher é diferente da condição masculina e a pensadora destaca, sobretudo, que as

necessidades das mulheres negras devem se apoiar em um discurso próprio, pois elas sofrem as

opressões mais violentas. Segundo a filósofa, é essencial reconhecer que todo discurso é histórico e

político, jamais um amontoado de palavras ou um processo puramente interno. Para ter sentido, a

fala depende da situação vivida e, por essa razão, o lugar de fala legitima o próprio direito de existir,

formando um conceito fundamental para colocarmos no centro as existências que foram mantidas

apenas nas margens da história.

*

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É possível ainda mencionar mais pensadoras: Safo de Lesbos, Diotima de Mantineia, Hypatia

de Alexandria, Hildegard de Bingen, Lou-Andreas Salomé, Rosa Luxemburgo, Simone Weil, Iris

Murdoch, Mary Midgley, Philippa Foot, Nel Noddings, Luce Irigaray, Carol Gilligan, Marilena Chauí,

Gloria Anzaldúa, Julia Kristeva, Françoise Dastur, Angela Davis, Martha Nussbaum, Jeanne Marie

Gagnebin, Iris Marion Young, Alicia Puleo, Nancy Fraser, Seyla Benhabib, Linda Alcoff, Judith Butler,

Amie Thomasson, Sara Heinämaa, Marcia Tiburi. Ainda que de forma muito breve e deixando de

lado outras mulheres notáveis, o que propus aqui foi apresentar grandes filósofas diante do

pensamento de homens já consagrados, mas que certamente não devem ser os únicos lidos e

pesquisados, muito menos detêm a verdade em torno de um tema. E se por um lado é lamentável

saber que ainda há muitas pensadoras desconhecidas, a boa surpresa durante a confecção deste

texto foi descobrir que houve e há mais mulheres filosofando do que supomos. Temos então a tarefa

de redescobri-las e colocá-las no centro de nossos olhares para a história da filosofia, rompendo com

a supremacia do ponto de vista masculino.

REFERÊNCIAS

DE BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. 3ª edição. Tradução de Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. CASTRO, Carolina Sánchez. “Aspasia de Mileto”. In: Circe de Clásicos y Modernos, v. 19, p. 79-92, 2015. CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 12ª edição. Editora Ática: São Paulo, 2001. ETTINGER, Elzbieta. Hannah Arendt – Martin Heidegger. Tradução de Mario Pontes. Jorge Zahar: Rio de Janeiro, 1996. FRANKEL, Lois. “Anne Finch, Viscountess Conway”. In: WAITHE, Mary Ellen (Ed.), A history of women philosophers, volume 3, Modem Women Philosophers, 1600-1900. Kluwer Academic Publishers: Dordrecht / Boston / London, 1991. GREEN, Karen. “Introduction”. In: GREEN, Karen, MEWS, Constant J., PINDER, Janice (Ed.). The book of peace by Christine de Pizan, Pennsylvania State University Press: Pennsylvania, 2008. JACOBS, Jo Ellen. The voice of Harriet Taylor Mill. Indiana University Press, Bloomington: Indiana, 2002. MISSAGGIA, Juliana. “Sobre a originalidade de Edith Stein: o papel da distinção entre Körper (corpo físico) e Leib (corpo ‘vivo’) para a empatia e a constituição do eu”. In: Revista de filosofia: Aurora, v. 29, p. 799-818, 2017.

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Subsídios para a visibilidade de mulheres na História da Filosofia, pp. 16-31

Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 31

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala?. Letramento: Belo Horizonte, 2017. WAITHE, Mary Ellen. “Aspasia of Miletus”. In: WAITHE, Mary Ellen (Ed.), A history of women philosophers, volume 1, Ancient Women Philosophers, 600 B.C.-500 A.D. Kluwer Academic Publishers: Dordrecht / Boston / London, 1987. WAITHE, Mary Ellen. “Hannah Arendt”. In: WAITHE, Mary Ellen (Ed.), A history of women philosophers, Volume 4 Contemporary Women Philosophers 1900-today. Kluwer Academic Publishers: Dordrecht / Boston / London, 1995. WAITHE, Mary Ellen. “Harriet Taylor Mill”. In: WAITHE, Mary Ellen (Ed.), A history of women philosophers, volume 3, Modem Women Philosophers, 1600-1900. Kluwer Academic Publishers: Dordrecht / Boston / London, 1991. WAITHE, Mary Ellen. “Roswitha of Gandersheim, Christine Pisan, Margaret More Roper and Teresa of Avila”. In: WAITHE, Mary Ellen (Ed.), A history of women philosophers, volume 2, Medieval, Renaissance and Enlightenment Women Philosophers, 500-1600. Kluwer Academic Publishers: Dordrecht / Boston / London, 1989. WOLLSTONECRAFT, Mary. Reivindicação dos direitos da mulher. Tradução de Ivania Pocinho Motta. Boitempo: São Paulo, 2016. ZAMBRANO, María. Hacia um saber sobre el alma. Alianza Editorial: Madrid, 2000.

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O percurso das verdades viscerais em Emil Cioran, pp. 32-45

Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 32

O PERCURSO DAS VERDADES

VISCERAIS EM EMIL CIORAN

Jayme Mathias Netto1

RESUMO: O percurso das verdades viscerais permite-nos identificar uma epistemologia fisiológica como método da filosofia de Emil Cioran. Pretendemos analisar a verdade, o método e as consequências de sua filosofia. Em uma linguagem mais apropriada ao autor: verdades viscerais, melancolia e insônia e a crítica em relação à sociedade, às relações humanas e à história. Faremos isto utilizando as obras Breviário de Decomposição, Cumes do Desespero e Silogismos da Amargura. Os problemas existenciais advindos da insônia, da preguiça e da melancolia são uma espécie de meios epistemológicos necessários à captura da real falta de sentido da história e do nosso tempo, que são expressos pelo autor por meio de aforismos enquanto sintomas. PALAVRAS-CHAVE: Emil Cioran. Melancolia. Verdades viscerais. Insônia. Aforismos

THE COURSE OF THE VISCERAL TRUTHS IN EMIL CIORAN

ABSTRACT: The course of the visceral truths allows us to identify a physiological epistemology as a method of Emil Cioran’s philosophy. We aim to analyze the truth, the method and the consequences of his philosophy. In a more appropriate language to the author: visceral truths, melancholy, insomnia and the critic in relation to society, to human relations and to history. We’ll do this through the works Breviary of Decomposition, On the Heights of Despair and Syllogisms of the Bitterness. The existential problems of insomnia, laziness and melancholy are a kind of the epistemological ways

1 Jayme Mathias Netto é doutorando em filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e em co-tutela de tese pela Université de Picardie Jules Verne (UPJV). Ele está construindo sua tese “A imanência da linguagem em Spinoza”. O autor se interessa pelo estilo aforismático como expressão filosófica e artística. Estilo este utilizado no final de sua novela filosófica Outrora: crônica de uns dias perdidos.

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O percurso das verdades viscerais em Emil Cioran, pp. 32-45

Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 33

necessaries to realize the real lack of sense in the history and in our time, that are expressed by the author through aphorisms while symptoms. KEY WORDS: Emil Cioran. Melancholy. Visceral truths. Insomnia. Aphorisms

Tantas páginas, tantos livros que foram, para nós, fontes de emoção e que relemos para estudar a qualidade dos advérbios ou

a propriedade dos adjetivos!

Emil Cioran – Silogismos da Amargura

Tendo em mãos principalmente o Breviário de Decomposição (1949), porém apoiando-se em

Nos Cumes do Desespero (1934) e Silogismos da Amargura (1952), pretende-se com esse trabalho

fazer um recorte para compreensão do pensamento de Emil Michel Cioran (1911-1995), acerca da

sintomatologia do mundo contemporâneo, sob o viés formador de seu pensamento. O autor utiliza-

se da estilística aforismática para anunciar negativamente a falta de sentido da existência. Há uma

espécie de desencantamento com a vida, com a filosofia e consigo mesmo. Estamos diante de um

pensamento da extrema negatividade e anunciador dos sintomas de nossa época crepuscular.

Temos em Cioran uma espécie de epistemologia fisiológica com a qual se põe em questão o

problema da verdade e se propõe uma nova forma da mesma. Procuramos, então, demonstrar esse

percurso presente na órbita conceitual dos livros supracitados, qual seja: verdade, método e suas

principais consequências. Traduzindo para a linguagem cioraniana: verdades viscerais, melancolia e

insônia e a crítica em relação à sociedade, às relações humanas e à história.

Portanto, analisaremos primeiramente o estilo aforismático, adentrando na forma como o

mesmo anuncia sua filosofia negativa e seus principais questionamentos existenciais incuráveis.

Considerando que há verdades, mas não aquelas com “v” maiúsculo, típica dos fundadores de

sistemas e moldadores da humanidade. Mas verdades existenciais, advindas das dores e do sangue

e que, portanto, ganham seu espaço por anunciarem o mais íntimo da existência: a não existência,

o vago e o nada. Em seguida, analisaremos o modo com o qual o pensador chega fisiologicamente

a esse tipo de verdade, analisando principalmente a insônia e a melancolia como principais aspectos

de seu pensamento. Posteriormente consideraremos a crítica radical à sociedade e à história como

consequências desse modo de pensar.

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O percurso das verdades viscerais em Emil Cioran, pp. 32-45

Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 34

O estilo aforismático

Emil Cioran é um pensador em chamas. Nesse sentido, nega cruamente a vida, a existência,

a si próprio e, porque não, aqueles que ousam comentá-lo. No entanto, colocando os nossos

próprios pensamentos em chamas, nos desafiamos, desconfiados da verdade, a recortar seu

pensamento em nome de uma compreensão do mesmo. Iniciaremos pela compreensão de seu

estilo.

À maneira dos moralistas franceses, ou mesmo pré-socrática de fazer filosofia, o pensador

aqui tratado segue a forma aforismática ou o modo com o qual se desmascara a vida, o artifício que

os homens criam para continuarem vivos, artificiais e procrastinadores do suicídio. Nesse sentido, o

pensador tem como precursores, dentre muitos: Nietzsche, La Rochefoucauld, Pascal, Heráclito e

Epicuro.

Há certa dificuldade ao tentar comentar uma obra que extirpa os comentários

sistematizadores. No entanto, podemos delinear esse modo de fazer filosofia como sendo próprio

daqueles os quais Cioran chama de Pensadores Crepusculares, ou, os que ascendem aos cumes do

desespero existencial e veem o real incomensurável e inconcebível. Como nos indica Cioran:

O pensamento que se liberta de todo o preconceito se desagrega e imita a incoerência e a dispersão das coisas que quer aprender. Com ideias ‘fluidas’ podemos nos espalhar sobre a realidade, aderir a ela, mas não explicá-la. Assim, paga-se caro o ‘sistema’ que não se desejou.2

Os aforismos se justificam frente a um tempo como o nosso no qual “nossos axiomas só têm

um valor de notícias do dia”3. Tendo como antípodas todos aqueles que querem ser fontes de

acontecimentos históricos e moldadores do homem, esse estilo é, para usar uma expressão do

Zaratustra nietzschiano, advindo do próprio sangue. Não cabe a essa forma de escrita explicar uma

realidade sob um viés absoluto e sistemático, mas descrever essa que é por vezes contraditória.

Cioran, desde Nos Cumes do Desespero utiliza-se dos aforismos. Livro sobre o qual declara que se

não o houvesse escrito, com certeza teria posto fim às suas noites4.

Podemos ver como se justifica isso em entrevista a Sylvie Jadeau:

O fragmento, único gênero compatível com meu humor, é o orgulho de um instante transfigurado, com todas as contradições daí decorrentes. Uma obra de fôlego, submetida às

2 CIORAN, 2011c, p. 32 3 CIORAN, 2011c, p. 28 4 CIORAN, 2011b, p.16. A escrita em Cioran é justificada pela necessidade criativa de inventar razões de existir: “O pessimista deve inventar cada dia novas razões de existir: é uma vítima do ‘sentido’ da vida.” (CIORAN, 2011c, p. 18). Sua escrita não é uma questão de escolha, mas de necessidade para aqueles que “conheceram o medo no meio das palavras, esse medo de desmoronar com todas as palavras.”.(CIORAN, 2011c, p. 15)

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O percurso das verdades viscerais em Emil Cioran, pp. 32-45

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exigências de uma construção, falseada pela obsessão de continuidade, é demasiado coerente para ser verdadeira.5

Podemos perceber que o que dá origem à estilística de Emil Cioran são sua própria vivência

e o incomensurável que a pressupõe enquanto ser existente. O pensador não pretende explicá-la ou

justificá-la, pois isso seria ainda um ato de fé nada compatível com seu ceticismo, mas fazer uma

sintomatologia da existência com suas contradições inerentes e com sua falta de fundamento.

Sendo assim, limita-se a descrever o vazio da existência.

O escriba tem como fonte de sua escrita um ceticismo peculiar:

É uma eterna interrogação, a recusa instintiva da certeza.(...) Pensa-se, em geral, que sou um apaixonado; sem dúvida, é verdade, num certo nível, mas o fundo permanece cético e é ele, essa aptidão a questionar toda evidência, que importa. Tem-se, inegavelmente, necessidade de certeza para agir. Basta uma pequena reflexão para arruinar esse assentimento espontâneo. Acabamos sempre por constatar que nada é sólido, que tudo é infundado.6

A dúvida cética certamente não é aquela mesma de Descartes, ou precisamente uma dúvida

formal para uma certeza de mesma ordem, trata-se, sim, de uma dúvida para com a vida, visceral e

fisiológica. “O ceticismo que não contribui para a ruína de nossa saúde é apenas um exercício

intelectual”7. A dúvida eleva angustiadamente o pensador aos cumes do desespero. Cioran afirma:

“O ato heróico da superação é primordial. Mas há quem não consiga superar a dúvida, afetado por

uma inaptidão orgânica para a crença. É o meu caso. Sou um duvidador incurável.”8.

Esse grau de afastamento da realidade se dá não somente nos riscos do pensamento

duvidador, mas cruamente na maneira como o pensador entende a vida:

Há experiências às quais não podemos sobreviver. Experiências depois das quais sentimos que nada mais pode ter significado. Após termos alcançado os limites da vida, após termos vivido com exaspero todo o potencial desses perigosos confins, as ações e os gestos cotidianos perdem toda a graça e sedução. Se continuamos vivos, é graças à escrita, que, por meio da objetivação, ameniza essa tensão infinita. Criar significa salvar-se provisoriamente das garras da morte.9

Esse cunho existencial de sua escrita tem por base a necessidade criativa de cura indelével da

vida. Mas também de desmascaramento de verdades latentes na sociedade, porém nunca postas

em evidência. Nesse sentido, surgem, por meio daquela dúvida cética existencial, verdades

viscerais. O autor explica: “respeito apenas as verdades vitais, orgânicas e espermáticas, pois sei que

5 CIORAN, 2001, p. 29 6 CIORAN, 2001, p. 23 7 CIORAN, 2011c, p. 56 8 CIORAN, 2001, p.24 9 CIORAN, 2011b, p. 21

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não existe verdade, mas apenas verdades vivas, frutos de nossa inquietude.”10. São as verdades

desse tipo que vão compondo o estilo aforismático de Cioran11.

Vivemos em um tempo em que os sistemas filosóficos foram demolidos pela relatividade

completa. Nesse nosso tempo, Cioran descreve: “Os parágrafos são substituídos por gritos: o

resultado é uma filosofia fundus animae”12. Somente em uma filosofia de aforismos é compatível

com o tempo em que parece ser o seu ocaso: “qualquer aspiração arbitrária e fantástica é preferível

às verdades inflexíveis.”13. No Breviário de Decomposição o autor cita as verdades de temperamento

daqueles que sentem. São as verdades viscerais que fazem tremer o corpo, fruto do mal-estar, dos

vícios e do sangue. Esses autores fazem suas angústias converterem-se em critério e na própria

realidade.

Assim, Cioran insere a perspectiva aforismática como forma de ser vítima do sentido da vida

e, portanto, obrigado a inventar e ser criativo para com as razões de existir. Essa perspectiva de seu

estilo leva em conta o pensador de ocasião que não pensa porque quer, mas por acidente, pela vinda

de um mal-estar ou de um delírio. Qualquer que seja, uma indigestão, afirma ele, é de fato mais rica

em ideias que uma dedução conceitual. O autor explica como se dá esse processo: “Meu presente

não desejado se desenvolve, me desenvolve; como não posso controlá-lo, limito-me a comentá-lo;

escravo de meus pensamentos, brinco com eles, como um bufão da fatalidade”14.

Toda a estilística de Cioran vai de encontro àqueles pensadores sistemáticos e fiéis no ideal

de moldar o homem. A eles deveriam nos restar apenas a pergunta: “quantas noites em claro

esconde seu passado noturno?”15. Esses são os que pensam quando querem e que não dizem nada,

justamente porque não são responsáveis por inteiro pelo que pensam, seu pensamento não é

fisiologicamente determinado. A vida não produz neles sintomas. “Só os espíritos superficiais

abordam ideias com delicadeza”16.

10 CIORAN, 2011b, p.105 11 Nietzsche em Humano, Demasiado Humano também propõe determinado tipo de verdades, são as verdades despretensiosas. As quais são aquelas que compõem, à maneira das Máximas e Reflexões de La Rochefoucauld, no caso de Nietzsche, a justificativa do estilo aforismático inaugurado por parte dele em tal obra. Para tanto, vide os aforismos Estima das verdades despretensiosas (§3), Vantagens da observação psicológica (§35), Objeção (§36) e Não obstante (§37). Influenciado por La Rochefoucauld, tais aforismos propõem a justificativa nietzscheana do uso dos aforismos. 12 CIORAN, 2011a, p.55 13 Idem 14 CIORAN, 2011a, p.128 15 CIORAN, 2011a, p.127 16 CIORAN, 2011c, p. 14

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No estilo do aforismo, vida e filosofia não se separam. Longe de uma composição arbitrária,

sua ordem de exposição é pensada cuidadosamente17. Se suas formas fragmentárias criam

perspectivas, é justamente pelo fato de advirem de uma realidade multíplice e que não cessa de

mostrar-se multifacetada. Tal estilo se faz, portanto, próprio de pensadores que analisam

cuidadosamente as verdades humanas escondidas naquilo que menos parece. Desveladores, os

aforismos compõem a sintomatologia de nosso tempo. Sendo assim, é necessário nos

transportarmos diretamente às suas bases.

A melancolia como método: fisiologia e cosmologia

Temos assim, o estilo aforismático com suas verdades viscerais. Essas só são possíveis por

meio da melancolia, que pressupõe sua fisiologia e sua cosmologia. Estamos diante de um método

existencial na filosofia de Cioran. A questão que se põe aqui é de cunho epistemológico, a qual só

pode ser visto sob o aspecto da melancolia. Essa última não é encarada como uma mera patologia

da contemporaneidade agraciada pelas clínicas, mas o método para as verdades viscerais e,

portanto, indispensável nesse procedimento.

Os sintomas da vida são muitos: tédio, angústia, desespero, acedia, tristeza, esgotamento e

cansaço. A fisiologia por parte de Cioran rodeia uma forma de ser do homem, enquanto doente: “O

espírito é fruto de uma doença da vida, assim como o homem não passa de um animal adoentado”18.

Por meio desse aspecto fisiológico é que o homem tem um acesso subterrâneo ao cosmos vazio na

melancolia. Nessa fisiologia da melancolia, a insônia tem um papel de fundamental importância. Ela

não é meramente um distúrbio do sono, mas condição para a filosofia. Através dela estamos

direcionados para a falta de essência da existência.

A insônia é aquilo que declaradamente fez o pensador sair de seu sonho dogmático para com

a filosofia e ir em direção à lucidez, no exercício de insubmissão e de autodestruição. Houve um

desencantamento daquele linguajar específico filosófico, admitido pelo autor: “Naquelas noites

infernais eu passei a compreender a inutilidade da filosofia. As horas de vigília constituem, no fundo,

uma rejeição contínua do pensamento pelo pensamento, (...) um ultimato infernal do espírito

dirigido contra si próprio”19.

17 Nietzsche expressa isso de forma singular em Humano, Demasiado Humano, no aforismo A crença na inspiração: “Os artistas têm interesse em que se creia nas intuições repentinas, nas chamadas inspirações; como se a idéia da obra de arte, do poema, o pensamento fundamental de uma filosofia, caísse do céu como um raio de graça. (...) Todos os grandes foram grandes trabalhadores, incansáveis não apenas no inventar, mas também no rejeitar, remoldar e ordenar” (NIETZSCHE, 2005, p.111) 18 CIORAN, 2011b, p.62 19 CIORAN, 2011b, p.15

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No Breviário de Decomposição, o pensador continua a escrever “um requisitório contra uma

filosofia sem nenhuma eficácia nos momentos graves”20. Ele admite que tal desencantamento foi

adquirido pelos constantes estados de vigília: “(...) não há ideia que console na obscuridade, não há

sistema que resista às vigílias. As análises da insônia desfazem certezas.”21.

A insônia passa a ser o requisito de uma postura filosófica, a qual provoca o desencantamento

da vida de uma maneira geral. Isso porque o insone, segundo Cioran, passa a compreender a falta

de essência da existência. A começar pelo próprio passar do tempo. Se aquele que consegue dormir

todas as noites tem uma sensação de que o tempo é circular, ou que ele se renova a cada dormida,

sua consciência passa a acreditar que o tempo se renova, promove novas esperanças. Ao passo que

o insone sente que o tempo não passa. Essa consciência do tempo leva à percepção de seu vazio

sem finalidade alguma: cada noite é uma eternidade.

Nesse estado, o homem é o único animal a quem ocorre o fato de querer adormecer e não

conseguir, deitar-se, esquentar sua cama e não dormir. Isso leva ao desespero, tristeza eterna e

irremediável. Quase que inevitavelmente só acessam os cumes do desespero e a desesperança para

com a vida quem se relaciona intimamente mal com a cama. “É impossível amar a vida quando não

se pode dormir”.22.

Enquanto todos estão matando o tempo do relógio no passar das horas rápidas quando se

dorme e curando suas dores, abandonando-as em seus sonhos profundos, a vigília ininterrupta faz-

nos ruminar dúvidas sem respostas, portanto, dores indeléveis, e entrar em contato com o nada. O

dia amanhece, tudo se torna claro em uma aparência de ciclo, mas o insone não o acompanha, não

há nada de novo, nem esperanças para convencer-se, resta apenas o cansaço.

É por meio desse estado que Cioran escreve e faz filosofia, pronuncia em vigília verdades

orgânicas de uma época crepuscular, ele admite: “Cansado de tal destruição, chegava a dizer-me:

nenhuma hesitação mais: dormir ou morrer..., reconquistar o sono ou desaparecer...”23. Marcado

pelas noites e pelo cansaço, somos arrastados, segundo Cioran, para o desespero.

Esse estado fisiológico fundante do pensamento se apresenta cada vez mais distante e rumo

aos cumes, até que transborda em direção aos espaços infinitos. Estamos diante de uma cosmologia

da melancolia. A fisiologia em Cioran está intimamente ligada a essa visão cosmológica. Assim, o

20 CIORAN, 2001, p.13 21 CIORAN, 2011a, p.208 22 CIORAN, 2011b, p.103 23 CIORAN, 2011a, p.208

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vazio exterior dos espaços infinitos está intrinsecamente relacionado ao sofrimento patológico de

quem descobre também em si um vazio. O veneno abstrato põe em evidência um vazio cósmico que

decorre de nossas vísceras e pressupõe uma cosmologia vaga que contemplamos para nada mais

esperar da vida.

Ocorre aí um fenômeno ímpar explicado por Cioran. Afirma ele: “Existe uma correspondência

íntima, em todos os estados profundos e grandiosos, entre o plano subjetivo e o plano objetivo.”24.

O homem projeta no cosmos essa visão do nada e é projetado pelo mesmo no vazio. A melancolia

exige um infinito exterior para dilatar-se em um vazio sem fronteiras. A intimidade do exterior com

o interior é marca de um contato subterrâneo com o cosmo, sem o qual não conseguiríamos

abandonar as ilusões da verdade. Temos assim uma melancolia como método de abnegação para

com as verdades, rumo a um ceticismo incurável25.

A melancolia passa a ter papel de extrema importância para a ascensão aos cumes do

desespero. Nos cumes, é possível contemplar lá de cima os atarefados em adiar a morte certa e os

incapazes de uma nova vida. Somos afastados do mundo, da individualização do cotidiano em

direção à sensação de vagueza desse e ao nada. Estamos diante de uma visão totalizante, imaterial

e universal. “Não há estado melancólico sem essa ascensão, sem expansão para os cumes, sem

elevação para acima do mundo”26.

Dentro dessa perspectiva ilimitada nos deparamos com nosso limite e abandono frente ao

universo infinito que nos apavora, à maneira de Blaise Pascal. Esse estado facilmente poderia ser

motivo de nosso desespero, mas, pela melancolia, temos um consolo estético. Trata-se de uma

passividade contemplativa. “Nota essencial dos estados melancólicos é a calma, a ausência de uma

intensidade especial”27. Diante da beleza desse estado, os problemas perdem qualquer valor e assim

não há menor sentido no frenesi cotidiano. Isto porque estamos diante de uma visão espacial do

vazio interno e infinito externo.

Enquanto que a tristeza contenta-se com uma moldura de fortuna, a melancolia necessita de uma orgia de espaço, de uma paisagem infinita para nela espalhar sua graça desagradável e vaporosa, seu mal sem contornos que, por medo de curar-se, teme um limite à sua dissolução e às suas ondulações. 28

24 CIORAN, 2011b, p.43 25 Cioran nos Silogismos da Amargura afirma: “O ceticismo derrama demasiado tarde suas bênçãos sobre nós, sobre nossos rostos deteriorados pelas convicções, sobre nossos rostos de hienas com um ideal” (CIORAN, 2011c, p.95). De fato, a melancolia está intimamente ligada ao ceticismo de Cioran, também ela derrama sob nós uma graça, não aquela divina, mas própria daquela cosmologia subterrânea que a fomenta, como veremos em seguida. Cioran afirma: “Possuindo mais virtudes poéticas do que ativas, ela tem um quê de graça refreada, (...), graça que jamais encontramos na tristeza intensa e profunda” (CIORAN, 2011b, p.48) 26 CIORAN, 2011b, p.45 27 CIORAN, 2011b, p. 47 28 CIORAN, 2011a, p.141

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Há um consolo estético, no qual somente aquele transbordamento da realidade nessa

dinâmica infinita é capaz de fomentar. Enquanto a melancolia segue em frente no espaço sideral

sem fim, o melancólico produz em si mesmo um temor de perdê-la. Quase curado da vida por meio

da melancolia, não quer abandoná-la. Ela convida a si mesma à contemplação do vazio da existência.

É um estado de consolo ante a vagueza da vida. Como na figura de Albrecht Dürer em Melancolia I,

não há nada que satisfaça ao nosso redor, só temos olhos para o além. O melancólico consegue sair

do jogo do homem atarefado e ir em direção ao consolo supremo, onde nada mais é objeto de amor

e de ódio a não ser ele próprio e o vazio cósmico. “Quem teme perder sua melancolia, quem tem

medo de curar-se dela, com que alívio constata que seus temores são infundados, que ela é

incurável”29.

É nessa perspectiva que prevalece não só uma solidão individual, mas uma solidão cósmica.

O estado melancólico, juntamente com o cansaço, desloca o homem do mundo, para que este

diagnostique, trêmulo, a existência. Mas não somente isso, ele também sente a solidão do mundo

diante do universo e do nada exterior. A melancolia, afirma Cioran, é fecunda ao saber, porém estéril

à vida. Temos, portanto, uma paralisia frente à vida, porque já não esperamos dela mais nada, mas

encontramos um viés completamente orgânico e fértil do saber, no qual se faz necessário manter-

se na existência por meio da tristeza. A melancolia nos aparece, antídoto de si mesma, como uma

solução estética do sofrimento da vida. Ela fomenta o distanciamento e, enquanto método, torna

possível a sintomatologia do contemporâneo. Assim, a melancolia é um impulso positivo da vida

oriundo do cansaço da mesma.

Desta forma, vemos como são possíveis as verdades que Cioran pronuncia por meio de seu

estilo aforismático. Essas, de cunho visceral possuem embasamento na cosmologia e na fisiologia

da melancolia, as quais pertencem a um método de apropriação daquelas verdades. Faz-se

necessário agora extrair as suas consequências principais.

As verdades viscerais de um tempo crepuscular

Todas aquelas verdades com “v” maiúsculo são colocadas em descrédito, aquelas que

ganham vozes altas pelos profetas do dia-a-dia. Aqueles que falam em nome de todos e que tentam

mediar a vida de outros em nome da Verdade. “Só escapam a ela os céticos (ou os preguiçosos e os

29 CIORAN, 2011c, p.103

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estetas), porque não propõem nada, porque – verdadeiros benfeitores da humanidade – destroem

os preconceitos e analisam os delírios.”30.

Toda reflexão advinda daquele método da melancolia é uma denúncia de como os homens

vivem o delírio cotidiano. Para começar, temos “uma propensão inconsciente a nos considerar o

centro, a razão e o resultado do tempo”31. Esse autoengano é cruamente necessário porque “não

poderíamos existir um instante sem enganar-nos: o profeta em cada um de nós é o grão de loucura

que nos faz prosperar em nosso vazio”32. Os homens são mártires e estão em toda parte matando-

se e matando os outros por uma certeza. E isso ocorre “no interior do círculo que encerra os seres

em uma comunidade de interesses e de esperança”33. O pensador34 segundo Cioran é justamente

aquele que sai do centro à periferia para contemplar de longe o rebuliço dos homens, os mártires do

dia-a-dia.

Frente aos atarefados, os desocupados são mais profundos e captam muito mais coisas. “A

preguiça é um ceticismo fisiológico, a dúvida da carne”35. São os benfeitores do ócio que não

pretendem reformar os homens com suas filosofias ou pedagogias:

O conhecimento não tem inimigo mais encarniçado do que o instinto educador, otimista e virulento, ao qual os filósofos não saberiam escapar: como permaneceriam imunes os seus sistemas? (...) À exceção dos céticos antigos e dos moralistas franceses, seria difícil citar um só espírito cujas teorias, secreta ou implicitamente, não tendam a moldar o homem.(...) Ninguém encontrou um propósito válido na história; mas todo mundo propôs algum. 36

Essas verdades que fazem de todo homem um profeta nato são justamente aquelas que com

olhar cínico se espalham nas constelações aforismáticas do pensador. Temos assim uma filosofia do

distanciamento que pensa a existência própria e a dos outros em sua falta de sentido e vaga. A vida

é vista como um estado de não suicídio, a sociedade uma legião de mortos-vivos, procrastinadores

da morte, “um inferno de salvadores”37, repleta de mártires e a história um “desfile de falsos

absolutos”38.

30 CIORAN, 2011a, p. 15 31 CIORAN, 2011a, p.17 32 CIORAN, 2011a, p.18 33 CIORAN, 2011a, p.37 34 Por vezes a afirmar que o pensador é um doente e o espírito uma doença, Cioran não cessa de acolher certa forma de pensamento para estar de acordo. Em Breviário de Decomposição, aforismo Filosofia e Prostituição, ele afirma: “O filósofo, desiludido dos sistemas e das superstições, mas ainda perseverante nos caminhos do mundo, deveria imitar o pirronismo de trottoir que exibe a criatura menos dogmática: a prostituta. (...) Não ter convicções a respeito dos homens e de si mesmo: tal é o elevado ensinamento da prostituição, academia ambulante de lucidez, à margem da sociedade como a filosofia”. (CIORAN, 2011a, p.108) 35 CIORAN, 2011a, p.38 36 CIORAN, 2011a, p. 42 37 CIORAN, 2011a, p.15 38 CIORAN, 2011a, p.13

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Em todos nós dorme um profeta “e, quando ele acorda, há um pouco mais de mal no

mundo”39. A vida em comum é encarada como um inferno, porque todos querem guiar uns aos

outros com suas opiniões e formas de conceber a realidade mal-fundada. “Encontramos alguém,

vemo-lo mergulhado em um mundo impenetrável e injustificável, em uma porção de convicções e

desejos que se superpõem à realidade como um edifício mórbido.”40.

Tudo que é humano enoja: é de impressionar o fato de existir relações humanas. Sofremos

em cada palavra anunciada, não temos tempo para nossos próprios segredos, preferimos nos trair e

exibir vulgarmente nosso coração, somos incapazes de encerrarmos em nós mesmos as nossas

efervescências. “E se encontramos os outros, é para aviltar-nos juntos em uma fuga para o

vazio(...)”41. Diante disso, estamos em constante estado de queda diária.

O homem é o tagarela do universo, para quem a vida não passa de prostituição das solidões

férteis da alma pelo diálogo inútil das relações. Nós falamos com os outros em nome dos outros,

outras ideias. “Cada vez que nos afastamos de qualquer uma delas, a pergunta que vem ao espírito

é invariavelmente a mesma: como é que não se mata?”42. Temos, de fato, a resposta: o nada é a

força superior que prolonga a vida nesse estado incessante de não suicídio, insistimos na coalizão

contra a morte e nos ocupamos inconscientemente com ideais que herdamos da história.

Os homens, não suportando a si mesmos nem aos outros nas relações, se transformariam

em zumbis se deixassem de lado o suor no rosto do trabalho ou se todos os dias fossem tardes

dominicais, seria o próprio apocalipse43. “O universo transformado em tarde de domingo... é a

definição do tédio – e o fim do universo... Retire a maldição suspensa sobre a História e esta

desaparece imediatamente, assim como a existência, na vacância absoluta, revela sua ficção”44.

Mas o homem é incapaz de pôr fim a tudo, apesar de profeta nato sempre a sondar o pior, o

fim da história e do homem “(...) são acontecimentos longínquos que a Ansiedade – ávida de

desastres iminentes – deseja a todo custo precipitar.”45. O homem não consegue nem pôr fim a si

próprio, muito menos à história. Nela, reina o seu motor principal: uma maldição da necessidade de

triunfo.

39 CIORAN, 2011a, p.17 40 CIORAN, 2011a, p.32 41 CIORAN, 2011a, p.31 42 CIORAN, 2011a, p.33 43 Em Silogismos da Amargura, Cioran afirma que “As sociedades se consolidam no perigo e se atrofiam na neutralidade. Onde reinam a paz, a higiene e o conforto, as psicoses se multiplicam”. (CIORAN, 2011c, p.94) 44 CIORAN, 2011a, p.38 45 CIORAN, 2011c, p.99

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Essa maldição que move a história é feita por ideais absolutos e personagens conquistadores,

que incitam gerações futuras a gloriarem os carrascos das precedentes. A glória dos conquistadores

é o triunfo de um só e a derrota de todos. “História universal: história do mal. (...). Se você não

contribuiu para uma catástrofe, desaparecerá sem deixar vestígios”46. Não seria isso muito melhor?

Isso não é uma escolha, pois quem ousa experimentar a liberdade, morre de fome. “A sociedade só

os tolera se são sucessivamente servis e despóticos.”47. Estamos a todo momento buscando a glória,

a qual vem junto com a desgraça que espalhamos à nossa volta, mas nem sequer nos damos conta

disso. A história nos provoca essa ilusão, grande ilusionista do tempo. Os conquistadores são

criminosos que tiveram êxito.

Mas consolemo-nos: nossos descendentes próximos ou longínquos nos vingarão. Pois não é difícil imaginar o momento em que os homens se degolarão uns aos outros por nojo de si mesmos, em que o Tédio vencerá a resistência de seus preconceitos e de suas reticências, em que sairão à rua para saciar sua sede de sangue e em que o sonho destruidor prolongado através de tantas gerações chegará a ser patrimônio comum...48

A glória reina e faz história, tendemos inconscientemente a ela como ao fato de querermos

deixar nossa marca no mundo, sermos fontes de acontecimentos. Basta-nos olhar para os

movimentos da história, vemos ideias para nos agarrarmos e pessoas para sacrificarmos. A história

é a história de nossas mais profundas ficções e ilusionismos49, as quais tem por base a dinâmica das

vítimas: “Os tiranos, uma vez saciada a sua ferocidade, tornam-se inofensivos; tudo voltaria ao

normal se os escravos, ciumentos, não pretendessem também saciar a sua. A aspiração do cordeiro

a converter-se em lobo suscita a maioria dos acontecimentos.”50.

Temos a ânsia constante de primar. Desde nossas mais íntimas relações: “O mais modesto

encontrará sempre um amigo ou uma companheira para realizar seu sonho de autoridade”51. Essa

ânsia faz com que a história se renove continuamente. Se renunciarmos isso, não temos para onde

ir. A nós, pensadores, conscientes disso, só resta a triste dor de aceitar: “No final das contas,

continua-se a ser como todo mundo, fingindo atarefar-se; resigna-se a tal extremo graças aos

recursos do artifício, entendendo que é menos ridículo simular a vida que vivê-la”52. O que fazer

senão ter a melancolia como consolo do vazio que nos resta?

46 CIORAN, 2011a, p. 137 47 CIORAN, 2011a, p. 142 48 CIORAN, 2011a, p.137 49 Em Silogismos da Amargura, Cioran anuncia: “Admiro esses povos de astrônomos: caldeus, assírios, pré-colombianos, que, por causa de seu gosto pelo céu, fracassaram na história”( CIORAN, 2011c, p.93). Percebemos aí uma ligação direta com a melancolia e o distanciamento de tais povos afastados da história, bem como os ciganos, os quais “(...) Triunfaram do mundo por sua vontade de não fundar nada nele” (CIORAN, 2011c, p. 93). 50 CIORAN, 2011c, p.94 51 CIORAN, 2011a, p.141 52 CIORAN, 2011a, p.142

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Considerações Finais

“Quem não sofre por causa do conhecimento, nada terá conhecido”53. O sofrimento e o

conhecimento estão intimamente relacionados no pensamento de Emil Cioran. Se o que reina na

história e nas relações humanas é um nada, o pensador é aquele que por meio de uma solidão

cósmica consegue perceber o quão vago é o humano e tudo o que faz. Diante dos aforismos

cioranianos estamos corroídos de tantas contradições pertencentes à vida que paralisamos na

margem do nada. Estáticos, não podemos esperar muito da vida, pois somos atacados

visceralmente por uma filosofia que não deixa esperança alguma.

Aos doentes do espírito que acessam o cosmo subterrâneo, só restam o consolo melancólico

do sofrimento e, tal qual afirma Cioran, mudar de desespero como quem muda de camisa ou

agarrar-se aos desgostos como a uma tábua de salvação. Porque no fundo são eles que nos incitam

a não mais esperar nada da vida e a sermos cada vez menos humanos54.

As filosofias geralmente nos põem uma verdade e evidenciam o método pelo qual essa

verdade está sendo posta. Resta sempre a nós, leitores, uma esperança figurada de que podemos

estremecer, tal qual fizeram aqueles autores, ou apreender introvisões daquela verdade. Emil Cioran

havia sentido isso com Nietzsche55. Não obstante toda uma crítica à postura de verdades absolutas,

Cioran coloca um tipo de verdade específica vista nesse trabalho, qual seja: aquela que compõe seus

aforismos de maneira incisiva e visceral. Não havendo a verdade absoluta imposta, retira-se

também aquela esperança e resta um vazio, o qual apenas incita a sermos distantes. As verdades

viscerais nos convidam a esse distanciamento, instalam no pensamento um método rigoroso para

sua apreensão e, por fim, confirmam em si mesmas as ficções do espírito humano e de seus afazeres.

De fato, estamos diante de um tempo crepuscular em que a única certeza é que tudo se

relativiza e pouco são os filósofos que nos prestam ajuda. Temos as verdades viscerais que advêm

de uma nova forma de entender a vida, verdades que nos fazem tremer. É provocada em nós a sede

para acreditarmos em nossas intuições, em nossos afetos e sensações trêmulas, fugindo da

racionalidade e buscando abandonar as ilusões, rumo às margens da filosofia, transformando-nos

em seus heróis negativos. A melancolia é o seu método de bases fisiológica, cosmológica e

historiológica. Ver tudo a distância e suspender nosso juízo até os cumes do desespero não é uma

53 CIORAN, 2011b, p.151 54 Cioran admite em Silogismos da Amargura: “Até onde me lembro, não fiz outra coisa senão destruir em mim o orgulho de ser homem”(CIORAN, 2011c, p.27). 55 Cf. Silogismos da Amargura p.34 – p.35.

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questão de escolha típica do ceticismo formal (não há escolha para quem escreve em aforismos),

mas da necessidade de um tempo que nos arrasta com velocidade, sem “por que” nem “para que”.

E com a memória e a imaginação difusas finalmente dormimos e acordamos, vemos a vida como

um novo ciclo, novas esperanças, ilusões, somos humanos, continuamos a viver e “(...) fugimos das

lágrimas, uma das quais apenas bastaria para afastar-nos do tempo”56.

REFERÊNCIAS CHAUÍ-BERLINCK, Luciana. Melancolia e Contemporaneidade. In Cadernos Espinosanos – Estudos sobre o Século XVII. São Paulo: Ed. USP, 2008. CIORAN, Emil. Breviário de Decomposição. Tradução de Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco. 2011a. ________. Nos Cumes do Desespero. Tradução de Fernando Klabin. São Paulo: Hedra, 2011b. ________. Silogismos da Amargura. Tradução de Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco. 2011c. ________. Cioran - Entrevistas com Sylvie Jaudeau. Tradução Juremir Machado. Porto Alegre: Sulina, 2001. LA ROCHEFOUCAULD, François. Máximas e reflexões. Tradução de Leda Tenório da Mota. Rio de Janeiro: Imago, 1994. NETO, Henrique Duarte. A ontologia negativa de Cioran. Disponível em: http://emcioranbr.wordpress.com/artigos/> Acesso em: 19/12/2012 NIETZSCHE, Friedrich. Humano, Demasiado Humano. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. PASCAL, Blaise. Pensamentos. São Paulo: Nova Cultural, 1988. (Coleção Os Pensadores). PECORARO, Rossano. A filosofia negativa de Cioran. Disponível em: http://emcioranbr.wordpress.com/artigos/> Acesso em: 19/12/2012 PIVA, Paulo Jonas. Fisiologia e filosofia em Emil Cioran. Disponível em: http://emcioranbr.wordpress.com/artigos/> Acesso em: 19/12/2012 ________. Fracasso e Suicídio em Emil Cioran. Disponível em: http://emcioranbr.wordpress.com/artigos/> Acesso em: 19/12/2012 ________. Odium fati: Emil Cioran, a hiena pessimista. Disponível em: http://emcioranbr.wordpress.com/artigos/> Acesso em: 19/12/2012 REYDSON, Deyve. Metafísica do sofrimento do mundo: o pensamento filosófico pessimista. João Pessoa: Idéia, 2009. p. 153 – 165.

56 CIORAN, 2011a, p.26

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CONSTELAÇÃO HISTÓRICA DE

CRISE Pedro Henrique Magalhães Queiroz1

RESUMO. A constelação histórica atual tem na crise da socialização mediada pelo valor mercantil e na instauração de um estado de emergência permanente, cujo sintoma subjetivo é o decrescimento das expectativas e o ponto culminante a guerra civil mundial, as suas questões cruciais. Apresentar um diagnóstico do nosso tempo a partir delas é o intuito do presente artigo. PALAVRAS-CHAVE. História; Crise; Expectativa; Guerra. ABSTRACT. The current historical constellation has in the crisis of socialization mediated by market value and in the establishment of a permanent state of emergency, whose subjective symptom is the decline of expectations and the climax is the world civil war, its crucial issues. Presenting a diagnosis of our time from them is the purpose of this article. KEY WORDS. Story; Crisis; Expectancy; War.

1. Sobre o conceito de história

Walter Benjamin, pensador judeu-alemão da primeira metade do século XX, em sua tese

de livre-docência não aceita (sobre o drama barroco alemão, ou Trauerspiel), nos apresenta a

verdade como uma ideia configurada à semelhança das constelações, de modo que os conceitos

assumem a mesma característica das estrelas: ainda que distantes (ou descontínuas) umas das

1 Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE) [email protected]

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outras, configuram para um determinado lugar de observação do cosmos uma unidade na forma de

imagem2.

Nas Passagens, compilação de notas e materiais para uma obra jamais escrita, mais

especificamente entre as teses Sobre o conceito de história (seu pretendido prefácio metodológico)

e o caderno N, tal imagem receberá uma acentuação do seu caráter histórico, configurando-se numa

situação de perigo. É a partir da situação de perigo atual, presente, que o sujeito do conhecimento

histórico, a própria classe combatente, em luta3, abre a possibilidade de um reencontro entre as

gerações passadas, derrotadas, e a sua. A poesia da luta dos oprimidos segundo Benjamin, ao

contrário do que disse Marx n’O 18 Brumário de Luís Bonaparte, não seria retirada do futuro, mas do

passado e de seu apelo à redenção4.

Esse seu último apontamento em vida é datado de 1940, contexto em que soava meia-

noite no século, no dizer de Victor Serge. O perigo de então era o de “entregar-se às classes

dominantes, como seu instrumento”5, afinal vivia-se um momento de refluxo das insurgências

proletárias pelo mundo, seja sob a forma do stalinismo na Rússia, do franquismo na Espanha, do

fascismo na Itália ou do nazismo na Alemanha. Foi a mobilização fascista que deu o tom da resposta

à crise econômico-financeira de 1929 após a derrota das experiências revolucionárias.

Cabe ainda ressaltar que é nesse contexto, desde a eclosão da primeira guerra mundial,

passando pela crise econômico-financeira de 1929 até a ascensão dos regimes totalitários,

culminando na segunda guerra mundial e até, enfim, o boom da bomba atômica, o momento de

refluxo não apenas das lutas proletárias de cunho revolucionário, mas dos próprios valores euro-

ocidentais sedimentados no processo de modernização econômica e política do capitalismo, o

Esclarecimento, ou Iluminismo, ou Ilustração. Igualdade, liberdade, razão, sujeito, humanismo

tornavam-se palavras ocas diante do potencial destrutivo da inflação, do sacrifício como lógica

política do ressentimento social, da bomba atômica.

Tal contexto de excepcionalidade em território europeu bem que rendeu, e continua a

render, muita resma de papel, muitos terabits na tentativa de justificar, criticar ou apenas entender

2 “As ideias se relacionam com as coisas como as constelações com as estrelas” (BENJAMIN, Origem do drama trágico alemão, [Prólogo epistemológico-crítico], p. 22). 3 “O sujeito do conhecimento histórico é a própria classe combatente e oprimida” (BENJAMIN, Magia e técnica, arte e política, [Sobre o conceito de história], p. 228). 4 Marx, no 18 Brumário, estabelece uma diferença entre as revoluções burguesas, que no ímpeto de transformarem radicalmente o mundo acabam por recorrer aos modelos do passado (por exemplo, a experiência da Roma antiga), e as revoluções proletárias, que retirariam sua poesia do futuro. O que Benjamin faz é, diante das catástrofes de seu tempo, enunciar um apelo proveniente das lutas dos oprimidos nas gerações passadas que seria a principal fonte da força das lutas presentes. 5 BENJAMIN, Magia e técnica, arte e política, [Sobre o conceito de história], p. 224.

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como o auge da civilização técnica trouxe consigo a contrapartida da decadência das expectativas

emancipatórias, seu refluxo regressivo. Vista de outro lugar no globo, tal excepcionalidade em

território europeu é a própria regra da experiência nas “terras de ninguém” da colonização; não custa

lembrar que o bem-estar da metrópole sempre foi sustentado pelo mal-estar nas colônias. No

entanto, há também o mal-estar interno à própria metrópole na medida em que a constituição de

uma massa de proletários urbanos só foi possível a partir da expropriação das terras de camponeses

no contexto da acumulação primitiva de capital, como nos lembra Marx no primeiro livro d’O capital.

É nesse sentido que Benjamin irá dizer, no clímax regressivo de 1940: “A tradição dos

oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral”6. O que

Benjamin está dizendo é bastante simples: nada de novo no front dos oprimidos. A experiência

histórica está marcada por processos de dominação da natureza e de dominação social, sendo

inseparáveis a capacidade de construção narrativa e o lugar que se ocupa dentro da hierarquia social.

A história até aqui tem na excepcionalidade das formas de dominação a sua regra, a sua marca

incontornável.

2. Contradição entre forças produtivas e relações sociais de produção

Retomando a compreensão do objeto histórico como uma imagem-ideia configurada à

maneira das constelações, imagem-ideia esta que se apresenta a partir do nexo, da ponte entre o

aqui e o agora de uma determinada situação de perigo e o outrora-ocorrido7, aquilo que foi silenciado

na luta das gerações passadas; o momento da presente escrita parece configurar um reverso dessa

imagem redentora ligada à tradição dos oprimidos, pois nos remete antes ao passado do

entreguerras: após a eclosão da crise econômico-financeira de 2008, passando pelo refluxo das

grandes mobilizações sociais, nos vemos diante da intensificação das guerras civis, de uma

mobilização social pseudoprotofascista8, da migração em massa e dos campos de refugiados, da

6 BENJAMIN, Magia e técnica, arte e política, [Sobre o conceito de história], p. 226. 7 “Não é que o passado lança sua luz sobre o presente ou que o presente lança sua luz sobre o passado; mas a imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma constelação. Em outras palavras: a imagem é a dialética na imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal e contínua, a relação do ocorrido com o agora é dialética – não é uma progressão, e sim uma imagem, que salta (...)” (BENJAMIN, Passagens, [N 2a, 3], p. 504). 8 Debord diz que o fascismo é “uma ressurreição violenta do mito, que exige a participação em uma comunidade definida por pseudovalores arcaicos: a raça, o sangue, o chefe. O fascismo é o arcaísmo tecnicamente equipado” (DEBORD, A sociedade do espetáculo, p. 75). Ele faz se reencontrar de modo perverso – ou reificado – o moderno e o arcaico: Mussolini, o Duce, queria restaurar a grandeza do Império Romano; Hitler, o Führer, a superioridade ariana. Benjamin considera o fascismo uma “estetização da política” na guerra: “Todos os esforços para estetizar a política culminam em um ponto. Esse ponto é a guerra” (BENJAMIN, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, pp. 92-94). De maneira geral, o que se chama de fascismo está associado a momentos de reação

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austeridade e suas contrarreformas, de um permanente estado de guerra, além do limite da

depredação ambiental em curso, o que nos remete a uma articulação, no mínimo, preocupante com

o passado até aqui apresentado.

Ao nos remeter ao contexto do entreguerras, o momento atual está antes nos exigindo

uma compreensão do passado recente da acumulação de capital, o processo de reestruturação

produtiva desde os anos de 1970, passado este que nos lança de volta à própria formação do sistema

da acumulação de capital, o seu processo de acumulação primitiva, e ainda ao próprio neolítico

maduro, como dirá Paulo Arantes em seu livro Extinção, só que agora um neolítico maduro high tech:

ao vencedor as batatas transgênicas intoxicadas. Seria essa a configuração de uma constelação não

redentora, mas catastrófica. É a partir dela que é preciso encontrar as brechas de esperança.

Essa apresentação, articulação, por assim dizer, constelacional de presente e passado,

ou nos termos de Benjamin, de agora e outrora-ocorrido, não significa que estamos apontando no

presente apenas uma continuação das formas arcaicas de dominação do passado, como se, por

exemplo, o racismo fosse apenas uma herança do passado colonial, ou como se retornássemos hoje

às condições do neolítico, da acumulação primitiva ou do entreguerras; não se trata do eterno

retorno do mesmo. A situação atual é inteiramente nova, o processo de acumulação de capital é

algo de irreversível, as condições da produtividade e da rentabilidade nunca permanecem as

mesmas; mas se trata de dizer que é apenas porque o presente produz e reproduz, engendra e

mantém, um arcaísmo, as próprias relações mercantis, que é possível estabelecer essa relação

negativa com o que há de arcaico no passado, com as suas formas próprias de dominação.

Ou ainda, a própria imagem do neolítico, por exemplo, enquanto figuração de um

passado arcaico, é ela mesma produzida no presente, pois é antes uma forma de projeção do social

no natural. Trata-se de uma forma de consciência ideológica – onírica, nos termos de Benjamin –

que se manifesta a partir de uma zona de indeterminação entre natureza e história, para fazermos

paralelo com um conceito de Giorgio Agamben no seu projeto sobre o homo sacer moderno; sua

base material, para continuarmos nos termos de Marx, é a produção da sociabilidade humana como

política, de recuperação da ordem perdida, como no bonapartismo, no entreguerras e hoje; mas este também não deixa de evidenciar a própria regra da história. Na sua leitura d’O 18 Brumário de Luís Bonaparte, Marx desvia Hegel dizendo que os acontecimentos históricos se repetem, mas de maneira distinta: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Faz isso para diferenciar o papel de Napoleão Bonaparte no desfecho da Revolução Francesa (1789-1799) e do sobrinho, Luís Bonaparte, no desfecho da Segunda República Francesa (1848-1851). Se partirmos desse apontamento para compararmos o entreguerras e hoje, poderíamos talvez dizer o mesmo: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa – Marcuse comenta que a farsa pode ser mais aterrorizante que a própria tragédia. No caso do fascismo atual, teríamos que associá-lo a um caráter pós-moderno (flexível), virtual e sobretudo farsante: não há mais o que ser recuperado. Talvez seja o caso de colocar o prefixo pseudoprotos – Freud utiliza esse conceito em um de seus textos pré-psicanalíticos para falar que a psique se funda numa primeira mentira, numa falsa origem – antes do nome.

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segunda natureza, algo historicamente constituído, mas socialmente percebido como natural. É essa

a questão central para compreendermos o arcaísmo, a pré-história na qual estamos inseridos e,

assim, o próprio significado da regressão imposta pela manutenção das relações sociais vigentes.

Essa relação viciosa entre o moderno e o arcaico, exposta superficialmente até aqui na

relação entre presente e passado, é apresentada por Benjamin nos seus exposés acerca do livro das

Passagens enquanto dialética do novo e do sempre-igual, uma interpenetração de mudança e

manutenção do mesmo que se expressa no conjunto das produções culturais. Tal dialética se

constitui a partir de uma contradição fundamental da acumulação de capital, a contradição entre o

desenvolvimento das forças produtivas e as relações sociais de produção9. Se em um determinado

momento da história o desenvolvimento das forças produtivas é impulsionado pela lógica da

acumulação de capital, a sua contrapartida se apresenta, como diz Marx no prefácio de sua

Contribuição para a crítica da economia política, quando, atingido um determinado estágio do

desenvolvimento das forças produtivas, este deixa de ser mobilizado e passa a ser antes travado

pelas relações sociais de produção vigentes, no caso a própria acumulação de capital.

Não é que a acumulação de capital deixa de intensificar as transformações técnicas, mas

que a bitola das relações de produção interdita as potencialidades de emancipação material e social

contidas nessas transformações. Esse é o problema político, por assim dizer, levantado por essa

passagem. No entanto, a principal questão a ser retomada desse apontamento de Marx para o

diagnóstico aqui perseguido do capitalismo contemporâneo é a sua relação com uma passagem

contida no tópico Capital fixo e desenvolvimento das forças produtivas da sociedade nos Grundrisse,

rascunhos antecedentes d’O capital:

A troca de trabalho vivo por trabalho objetivado, i.e., o pôr do trabalho social na forma de oposição entre capital e trabalho assalariado, é o último desenvolvimento da relação de valor e da produção baseada no valor. O seu pressuposto é e continua sendo a massa do tempo de trabalho imediato, o quantum de trabalho empregado como o fator decisivo da produção da riqueza. No entanto, à medida que a grande indústria se desenvolve, a criação da riqueza efetiva passa a depender menos do tempo de trabalho e do quantum de trabalho empregado que do poder dos agentes postos em movimento durante o tempo de trabalho, poder que – sua poderosa efetividade –, por sua vez, não tem nenhuma relação com o tempo de trabalho imediato que custa sua produção, mas que depende, ao contrário, do nível geral da ciência e do progresso da tecnologia, ou da aplicação dessa ciência à produção (...) Tão logo o trabalho na sua forma imediata deixa de ser a grande fonte da riqueza, o tempo de

9 “À forma do novo meio de produção, que no início ainda é dominada por aquela do antigo (Marx), correspondem na consciência coletiva imagens nas quais se interpenetram o novo e o antigo. Estas imagens são imagens do desejo e nelas o coletivo procura tanto superar quanto transfigurar as imperfeições do produto social, bem como as deficiências da ordem social de produção (...)” (BENJAMIN, Passagens, [Exposé de 1935], p. 41).

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trabalho deixa, e tem de deixar, de ser a sua medida e, em consequência, o valor de troca deixa de ser [a medida] do valor de uso.10

Tratar-se-ia de saber até que ponto o processo de reestruturação produtiva desde os

anos de 1970 pode ser interpretado como um momento em que se consolida esse deslocamento do

trabalho imediato, o trabalho vivo, pela automatização técnica, o trabalho morto, passado,

instaurando, assim, um impasse incontornável para a acumulação de capital. É essa a análise de

Robert Kurz em seu Colapso da modernização, e parece ser esse também o ponto de partida de um

pensador brasileiro (seja lá o que isso queira dizer) como Paulo Arantes:

De fato, as bases técnicas para a superação da pré-história da humanidade estão finalmente dadas, e, no entanto, esse limiar emancipatório brilha sob a luz negra de um atoleiro sem fim, o vasto aterro sanitário de homens e mulheres a um tempo descartados e ‘recapturados’ por motivo de irrelevância econômica. Esse buraco de agulha para elefantes é a contradição terminal do nosso tempo: o reino da liberdade está enfim à vista e todavia iremos todos morrer na praia da mais crassa necessidade material, como se ainda engatinhássemos nos tempos da pedra lascada. A contradição deste último capítulo que não acaba de acabar – a liberação possível do fardo da exploração como condição do progresso tornou-se a rigor uma verdadeira expulsão, por assim dizer, na boca do guichê –, foi no entanto identificada por Marx desde a origem: a compulsão do capital a eliminar do processo de valorização econômica a fonte mesma de todo o valor, o trabalho vivo.11

3. Expectativas em declínio

Retomando a dialética do novo e do sempre-igual apresentada por Benjamin, a

interpenetração de arcaico e moderno, expressa superficialmente na interpenetração de antigo e

novo e presente no conjunto das produções culturais, sejam elas objetos de arte, ruas, construções

arquitetônicas, livros de poesia etc., é, portanto, proveniente da interpenetração entre o arcaísmo

da manutenção das relações sociais vigentes e a utopia, ou o princípio esperança no dizer de Ernest

Bloch, de superação dessas mesmas relações. Isso significa dizer que a contradição posta na

produção material da existência se expressa subjetivamente nessa tensão entre o permitido, a

manutenção da bitola das relações mercantis, e o possível, a expectativa de superação dos

problemas materiais e das hierarquias sociais. Ao menos parece ser essa a problematização de

Benjamin.

10 MARX, Grundrisse, pp. 587-588. 11 ARANTES, O novo tempo do mundo, [Tempos de exceção], p. 315. “(...) o buraco negro em que foi se convertendo a sociedade salarial desde que o capital reencontrou um novo caminho para dar livre curso a sua compulsão congênita, a desvalorização suicida da fonte de seu processo de valorização” (ARANTES, Extinção, [Notícias de uma guerra cosmopolita], p. 95).

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É aqui que podemos fazer uma amarração, transpondo ao conceito, ou refundindo

conceitualmente as habilidades da mãe de santo e do pedreiro, tendo em vista o diagnóstico de Paulo

Arantes – feito a partir do diálogo com diversos autores – acerca do novo tempo do mundo, ou da

experiência do tempo no capitalismo contemporâneo. Retomando Reinhardt Koselleck, Arantes irá

dizer que o moderno tempo do mundo, aquele do progresso, se constitui a partir da separação entre

espaço de experiência e horizonte de expectativa – no contexto das grandes navegações, da

“descoberta do novo mundo”, da acumulação primitiva arregimentada pelos Estados absolutistas –

, e encontra seu vértice no Esclarecimento e nas revoluções políticas e industriais burguesas até,

enfim, passar a reconciliar-se após o lançamento bomba atômica, mas, sobretudo, após a

hegemonia global da economia capitalista após a queda do muro de Berlim e a dissolução da URSS.

Tal reconciliação traz consigo um caráter regressivo, pois tem a marca da conciliação entre

experiência e expectativa própria das comunidades tradicionais.

Como já dito anteriormente, não é que retornamos ao patamar das formas tradicionais

de organização social, nem se trata aqui de reafirmar o seu rebaixamento levado a cabo pelo

processo de modernização que teve no progresso a sua categoria ideológica central, constituindo,

assim, um conceito linear da história, mas que estamos diante de um processo endógeno, de um

esgotamento daquilo que marcou a experiência moderna do tempo até aqui, a constante abertura

do horizonte de expectativa. Como nos diz Paulo Arantes, é o rebaixamento, ou o esgotamento, do

horizonte de expectativa moderno, aquele do progresso, o principal fator da reconciliação

contemporânea entre experiência e expectativa12.

Seu declínio, o do horizonte de expectativa, se apresenta primeiramente no contexto do

entreguerras, contexto da crise econômica, da ascensão fascista etc., como já dito anteriormente,

mas particularmente no estouro da bomba atômica. A bomba atômica, a capacidade técnica de

autoaniquilação, de extinção da espécie humana, coloca na ordem do dia a iminência de uma

catástrofe. O ponto culminante desse declínio do horizonte de expectativa é o momento em que o

globo terrestre se torna, de fato, o palco único e exclusivo da acumulação de capital. O esgotamento

espacial trouxe consigo, ironicamente, o esgotamento temporal das expectativas. É essa uma

espécie de gênese da reconciliação até aqui apresentada, que tem como marca a emergência, ou a

urgência. Nas palavras de Arantes:

12 “(...) nesse aparente eterno retorno de uma conjuntura em que campo de experiência e horizonte de expectativa voltaram a se sobrepor, depois de seu longo divórcio progressista (...)” (ARANTES, O novo tempo do mundo, p. 97).

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Acontece que, a certa altura do curso contemporâneo do mundo, a distância entre expectativa e experiência passou a encurtar cada vez mais e numa direção surpreendente, como se a brecha do novo tempo fosse reabsorvida, e se fechasse em nova chave, inaugurando uma nova era que se poderia denominar de expectativas decrescentes, algo ‘vivido’ em qualquer que seja o registro, alto ou baixo, e vivido em regime de urgência.13

Se no tempo de Benjamin, quando soava meia-noite no século, o problema da exceção

como a regra da experiência política, da iminência da catástrofe, do esgotamento dos valores euro-

ocidentais, da sua própria dinâmica econômica e política de base, começa a se tornar uma questão

incontornável, é apenas no nosso tempo, esse que tem sua gênese em meados de 1970, que haverá

uma mudança negativa de novo tipo. Como nos lembra Arantes, retomando uma passagem da peça

Galileu de Bertolt Brecht14, mesmo no auge da crise na primeira metade do século XX ainda havia a

expectativa de uma reviravolta que viesse a redimir o rastro de violência e dominação que se

alastrava, no caso a expectativa de uma revolução.

Nosso tempo, ao contrário, tem como marca, além da queda tendencial da taxa de lucro

(Marx), ou mesmo de uma crise substancial da valorização (também Marx, na interpretação de Kurz),

da “baixa tendencial do valor de uso”15, para lembrarmos Guy Debord, uma queda tendencial das

expectativas16. Já não há redenção a vista, já não há outro mundo possível, há apenas a iminência da

catástrofe, que de todo modo já se encontra instaurada no próprio funcionamento normal do

mundo; há apenas o mesmo piorado. Esse estado subjetivo não é em si mesmo o produtor do estado

de coisas em que nos encontramos, mas sintoma. Seu problema de base, que pode ter seu paralelo

com a economia psíquica da libido, tem a ver com o próprio esgotamento interno das atuais

condições da acumulação de capital, de um lado, e os limites externos tanto do espaço para novos

mercados quanto da relação predatória com a natureza.

É essa diferença de expectativa entre os anos de 1929 e 2008 que nos permite

compreender por que um autor como Benjamin ainda pode encontrar nas produções culturais de

seu tempo um caráter utópico, uma expectativa que aponta uma redenção possível, e um autor

como Paulo Arantes ter como principal diagnóstico do novo tempo do mundo, no caminho das

publicações de Cristopher Lasch, a tendência a zero do horizonte de expectativa. Ao que parece, a

interpenetração do arcaico e do utópico, presente no contexto do entreguerras e mesmo no

13 ARANTES, O novo tempo do mundo, p. 67. 14 “Há cem anos se espera por um invento desse tipo”, diz Galileu na peça de Brecht. 15 DEBORD, A sociedade do espetáculo, p. 33. Poderíamos incluir, nesse ponto, o problema do empobrecimento da experiência em Benjamin, e a autodestruição do esclarecimento em Adorno e Horkheimer. 16 “À medida, portanto, que o globo encolhe e os horizontes temporais se reduzem a um ponto em que só existe o presente, o horizonte do desejo tende a zero, pelo menos na base da pirâmide” (ARANTES, O novo tempo do mundo, p. 75).

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Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 54

segundo pós-guerra, parece dar lugar a uma intensificação do caráter arcaico na medida

inversamente proporcional do decrescimento do caráter utópico das expectativas. Parece ser essa

constelação conceitual que nos permite compreender essa mesma lógica presente na redução do

Estado de bem-estar social (mesmo ele, sempre relativo) e concomitante intensificação do estado de

guerra em que nos encontramos. Parece ser essa a questão central para compreendermos o caráter

regressivo da experiência social contemporânea.

4. Guerra e sacrifício

Para retomarmos o título certeiro do último capítulo da última publicação de Robert

Kurz ainda em vida, Dinheiro sem valor, parece que estamos diante do sacrifício e do regresso perverso

do arcaico. Para elucidarmos esse apontamento temos de recorrer novamente a Walter Benjamin.

Em seu ensaio sobre a reprodutibilidade técnica, ele compreende o fenômeno da guerra como

regressão (fascista) que mobiliza a técnica não como força produtiva, mas como força destrutiva

(seu uso antinatural). Assim, a sociedade que se manteve presa à forma arcaica da produção de

valor, por não conseguir ir além do seu uso, acaba por converter toda força produtiva em destruição

no contexto da crise econômica daquele período. Nas palavras do autor:

(...) se o uso natural das forças produtivas é bloqueado pela distribuição da propriedade, a elevação dos meios técnicos, em termos de ritmo, de fontes de energia, pressiona em direção a uma utilização antinatural dessas forças. Esta é encontrada na guerra, que dá, com suas destruições, a prova de que a sociedade não estava madura o suficiente para transformar a técnica em seu órgão, de que a técnica não estava desenvolvida o suficiente para subjugar as forças elementares da sociedade. A guerra imperialista é determinada, em seus traços mais terríveis, pela discrepância entre os poderosos meios de produção e sua utilização insuficiente no processo de produção (em outras palavras, por meio do desemprego e da falta de meios e escoamento). A guerra imperialista é uma insurgência da técnica que cobra, em “material humano”, exigências para cuja satisfação o material natural foi negado pela sociedade. No lugar do trânsito aéreo, ela instaura o trânsito de balas, e na guerra química ela tem um novo meio para extirpar a aura.17

Isso porque, no contexto da primeira técnica, aquela do trabalho manual, que exige do

homem um constante labor, o ponto culminante da experiência coletiva é o ato do sacrifício; ao

contrário, a técnica moderna, a segunda técnica, a da capacidade de reprodução mecanizada,

17 BENJAMIN, Magia e técnica, arte e política, [A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica], p. 93.

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Constelação histórica de crise, pp. 46-59

Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 55

instaura a possibilidade do jogo, de uma outra relação entre humanidade e natureza. Ainda

Benjamin:

Humanos e seu ambiente eram os objetos de tais notações, e eles eram retratados segundo as exigências de uma sociedade cuja técnica existia apenas enquanto fundida com o ritual. Uma técnica que, se comparada à mecânica, é naturalmente rudimentar. Mas não é isso que importa à investigação dialética. Para ela interessa a diferença tendencial entre essa técnica e a nossa, que consiste no fato de a primeira empregar o ser humano o máximo, e a segunda, o mínimo possível. Em certo sentido, podemos considerar o ato máximo da primeira técnica como sendo o sacrifício humano; o da segunda encontra-se no horizonte dos aviões de controle remoto, que dispensam tripulação. A primeira técnica orienta-se pelo “de uma vez por todas” (nela trata-se do sacrilégio irreparável ou do sacrifício eternamente exemplar); a segunda, pelo “uma vez é nenhuma vez” (ela trata do experimento e das variações incansáveis dos procedimentos de teste). A origem da segunda técnica deve ser buscada onde o ser humano, com uma astúcia inconsciente, chegou pela primeira vez a tomar uma distância em relação à natureza. Em outras palavras, ela encontra-se no jogo (...) A primeira realmente pretende dominar a natureza; a segunda prefere muito antes um jogo conjunto entre natureza e humanidade.18

O regresso perverso do arcaico é, desse modo, uma espécie de atualização do sacrifício

próprio ao contexto da primeira técnica nas condições de destruição da segunda técnica. O arcaico,

por sua vez, é a própria manutenção das relações de propriedade vigentes, baseadas na forma de

mercadoria da atividade humana e de seus produtos, é aquela continuidade entre capitalismo e

religião apresentada por Benjamin em outro ensaio, O capitalismo como religião, ressalvando as

diferenças radicais entre ambos, como nos lembra Kurz, a continuidade entre o ritual inerente às

formas de organização social que encontram no sagrado a sua síntese e o fetiche da mercadoria que

marca o mundo da acumulação de capital.

O ponto culminante dessa lógica do sacrifício tornada atual pela manutenção do

arcaísmo das relações mercantis, que impossibilita um outro uso da segunda técnica, é a guerra.

Como diz Benjamin, ela é “uma insurgência da técnica que cobra, ‘em material humano’, exigências

para cuja satisfação o material natural foi negado pela sociedade”. Essa cobrança da técnica, a sua

conversão em força destrutiva na guerra, é antes uma cobrança da lógica da acumulação de capital,

D-M-D’, uma cobrança de sua permanente necessidade de autovalorização, que se intensifica nos

contextos de crise. Como diz Anselm Jappe: “O dinheiro é nosso fetiche: um deus que nós criamos,

mas do qual julgamos depender e ao qual estamos dispostos a tudo sacrificar para apaziguar as suas

cóleras”19.

18 BENJAMIN, Magia e técnica, arte e política, [A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica], pp. 62-63. 19 JAPPE, Anselm. A balsa da Medusa. Trad. José Alfora. Lisboa: Antígona, 2012.

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Constelação histórica de crise, pp. 46-59

Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 56

Mas, assim como é preciso distinguir a natureza da crise de 1929 da crise atual, é preciso

distinguir a mudança qualitativa ocorrida na natureza da guerra. No contexto de Benjamin, o modelo

econômico que veio a dar resposta à crise de sobreacumulação (diretamente relacionada ao

subconsumo) estourada em 1929 foi o modelo de produção fordista. Tal modelo tem relação direta

com o modelo da guerra de então, a segunda guerra mundial. Essa relação se expressa no caráter

nacional dos exércitos e mesmo no caráter de mobilização total da sociedade civil em função da

guerra. Outro é o caso da guerra atual, comenta Paulo Arantes em seu livro Extinção. Se o modelo

da acumulação contemporânea de capital transfigurou-se em um modelo flexível cuja principal

característica é a terceirização dos encargos materiais, como nos diz David Harvey no livro Condição

pós-moderna, a própria guerra também o fez. Ela de modo algum mobiliza a sociedade, nem mesmo

se executa mediante exércitos nacionais; a cada dia tem a mesma natureza dos exércitos na origem

do Estado moderno: se antes alugavam exércitos de mercenários, hoje não se faz outra coisa,

terceirizam-nos20.

Isso porque não se trata mais de um conflito direto entre nações, impossibilitado pela

Bomba (atômica). O foco, hoje, são as infraestruturas, a precisão pretensamente cirúrgica de uma

guerra sem baixas, cuja natureza é a desestabilização das condições de vida das populações e

territórios para melhor controlá-los21. Seu dispositivo é tão arcaico quanto o das guerras santas, ou

justas: o ataque ao inimigo chamado terror, mediante terror, haja visto o acontecimento originário

do atual terrorismo mundial de Estado, o 11 de setembro. É nesse sentido que o palpite de Arantes

sobre a configuração econômico-política contemporânea chama-se estado de sítio22, mais

especificamente a configuração de um estado de sítio mundial constituído a partir de um monopólio

mundial da violência.

O recurso do estado de sítio é apresentado pelo autor (no ensaio homônimo contido no

livro Extinção) a partir da experiência do 18 Brumário de Luís Bonaparte, analisada por Marx. Em 1848,

a Europa foi tomada por insurreições contra os regimes monárquicos ainda em vigência, no

20 “Seria, então, contemporânea a guerra pós-moderna, fragmentada, podemos supor, como as cadeias produtivas da acumulação dita flexível, desdobrando-se em conflitos descentralizados de baixa intensidade, regionalizados, terceirizados, por assim dizer, protagonizados por fatias de exércitos nacionais, mercenários, paramilitares etc., enfim uma economia de guerra escorada por esquemas de financiamento heterodoxos e igualmente flexíveis” (ARANTES, Extinção, [Notícias de uma guerra cosmopolita], p. 50). 21 “(...) não é preciso matar as pessoas, basta provocar o colapso de suas condições de vida. E assim foi feito (e estou citando): a destruição sistemática da infra-estrutura (eletricidade, abastecimento, água, saneamento etc.) não caracterizaria bem um bombardeio cirúrgico, mas o que um médico norte-americano chamou de 'neurocirúrgico': com a precisão alardeada, as bombas inteligentes arrancaram o cérebro que permite a uma população sobreviver” (ARANTES, Extinção, [Notícias de uma guerra cosmopolita], p.53). 22 “Se fosse possível e desejável resumir em uma única fórmula o atual estado do mundo, eu não pensaria duas vezes: estado de sítio. Palpite arriscado” (ARANTES, Extinção, [Estado de sítio], p. 153).

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Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 57

acontecimento que ficou conhecido como Primavera dos Povos. Particularmente na França, o

reinado de Luís Filipe deu lugar a Assembleia Nacional Constituinte dominada pelo “partido da

ordem”. Esse processo de formação do Estado constitucional republicano burguês só foi possível

mediante o esmagamento dos levantes proletários, que não se reconheciam na constituinte em

curso; só foi possível erigir uma constituição republicana em meio ao decreto do estado de sítio para

a contensão das tais jornadas de junho. Esse paradoxo é, na leitura de Arantes, o paradoxo crucial

da experiência política moderna, que irá se reapresentar em vários outros contextos, por exemplo,

na República de Weimar.

Mas seria muito pretensioso considerar que os atentados de 11 de setembro, o 18

Brumário de George Bush anunciado no ensaio de Arantes, tiveram principalmente a ver com os

levantes chamados pela mídia de antiglobalização; seria talvez considerar-se um inimigo à altura de

por abaixo e reconfigurar a ordem social vigente, como noutros tempos. No entanto, ou devido a

isso, como retoma Arantes um autor americano, “contrainssurgência hoje, afirma [Andrew]

Bacevich, é uma moeda falsa, uma fraude destinada a perpetuar o estado de guerra no mundo, pois

a ‘segurança da população’, por definição, é uma porta que nunca se fecha”23. Não é preciso um

inimigo interno à altura para se acionar dispositivos de controle ou de extermínio.

Antes dos protestos “ideologicamente” anticapitalistas, existem alguns inimigos

internos que, na prática, se mostram mais perigosos, mesmo sendo também impotentes quanto a

uma nova forma prática de redenção. Estes são as populações periféricas, sobretudo negras, cada

vez menos integráveis na ordem da socialização pelo trabalho, por isso mesmo extermináveis. E

como inimigo externo, o terror islâmico, subproduto do terrorismo de Estado que se consolida desde

a fundação do Estado de Israel até as ocupações do Iraque e do Afeganistão. É justamente na relação

com esse inimigo que todo Estado funda sua política de emergência; se não mais outros Estados

nacionais, ou mesmo um movimento revolucionário, como inimigo, agora a emergência de

contensão das suas próprias populações não integradas e das populações expropriadas em

territórios externos.

O estado de sítio mundial no qual estamos inseridos tem, portanto, de ser compreendido

a partir desses dois apontamentos: de um lado, a natureza da crise econômico-financeira atual,

colocando os termos do estado de emergência a partir de sua natureza econômica; de outro, a

23 ARANTES, O novo tempo do mundo, [Depois de junho a paz será total], p. 367.

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Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 58

produção política do inimigo como intensificação da lógica do sacrifício sem teor sagrado24, que terá

sua marca no extermínio das populações não integradas, em âmbito interno, e no estado

permanente de guerra nas ocupações de territórios externos. Tanto de um lado como do outro da

análise aqui perseguida, o seu produto permanece sendo a guerra.

Retomando-a, se na apresentação teórico-estratégica do general prussiano Carl von

Clausewitz, figura central na derrota das guerras napoleônicas, a guerra aparece como continuação

da política por outros meios, como fenômeno limitado pela política, um meio para fins políticos, essa

a guerra real apresentada no seu livro inacabado Da guerra25; no contexto das guerras mundiais,

particularmente no segundo pós-guerra, diante do fato material da bomba atômica, outra é a

experiência da guerra que passa a se constituir. Atingido o patamar da força de destruição atômica,

a guerra absoluta apresentada por Clausewitz, até então apenas uma figuração hipotética da

capacidade de destruição instantânea do exército inimigo, passa a ser a guerra real, a guerra

absoluta torna-se uma realidade.

Com a impossibilidade de um conflito direto entre as superpotências da guerra fria, o

bloco ocidental liberal americanizado e o bloco da economia de comando estatal soviética, a guerra

passa a esquentar a prestação na periferia do mundo. Esse impasse será reconfigurado com a

dissolução do bloco estatal soviético e a entrada em cena da globalização do capital nos termos do

bloco ocidental à americana – não sem integrar alguns elementos do modelo rival, modernizando-

se econômica e policialmente26. Nesse momento, passa a predominar hegemônica e

assimetricamente o aparato econômico-financeiro e militar dos Estados Unidos.

É nesse ambiente que se gestará o que Paulo Arantes denomina de guerras cosmopolitas,

tendo como marco a Guerra do Golfo27, passando pelas ocupações do Iraque e do Afeganistão após

o 11 de setembro até a atual guerra civil na Síria. A guerra cosmopolita contemporânea é justamente

o reverso da paz perpétua kantiana, uma “paz perpétua por meio da guerra perpétua”28; no caso, o

que integra essa nova (des)ordem mundial é a produção do mundo como fronteira militar, em um

24 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. 25 CLAUSEWITZ, Carl von. Da guerra. Trad. Maria Teresa Ramos. São Paulo: Martins Fontes, 1979. Poderíamos, em outra circunstância, reapresentar Clausewitz partindo do modo como a guerra absoluta (pensada aqui como a guerra real a partir da entrada em cena da bomba atômica) reconfiguraria a natureza e a teoria da guerra, assim como os seus demais componentes. 26 “Como o Grande Cisma do poder de classes terminou em reconciliação, hoje convém dizer que a prática unificada do espetacular integrado ‘transformou economicamente o mundo’, ao mesmo tempo em que ‘transformou policialmente a percepção’ (A própria polícia, no caso, é totalmente nova)” (DEBORD, A sociedade do espetáculo, [Advertência da edição francesa de 1992], p. 10). 27 “A Guerra do Golfo foi sem dúvida o primeiro grande laboratório do estado de sítio como governo do mundo” (ARANTES, Extinção, [Notícias de uma guerra cosmopolita], p. 43). 28 ARANTES, Extinção, [Notícias de uma guerra cosmopolita], p. 76.

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processo no qual a guerra deixa de ser a continuação da política por outros meios e, ao contrário, é

a política que passa a ser a continuação da guerra por outros meios: “Não estamos mais diante da

guerra, mas, agora sim, diante da política como mera continuação da guerra”29. Nesse percurso, a

guerra deixa de ser um acontecimento limitado e simétrico e passa a ser um estado de exceção

permanente, ilimitado e assimétrico; torna-se um fim em si mesmo, como o próprio capital. Sua

atualidade repõe os elementos supostamente arcaicos das guerras justas ou santas (das Cruzadas,

por exemplo), só que agora como guerra humanitária, cosmopolita. É essa a base do estado de sítio

mundial no qual estamos inseridos.

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Trad. Gabriel Valladão Silva. Porto Alegre: L&PM, 2013. ______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2012. ______. Origem do drama trágico alemão. Trad. João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. ______. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. ARANTES, Paulo. Extinção. São Paulo: Boitempo, 2007. ______. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo, 2014. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. MARX, Karl. Grundrisse. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011. ______. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. In: ______. A revolução antes da revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2008.

29 ARANTES, Extinção, [Diante da guerra], p. 29.

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Staging a noumenal body in the vorstellungswelt, pp. 60-76

Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 60

STAGING A NOUMENAL BODY IN

THE VORSTELLUNGSWELT,

OR:

DISSECTING “MATERIALITY” IN

SCHOPENHAUER AND BUTLER Raiany Romanni (Dartmouth College; Professor Eric Miller)

ABSTRACT This essay begins with mimicry. First, the body of Schopenhauer—as it can be inferred from books I and II of Die Welt als Wille und Vorstellung—is performatively portrayed within the scope of one page. Second, the body of Judith Butler, as inferred from Bodies that Matter, is equally laid bare by means of the same gimmick: via the lenses of rhythmic and quasi-satirical judgement. Each sentence laid out within these two pages (one to speak to each author) is then duly dwelt upon in the subsequent sections. A comparative study of Schopenhauer’s take on the body against Judith Butler’s, this paper is bound to exceed phenomenality. In its first section, the paper addresses Schopenhauer’s Leib as it presents itself in two (seemingly) antipodal fashions: once as Wille, and once as Vorstellung.1 Accordingly, Schopenhauer’s account of Materie and Wille is carefully investigated, so as to illuminate the body in both of its polarities. In its second section, Butler’s notion of “materiality” and “construction” in Bodies that Matter is cautiously dissected, with the aim of exhibiting a body which exceeds its own referent. Lastly, these two free-standing bodies are positioned against one another, parading their differences as well as intersections, while questioning their viability in a Vorstellungswelt. In my concluding section, I attempt to understand the corollaries of each bodies’ framework of agency, and assert that because “the body” is not a stable referent, either notion of body may be said to be a deviation from an originary.

1 SCHOPENHAUER, Die Welt als Wille und Vorstellung, (2016, reis.; 1819, Berlin: Berliner Ausgabe), Book I, sec. 18. “Dieser Leib [ist] auf zwei ganz verschiedene Weisen gegeben: einmal als Vorstellung […] aber auch zugleich auf eine ganz andere Weise, nämlich als […] Wille.”

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Staging a noumenal body in the vorstellungswelt, pp. 60-76

Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 61

This essay will begin with mimicry. First, the body of Schopenhauer—as it can be inferred

from books I and II of Die Welt als Wille und Vorstellung—will be performatively portrayed within the

scope of one page. Second, the body of Judith Butler, as inferred from Bodies that Matter, will be

equally laid bare by means of the same gimmick: via the lenses of rhythmic and quasi-satirical

judgement. Each sentence laid out within these two pages (one to speak to each author) will be duly

dwelt upon in the subsequent sections.

A comparative study of Schopenhauer’s take on the body against Judith Butler’s, this paper

is bound to exceed phenomenality. In my first section, I will address Schopenhauer’s Leib as it

presents itself in two (seemingly) antipodal fashions: once as Wille, and once as Vorstellung.2

Accordingly, Schopenhauer’s account of Materie and Wille will be carefully investigated, so as to

illuminate the body in both of its polarities. In my second section, Butler’s notion of “materiality”

and “construction” in Bodies that Matter will be cautiously dissected, with the aim of exhibiting a

body which exceeds its own referent—unless its referent is purposefully one always in deferral.

Lastly, I will position these two free-standing bodies against one another, parading their

differences as well as intersections, while questioning their viability in a Vorstellungswelt. In my

concluding section, I will attempt to understand the corollaries of each bodies’ framework of agency,

and assert that because “the body” is not a stable referent, either notion of body may be said to be

a deviation from an originary.

♦ ♦ ♦

“Mein Leib und mein Wille sind Eines; oder was ich als anschauliche Vorstellung meinen Leib

nenne, nenne ich, sofern ich desselben auf eine ganz verschiedene, keiner andern zu vergleichende

Weise mir bewußt bin, meinen Willen; oder, mein Leib ist die Objektität meines Willens.”3

—ARTHUR SCHOPENHAUER, DIE WELT ALS WILLE UND VORSTELLUNG

2 SCHOPENHAUER, Die Welt als Wille und Vorstellung, (2016, reis.; 1819, Berlin: Berliner Ausgabe), Book I, sec. 18. “Dieser Leib [ist] auf zwei ganz verschiedene Weisen gegeben: einmal als Vorstellung […] aber auch zugleich auf eine ganz andere Weise, nämlich als […] Wille.” 3 SCHOPENHAUER, Die Welt als Wille und Vorstellung, Book II, sec. 18.

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Staging a noumenal body in the vorstellungswelt, pp. 60-76

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The body delights, bemoans, creates—it is the always libidinous, which in turn effortlessly

seduces metaphysically.4 The body engenders, gives birth, is innate. It is (to itself) the limit of the

Weltwille, a sightless, obedient servant; its eyesight serves only for the Schattenspiel of

Erscheinungen which it alone orchestrates: it is the Subjekt-Objekt which always already serenades

a world of Vorstellung. The body is reflection; primordial facsimile: an echo which hums,

imperatively, until quasi-docilely surpassing the brink—a make-believe brink—of the

Vorstellungswelt. The body is the proof, at times living and solemn, that Vorstellung and Wille are

one and the same: as well as the testament to their discongruity.5 The body is the frontier to that

which is borderless; the body is a verb, the Wirken of matter, the screaming of space, the folding of

time; the offspring of space-time; though, too, their begetter.6 The body is matter: time, space,

causality. The body ek-sists: as objectified Wille; Erscheinung; Vorstellung. The body becomes—but

through what? The Wille IS ALWAYS.7 The body is the immediate performance of an aimless,

bodiless, groundless (grundlos) life-force. Is it itself ALWAYS? The body speaks noumenally, but is

heard phenomenally. Its center is the sex;8 the outburst-made-flesh. Within it the Weltwille:

undressed, impervious, the one Ding an sich, the breath of the body,9 or the body its instrument.

♦ ♦ ♦

“There is no nature, only the effects of nature: denaturalization or naturalization.”10

—JACQUES DERRIDA, Dormer le Temps

The body, now, shivers, endures, contains; is hardly even bore—the product of

alienness, mediacy, indirectness; extraneous, cumulative trauma. To itself it is Other, as it

4 It may be argued that there exists a quasi-kinesthetic relation between Schopenhauer’s notion of the Weltwille and the physical body. The latter exists in a twofold condition of Wille and Vorstellung, and serves as (one of the various) manifestations of a single, all-encompassing Weltwille. 5 Wille and Vorstellung may be said to be different sides of a single coin, as Schopenhauer explains: “was an sich Wille ist, ist andererseits als Vorstellung da.” Die Welt als Wille und Vorstellung, sec. 18. 6 The body, for Schopenhauer, is the precondition for the presence of time-space-causality, as it permits these “Formen der Erkenntnis” to be. The body, however, insofar as it is matter(ed), ek-sists only as an immediate corollary of time-space-causality—in which case Schopenhauer must permit these categories to be, too, the Grund des Seins. 7 To Schopenhauer, Ursache and Wirkung exist only in the Vorstellungswelt (and necessarily there). It is a fallacy, he argues, to project such a causal motion (Bewegung) upon the relationship of Subjekt and Objekt, as well as upon the manifestations of the Wille itself. 8 LUCHTE, JAMES. “The Body of Sublime Knowledge: The Aesthetic Phenomenology of Arthur Schopenhauer” (2009, New York: Heythrop Journal, pp. 228-242). 9 Not only does the Weltwille behave as the breath/pneuma of the body, but also of all other Erscheinungen in the Vorstellungswelt. 10 Epigraph to Judith Butler’s Bodies that Matter.

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longs simultaneously to flee and engulf the always clothed distance of which it is made. Its sex

is mute, but hears—it hides, but only so that it may squelch its shrieks: it is a peek-a-boo game,

a timidly fatal fort-da, an uncomfortable corollary, outgrowth, effect, of alien sources which

are themselves sourceless. The body becomes—but through what? Its screams hover

depthlessly, like laughter which springs from Odradek’s lungs.11 The body is a means-for-

whom? Its matter is unclaimed. The body is the laic Word-made-flesh “still dwelling among

us,”12 yet hesitantly—like centipedes who intermittently forget how to walk.13 The body is one

thing, the spirit another; an sich there is no thing, unless it is culture. Culture (and the body its

mute servant) becomes—but through what? Culture is the subject; the all-encompassing verb,

the making of flesh. The body, its maltreated breed.

I. SCHOPENHAUER

“Erkenne die Wahrheit in dir: dort berührt der Himmel die Erde.”

—SCHOPENHAUER, DIE WELT ALS WILLE UND VORSTELLUNG, 1819

The body, then, must coexist with its various forms—to Schopenhauer, namely, the

natural condition of Vielheit in which it functions (wirkt). To this essay, the body’s perhaps most

fertile idiosyncrasy will have been the premise that, unlike any other object, “das Leib” presents

itself before us in a two-fold manner: once as Wille, and once as Vorstellung.14 It is the single object-

in-the-world which offers to its counterpart (the subject), more than the “Vereinigung von Raum und

Zeit [Materie/Kausalitaet],” a glimpse into the “unmittelbar Bekannte”; namely the Wille.15

To Schopenhauer, Kant’s novel understanding of time, space and causality as a priori

“Formen der Erkenntnis” (in Kant’s speak, “Kategorien”)16 falls short in that it attempts to,

phenomenologically, direct the subject’s “intentionality” outwards in search of Truth—toward a

Ding an sich veiled behind alien objects. To Schopenhauer, there is no “transcendental object,” and

11 “‘Und wo wohnst du?’ ‘Unbestimmter Wohnsitz’, sagt [Odradek] und lacht; es ist aber nur ein Lachen, wie man es ohne Lungen hervorbringen kann.” KAFKA, Franz. “Die Sorge eines Hausvaters,” (1917, reis.; 2006, Fischer Klassik Plus). 12 John 1:14, The Holy Bible, (2001, Wheaton (IL): Crossway Bibles, ESV) 13 Allusion to the “centipede effect,” from the folkloric English poem: “A centipede was happy – quite!/ Until a toad in fun/ Said, "Pray, which leg moves after which?”/This raised her doubts to such a pitch,/ She fell exhausted in the ditch/Not knowing how to run.” 14 SCHOPENHAUER, Die Welt als Wille und Vorstellung, Book II, sec. 18. 15 SCHOPENHAUER., Die Welt als Wille und Vorstellung, Book II, sec. 22. 16 KÖRNER, Stephan. Kant (1990, London: Penguin Books), ch. 3.

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as such, no Ding an sich to be sought after behind objects which are, necessarily, only there for the

subjective pole of the Subjekt-Objekt condition (Bedingung). As Schopenhauer explains it best, “die

objektiv vorhandene Welt nur in der Vorstellung, also nur für ein Subjekt daseyn kann, nicht

umstößt.”17

In the quest of truth, then, one must look inward, for only there, to the living, bodily subject,

lies the possibility of an immediate—though not unquarrelsome—glimpse of the one Ding an sich:

the Weltwille. The Weltwille is not subject to time or space, nor is it “dem Satze vom Grunde

[unterworfen],”18 which means its relationship with any Erscheinung in the Vorstellungswelt may

not be one of “Ursache und Wirkung,” but instead (only a quasi-relationship, unless one with one’s

troubled self), “was an sich Wille ist, ist andererseits als Vorstellung da.”19

In all philosophy thus far, Schopenhauer contends, the sophism had been committed of

favoring an Ausgangspunkt from which to best ambush Truth: the idealists make of the object the

Wirkung of the subject; the realists its Ursache.20 Kant—the Copernican revolutionist credited,

among other things, with the bridging of these two views—is not made mention of at this point. The

novelty of Schopenhauer’s view—perhaps indeed its unprecedented contribution—lies, however, in

the potentiality of an introspection desirous not of the subject’s anecdotal truths, but of a bigger,

incommensurably higher force, encompassing at once the entire Vorstellungswelt; and to which the

Subjekt-Objekt relation appears as a humorous Schattenspiel.

In this light, Edmund Husserl’s call for a return “zu den Dingen selbst,”21 appears hopelessly

grim. One must, Schopenhauer emphatically argues, “erkennen die Wahrheit” in oneself: Only so

will the skies (der Weltwille) touch the Earth (die Vorstellungswelt). If, however, one senses the body

now slip through one’s fingers, as the armies of metaphors grow untouchable, it is, too, only

befitting. If the Wille will be staged as the primary actor in the quest for the body, it is because “jeder

wahre Akt [des] Willens ist sofort und unausbleiblich auch eine Bewegung [des] Leibes.”22

Schopenhauer’s body, accordingly, may not be grasped as a source (from which

performative utterances are engendered), and even less as an accidental corollary of the Weltwille.

All that is, must necessarily be. The Weltwille itself, rather than inhabit a distinctive Hinterwelt from

17 Schopenhauer, Die Welt als Wille und Vorstellung, Book I, sec. 1. 18 Ibid., sec. 26. 19 Ibid., sec. 27. 20 Ibid., sec. 7. 21 HUSSERL, Edmund. Ideen zu einer Reinen Phänomenologie (1953, reis.; 2009, Muenster, Felix Meiner). 22 SCHOPENHAUER. Die Welt als Wille und Vorstellung, sec. 18.

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which it inconspicuously whispers its outbursting mandates—utterances from a Noumenalwelt

which at a precise juncture (and not another) breach the Phänomenal, in rare motion—rather than

so exist, the Weltwille is always, at one and the same time, and at one and the same juncture, as is

the Vorstellungswelt.23

Yet, despite Schopenhauer’s mindful insistence that one does not envision a condition of

cause and effect within this particular motion, the Weltwille appears, too, to be irremediably

creative of the Subjekt-Objekt condition (itself pregnant of matter, time, space, causality) which

allows for the Vorstellungswelt to appear. Without any living (causality recognizing) being, the

Vorstellungswelt is no longer. If time and space are indeed only an immediate corollary of the

subject’s ek-sistence, then along with all living beings, matter, too, would abruptly vanish. The

subject, as such, appears to be the sufficient condition of matter; since matter is but the

“Vereinigung von Raum und Zeit,” 24 for which the subject alone is a Voraussetzung.

If the subject is, there must be a Wille, of which the (body-dependent, though not bodily)

subject is always an immediate manifestation; i.e. Willenserscheinung, rather than Objektität des

Willens. In this spirit, the subject entails, too, the rhizomatic actuality of the Weltwille itself: a

physical glimpse into a metaphysical universe, with no time and space; no beginning or end. Once

the subject already is, thence it alone may be said to be the single (sufficient) condition of matter.

Yet, the subject is itself necessarily subject to matter in its Subjekt-Objekt condition (namely, as

Vorstellung). As such, the subject is justly deemed “der traeger der Welt,”25 insofar as it entails—

within no temporally hierarchical motion—the world as Wille, and the world as Vorstellung.

Without the subjective pole of the Subjekt-Objekt condition, not only would the

Vorstellungswelt not be, but the world as Wille would be unattainable (indeed to no one). The Wille,

as such, would have no spectators, though it might behave—still—as music frantically orchestrated

not “by whom” but “for what;” almost like Zarathustra’s freedom, unfettered not “wovon?” but

“WOZU!”26 The Wille, however, is the outbursting Kern of the Vorstellungswelt, whose

23 When engaging with Schopenhauer’s theory, one is bound to compassionately comprehend his honest struggle with grammar as it entices one to allude, for instance, to the world as Wille via the principle of reason, i.e., the Formen der Erkenntnis, which pertain exclusively to the world as Vorstellung. To say that the Weltwille is at the same time or space as anything else, more than a contradictio in adjecto, is to use language as it is formed and presented before us in the Vorstellungswelt. 24 “[D]as Wesen der Materie in der gänzlichen Vereinigung von Raum und Zeit besteht, welche Vereinigung nur mittelst der Vorstellung der Kausalität möglich ist.” Schopenhauer, Kritik der Kantischen Philosophie, sec. 74. “Innige Vereinigung von Raum und Zeit, – Kausalität, Materie, Wirklichkeit, – sind also Eines, und das subjektive Korrelat dieses Einen ist der Verstand.” SCHOPENHAUER. Die Welt als Wille und Vorstellung, sec. 18. 25 SCHOPENHAUER. Die Welt als Wille und Vorstellung, Book I, sec. 2. 26 NIETZSCHE, Friedrich. Also Sprach Zarathustra. (1883, reis.; 2011, Muenchen: Akademie Verlag) “Frei wovon? Was schiert das Zarathustra! Hell aber soll mir dein Auge künden: frei WOZU?” ch. 28, “Vom Wege des Schaffenden.”

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(un)teleology is irrationally splintered in a frenzied stage of reflections. It aims always, though only

ever aimlessly. But, more importantly: if the Wille is always, and is not free wovon, but (explosively)

WOZU—if it has no specific beginning in time (it is atemporal)—might there be a world where the

Objektität des Willens has not always already occurred? May there be a world as Wille, but not as

Vorstellung?

The world as Wille, short of the “traeger der Welt,” would be limitless. A melody hovering

vigorously, lustfully, most shamelessly bare—with no contrapposto sway, no synchronized-other-

side, no reflection. Until, forthwith; at one point in time and not another, the necessary Objektität

des Willens would occur. Might it have been so, then one must ask again: may the Weltwille exist

without always already engendering a Subjekt-Objekt condition, and—more importantly, how does

the Wille choose to, at last, objectify? May this movement have been spurred by the inflation of

time, space, causality? In it exists none. May the Vorstellungswelt (and thereby some body, some

subject) have been always, necessarily at one and the same compass as the Weltwille?

Perhaps somewhat reassuringly, for Schopenhauer, any motion that has been, must

inescapably have been so.27 Yet, one proceeds unsatisfied. Schopenhauer remains mindful of this

peril, and urges his reader to note that Ursache and Wirkung do not exist in the world as Wille (nor

in the Subjekt-Objekt “relation”), but only in the Vorstellungswelt. Yet, it is difficult—even if one

takes Schopenhauer’s foresight for granted—to posit such a virginal, causality-independent

condition, as living spectators in a world of appearances and (re)presentations. How might matter

be the offspring of time-space-causality, if the subject, necessarily body-dependent, is responsible

for the “recognition” of these categories in the first place? Must the subject not precede matter, and

matter the subject, in its turn?

Schopenhauer, then, proposes an escape route: not only are (what was left of) the Kantean

categories mere Formen der Erkenntniss, but—exceeding Kant—they are, too, the Grund des

Seins.28 The subject, in this light, is suddenly generative of its very ground/reason (Grund) of being,

as a body-dependent Willenserscheinung. Almost intuitively, one craves again an unfathomable

answer to the unyielding question: has the Weltwille always looked itself in the mirror, at the cost of

a subject—and if it keeps memories, does it remember not being looked at as a Vorstellungswelt?

27 SCHOPENHAUER. Ueber die vierfache Wurzel des Satzes vom zureichenden Grunde (1813, reis.; 2012, Leipzig: Jazzybee Verlag). “Nihil est sine ratione cur potius sit, quam non sit. Nichts ist ohne Grund warum es sei,” sec. 5, “Der Satz Selbst.” 28 SCHOPENHAUER. Die Welt als Wille und Vorstellung, Book I, sec 3.

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Lastly, is it not the Wille itself which is fertile of bodies that matter? Or may this be the sight

of a linguistic failing, as language yields to the imperative service of the world will: beseeching life,

fertility, reproduction—practically apparent Ursache und Wirkung? These are, however,

Schopenhauer argues, etiological questions, to which the answers would not bring one closer to the

recognition of the Weltwille.29 Even resolved, they would not permit the Earth to at last touch the

skies, but only make note of a fruitless “how,” rather than a “why.”

Yet, the chief function of Verstand in all living creatures, Schopenhauer notes himself, is

that of recognizing causal relations in Erscheinungen as they present themselves before us in the

world of Vorstellung. In Book I, Schopenhauer introduces his concept of Dummheit as the failure of

recognition of causality, introducing a patient in an Irrenhaus with his Vernunft in check (“da er

sprach und vernham”) but his potentiality for intelligence fully disabled: “weil er diese ganz

unmittelbare Kausalität der Spiegelung [des Brillenglases] nicht verstand.”30

In this regard, causality takes place because it lies in the Vorstellungswelt—and “da muss

z.B. jede Bewegung, obwohl sie allemal Willenserscheinung ist, dennoch eine Ursache haben.”31

Schopenhauer, however, elucidates few explanations for why it is improper to speak of causality in

the world as Wille, other than that its “Verhältnis zur Erscheinung ist durchaus nicht nach dem Satz

vom Grunde.”32 The body which allows for a causality-recognizing subject (which itself does not lie

in time or space) to be, is engendered already as organic effect of the Weltwille (i.e., Objektität des

Willens)—namely, in the always mattered realm of causality.

It is, Schopenhauer scholar Matthias Kosslar explains, “only by the fact that the mind puts

the sensations into forms of space, time and causality that the object is created as a carrier of

physical properties.”33 Through these lenses, then, the body itself is perceived as an indirect object

to (and by) its own mind—which appears to exist in a relation of both capacitating, and

simultaneously being capacitated by the body. But it is through the body’s direct, immediate form,

that Schopenhauer proves to, indeed, have been the first among philosophers to present—rather

29 “Also auch die Aetiologie kann uns nimmermehr über jene Erscheinungen, welche wir nur als unsere Vorstellungen kennen, den erwünschten, uns hierüber hinausführenden Aufschluß geben.” SCHOPENHAUER. Die Welt als Wille und Vorstellung, Book II, sec. 17. 30 “Mangel an Verstand heißt im eigentlichen Sinne Dummheit” SCHOPENHAUER. Die Welt als Wille und Vorstellung, Book I, sec. 6. 31 SCHOPENHAUER. Die Welt als Wille und Vorstellung, Book II, sec. 27. 32 SCHOPENHAUER. Die Welt als Wille und Vorstellung, sec. 62. 33 KOSSLAR, Mathias. Life, Body, Person and Self: A Reconsideration of Core Concepts in Bioethics (Freiburg: Karl Alber Verlag, 2017), 282.

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than a rationalizing theory of the subject, or yet the mind—a tantalizing body which permits a

glimpse into the Sein of all things and their very Kern.

The Wille—“das Innerste Wesen jedes Dinge in der Natur”—34 though not a differentiable

substratum from its own Erscheinungen, does not exist within the same conditions of time-space-

causality.35 Yet, every Willensakt is one and the same with the Schattenspiel it creates, at the cost

of a body-dependent mind. Body and Wille, then, are at once flash and lightening,36 spark and

electricity, the urgency of movement and the hand which forthwith moves; aimlessly and

unconcerned with the Satze vom Grunde. Its motion is, more than a reaction to the

Vorstellungswelt, an intrinsic, impulsive and aimless necessity.

That “der wille selbst, das Ding an sich, grundlos ist,” one may grasp on to with little

refrainment, since there is hardly an argument for why it would loom in one precise point in time

and not another (even if one were, forcibly, to lithograph time upon its framework of being). Yet, to

accept that the body itself—the very first body—may be equally groundless, seems a daunting task

to spectators in the Vorstellungswelt, to whom the only irremediable truth about bodies is that, at

some point in time, they must have been conceived—even if, like Jesus’s, its conception was one

metaphysical, indeed welding the Earth to the skies.

Our question thus, must be formulated as follows: If one accepts Schopenhauer’s theory,

how does the Objektität des Willens take place, if not by a necessarily causal process of

engendering?

Like asking Michelangelo how indeed God created Adam,37 and dismissing his masterpiece

if his answer falls short, we instinctively accuse Schopenhauer perhaps not of a theoretical-aesthetic

oversight, but of our own, rather limited principles of reason; only functional in a Vorstellungswelt.

34 SCHOPENHAUER. Die Welt als Wille und Vorstellung, sec. 29. 35 Though Schopenhauer argues that these are mere reflections of the one Ding an sich (the Wille), there are two contradicting notions within Book I and II: namely, that these reflections are, on the one side, categories (Formen der Erkenntnis), though also creative or permitting of matter, and thereby potentially of the body itself (Grund des Seins). The latter version might help Schopenhauer escape the almost inescapable notion that it is the Wille itself which engenders the body (thus demanding a condition of Ursache-Wirkung within the world as Wille). 36 In Zur Genealogie der Moral, Nietzsche discusses at length the inseparability of doer and deed; a theory evidently developed from Schopenhauer’s. "Ebenso nämlich, wie das Volk den Blitz von seinem Leuchten trennt und letzteres als Thun, als Wirkung eines Subjekts nimmt, das Blitz heisst, so trennt die Volks-Moral auch die Stärke von den Äusserungen der Stärke ab.” NIETZSCHE, Zur Genealogie der Moral, first essay, sec. 13. 37 Michelangelo’s “The Creation of Adam” (1512) is a fresco, high renaissance painting, which forms part of the Sistine Chapel’s ceiling.

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II. BUTLER

“And if I persisted in this notion that bodies were in some way constructed, perhaps I really thought

that words alone had the power to craft bodies from their own linguistic substance?”

—JUDITH BUTLER, BODIES THAT MATTER: ON THE DISCURSIVE LIMITS OF “SEX,” PREFACE

The body that matters, for Butler, is also a verb: insofar as it is not the material body. Or, it

is the material body insofar as materiality is redefined. Or yet still, it is body as long as the notion of

body itself escapes, and prolifically reinvents what it means to be a noun, ascribing to it the art of

calcification-through-performance. Better yet, it takes up Deleuze and Guattari’s percept on

immaterial structures and willfully inscribes it upon its own structure, as if to bashfully hide its (sex):

“the fabric of the rhizome is made up by and… and… and… conjunctions which are forceful enough

to shake and uproot the verb to be.”38

If the body becomes, then discourse is its bearer. Yet, from it, it flees—unless each

conjunction, verb, noun, adverb, is allowed to speak at will, each in its own language, dismissive

perhaps of language’s function of communication. How must these signifiers lay bare their wills to

one another, one asks—if not by losing track of their meanings-always-in-deferral and forgiving

themselves the offense? Quite unsurprisingly, they are bound to “a difficult future terrain of

community, one in which the hope of ever fully recognizing oneself in the terms by which one signifies is

sure to be disappointed.”39

(Schopenhauer grumbles: Why would one expect anything other than disappointment?) Given

the task of altering one’s state of thrownness (Geworfenheit) by means of resignification,40 one must

not be a pessimist to foresee an unfulfilling future. Here the body’s is—if at all consistently—a language

of mea culpas. Beyond the ever-meandering structures of signifiers which surround it, however, lies

no trace of a Sein: no Wille or facticity—the body is silent, it may only ever hope or fear being done

to—thus upon it a restless (and alien) Wirken.41

38 DELEUZE, GUATTARI. A Thousand Plateaus: Capitalism and Schizophrenia (Minnesota: University of Minnesota Press, 1987), 17. 39 BUTLER, Judith. Bodies that Matter (New York: Routledge, 1993), 243. 40 This logic is twofold and consistent throughout Butler’s works. As we will see further in this section, the altering of “materiality” is both the ideal (positive) task and the subversive power of language. In other words, the body is constructed either negatively or positively—but always via the ever-meandering structure of signifiers. For this reason, Butler has chosen to rectify (as it will be exposed in the following pages) the words “materiality” and “construction,” after the (equally twofold) reception of Gender Trouble. 41 The same allusion as in footnote 38.

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It claims to endorse Nietzsche’s view that “der Thäter ist zum Thun bloss hinzugedichtet,–

[dass] das Thun Alles [ist],”42 but its language is a daily permission of precisely the opposite: a

forceful inscription of the Thun upon some Thäter, which is always subversively done to, even if it

itself does the deed. The body, at last, is confined, defined, enslaved, identified by its doing or done-

to-ness. And if it does or is done to, so too, must it be. Accordingly, in Bodies that Matter, Butler must

redefine “the materiality of sex” as that which “is constructed through a ritualized repetition of

norms.”43

The rectification of terminology previously used in Gender Trouble becomes, as it follows,

one of the book’s main task. Bodies that Matter, as such, is spurred by the inevitable astoundment:

“What about the materiality of the body, Judy?,” the question is posed with “a certain patronizing

quality which (re)constituted [her] as an unruly child, one who needed to be brought to task,

restored to that bodily being which is, after all, considered to be most real, most pressing, most

undeniable.”44 The question—though mindfully exposed—appears not to be answered. The first

paragraph of the book reads:

I began writing this book by trying to consider the materiality of the body only to find that the thought of materiality invariably moved me into other domains. I reflected that this wavering might be the vocational difficulty of those trained in philosophy, always at some distance from corporeal matters, who try in that disembodied way to demarcate bodily terrains.45

The honesty is admirable, and unfound in the works of Schopenhauer (who did not have to

deal with the backlashes of academia).46 Having been warned, Butler’s reader must not be

disappointed if the body as such does not make an appearance throughout the entire text. The

(arguable) fallacy committed in the previous sentence—“the body as such”—is precisely what will be

put to task. In letting go of its supposedly noun-like structure, the body longs to be freed into a

sphere of inaugurative—and metaphysical—neutrality. Its achievement, however, appears to be

irreconcilable with this longing, as it becomes, instead, the ontological (noun-like) product of

normative discourse (another nod to Deleuze and Guattari's “and…and…and… conjunctions which

are forceful enough to uproot the verb to be.”)

42 NIETZSCHE. Zur Genealogie der Moral (1887; reis.; 2016, Berlin: Hofenberg), first essay, sec. 13. 43 BUTLER. Bodies that Matter, preface. 44 BUTLER. Bodies that Matter, preface. 45 BUTLER. Bodies that Matter, preface. 46 Schopenhauer only briefly held an academic position at the University of Berlin, in 1820. In his late life, he wrote an essay entitled “On University Philosophy,” condemning the work conducted in Western academia.

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In its ideal form, then, the body of Judy, when exhibited, appears as a blank slate; a noun

deaf and mute, uncorrupted by the adjectives and adverbs forcibly imprinted upon it; yet a slate

always prone to the reification of its materiality via the reiteration of deeds (always subversively

inscribed upon its “neutral surface”).47 Further in Bodies that Matter, having perhaps willfully let go

of her initial longing to “consider the materiality of the body,” Butler argues that “regulatory norms”

are what “work in a performative fashion to constitute the materiality of bodies and, more

specifically, to materialize the body’s sex, to materialize sexual difference.”48

To comprehend Butler’s efforts, gender theorist Stephen K. White explains, a commitment

to the “problematizing suspension of the ontological” is necessary.49 Yet, Butler’s unique theory of

performativity, if it achieves any axiom, it is that of perceiving that one ultimately becomes what

one enacts—or, most crucially to us, that one only materially is what one is subversively done to. As

such, “materiality will be rethought as the effect of power, as power's most productive effect.”50 Not

in disconcert with Butler’s warning at the beginning of the book, materiality here flees any

assumption of matter.51 The mattered body as such (and by now one knows not what this means),

in any case, must rely on the unlikely leniency of an alien world for its successful “materialization.”52

Under these lenses, agency appears to be always at the hands of an Other.53

“The ‘I’,” Butler explains, “neither precedes nor follows the process of gendering, but

emerges only within and as the matrix of gender relations themselves.” 54Further, she elucidates:

“In other words, ‘sex’ is an ideal construct which is forcibly materialized through time.”55 Given that

the words “construct,” “sex” and “materialized” have gained each a new life of their own, this

sentence may very well be logically consistent. Yet, it also begs the question: is Butler be grappling

with ideas for which there is no present vocabulary at hand, and thus justly (as one may argue did

47 “The sex is a politically neutral surface on which culture acts.” Butler, Gender Trouble (New York: Routledge, 1990), 7. 48 BUTLER. Bodies that Matter, 2. 49 WHITE, Stephan. Sustaining Affirmation, quote extracted directly from Butler’s essay “The Force of Fantasy” (Oxford: Oxford University Press, 2006), 106. 50 BUTLER. Bodies that Matter, 2. 51 “For there is an "outside" to what is constructed by discourse, but this is not an absolute "outside," an ontological there-ness that exceeds or counters the boundaries of discourse.” Under these lenses, it appears that even the conventional notion of bodily matter itself—flesh, blood, carnality—must be within the “boundaries of discourse.” 52 At this point, the mattered body for Butler seems to signify anything but the mattered body as a referent. 53 This notion is terrifying to Nietzsche’s ideal of a functional Herrenmoral. Rather than engaging in amor fati and taking agency over one’s future, Butler’s motion appears to be one of self-dwarfing, self-renouncement, and moreover, a pursuit of an external Other on which to place the overwhelming guilt carried by the body: all distinctive of a Sklavenmoral. 54 BUTLER. Bodies that Matter, 7. The agency here stands in stark contrast with Foucault in The History of Sexuality ( “Sexuality is part of […] our world freedom. Sexuality is something that we ourselves create. It is our own creation.” 55 BUTLER. Bodies that Matter, 7.

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Heidegger or Aristotle) proposing new lexical terms, with the aim of adjusting the failings of

language as it signifies concrete and otherwise abstract referents—or is she arbitrarily toying with

referents to which there already exist (relatively) well-functioning signifiers?

For the sake of her own argument, Butler would most likely argue for either of the two

(rather confining) options above. She must be wrestling, rather, with the impropriety of grammar as

it abides to heteronormative rules which arise within rigid structures of power. Her argument,

however, even if operating within this third, nobler enterprise, runs the risk of opposing its own task

of liberating the repressed body in that it unwittingly rigidifies it by deeming it the inescapable

product of normative conduct. Worse still, it risks rendering the body an uncomfortable corollary of

sheer repetition, rather than a complex and mattered structure itself generative of dynamic and

non-confining performance.

Foucault, in The History of Sexuality, contends that our so called “biological drives” are

often shaped by hegemonic discourses. Yet, in laying out his critique of the repressive hypothesis—

in which he claims it to be a myth that societies had been repressive of sex until modernity finally

liberated it—he contends that modernity imposes (sexual) identification upon individuals, who must

from then on signify and identify what they perform.56 The shift, under these lenses, is not from

repression into liberation, but from an unconstraining “I do” to an incarcerating “I am.” If, like Butler

portrays it, “identity is performatively constituted by the very expressions that are said to be its

results,”57 her achievement is at best a chiastic reversal of cause and effect. Nonetheless, it appears

to entail a commitment to a reverse-ontology; one perhaps unnecessarily added as a rigidifying

structure of identity surrounding and altering the living body.

Indeed, one may argue that it is not Butler’s argument, but the power structures within which

it operates, that ultimately confine and restrain the body. Surely, the body is susceptible to

confinement—though I suspect Butler may have, to some extent, misplaced it, locating it where

there was none necessary, and dismissing it where it was always irremediable—namely, in what is

justifiably “considered to be most real, most pressing, most undeniable”:58 the human, all to human,

and unclothed sex.

56 FOUCAULT, Michel. The History of Sexuality (1984, reis.; 1990: New York: Vintage), 163. 57 BUTLER. Gender Trouble, 7. 58 BUTLER. Bodies that Matter, preface.

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No definitive answer is given to the question of whether Butler had, indeed, “really thought

that words alone had the power to craft bodies from their own linguistic substance.”59 But if she did

momentarily think so, perhaps in a glimpse of instinctive “philosophical” discernment—our question

must be: How does Butler's metaphysical account of the body’s materialization differ from

Schopenhauer’s?

III. DISSECTING “MATERIALITY” IN SCHOPENHAUER AND BUTLER

“Why should our bodies end at the skin, or include at best other beings encapsulated by skin?"60

—DONNA HARAWAY, A MANIFESTO FOR CYBORGS

While Butler’s academic training began with philosophy, Schopenhauer’s did with

medicine.61 It is, then, perhaps only natural that Schopenhauer’s body be slightly more attentive to

the phenomenal. One may even argue that it is vigorously so: the Weltwille, while not bodied itself,

lusts first and foremost for the proliferation of bodies.62 Yet, the coming-to-presence of the body

seems, in both cases, largely susceptible to a creatio ex nihilo argument. Schopenhauer, once more,

comes off slightly—or perhaps considerably—less prone to this peril, since his Weltwille needs no

beginning, and is itself responsible for the body’s Erscheinung in the Vorstellungswelt.

If for Butler, agency rests at the hands of an alien Other, for Schopenhauer, it does under the

dominion of the Weltwille, which is never alien. In each case, the free will of the subject appears

insurmountable—unless one assumes that since Weltwille and body occur within one single motion,

the body is always itself (freely) choosing. Notwithstanding, to Butler, culture and normative

discourse seem to function in compelling similarity to the Weltwille. If “words alone had the power to

craft bodies from their own linguistic substance,”63 one must ask whether they would at all differ from

Schopenhauer’s Weltwille—both, immaterial agents responsible for the body’s Erscheinung.

If brought to a monad-like condition, words would, unlike the Weltwille, remain temporal. It

59 BUTLER. Bodies that Matter, preface. 60 One of the epigraphs to Butler’s Bodies that Matter. 61 Before devoting his life to (non-academic) philosophy, Schopenhauer briefly attended medical school in Göttingen, in 1809. 62 For this reason, Schopenhauer is usually observed as a forerunner of Darwinism; indeed, perhaps (as he argues in section 4 of Book I from Die Welt als Wille und Vorstellung), the first among philosophers to have given himself the task of duly considering the living body. It is, however, arguable whether he does not himself meander into metaphysical spheres to explicate it. His argument is saved in that for him, the metaphysics of the universe is always at once its physics. 63 BUTLER. Bodies that Matter, preface.

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is easily agreed upon that words, in whatever condition, are born, fade away, and are forever subject

to a process of diachronicity. But most notably, words—like the Weltwille—rely on a living, body-

dependent subject, in order to be in the first place; a quarrel strikingly reminiscent of Schopenhauer’s

mind-body/body-mind dilemma. Words, however, are not one and the same with the body, but are

capable of altering—like the Weltwille—their very materiality. If for Butler the body is the confined

product of language, for Schopenhauer, the body is the confined product of time, space, causality

and Will. We may equally ask, somewhat patronizingly: “How does the Objektität des Willens really

occur, Arthur?"

If Butler’s is a laic Word-made-flesh, Schopenhauer’s is a vehemently atheistic Wille-made-

flesh. If for Butler, sex is “an ideal construct which is forcibly materialized”64—what else is the body as

Objektität des Willens? If the body in Schopenhauer (in enabling the subject) enables, also, matter to

appear (erscheinen) in the Vorstellungswelt, where the principle of reason reigns—Butler’s body

conceives of its materiality as a mere Begriff; an abstract effect in relation to power.

Schopenhauer’s body is active. Butler’s, in its turn, reacts. Both, if willing, may easily locate

an agent “elsewhere” upon which to place blame—except Schopenhauer’s knows, deep inside, that

its blame and the Wille’s are one and the same. Butler’s body is a carrier of done-to-ness, which thus

justifiably longs for equality and balance. Schopenhauer’s is explosive disequilibrium in its rawest, un-

done-to state, and its wills, more than irrational, express always a state of exception.65 The latter

bears vigorous (twofold) agency and longs to conceive; the former refrains from creation and is,

instead, only ever conceived. One is libidinous, lustful, abundant; the other is vigilant and voluntarily

infertile.

Finally, if this comparative analysis of bodies may point one to any stable perception, it is that

the body has never been an originary thing or a constant referent, from which deviations are to be

made. Instead, each of its (re)presentations is perhaps always virginal, and of “the body itself” one

may only fail to speak of. Butler elucidates it best:

We seek to give a name to that which perhaps can never be finally or fully named. The body perhaps is the name for our conceptual humility, the limit of our conceptual schemes—perhaps it is the sight of our linguistic failing.66

Yet, if the body were a choice, and one might choose it as one chooses words, I would choose

64 BUTLER. Bodies that Matter, 2. 65 NIETZSCHE. Zur Genealogie der Moral, sec. 22. 66 BUTLER. Bodies that Matter, 223.

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that my body were, sooner than a Butlerian, a Schopenhauerean body—and moreover, that the world I

inhabited were filled such bodies. Perhaps one might find that, in allowing oneself more agency; more

explosive unbalance, fertility; unanathematized outburst of wills—rather than chaos, there could arise

(in disconcert with Schopenhauer) unprecedented social justice. Most surprisingly—in this utopic,

speculative world of Vorstellungen, comically resemblant of John Lennon’s—not only a few, select selves

might have their wills satisfied, but an overwhelming threshold of social well-being might be reached, in

front of the realization that, rather than being done-to, one may choose to actively vorstellen the change

whose appearance one wills in the Vorstellungswelt.67

BIBLIOGRAPHY

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SCHOPENHAUER, Arthur. Die Welt als Wille und Vorstellung. Frankfurt: 2016, Holzinger. First

published 1819.

67 It is worth noting that Butler’s depictions of the body are usually those of an unwanted, yet pressing bodily state— and not of an ideal version of the body. Yet, her theoretical engagement (and personal energy) devoted to “the unwanted body” are distinctive of Nietzsche’s notion of a Sklavenmoral, or yet of a herd-like instinct of not loving one’s fate. This, again, may be contravened with the very notion that she is, indeed, attempting to take agency upon not only her fate, but the fate of millions of bodies done injustice to.

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O discurso trágico da psicanálise diante do mal-estar contemporâneo, pp. 77-91

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O DISCURSO TRÁGICO DA PSICANÁLISE

DIANTE DO MAL-ESTAR CONTEMPORÂNEO

Gabriel Crespo Soares Elias1

RESUMO: Na segunda fase do trabalho freudiano, após a descoberta das pulsões de morte, e com a intensificação de seus diálogos com a cultura e a filosofia, o curso da teoria psicanalítica nos leva a uma leitura trágica da condição humana, na qual é revelado o homem em sua situação real de desamparo diante do conflito pulsional que é inerente à existência. O conhecimento do trágico indica a necessidade de uma postura ética para lidar com o sofrimento que o sujeito apresenta na clínica e na vida cotidiana. O presente artigo se propõe apresentar e discutir a atualidade e relevância do discurso trágico da psicanálise diante das propostas atuais em psicoterapia e discursos sobre a dor que prevalecem na sociedade pós-moderna. PALAVRAS-CHAVE: psicanálise; ética trágica; desamparo; mal-estar; pós-modernidade. THE TRAGIC DISCOURSE OF PSYCHOANALYSIS IN THE FACE OF CONTEMPORARY DISCONTENT ABSTRACT: In the second moment of Freudian work, after the discovery of the death drives, and with the intensification of his dialogues with culture and philosophy, the course of psychoanalytic theory leads us to a tragic reading of the human condition in which man is revealed in their real situation of helplessness in the face of the drive conflict that is inherent in existence. The knowledge of the tragic indicates the need for an ethical stance to deal with the suffering that the subject presents in the clinic and in everyday life. The present article proposes to present and discuss the relevance of the tragic discourse of psychoanalysis in the face of current proposals in psychotherapy and discourses on pain that prevail in postmodern society. KEYWORDS: Psychoanalysis; tragic ethics; helplessness; discontent; postmodernity.

1 Graduando em Psicologia pela UFF-Universidade Federal Fluminense [email protected]

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O discurso trágico da psicanálise diante do mal-estar contemporâneo, pp. 77-91

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Introdução

Considerando que a intenção da psicanálise, desde os primeiros movimentos de seu criador,

sempre foi a de colaborar de algum modo positivo para o viver do sujeito, o curso da teoria freudiana

nos levou a uma reflexão existencial que se propõe a trabalhar com o sofrimento e o desamparo

como inseparáveis da experiência humana, compondo um quadro trágico da vida ao qual o homem

não consegue se eximir. Tomamos o termo trágico em seu sentido filosófico, que é fruto do

desencantamento moderno com o mundo, uma influência dos trabalhos de Schopenhauer e

Nietzsche, principalmente, última de elaboração da obra freudiana. A clínica freudiana, portanto,

pode ser considerada a clínica com o trágico, já que seu discurso se alinha aos dos autores trágicos

de seu tempo.

O texto que se segue apresentará estas perspectivas trágicas acerca da dor e do sentido do

sofrimento na vida presentes no discurso psicanalítico como um contraponto valioso frente aos

discursos e tratamentos conferidos à dor na atualidade. Sendo assim, discorreremos sobre os

conceitos de conflito pulsional e mal-estar em Freud e as dialogaremos com as leituras de outros

autores contemporâneos (tais como o sociólogo Bauman e o psicanalista Joel Birman) sobre o

domínio da sensação de insegurança como nova forma de mal-estar gerada na sociedade pós-

moderna.

Por fim tomaremos a sabedoria trágica presente na filosofia de Nietzsche e a leitura que a

psicanalista Isabel Fortes faz sobre a dor psíquica como dois norteadores que reconhecem a potência

na experiência da dor e que se apresentam como recurso valioso para um olhar clínico e crítico sobre

a dor e a cultura de agora para além de uma visão pessimista sobre a vida e também além do discurso

da felicidade presente na cultura de agora.

Uma análise além do princípio de prazer

Durante a primeira fase do desenvolvimento da teoria psicanalítica, o princípio de prazer foi

considerado o protagonista da vida mental e do comportamento humano de modo a fazê-lo buscar

as tensões que causaram sensações de prazer e a evitar as que causaram desprazer. Associado à

pulsão sexual, o princípio de prazer cumpre a função de garantir a continuidade da vida da espécie.

À medida que a teoria avançava e seu criador buscava compreender os fenômenos que

aparentemente fugiam à governança exclusiva deste princípio, o conceito de pulsão sofreu uma

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O discurso trágico da psicanálise diante do mal-estar contemporâneo, pp. 77-91

Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 79

nova postulação que implicou diretamente na mudança da leitura da psicanálise sobre a existência

humana.

Em 1920 Sigmund Freud publicou Além do princípio de prazer em que discutia suas novas

descobertas acerca da vida psíquica. Descobriu uma característica fundamental da pulsão, sua

natureza conservadora, que diz que o estado atingido pelo organismo gera imediatamente uma

tendência ao reestabelecimento deste estado, independente dele ter sido ou não satisfatório.

Partindo da ideia de que as coisas vivas surgiram posteriormente ao estado inorgânico, Freud

aponta que há uma tendência do que é vivo a retornar a este estado original. Essa tendência, que ele

chamou de pulsões de morte, seria governada por um princípio anterior e independente ao do

prazer. O princípio do Nirvana (1920/1996, p.64) seria o responsável por forçar o aparelho mental a

buscar o nível zero de excitação, ou seja, pelo desligamento total das tensões, o aparelho mental

atingiria um estado de nenhuma perturbação, o que, em última análise, seria análogo ao estado de

morte.

Se na primeira teoria pulsional considerava-se o contraste entre as pulsões do ego

(autoconservadoras) e as pulsões objetais (reprodutoras), nesta segunda teoria elas foram

agrupadas sob o título de pulsões de vida, pois ambas cumprem com o propósito de levar a vida

adiante. O conflito entre pulsões de vida e pulsões de morte possibilitou a psicanálise entender como

o aparelho psíquico funciona em sua totalidade: sob a regência do princípio do prazer, as pulsões de

vida aumentam a carga de estímulos, e sob a regência do Nirvana, as pulsões de morte trabalham

para a redução.

O pai da psicanálise pressupõe ainda que estes princípios fundamentais não explicam apenas

a mente, mas também toda a vida orgânica. Em Análise terminável e interminável (1937/1996), Freud

reconheceu a semelhança entre o par de pulsões que ele havia encontrado no curso de seu trabalho

científico com a “fantasia cósmica” de Empédocles de Agrigento. O pensador grego dizia que, desde

o início da vida, Amor e discórdia estão em guerra, ora prevalecendo um, ora o outro.

Os dois princípios fundamentais de Empédocles – philia e neikos – são tanto em nome quanto em função, os mesmos que nossos dois instintos primevos, Eros e destrutividade, dos quais o primeiro se esforça por combinar o que existe em unidades cada vez maiores, ao passo que o segundo se esforça por dissolver essas combinações e destruir as estruturas a que elas deram origem (Freud, 1937/1996, p.259-260).

O objetivo de Eros seria aglomerar os elementos da natureza em unidades cada vez maiores

e preservá-las, enquanto a discórdia desfaria estas conexões, destruindo-as. Ou seja, enquanto as

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pulsões de vida operam pela fusão das unidades vivas, as pulsões de morte operam pela sua

desfusão. O psicanalista J.-D. Nasio (1995, p.44) nos oferece uma versão resumida desta descoberta:

“As pulsões de vida tendem a investir tudo libidinalmente e a manter a coesão das partes da substância viva. Em contrapartida, as pulsões de morte visam ao desligamento, ao desprendimento da libido dos objetos e ao retorno inelutável do ser vivo à tensão zero, ao estado inorgânico.”

Ou seja, mesmo sem qualquer relação passada ou possível (futura) com o prazer eles ainda

assim os registros psíquicos repetidos na forma de uma compulsão à repetição, levando muitas

vezes o sujeito a um processo de autodestruição ou conservação do sofrimento que evidencia a

atuação de pulsões contrárias às de vida.

Apesar das controvérsias científicas e implicações filosóficas que estas hipóteses levantam,

Freud as fundamentou a partir da sua observação clínica. Tomou como exemplo o caso das

“neuroses de guerra” (1920/1996, p.22), em que os pacientes relatam sonhos repetidos em que

trazem à tona a mesma sensação de angústia do momento passado em que o acidente traumático

ocorreu.

Também notou a atuação da pulsão de morte naquilo que Freud chamou de reação

terapêutica negativa (1920/1996, p.31), que é quando os pacientes em análise, ao se aproximarem

do fim de um processo de padecimento psíquico, interrompem o processo terapêutico ou causam

situações que inviabilizam o processo de transferência.

O dualismo pulsional permitiu a psicanálise interpretar e explicar outra quantidade de

fenômenos que a teoria anterior não possibilitava. Ao incorporar o registro da dor, da angústia, da

morte e do sofrimento como sendo inseparáveis da condição humana, o discurso freudiano assumiu

um tom cada vez mais filosófico e trágico.

No desenvolvimento final de seu trabalho, Freud reconhece que não é possível alterar o

contexto fundamental da vida – o conflito entre Eros e morte. Sofrimento e alegria inerentes da

condição humana, ora o homem tende mais para um lado ora para outro, e diante desta realidade

ele se revela em seu estado original de desamparo. A tarefa terapêutica da psicanálise não consistiria

mais em buscar a cura de doenças, mas sim em descobrir formas de ajudar o ser humano a conviver

com a realidade.

Após a publicação de Além do princípio de prazer, o interesse do autor em entender as origens

aparentemente irracionais da destrutividade e agressividade no homem ampliou a análise do

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O discurso trágico da psicanálise diante do mal-estar contemporâneo, pp. 77-91

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indivíduo para o estudo da cultura, de como as regras e códigos da sociedade se relacionam com a

sensação de desamparo no homem.

Mais à frente, traremos para dialogar neste trabalho dois filósofos que vão ao encontro desta

análise para além do domínio do prazer e que nos ajudarão no entendimento destas perspectivas

trágicas no pensamento psicanalítico. Por agora procuramos traçar o caminho que levou o

desenvolvimento do trabalho sobre o mal-estar na cultura a fim de pensar nos desafios que o sujeito

contemporâneo e a clínica psicanalítica com suas perspectivas trágicas encontram nos nossos dias.

As dores do homem na pós-modernidade

Depois desta “virada” na teoria psicanalítica, surgem então os chamados “textos culturais de

Freud”. Nestes trabalhos, ele se coloca entre os autores críticos da modernidade (se tornando um

dos mais importantes e influentes do século XX), inspirando diálogos em múltiplos campos do

conhecimento e ensejando os psicanalistas a analisarem a cultura e a produzirem um diagnóstico

dela concomitante ao diagnóstico clínico do sujeito.

Dentre seus escritos sobre a cultura, destaca-se o livro de 1930 chamado O Mal-estar na

civilização, em que o autor apresenta a tragédia a que todos nós animais civilizados estamos

“condenados”: a infelicidade de viver em uma cultura que só foi possível através da privação total ou

parcial de dois movimentos do mais profundo e primitivo interesse humano, a agressividade e o

erotismo.

Nas palavras de Freud: “Se a civilização impõe sacrifícios tão grandes, não apenas à

sexualidade do homem, mas também à sua agressividade, podemos compreender melhor porque

lhe é difícil ser feliz nessa civilização” (1930/1996, p.121). As renúncias instintivas que o homem faz

para viver em sociedade produz uma sensação de desconforto que é inevitável.

Contudo, as constantes reconfigurações do mundo pós-moderno e as novas exigências que

ela faz ao homem fez com que o mal-estar tomasse uma nova forma, o que tem preocupado

pensadores de várias áreas do interesse humano.

O sociólogo Zygmunt Bauman, por exemplo, na sua releitura do mal-estar de Freud – O mal-

estar da pós-modernidade (1998, p.32) – mostrou que o aumento da sensação de insegurança

acompanhou a passagem da sociedade moderna para a pós-moderna:

“O sentimento dominante, agora, é a sensação de um novo tipo de incerteza, não limitada à própria sorte e aos dons de uma pessoa, mas igualmente a respeito da futura configuração

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do mundo, a maneira correta de viver nele e os critérios pelos quais julgar os acertos e erros da maneira de viver.”

Segundo Bauman, o homem moderno (a quem Freud se referia) trabalhava para construir

um projeto de vida, garantir segurança e estabilidade, enquanto o pós-moderno abriu mão desta

segurança pelas promessas de felicidade (1998, p.7-11).

Para o autor, houve apenas uma inversão de pesos e medidas, pois se o homem na sociedade

de outrora reclamava da privação de liberdade, o homem da pós-modernidade reclama pela falta de

segurança e sentido de vida diante de um mundo que lhe oferece um amplo leque de possibilidades,

mas também de incertezas. As instabilidades sociais, posições evanescentes e poucas garantias na

pós-modernidade exigem que o sujeito tenha que dar conta não apenas com seu desamparo

original, mas também com a nova sensação de insegurança e medo resultantes do momento de

agora (BAUMAN, 1998, p.35).

Dentre os psicanalistas que vão reler o mal-estar e o sofrimento psíquico em nossos tempos,

Joel Birman em seu texto Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação

(2001) analisa a passagem da cultura tradicional para a moderna e as modificações que esta operou

na constituição do sujeito e discute o papel e os desafios da clínica psicanalítica ante as novas

exigências.

O autor também aponta que o aumento das incertezas na sociedade atual está diretamente

relacionado com o novo panorama de mal-estar que, conforme constata em sua experiência clínica,

se dá através do aumento da ansiedade, queixas sobre vazio existencial, domínio do pânico,

propensão à depressão, efeitos nocivos do consumo excessivo de medicamentos, entre outros

males que acompanham os novos paliativos ao mal-estar.

(...) a modernização do social impõe novas exigências para a subjetividade. Esta deve ser permanentemente remodelada em consequência dos processos de transformação contínua da ordem social, que se realizam de maneira intensiva e extensiva. (...) Incrementa-se, dessa maneira, muito o potencial de incerteza do sujeito, já que este passa a ser exposto a maiores opções e escolhas. A insegurança e a angústia se multiplicam, como consequência. (...) Enfim, o sujeito passa a se inscrever num mundo que lhe abre muitas possibilidades, mas que também lhe aponta muitas impossibilidades existenciais. (BIRMAN, 2001, p.78-79)

Como resposta à demanda crescente de trabalho clínico, novas modalidades de tratamento

e psicoterapia passaram a ser inventadas para lidar com o mal-estar e suas novas expressões. O

autor aponta que, nas últimas décadas, com o aumento expressivo das neurociências, da

psicofarmacologia, e das terapias cognitivas (soma-se a estes os serviços de coaching) houve uma

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O discurso trágico da psicanálise diante do mal-estar contemporâneo, pp. 77-91

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queda pela procura da psicanálise. Segundo Birman, uma das razões para isso foi que “a grande

descoberta freudiana”, a importância da corporeidade no indivíduo, foi silenciada (2001, p.87-93).

O conceito de pulsão para Freud consiste no representante psíquico do que se ‘registra no

corpo’, situando-se na fronteira entre o somático e o psíquico (FREUD, 1915/1996, p.127), o que de

certa forma é um desvio da tradição dualista da filosofia e ciência modernas, que tem em Descartes

seu representante máximo, que considera a mente como estando num plano separado do corpo. Os

herdeiros da psicanálise, os pós-freudianos, ao se aproximarem da abstração filosófica em alguns

casos e da metafísica da linguagem em outros, distanciaram-se da noção de corporeidade, que é

aonde se registra o mal-estar contemporâneo.

(...) se essas terapias prosperaram tanto nas últimas décadas, isso se deve ao fato de que a psicanálise se esqueceu de que o sujeito se inscreve num corpo. Quando a psicanálise se platonizou, a corporeidade do sujeito foi lançada na lata do lixo. Portanto, se essa dimensão da subjetividade foi deixada de lado pela psicanálise, os pacientes foram buscar outras práticas que pudessem escutar seu corpo e dar lugar a este. (BIRMAN, 2001, p.90)

Estas novas propostas de psicoterapia e tratamento da dor, apesar de darem espaço ao

corpo, assumem outra forma de relação com ele, através do discurso da negação da dor (controle,

diminuição e extinção), como se esta experiência não devesse fazer parte da vida.

Na tentativa de eliminar as aflições existenciais que acompanham o homem ao longo de toda

a sua história, este discurso apenas alienou o homem de sua real condição, tornando cada vez mais

insuportável para ele a experiência do sofrimento. O uso excessivo de medicamentos para as dores

existenciais ilustra este quadro: “Graças à mágica desempenhada pelos psicofármacos, as

individualidades suportam cada vez menos sofrimento psíquico e recorrem à medicamentalização

em uma escala sem precedentes” (ROSA e WINOGRAD, 2011, p.43).

Sabendo que parte da responsabilidade pelo avanço dessas novas técnicas e terapias a

despeito da psicanálise pesa na conta da própria psicanálise, é preciso então ficar atentos para que

não se perca do nosso horizonte clínico a precariedade do homem, pois é justamente na escuta do

corpo que o homem é atendido tal como ele se apresenta na vida e é evidenciado pela análise – em

sua finitude, desamparo e mal-estar.

Observamos na clínica que, quando os indivíduos conseguem dimensionar a sua trágica

condição, é comum que eles nos convidem a pensar sobre o sentido do sofrimento na vida. Escuta-

se então: “há algum sentido na vida?”, “porque sofremos tanto?”, “porque a vida é assim?”, “quando

é que tudo isso vai parar”, “e agora, o que vou fazer?”. De certo às vezes nós somos envolvidos em

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O discurso trágico da psicanálise diante do mal-estar contemporâneo, pp. 77-91

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questões que podem estar para além do nosso alcance, e nem sempre teremos condições de

responder a essa demanda.

Mas se nos permitimos refletir sobre a teoria psicanalítica, seu rico material psicológico e

filosófico, podemos pensar que uma possível resposta sobre isso seria: fazer com que o sujeito, ao

se debruçar sobre as suas dores existenciais, se coloque num movimento consoante ao da

estruturação do seu aparelho mental, ou seja, renove seus esquemas de defesa, construindo sua

forma própria de viver (FORTES, 2012, p.191). A clínica deveria ser o ambiente facilitador deste

processo de constante renovação, reelaboração dos esquemas psíquicos, como resultado das

reflexões suscitadas pelo processo de sofrimento.

Compreender claramente as perspectivas trágicas, e reafirmar a importância dessa ética para

o trabalho psicanalítico, faz parte do que é necessário para ajudar o sujeito a lidar com suas

problemáticas diante da nova forma de mal-estar que se revela na sociedade atual. Agora iremos

trabalhar a questão do sentido do desamparo e do sofrimento através dos diálogos entre a leitura

trágica de Freud com as filosofias que influenciaram o pensamento psicanalítico a fim de encontrar

aquela que melhor se adéqua ao propósito clínico.

Psicanálise e a tragédia humana

Baseado nos diálogos com Freud, Bauman e Birman, o diagnóstico psicanalítico da vida na

atualidade consiste em três considerações fundamentais: 1) existe um conflito pulsional que coloca

o humano em constante desamparo, 2) há mal-estar (desconforto) de se viver na civilização pela

privação da livre vontade humana e 3) a nova forma de mal-estar se apresenta pelo aumento da

sensação de insegurança e instabilidade. Este diagnóstico demonstra a condição trágica do homem.

Tomemos a tragédia no seu sentido clássico, que remete às antigas manifestações do teatro

grego em que os heróis entre deuses e outros seres se relacionavam de forma confusa e caótica, mas

que depois de tantas aventuras e esforços na luta contra o sofrimento, algum evento (mesmo aquele

aparentemente “sem sentido”) vinha pôr fim ao ato. Assim também é a vida humana sob a análise

trágica: as cortinas se abrem para nós e em algum momento da nossa apresentação elas se fecham.

Filosoficamente falando, o homem está “fadado” a assumir um papel nesta tragédia.

Cabe salientar que a própria técnica psicanalítica não é voltada para o reestabelecimento de

uma ordem que supostamente já existiu. Não! A técnica psicanalítica é voltada para lidar com o

sofrimento advindo da perda de um objeto amado. Que seria da psicanálise (e do ser humano!) sem

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Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 85

a tragédia edipiana de sempre haver uma lacuna dentro de nós, a sensação de que algo nos foi

retirado? O processo de amadurecimento exigiu de nós o afastamento cada vez maior da segurança

do colo da mãe e uma simultânea resposta às incertezas e exigências da vida de gente grande. O

desamparo, a sensação de estar vivendo como se estivesse sempre nos faltando algo, é o fio

condutor da nossa existência e, portanto, a matéria-prima do trabalho analítico.

Reconhecendo o alinhamento entre os trabalho final de Freud com a filosofia trágica,

permitimo-nos trazer para este diálogo o pensamento de Arthur Schopenhauer e Friedrich

Nietzsche, haja vista a influência destes dois autores no pensamento de Freud sobre o sentido dor.

Nas palavras de Joel Birman:

(...) o estilo de pensamento presente no discurso freudiano, no que concerne a sua problematização da dor, se inscrevia numa genealogia filosófica, constituída no século XIX, que teve em Sade, Schopenhauer e Nietzsche as suas formulações teóricas cruciais. Em todos esses a leitura trágica do sujeito foi também colocada em evidência, de forma que foi nesta tradição teórica que se constituiu o discurso freudiano. (2012, p.20)

Em Schopenhauer, na tragédia da vida, o homem ocupa uma posição passiva, onde a ele cabe

apenas liquidar ou “abafar” sua vontade de viver para evitar uma vida com maior sofrimento. Ou

seja, cabe “aceitar” o que lhe acontece e buscar apenas uma mansidão sábia que por si só seria

honrosa (pelo fato de não causar perturbações semelhantes às sentidas pelos ávidos da vida). A

vontade de viver, as vicissitudes do querer, condena o homem ao sofrimento – a regra é clara –

“Querer é essencialmente sofrer, e como o viver é querer, toda a existência é essencialmente dor”

(SCHOPENHAUER, 1850/2014, p.39).

No pessimismo schopenhaueriano de nada adiantaria viver acreditando em um ilusório

estado de felicidade ou na a ideia de que a vida está caminhando para um momento melhor no

futuro. Essas ilusões não nos pouparão de ser consumidos impiedosamente pela morte, assim como

não nos protegerão das aflições enquanto vivermos. Nesta filosofia, a morte tanto é irracional

quanto é uma prova de que a vida não tem sentido algum senão condenar o homem a uma sucessão

de dores até que chegue seu trágico fim.

A vida do homem não é mais do que uma luta pela existência com a certeza de ser vencida... A vida é uma caçada incessante onde, ora como caçadores, ora como caça, os entes disputam entre si os restos de uma horrível carnificina; uma história natural da dor que se resume assim: querer sem motivo, sofrer sempre, lutar sempre, depois morrer e assim sucessivamente, pelos séculos dos séculos, até que o nosso planeta se faça em bocados. (SCHOPENHAUER, 1850/2014, p.39)

Assim como Schopenhauer, Freud se mostra convencido de que “o objetivo de toda vida é a

morte”, e que essa vontade de viver que em termos psicanalíticos se traduz como pulsão de vida,

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O discurso trágico da psicanálise diante do mal-estar contemporâneo, pp. 77-91

Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 86

nada mais é do que uma guardiã que protege o sujeito dos perigos exteriores para que ele seja

oferecido mais adiante para a morte que seu próprio organismo lhe prepara:

Trata-se de instintos componentes cuja função é garantir que o organismo seguirá seu próprio caminho para a morte, e afastar todos os modos possíveis de retornar à existência inorgânica que não sejam os imanentes ao próprio organismo. (...) O que nos resta é o fato de que o organismo deseja morrer apenas do seu próprio modo. Assim, originalmente, esses guardiões da vida eram também os lacaios da morte. (FREUD, 1920/1996, p.49)

A influência do pensamento oriental do budismo e do vedantismo no trabalho de

Schopenhauer (que foi o responsável por inseri-los na filosofia ocidental) o levou a propor que essa

movimentação toda para vencer o sofrimento e sustentar a vontade de viver é completamente inútil

e que seria no desejado silêncio do vazio, na libertação das tensões da vida, na “busca pelo estado

do nirvana” que o homem deveria concentrar seus esforços. “Pode ainda se considerar a nossa vida

como um episódio que perturba inutilmente a beatitude e o repouso do nada” (SCHOPENHAUER,

1850/2014, p.27). Aqui encontramos o gérmen da noção de pulsão de morte e princípio do nirvana

em Freud, que diz que há algo no homem que o impulsiona a buscar essa paz do nirvana, esse

“silêncio dos cemitérios”.

Dada a convergência entre seu trabalho e o do filósofo alemão, Freud não deixa esse fato

passar despercebido em Além do princípio de prazer:

“Inadvertidamente voltamos nosso curso para a baía da filosofia de Schopenhauer. Para ele, a morte é o verdadeiro resultado e, até esse ponto, o propósito da vida, ao passo que o instinto sexual é a corporificação da vontade de viver.” (FREUD, 1920/1996, p. 58)

Apesar de servir de esclarecimento sobre o desamparo do homem a leitura e o diálogo entre

a filosofia de Schopenhauer e a psicanálise, a tragédia segundo essa óptica segue o curso do niilismo

negativo, ou seja, de um desencantamento com a vida que nos leva a um estado de “não fazer nada”:

que pouco pode servir de recurso clínico. Para pensar a clínica precisamos ir para além desse

pessimismo contemplativo e passivo do velho filósofo da vontade a fim de que a tarefa terapêutica

não seja prejudicada por uma inação diante da dor.

Por sua vez, na filosofia de Nietzsche, encontramos uma concepção trágica que é bem

diferente da de Schopenhauer. Esta concepção convida o homem a ocupar uma posição ativa

(afirmativa) diante da dor, em que este deve romper com as algemas estabelecidas pela tradição do

pensamento metafísico a fim de se apropriar da sua vontade de potência, descobrindo alegria e

coragem de viver na tragédia humana.

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O discurso trágico da psicanálise diante do mal-estar contemporâneo, pp. 77-91

Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 87

Foi nos gregos influenciados pelo seu teatro trágico, nos pensadores pré-socráticos, em

quem Nietzsche se inspirou para iniciar sua crítica radical a toda a tradição de pensamento histórico-

filosófico dominante na cultura ocidental. Em A filosofia na era trágica dos gregos (1873/2008) o

filósofo argumenta que as forças que regem a vida do homem foram apenas pensadas pelos pré-

socráticos e dentre eles, destacou Heráclito, que compreendia a origem da vida como uma

constante mudança (devir) advinda da eterna luta entre os opostos (p.55-61). A corrente filosófica

que prevaleceu, contudo, foi a de Sócrates e Platão que contaminou o pensamento humano com a

metafísica, que distanciou o homem da sua única realidade, retirou-lhe seu movimento, ao pregar a

busca por uma verdade para além deste mundo. Para ele, a metafísica foi a responsável por associar

a dor a um mal.

A sabedoria para Nietzsche seria, ao invés de procurarmos nos mundos imaginários do

pensamento metafísico (ou nos céus da religião) o amparo e o consolo que não existe, o homem

deveria voltar seus olhos para a terra, para aquilo que ele possui. Na exortação de Zaratustra:

“Suplico-vos, meus irmãos, permanecei fiéis à terra e não creiais naqueles que vos falam de

esperanças supraterrenas! São envenenadores, quer saibam disso ou não” (1883/2015, p.28).

Permanecendo fiel à realidade, ao trágico, o homem consegue se desvencilhar das culpas

desnecessárias e idealizações ilusórias, que lhe retiram sua potência de viver.

Essa sabedoria trágica consiste em reconhecer a alegria de se movimentar e se transformar

diante do que lhe acontece. Ou seja, se a vida for um sofrimento, cabe ao homem aprender a “dançar

com ela” – aproveitando mais uma alegoria do Zaratustra! (1883/2015, p.59) Sendo assim, lançando

outra luz sobre a trágica condição humana, a filosofia de Nietzsche vai de encontro com os

propósitos clínicos da psicanálise.

A psicanalista Isabel Fortes autora de A dor psíquica (2012) fez um diálogo inovador entre o

sofrimento como forjador do aparelho psíquico em Freud e a noção da vontade de potência em

Nietzsche, a fim de propor uma clínica que esteja em consonância com a esta noção trágica. Ela

descreve uma relação ética entre psicanálise e tragédia, onde a dor é interpretada positivamente

sendo considerada a “via por excelência” da transformação do sujeito.

Longe de fazer uma apologia à dor, de fixar-se na dor, o trágico busca transmutar a dor em alegria, propondo uma cultura jubilosa no debruçar-se sobre a dor de existir. (...) A visão trágica mostra que a dor não é sinônimo de tristeza, pois pode haver alegria na dor. (FORTES, 2012, p.191-192)

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O discurso trágico da psicanálise diante do mal-estar contemporâneo, pp. 77-91

Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 88

A dor não está necessariamente vinculada à paralisação do sujeito. À medida que o

sofrimento provoca reações no homem, podemos considerá-lo como um convite da vida ao

movimento e, portanto, à possibilidade de reinvenção! Para além da visão mortificante que

predomina o discurso na atualidade, a dor possibilita ao sujeito modificar seu eu e encontrar a alegria

na criação do novo, na busca por outras de viver que ainda não haviam sido exploradas.

Para Fortes é preciso que o trabalho clínico seja encorajador deste processo de

fortalecimento pelas experiências da dor, o que nos faz lembrar o aforismo nietzschiano em

Crepúsculo dos ídolos: “da escola da guerra da vida. – o que não me mata me fortalece” (1888/2014,

p.10).

Ao invés de nutrir a ilusão da extinção do desamparo, ao experimentar o sofrimento, o

homem aprende a lidar com as incertezas que caracterizam a vida. Em sentido poético, ele aprende

a “dançar”, viver alegremente, na sua condição. Retomar esta perspectiva, que era tão comum entre

os gregos da era trágica, pode ajudar o homem a lidar com a tarefa nada fácil de viver.

A ética trágica na pós-modernidade

Ética trágica para a psicanálise significa manter-se fiel à realidade do ser humano, a fim de

que não se ofereça, como muitas abordagens atuais em psicologia, a substituição de uma ilusão por

outra.

O próprio fato de Birman lembrar que “não se pretende a cura das doenças com a psicanálise”

(2001, p.95) ilustra a inseparabilidade que a clínica deve manter com a perspectiva do trágico. Se

prometer a cura de doenças pela psicanálise a coloca sob olhares de desconfiança tanto por quem

está de fora quanto para quem está dentro da discussão psicanalítica, que podemos pensar sobre a

promessa de vida segura e feliz partindo da psicanálise?

Na sociedade pós-moderna, onde predomina o discurso da excelência, da vida bem sucedida,

em que crença atual é de que a felicidade pode ser atingida pelo esforço do indivíduo, pela fama e

pelo dinheiro, “resta pouco espaço para as experiências da perda, do sofrimento ou da infelicidade”

(CLACK, 2015, p.181).

Parece que trabalhar a psicanálise com sua ética trágica se revela como um contraponto

valioso diante das formas populares de psicoterapia e autoajuda que corroboram com esta

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O discurso trágico da psicanálise diante do mal-estar contemporâneo, pp. 77-91

Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 89

‘obrigação de ser feliz’ e, consequentemente, com as mais pesadas exigências que recaem sobre o

sujeito que tem de lidar com essa nova sensação de mal-estar.

Uma das tendências da pós-modernidade é desvalorizar tudo aquilo que não vai de encontro

com o ideal do gozo, o hedonismo é uma das características mais marcantes da sociedade de agora

(FORTES, 2012, p.35-36). Nela percebe-se que há uma busca demasiada pela obtenção de prazer, a

qualquer custo e acima de todas as coisas. O que pouco se percebe, porém, é que com isso se

constrói uma sociedade que favorece a sensação de frustração e insatisfação (CLACK, 2015, p.181),

haja vista que o hedonismo contraria o princípio de realidade, pois as pessoas nem sempre

conseguem obter o prazer almejado, ou pelo menos nem sempre o obtém na intensidade que as

satisfaça.

Esta busca pelo ideal de felicidade, segundo Fortes, é produto do pensamento utilitarista do

século XIX, que prevaleceu no sistema capitalista em que vivemos, que utopicamente acreditava

atingir ser possível atingir uma sociedade de bem-estar (FORTES, 2012, p.36-39).

Outra característica da sociedade na atualidade é o consumismo. Utilitarismo e consumismo

mantém a lógica de que deve haver uma utilidade para tudo, que por sua vez pode ser compreendido

em termos de consumo, relações de mercado ‘compra e venda’. Através dessa lógica da utilidade,

uma indagação vinda daqueles que procuram serviço de atendimento psicoterapêutico não poderia

ser diferente: “de que serve ter contato com a perspectiva trágica da vida?”; “para quê gastar tempo

(que virou sinônimo de dinheiro) para ter contato com a triste realidade humana?”.

Para a economia, nada mais eficaz e vantajoso que se medique o sofrimento, pois assim

vende-se em excesso, abafam-se as questões existenciais (e com isso a subjetividade!) e lucra-se

muito com isso (ROSA e WINOGRAD, 2011). Vale considerar também que há várias alternativas para

obtenção de prazer e esquecimento da dor que para além dos medicamentos: vide o assédio ao

consumo de bens, coisas e serviços que através de cada propaganda vende o ideal de ‘vida feliz’ em

cada oferta (FORTES, 2012, p.39-41).

É digno de nota que, esses novos ideais culturais produziram também um desleixo com tudo

aquilo que não se relaciona com o prazer, a utilidade e o mercado. Vide a condição dos idosos, dos

inválidos, dos miseráveis, etc. É como se eles não fizessem “parte do jogo” social, não servissem

mais para os fins da sociedade pós-moderna, são os “estranhos” à sociedade de consumo

(BAUMAN, 1998).

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O discurso trágico da psicanálise diante do mal-estar contemporâneo, pp. 77-91

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Considerações finais

Enquanto Freud e os filósofos trágicos mostram ao homem que a vida se dá para além do

princípio de prazer, consistindo também nas intensidades do sofrimento e da dor, ao que nos parece,

a pós-modernidade tem distanciado o homem dessa consciência trágica. O fato de colocar o mal-

estar para “debaixo do tapete” não significa que ele foi eliminado ou diminuído. Pelo contrário, a

sociedade pós-moderna fez aumentar o quadro da tragédia humana a partir do momento em que o

ajuda o homem a se esquecer de que a dor é uma legítima experiência da vida e que sem ela não

seria possível a experiência mais humana – que consiste na formação e nos esquemas do aparelho

psíquico.

Ao contrário, acolhendo a dor com alegria, reconhecendo o seu potencial na transformação

do sujeito, procurando com ele novas formas de conviver com sua finitude e desamparo, enfim, ao

realizar sua ética trágica a clínica de psicanálise se apresenta também como um espaço de

resistência diante da sociedade pós-moderna e do mal-estar que a vida nela resulta. Nisso consiste

motivo suficiente para reafirmar a relevância da ciência e do discurso de Freud e suas perspectivas

trágicas na atualidade.

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FREUD, S. (1925[1924]). Um estudo autobiográfico. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das

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NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. Porto Alegre: L&PM, 2015.

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O mundo como fábula: Nietzsche e a crítica ao conhecimento filosófico, pp. 92-105

Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 92

O MUNDO COMO FÁBULA:

NIETZSCHE E A CRÍTICA AO

CONHECIMENTO FILOSÓFICO

Leonardo Magalde Ferreira1

RESUMO: O artigo tem por objetivo apresentar as críticas do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844 – 1900) à epistemologia filosófica ocidental a partir do questionamento sobre alguns dos fundamentos conceituais que a sustentam. Partindo de noções pontuais como a verdade, a metafísica e a linguagem, buscaremos mostrar como a crítica nietzschiana desconstrói estes conceitos em sua base. Logo, pontuaremos brevemente no início a maneira como o filósofo alemão encara a epistemologia filosófica para, num segundo momento, apresentar de modo específico como a crítica nietzschiana se estrutura.

PALAVRAS-CHAVE: epistemologia; intelecto; metafísica; linguagem; Friedrich Nietzsche

WORLD AS FABLE: NIETZSCHE AND THE CRITICISM TO THE PHILOSOPHICAL KNOWLEDGE

1 Graduado em Filosofia pelo Centro Universitário São Camilo, Especialista em Filosofia Contemporânea e História pela Universidade Metodista de São Paulo e Mestre em Ciências da Religião pela mesma instituição. E-mail para contato: leonardomagaldehotmail.com

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O mundo como fábula: Nietzsche e a crítica ao conhecimento filosófico, pp. 92-105

Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 93

ABSTRACT: The paper aims to present the criticism of the German philosopher Friedrich Nietzsche (1844 - 1900) to the western philosophical epistemology from the questioning about some of the conceptual foundations that support it. Starting from specific notions such as truth, metaphysics and language, we will try to show how Nietzsche's criticism deconstructs these concepts at their basis. Therefore, the paper begins by briefly pointing out the way in which the German philosopher approaches philosophical epistemology in order to present in a specific way how Nietzsche's criticism is structured.

KEY-WORDS: epistemology; intellect; metaphysics; language; Friedrich Nietzsche

INTRODUÇÃO

Muitas são as possibilidades e os percalços de se iniciar um texto que aborde a questão do

conhecimento em Nietzsche. A este respeito, Scarlet Marton nos diz que a questão é trabalhada

pelo filósofo alemão de modo pouco convencional, adotando inúmeras perspectivas:

É de maneira pouco convencional que Nietzsche aborda a questão do conhecimento. Quando se empenha em explicar o que pensa a respeito, não se limita a considerações de ordem gnosiológica; adota vários pontos de vista e recorre a pesquisas diversas. Acredita que diferentes perspectivas têm de iluminar o modo de conceber o homem em sua interação com o mundo (MARTON, 1990, p. 189).

Tal atitude não é gratuita e muito menos tende para uma postura de cunho relativista. Ele

assim o faz, pois, diferentemente de pensadores como Descartes (1596 – 1650), por exemplo, que

viam no conhecimento a possibilidade de alcançar algo de certo, para Nietzsche o conhecimento

está muito mais no âmbito da interpretação. Com isso, não há um lugar de privilégio à teoria do

conhecimento em seu pensamento. Veremos mais adiante em nosso texto que o intelecto, tão

venerado pela tradição ocidental, não passa de uma ilusão para ele. Entretanto, por mais que a

questão do conhecimento seja tratada da forma vista acima, não há uma tentativa por parte do

filósofo alemão de negar a existência da possibilidade de realmente se conhecer algo sobre o

mundo, mas sim uma advertência sobre o valor dado a esta atitude.

Ademais, é importante ressaltar que o pensamento de Nietzsche está inserido em uma

perspectiva naturalista, que atribui o surgimento do conhecimento às interações de indivíduos

semelhantes, bem como do meio em que estes habitam. Esta visão adotada talvez advenha de sua

total negação de aspectos transcendentes, não aceitando qualquer teoria que não traga o orgânico

em primeiro plano:

A maneira pela qual ele aborda a questão inscreve-se numa perspectiva naturalista; considera o ato de conhecer resultante de interações de indivíduos, pertencentes a determinada espécie animal, entre si e com o meio que os cerca. Essa abordagem talvez decorra diretamente do fato de recusar toda divindade, todo poder transcendente. Ele

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O mundo como fábula: Nietzsche e a crítica ao conhecimento filosófico, pp. 92-105

Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 94

rejeita qualquer explicação da origem e funções das aptidões humanas que não as tome, antes de mais nada, como fruto do desenvolvimento orgânico (MARTON, 1990, p. 192).

Ao priorizar o orgânico, o fisiológico, podemos notar desde já como Nietzsche se distancia

das posturas filosóficas tradicionais que sempre partiram de concepções racionais, e é a partir deste

distanciamento que pretendemos abordar suas críticas à metafísica, à consciência e à linguagem,

três conceitos fundamentais da epistemologia filosófica. Nosso objetivo, portanto, é o de apresentar

a desconstrução feita por Nietzsche destes conceitos filosóficos tomados pela tradição como

verdadeiros e acompanhar como sua crítica avança passo a passo rumo à constatação de que o

mundo visto pelo viés racional-metafísico é uma fábula.

Ciência, metafísica e verdade

Desde sua origem, a Filosofia se pautou na busca pela verdade. Mas por que sempre a

verdade? O que está embutido nesta busca? Podemos logo de saída notar que há uma relação

valorativa junto ao pensamento filosófico, pois desde o seu surgimento a filosofia se pautou na

busca pelo verdadeiro. (LEFRANC, 2005, p. 263). É possível pressupor, então, que ela possui um valor

positivo não existente no erro ou no engano, justamente o que a filosofia sempre evitou. Nietzsche

reflete em um de seus livros, A Gaia Ciência, acerca deste valor dado à verdade e não ao erro: “Esta

absoluta vontade de verdade: o que será ela? Será a verdade de não se deixar enganar? Será a

vontade de não enganar?” (NIETZSCHE, 2012, p. 209, grifos do autor). Ao fazer esta pergunta,

Nietzsche traz uma outra possibilidade de se compreender esta atitude, voltando-se para aquele

que a busca: “Pois também desta maneira se pode interpretar a vontade de verdade; desde que na

generalização ‘Não quero enganar’ também inclua-se o caso particular ‘Não quero enganar nem a

mim mesmo’ (NIETZSCHE, 2012, p. 209).

Com isso, Nietzsche desloca a pergunta pela verdade para o âmbito pessoal daquele que a

procura e vai aos poucos descontruindo a imagem de que a busca pela verdade seja algo puramente

despretensioso. Há, segundo ele, uma questão muito mais profunda e que nunca antes fora

colocada em evidência, tal como sugerem suas perguntas feitas acima. Deste modo, o motivo pelo

qual não queremos nos enganar, segundo Nietzsche, advém do fato de que associamos o engano

com algo ruim, negativo, ao passo que o oposto, representado pela certeza científica e sua busca

pela veracidade, seria uma base na qual pudéssemos nos apoiar contra a possibilidade do erro, ou

seja, ela seria, então, boa:

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O mundo como fábula: Nietzsche e a crítica ao conhecimento filosófico, pp. 92-105

Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 95

Mas por que não enganar? E por que não se deixar enganar? – Note-se que as razões para o primeiro caso se acham numa esfera inteiramente diversa das do segundo: a pessoa não quer se deixar enganar supondo que é prejudicial, perigoso, funesto deixar-se enganar – neste sentido a ciência seria uma prolongada esperteza, uma precaução, uma utilidade [...] (NIETZSCHE, 2012, p. 209).

Ainda sobre esta visão, de ser menos prejudicial não se enganar do que o contrário, Nietzsche

a contesta no momento em que questiona como se pode saber tal fato, que critério possui os que

afirmam tal visão, ao mesmo tempo em que põe em xeque as convicções que a ciência clama possuir

caso fosse preciso esta trabalhar com verdades e inverdades simultaneamente:

Que sabem vocês de antemão sobre o caráter da existência, para poder decidir se a vantagem maior está do lado de quem desconfia ou de quem confia incondicionalmente? E se as duas coisas forem necessárias, muita confiança e muita desconfiança: de onde poderá a ciência retirar a sua crença incondicional, a convicção na qual repousa, de que a verdade é mais importante que qualquer outra coisa, também que qualquer convicção? (NIETZSCHE, 2012, p. 209).

A resposta a estas perguntas, segundo Nietzsche, está no campo da moral. Para o filósofo, a

busca pela verdade, bem como a necessidade da própria ciência, revela a busca por uma visão da

realidade não condizente com a que percebemos. Com isso, aqueles que fazem da ciência seu objeto

de “fé” negam este mundo que estamos em prol de um que não contenha as contradições

consideradas por estes como – negativamente - imorais, tornando assim a crença na ciência em uma

crença metafísica:

Assim, a questão: “por que ciência?”, leva de volta ao problema moral: para que moral, quando vida, natureza e história são “imorais”? Não há dúvida, o homem veraz, no ousado e derradeiro sentido que a fé na ciência pressupõe, afirma um outro mundo que não o da vida, da natureza e da história; e, na medida em que afirma este “outro mundo – não precisa então negar a sua contrapartida, este mundo, nosso mundo?... Mas já terão compreendido onde quero chegar, isto é, que a nossa fé na ciência repousa ainda numa crença metafísica [...] (NIETZSCHE, 2012, p. 210, grifos do autor).

Segundo Werner Stegmaier, um dos mais renomados comentadores de Nietzsche, as

verdades que ciência e a filosofia afirmam possuir uma validade permanente estão intimamente

ligadas à metafísica, no sentido de que esta última possui a verdade de modo objetivo, como em

uma realidade indubitável:

A verdade da filosofia e da ciência, que é expressa em juízos com pretensão a validade permanente, está originalmente vinculada à metafísica. A metafísica tem a verdade em seus juízos, ela a tem objetivamente diante de si como um “mundo verdadeiro [...]” STEGMAIER, 2013, p. 35, grifo do autor).

Em decorrência disto, a distinção entre verdade e aparência leva a uma crença metafísica em

um outro tipo de realidade, onde a verdade estaria estabelecida, fazendo com que se tornasse não

apenas o principal valor a ser buscado, mas também um preconceito moral (NIETZSCHE, 2007, p.

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39), de modo que, para Nietzsche, o surgimento desta suposição está intimamente ligado à

mudança de postura frente à busca pela verdade que se originou com Sócrates. Vejamos mais

atentamente.

A razão socrática

Segundo Nietzsche, esta questão moral, proveniente da busca pela verdade por meio da

razão, surge com Sócrates, que muito antes do cristianismo trouxe à tona o questionamento de se

atribuir um determinado valor à razão ao invés do instinto:

O velho problema teológico de “fé” e “saber” – ou mais claramente, de instinto e razão -, isto é, indagar se no que toca à valoração das coisas o instinto merece autoridade maior que a racionalidade, a qual deseja que se avalie e se aja de acordo com motivos, conforme um “por quê?”, isto é, segundo a finalidade e a utilidade – ainda é aquele velho problema moral que surgiu primeiramente na pessoa de Sócrates, e que muito antes do cristianismo já dividia os espíritos (NIETZSCHE, 2007, p. 79).

De acordo com Rudger Safranski, em sua primeira obra intitulada O Nascimento da Tragédia,

Nietzsche traça o perfil de Sócrates como alguém que via no conhecimento e sua busca a posição

mais elevada possível a se alcançar, concluindo, segundo Safranski, que esta atitude foi a

predecessora de todas as demais que apareceriam futuramente na história da filosofia, trazendo

como principal característica a busca pela verdade:

Ali Nietzsche o faz aparecer como alguém que esperava o mais alto do conhecimento, e não apenas julgara possível viver com a verdade, mas julga uma vida fora da verdade como indigna de ser vivida. Para Nietzsche, Sócrates é o antepassado da carreira ocidental do saber e da vontade de verdade (SAFRANSKI, 2011, p. 130).

Segundo Rogério Miranda de Almeida, nesta mesma obra Nietzsche analisa Sócrates como

sendo aquele em que a lógica e suas características se desenvolveram de modo tão extremo que

apenas poderiam ser comparadas às maiores forças instintivas:

No nascimento da tragédia, Sócrates é efetivamente analisado como o modelo do homem teórico, aquele em quem a natureza lógica se desenvolveu de maneira tão desenfreada e excessiva, que somente nas mais poderosas forças instintivas se poderia encontrar algo semelhante [...] (ALMEIDA, 2005, p. 49).

A questão sobre Sócrates aparece, também, em Crepúsculo dos Ídolos, onde Nietzsche dedica

uma seção para tratar de tal assunto. Intitulada “O problema de Sócrates”, o filósofo tece duras

críticas ao modo socrático de agir e sua busca pela verdade por meio da razão. Para Nietzsche,

Sócrates compreendia que sua época representava um período de mudanças. A velha Atenas (que

Nietzsche entendia como o período trágico) estava ficando para trás. Nessa transição, o caráter

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instintivo e impulsivo dos atenienses estava em completa anarquia, de tal modo que era preciso algo

mais forte que estes instintos:

Mas Sócrates intuiu algo mais [...] a velha Atenas caminhava para o fim. - E Sócrates entendeu que o mundo inteiro necessitava - de seu remédio, seu tratamento, seu artifício pessoal de autopreservação... Em toda parte os instintos estavam em anarquia; em toda parte se estava a poucos passos do excesso: o monstrum in animo era o perigo. "Os instintos querem fazer o papel de tirano; deve-se inventar um contratirano que seja mais forte..." (NIETZSCHE, 2017, p. 18, grifos do autor).

Para Nietzsche, esta necessidade de se evitar que os instintos se sobressaíssem foi

suplantada por Sócrates pelo uso tirânico da razão. Com isso, o resultado foi que para os atenienses

daquele período a razão começou a ser vista como a salvação para a situação que ali se mostrava,

não havendo opção a não ser tornar-se racional, ou seja, este foi o modo pelo qual, segundo

Nietzsche, teve início a questão sobre a valoração entre racionalidade e instinto citada

anteriormente e que, por sua vez, levará ao surgimento da distinção entre verdade e aparência:

Quando há necessidade de fazer da razão um tirano, como fez Sócrates, não deve ser pequeno o perigo de que uma outra coisa se faça de tirano. A racionalidade foi então percebida como salvadora [...] o fanatismo com que toda reflexão grega se lança à racionalidade mostra uma situação de emergência: estavam em perigo, tinham uma única escolha: sucumbir ou - ser absurdamente racionais... (NIETZSCHE, 2017, p. 18).

De acordo com Tulio Madson, Nietzsche considera toda a tradição filosófica posterior a

Sócrates como sendo continuadora desta mesma atitude, que nega este mundo em prol de outro:

“Para nosso filósofo toda a tradição filosófica que sucede Sócrates é uma mera continuação desse

primeiro movimento, advindo do socratismo, que condena esse mundo e essa vida tal como se

apresenta” (GALVÃO, 2012, p. 15).

Assim, pode-se dizer que o filósofo alemão dá continuidade à desconstrução dos conceitos

que fundamentam o pensamento filosófico na medida em que ataca, também, o conceito basilar de

toda tradição que sucedeu o pensamento socrático: a consciência. Segundo Nietzsche, tal conceito

está intimamente ligado à relação errônea desenvolvida ao longo de toda tradição com a linguagem.

A ilusão da consciência.

O início do pensamento Moderno na história da filosofia surge por meio do conceito de

subjetividade, trazido à luz de modo radical por René Descartes. De acordo com Luiz Bicca, o efeito

deste conceito foi tão amplo que Descartes se tornou sinônimo deste período e de suas mudanças

iniciais: “De tal período pode-se dizer que, entre os historiadores da filosofia, há um consenso em

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localizar seu início no século XVII, tendo o nome de Descartes funcionando como [...] simplesmente

sinônimo desta inauguração” (BICCA, 1997, p. 145). Deste modo, ainda segundo Bicca, concepções

como “eu penso” e “consciência” estão intimamente ligadas ao conceito de subjetividade trazido

por Descartes, ao passo que estas concepções se tornam critérios fundamentais para a criação de

outras, como a verdade, por exemplo:

A rigor, “subjetividade” é um termo genérico, isto é, é uma noção que enfeixa ou se encontra em relação necessária com uma série de outros conceitos, que, conjugados, circunscrevem uma problemática: Eu, consciência, consciência de si, auto-referência, autodeterminação, personalidade, espírito, enumerando apenas os mais importantes. Eles são os elementos definidores de atitudes e procedimentos de investigação, dos padrões e estilos de argumentação, de critérios de justificativa ou para estabelecimento da verdade [...] (BICCA, 1997, p. 145).

Em apenas dois aforismos de Além do bem e do mal (§ 16 e 17), Nietzsche tece uma dura

crítica à filosofia moderna e sua certeza sobre o “Eu penso”. Para o filósofo alemão, é uma

ingenuidade a noção de que se é possível apreender o objeto visado de modo completo ou alcançar

certezas imediatas por intermédio do pensar, como por exemplo, o cogito cartesiano:

Ainda há ingênuos observadores de si mesmos que acreditam existir “certezas imediatas”; por exemplo, “eu penso”, ou, como era a superstição de Schopenhauer, “eu quero”: como se aqui o conhecimento apreendesse seu objeto puro e nu, como “coisa em si”, e nem de parte do sujeito nem de parte do objeto ocorresse uma falsificação (NIETZSCHE, 2007, p. 20).

Segundo Nietzsche, o problema está no fato de que no momento em que uma

proposição como “eu penso” é enunciada, junto a ela estão embutidas inúmeras afirmações talvez

impossíveis de serem fundamentadas, como por exemplo, que já se tenha como certo o que é

pensar, bem como já se ter diferenciado, no ato da enunciação, o pensar de um “querer” ou “sentir”:

[...] se decomponho o processo que está expresso na proposição “eu penso”, obtenho uma série de afirmações temerárias, cuja fundamentação é difícil, talvez impossível – por exemplo, [...] que eu sei o que é pensar. Pois se eu já não tivesse me decidido comigo a respeito, qual medida julgaria que o que está acontecendo não é talvez “sentir” ou “querer”? (NIETZSCHE, 2007, p. 21, grifo do autor).

No entanto, o fato de se pressupor que o estado do “eu penso” se diferencie de outros

implica, segundo o filósofo, uma retrospectiva, ou seja, que eu já saiba desta diferença, não

implicando assim em uma certeza instantânea. Deste modo, diferentemente de conceber uma

certeza evidente e imediata através desta proposição, conforme Descartes acreditava, o que ela nos

entrega, segundo Nietzsche, é uma série de questões muito mais amplas e pertinentes:

Em resumo, aquele “eu penso” pressupõe que eu compare meu estado momentâneo com outros estados que em mim conheço, para determinar o que ele é: devido a essa referência retrospectiva a um “saber” de outra parte, ele não tem para mim, de todo modo, nenhuma

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“certeza” imediata. – No lugar dessa “certeza imediata”, em que o povo pode crer, no caso presente, o filósofo depara com uma série de questões da metafísica, verdadeiras questões de consciência para o intelecto, que são: “De onde retiro o conceito de pensar? Por que acredito em causa e efeito? O que me dá o direito de falar de um Eu, e até mesmo de um Eu como causa, e por fim de um Eu como causa de pensamentos?” (NIETZSCHE, 2007, p. 21).

Mostrando as fragilidades desta “certeza imediata” que a Modernidade tanto se

apoiou e que ainda ecoa no pensamento contemporâneo, Nietzsche vai mais fundo ainda em sua

desconstrução do “eu penso” ao afirmar no aforismo seguinte que a atribuição de um “eu” ao pensar

como sendo condição deste último, é na verdade uma falsificação:

Quanto à superstição dos lógicos, nunca me cansarei de sublinhar um pequeno fato que esses supersticiosos não admitem de bom grado – a saber, que um pensamento vem quando “ele” quer, e não quando “eu” quero; de modo que é um falseamento da realidade efetiva dizer: o sujeito “eu” é a condição do predicado “pensa” (NIETZSCHE, 2007, p. 21).

Segundo o filósofo, este “eu” a quem se atribui um peso fundamental nada mais é do que

uma hipótese, pois, se ao afirmar que “algo” ou “isto” pensa, já existe aí uma interpretação, que por

sua vez é tomada a partir de uma perspectiva. Deste modo, Nietzsche nos diz que tal atribuição

provém de um hábito gramatical, onde um agente sempre é requerido para a atividade, no caso, o

“pensar”:

Isso pensa: mas que este ‘isso’ seja precisamente o velho e decantado ‘eu’ é, dito de maneira suave, apenas uma suposição, uma afirmação, e certamente não uma “certeza imediata”. E mesmo como “isso pensa” já se foi longe demais; já o “isso” contém uma interpretação do processo, não é parte do processo mesmo. Aqui se conclui segundo o hábito gramatical: “pensar é uma atividade, toda atividade requer um agente, logo – ” (NIETZSCHE, 2007, p. 22, grifo do autor).

Sendo assim, tendo não apenas desconstruído o conceito de “eu” e o denunciando como

sendo uma falsificação advinda de um hábito gramatical, em A Gaia Ciência Nietzsche amplia suas

críticas à noção de consciência, noção esta tão prezada pela tradição ocidental como motivo de

orgulho. Conforme Tereza Cristina B. Galomeni afirma em seu artigo sobre as críticas nietzschianas

à consciência, o filósofo alemão:

[...] quer atingir a vaidade e a arrogância humanas, sempre prontas a realimentar no homem um sentimento de superioridade, de altivez e de excepcionalidade supostamente legitimado pela inelutável presença do intelecto ou da consciência (CALOMENI, 2011, p. 229).

Para Nietzsche, a atitude de tratar a consciência desta forma nada mais é do que uma ilusão.

Se lembrarmos da afirmação de Scarlet Marton sobre o fato de Nietzsche manter uma postura

favorável a todo argumento sobre o conhecimento que leve em consideração o orgânico, podemos

ver o motivo desta postura nos próprios argumentos do filósofo alemão. No § 11 de A Gaia Ciência,

Nietzsche nos diz que a consciência foi o último passo em nosso desenvolvimento e por isso mesmo,

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o mais fraco: “A consciência é o último e derradeiro desenvolvimento do orgânico e, por

conseguinte, também o que nele é mais inacabado e menos forte” (NIETZSCHE, 2012, p. 61).

Deste modo, indo contra toda a tradição filosófica, Nietzsche afirma ser um erro atribuir à

consciência o ponto central no ser humano, como se ela fosse um porto seguro, um local fixo. Para

o filósofo alemão, tal atitude provém do fato de que não se foi dada atenção ao desenvolvimento da

consciência e sim à crença de que já a possuíamos:

Pensam que nela está o âmago do ser humano, o que nele é duradouro, derradeiro, eterno, primordial! Tomam a consciência por uma firme grandeza dada! Negam seu crescimento, suas intermitências! Veem-na como “unidade do organismo”! – Esta ridícula superestimação e má compreensão da consciência tem por corolário a grande vantagem de assim foi impedido o seu desenvolvimento muito rápido. Por acreditarem já ter a consciência, os homens não se empenharam em adquiri-la – e ainda hoje não é diferente (NIETZSCHE, 2012, p. 61).

Posto isto, Nietzsche afirma que o desenvolvimento da consciência, por sua vez, se deu

apenas em face da necessidade que tínhamos de nos comunicar (NIETZSCHE, 2012, p. 222, grifos

do autor), não havendo nada que a fizesse ocupar um lugar de destaque, como sempre ocorreu.

Ademais, Nietzsche não credita em momento algum de sua reflexão a noção de superioridade frente

a outros animais apenas por sermos conscientes. Muito pelo contrário. Segundo o filósofo, sendo o

homem o animal mais fraco em seu meio, a consciência surge única e exclusivamente a partir da

necessidade de se criar uma relação entre indivíduos, tendo como objetivo principal o de propiciar

entendimento e proteção:

Consciência é, na realidade, apenas uma rede de ligação entre as pessoas – apenas como tal ela teve que se desenvolver: um ser solitário e predatório não necessitaria dela. O fato de nossas ações, pensamentos, sentimentos, mesmo movimentos nos chegarem à consciência – ao menos parte deles - , é consequência de uma terrível obrigação que por longuíssimo tempo governou o ser humano: ele precisava, sendo o animal mais ameaçado, de ajuda, proteção, precisava de seus iguais, tinha de saber exprimir seu apuro e fazer-se compreensível – e para isso tudo ele necessitava antes de “consciência”, isto é, “saber” o que lhe faltava, “saber” como se sentia, “saber” o que pensava (NIETZSCHE, 2012, p. 222).

Havendo então uma estreita ligação entre o surgimento da consciência e o surgimento da

linguagem, a crítica que Nietzsche efetua sobre o lugar dado à consciência também passa por uma

crítica ao estatuto atribuído à linguagem, atacando-a em sua raiz e denunciando o seu caráter

puramente metafórico2.

2 Importante salientar que, por mais convincente que a desconstrução do cogito cartesiano pareça, ela não se mantém ilesa de críticas. Paul Ricoeur, por exemplo, chama a atenção para este fato ao mostrar em seu livro O si-mesmo como outro, a possibilidade de a crítica nietzschiana ser uma extensão da dúvida hiperbólica efetuada por Descartes. Após analisar a crítica de Nietzsche ao cogito em seus escritos, ele conclui: “[...] em minha opinião, não se deve ver nada além de um exercício de dúvida hiperbólica levado mais longe que o de Descartes, voltado contra a própria certeza que este acreditava poder subtrair à dúvida. Nietzsche não diz outra coisa, pelo

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A função metafórica da linguagem

Em sua crítica à linguagem, Nietzsche tem como objetivo atacar a crença existente de que

há uma relação entre discurso e realidade, que é presente deste o surgimento da filosofia: “Movida

pela crença de que a forma fundamental do pensamento é a mesma de suas manifestações por

palavras, desde cedo, a filosofia não hesitou em identificar discurso e realidade” (NIETZSCHE, 2012,

p. 10). Ainda sobre esta relação, Renato Nunes Bittencourt nos mostra que já nos diálogos platônicos

existia esta crença, de que as palavras realmente se referiam às coisas denominadas:

A filosofia platônica da linguagem, especialmente no Crátilo, segue esta diretriz, preconizando a plena capacidade das palavras expressarem semanticamente a totalidade dos fatos constituintes da realidade de modo preciso, claro e definido, pois as palavras designariam de modo preciso as próprias essências dos objetos figurados (BITTENCOURT, 2009, p. 3).

No entanto, segundo Nietzsche, tal crença não passa de uma ilusão. No ensaio intitulado

Sobre verdade e mentira no sentido extramoral escrito em sua juventude, o filósofo afirma que a

natureza da linguagem é em si mesma metafórica, no sentido de que o processo realizado ao proferir

uma palavra em nada se assemelha com a possibilidade de corresponder a uma objetividade:

O que é uma palavra? A reprodução de um estímulo nervoso em sons. De antemão, um estímulo nervoso transposto em uma imagem! Primeira metáfora. A imagem, por seu turno, remodelada num som! Segunda metáfora. E, a cada vez, um completo sobressalto de esferas em direção a uma outra totalmente diferente e nova” (NIETZSCHE, 2012, p. 31).

Assim, Nietzsche mostra que há um equívoco no momento em que afirmamos saber algo de

efetivo sobre o que dizemos, pois, ao invés de as palavras realmente se referirem aos seus

conteúdos, na realidade estamos apenas lidando com metáforas: “Acreditamos saber algo acerca

das próprias coisas, quando falamos de arvores, cores, neve e flores, mas, com isso, nada possuímos

senão metáforas das coisas, que não correspondem, em absoluto, às essencialidades originais”

(NIETZSCHE, 2012, p. 33).

Desta forma, afirmando que jamais há nas palavras uma expressão adequada (NIETZSCHE,

2012, p. 31), Nietzsche, também, tece uma crítica ao modo de formação dos conceitos. Segundo o

filósofo, a criação de um conceito nada mais é do que um modo de abstração arbitrário, no sentido

menos nestes fragmentos, senão o seguinte: duvido melhor que Descartes” (RICOEUR, 2014, p. XXX, grifos do autor). De modo que a atitude nietzschiana também traz à tona a questão de se a argumentação utilizada pelo filósofo alemão “não sucumbe aos próprios golpes” (PELLAUER, 2010, p. 124).

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de que se busca por meio de semelhanças que nunca são idênticas, uma unificação, onde se é

deixado de lado as inúmeras nuances presentes em algo individual em prol de uma fixidez única:

Ponderemos ainda, em especial, sobre a formação dos conceitos: toda palavra torna-se de imediato um conceito à medida que não deve servir, a título de recordação, para a vivência primordial completamente singular e individualizada à qual deve seu surgimento, senão que, ao mesmo tempo, deve coadunar-se a inumeráveis casos, mais ou menos semelhantes, isto é, nunca iguais quando tomados à risca, a casos nitidamente desiguais, portanto. Todo conceito surge pela igualação do não-igual. Tão certo como uma folha nunca é totalmente igual a uma outra, é certo ainda que o conceito de folha é formado por meio de uma arbitrária abstração dessas diferenças individuais [...] (NIETZSCHE, 2012, p. 34-35).

Com isso, a busca pela igualação contribuiu para que não existissem desacordos entre os

homens, pois em algum momento a busca por um consenso se mostrou necessária entre eles, com

o objetivo de se fixar o uso de algumas palavras, conforme nos diz Scarlet Marton: “No momento

em que indivíduos procuraram viver gregariamente, surgiu a necessidade de fixar uma designação

das coisas, cujo uso fosse válido e obrigatório de maneira uniforme” (MARTON, 1990, p. 198). Isto

evidencia, também, o caráter puramente convencional da linguagem: “Pela linguagem são

estabelecidas regras convencionais e obrigatórias, forjam-se convenções linguísticas” (CALOMENI,

2011, p. 233). Mas essas regras estabelecidas por convenção contribuíram não apenas para a paz.

Segundo Nietzsche, é a partir deste momento, onde se convencionam as regras linguísticas, que

surge o impulso à verdade:

Esse acordo de paz traz consigo, porém, algo que parece ser o primeiro passo rumo à obtenção daquele misterioso impulso à verdade. Agora fixa-se aquilo que, doravante, deve ser “verdade”, quer dizer, descobre-se uma designação uniformemente válida e impositiva das coisas, sendo que a legislação fornece também as primeiras leis da verdade: pois aparece aqui, pela primeira vez, o contraste entre verdade e mentira; [...] (NIETZSCHE, 2012, p. 29).

Deste modo, agora é a própria noção de verdade que cai por terra, e se mostra como sendo

nada mais do que uma metáfora, além de uma convenção linguística, de modo que o ser humano,

esquecendo-se da origem metafórica da linguagem, acredite realmente na “identidade entre ser e

discurso” (MARTON, 1990, p. 198), quando na realidade está enganando a si mesmo:

O que é, pois, a verdade? Um exército móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, numa palavra, uma soma de relações humanas que foram realçadas poética e retoricamente, transpostas e adornadas, e que, após uma longa utilização, parecem a um povo consolidadas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões das quais se esqueceu que elas assim o são [...] (NIETZSCHE, 2012, p.36).

Sendo assim, Nietzsche nos mostra que a busca por uma verdade, por uma certeza clara e

evidente traz em si dois equívocos. O primeiro é o fato de que esta busca se funda em uma crença

moral, uma crença em um mundo “verdadeiro” onde não existam as contradições tão presentes

como as que vivenciamos, onde a lógica abarcaria grande parte de nossa experiência; mundo este

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que, segundo Gianni Vattimo, nos seria “dado como um espetáculo totalmente traduzível nos

esquemas lógicos” (VATTIMO, 2010, p. 57). Já o segundo equívoco está intimamente relacionado

com o primeiro, pois os conceitos utilizados pelos filósofos são produtos de uma linguagem que na

realidade nada diz de objetivo devido sua natureza metafórica, esquecida pelo ser humano. Deste

modo, tal esquecimento reforça o fato de que “na realidade” este “mundo verdadeiro nunca existiu”

(VATTIMO, 2010, p. 56), e o anseio pela verdade, tão presente no pensamento ocidental, nada mais

é do que o anseio por uma ilusão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em nosso percurso, vimos que a crítica nietzschiana aos conceitos modernos está vinculada

a uma crítica ao intelecto humano e sua pretensão em abarcar a realidade, presente desde a

Antiguidade. Nietzsche chama nossa atenção para o fato de que muito desta atitude provém de um

instrumento do intelecto, a saber, a linguagem. Segundo o filósofo alemão, a consciência, tão

idolatrada pela Modernidade, surge apenas pela necessidade de comunicação, ao passo que toda

sorte de conceito linguístico se mostra como sendo puramente convencional, não possuindo a

objetividade que se acreditava ter, de modo que ao criticar o estatuto da linguagem Nietzsche ataca

diretamente o cerne da metafisica tradicional, pois esta sempre se pautou na crença da relação

existente entre o dizer e o ser. Seguindo a linha de raciocínio proposta pela crítica de Nietzsche,

sendo então a linguagem convencional e não possuindo a capacidade de referir-se de modo objetivo

ao que se diz, certos conceitos como certeza, evidência e até mesmo a verdade, caem por terra e se

mostram como sendo ilusórios devido ao fato de se referirem a uma realidade que não é a que se

mostra à nossa experiência.

Deste modo, concluímos que a crítica nietzschiana expõe nada mais que a fragilidade destes

conceitos quando contestados em suas bases. A combinação vista entre a crença em um tipo de

realidade onde se encontram os ideais de verdade, clareza, etc., ou seja, um mundo lógico e

ordenado, juntamente com o esquecimento do convencionalismo e da natureza metafórica da

linguagem revela uma crença moral, uma negação de nossa realidade, contribuindo com surgimento

de conceitos pautados em uma imutabilidade e em uma imobilidade metafisica. É importante

lembrarmos que Nietzsche não considera o conhecimento como algo negativo. Ele apenas chama

nossa atenção para o fato de que o conhecimento está sempre atrelado à interpretação. Conhecer é

interpretar a realidade que se mostra a nós, nunca possuí-la. De fato, toda interpretação sempre se

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O mundo como fábula: Nietzsche e a crítica ao conhecimento filosófico, pp. 92-105

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dá a partir de uma perspectiva, nunca sobre o todo, ao passo que uma abordagem do conhecimento

sob essa ótica, evita não só as armadilhas conceituais abordadas neste trabalho, mas também a

possibilidade de se transformar a realidade uma fábula.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Rogério Miranda. Nietzsche e o paradoxo. São Paulo: Edições Loyola, 2005, 309 p.

BICCA, Luiz. Racionalidade moderna e subjetividade. São Paulo: Edições Loyola, 1997, 334 p.

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O mundo como fábula: Nietzsche e a crítica ao conhecimento filosófico, pp. 92-105

Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 105

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TRADUÇÃO

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O que é aura?, pp. 106-109

Revista Lampejo - vol. 7 nº 2 106

O QUE É AURA? Walter Benjamin1

Tradução: Maria Thaís da Silva da Cruz2

Três folhetos de 18,5 x 11 cm destacados de um bloco publicitário. Cada folha porta, no alto à

esquerda, o símbolo da água mineral San Pellegrino. Benjamin, talvez obteve esse bloco conseguinte a

sua estada em San Remo, durante o verão 1937. Sobre a margem superior do primeiro folheto, Benjamin

anotou: Olhar pelas costas/ encontro de olhares/ levantar os olhos, responder a um olhar. A reflexão

sobre a aura neste texto será retomada, inclusive textualmente, em parte no trabalho sobre Baudelaire.

A experiência que temos da aura explica-se pelo adiamento, na relação natureza e homem,

de uma forma de reação atual na sociedade. Aquele que é olhado ou crê-se olhado {levanta os olhos}

responde por um olhar. Fazer a experiência de um fenômeno ou de um ser, é dar-se conta de sua

faculdade de lançar um olhar {de responder à um olhar}. Esta faculdade é plenamente poética. Um

homem, um animal ou um ser inanimado vem levantar os olhos sob nosso olhar, ele nos arrasta de

início para o distante; seu olhar sonha, nos chama para seu sonho. A aura é a aparência de um

distante, tão próximo que possa estar. As próprias palavras têm sua aura; Kraus as descreveu

particularmente bem: “Quanto mais olhar uma palavra, mas ela responde olhando de longe”.

Há tanta aura no mundo quanto sonho nele. Mas o olho despertado não perde a arte do olhar

quando o sonho lhe é extinguido. Pelo contrário, é somente nessa altura que o olhar torna-se

realmente penetrado. Ele deixa de ser como o olhar da amante que diante do olhar do amante eleva

1Walter Benjamin (1892-1940) filósofo ligado a Escola de Frankfurt e a Teoria crítica da sociedade capitalista. Dentre seus estudos destaca-se o projeto inacabado sobre a modernidade, que traria na interpretação da poesia de Charles Baudelaire um exponente da sua crítica materialista, despojados também nas suas Teses sobre o conceito de história (1940). A questão da aura atravessa alguns textos materialistas do filosofo. Na discussão sobre os eventos da sociedade capitalista moderna o autor apresenta a sua visão crítica sobre a História. 2Mestranda do Mestrado Acadêmico em Filosofia da UECE (CMAF/UECE) e Membro do Grupo Estudos Benjaminianos do Grupo de Pesquisa em Dialética e Teoria Crítica da UECE no projeto, Mercadoria e cultura: A aparência estética no Livro das Passagens de Walter Benjamin. Contato: [email protected]

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os olhos; ele começa a assemelhar-se mais ao olhar pelo qual o menosprezado responde ao olhar do

denegridor, o oprimido ao olhar do opressor. Deste olhar, toda a distância é suprimida; é o olhar

daquele que despertou de todo sonho, tanto noturnos como diurnos. Tal disposição do olhar pode

em certas circunstâncias aparecer massivamente. Ela surge quando a tensão entre classes excedeu

um certo grau. {Consequentemente, para os que pertencem a uma classe, o olhar daqueles que

pertencem a uma classe inimiga ainda é útil, até mesmo encantador, mas ser olhado pela primeira é

sentido pela última como estranho, até mesmo prejudicial. Assim se explica que estamos dispostos

a combater prontamente o olhar do inimigo de classe;} esta disposição é acima de tudo ameaçadora

da parte que está em maioria. Chegamos a uma antinomia. As condições nas quais vive a maioria de

explorados afastam-se sempre mais dessas que são habituais para a minoria de exploradores,

mesmo que elas sejam apenas imaginadas. {A contradição destes ultimo consiste} Quanto mais o

interesse destes últimos em controlar os primeiro aumenta, mais terá de mal à ser satisfeito. Já

desde muito tempo, o proletariado no trabalho dificilmente teve a oportunidade de ver aqueles que

se beneficiam do seu trabalho. Os olhares que esperam estes, em resposta a seus olhares

inquisidores, ameaçam sempre ser mais hostis. Em tais condições, a possibilidade de estudar com

toda a tranquilidade os que pertencem as classes inferiores sem por sua parte a ser estudada,

reverte-se da mais alta importância. Uma técnica que torna isso possível, mesmo se usada para os

fins mais diversos, tem algo de incrivelmente reconfortante. Ela pode à longo prazo mascarar até

que ponto a situação tornou-se perigosa no interior da sociedade humana. Sem o filme, sentiríamos

em cheio, de modo insuportável, o declínio da aura.

Qu’est-ce que l’aura?

Walter Benjamin

Trois feuillets de 18,5 x 11 cm détachés d'un bloc publicitaire. Chaque feuillet porte, en haut à

gauche, le symbole de l'eau minérale San Pellegrino. Benjamin s'est peut-être procuré ce bloc lors de son

séjour à San Remo pendant l'été 1937. Sur la marge supérieure du premier feuillet, Benjamin a noté:

"Regard dans le dos / rencontre des regards / lever les yeux, répondre à un regard". La réflexion sur l'aura

contenue dans ce texte sera reprise, y compris textuellement pour partie, dans le travail sur Baudelaire.

L'expérience qu'on a de l'aura s'explique par le report, sur la relation entre la nature et

l'homme, d'une forme de réaction courante dans la société. Celui qui est regardé ou se croit regardé

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{lève les yeux} répond par un regard. Faire l'expérience d'um phénomène ou d'un être, c'est se rendre

compte de sa faculté de jeter un regard {de répondre à un regard}. Cette faculté est pleinement

poétique. Un homme, un animal ou un être inanimé vient-il à lever les yeux sous notre regard, il nous

entraîne tout d'abord vers le lointain; son regard rêve, nous attire dans son rêve, L'aura est

l'apparition d'un lointain, aussi proche qu'il puisse être. Les mots eux-mêmes ont leur aura; Kraus l'a

décrite particulièremente bien: " Plus on regarde un mot, plus il répond en regardant de loin".

Autant d'aura dans le monde qu'il y a de rêve en lui. Mais l'oeil éveillé ne perd pas l'art du

regard quand le rêve en lui est éteint. Au contraire, ce n'est qu'alors que le regard devient vraiment

pénétrant. Il cesse de ressembler au regard de l'amante qui sous le regard de l'amant lève les yeux;

il commence à ressembler davantage au regard par lequel le méprisé répond au regard du

contempteur, l'opprimé au regard de l'oppesseur. De ce regard, tout lointain est effacé; c'est le

regard de celui qui s'est éveillé de tout rêve, aussi bien nocturne que diurne. Une telle disposition du

regard peut en certaines circonstances apparaître massivement. Elle surgit lorsque la tension entre

les classes a dépassé un certain degré. {Il en résulte alors que pour ceux qui appartiennent à une

classe, le regard de ceux qui appartiennent à une classe ennemie reste utile, voire charmant, mais

qu'être regardé par la première est ressenti par la dernière comme gênant, voire nuisible. Ainsi se

fait-il qu'on est disposé à contrer promptement le regard de l'ennemi de classe;} cette disposition

est avant tout menaçante de la part de ceux qui sont en majorité. On en arrive à une antinomie. Les

conditions dans lesquelles vit la majorité des exploités s'éloignent toujours plus de celles qui sont

habituelles pour la minorité des exploiteurs, et même si elles ne sont qu'imaginées. {La contradiction

de ces derniers consiste} Plus l'intérêt de ces derniers à contrôler les premiers augment, plus il aura

de mal à être satisfait. Depuis fort longtemps déjà, le prolétariat au travail n'a plus guère l'occasion

de voir ceux qui bénéficient de leur travail. Les regards qui attendent ceux-ci, en réponse à leurs

regards inquisiteurs, menacent d'être toujours plus hostiles. Dans de telles conditions, la possibilité

d'étudier en toute quiétude ceux qui appartiennent aux classes inférieures sans pour sa part être

étudié par elles revêt la plus grande importance. Une technique qui rend cela possible, même si elle

est utilisée à d'autres fins très diverses, a qualque chose d'incroyablement rassurant. Elle peut à long

terme masquer à qual point la situation est devenue dangereuse à l'intérieur de la société humaine.

Sans le film, on ressentirait de plein fouet, de façon insupportable, le déclin de l'aura.

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Referência

BENJAMIN, Walter Qu’est-ce que l’aura? In._____ Baudelaire. Org. AGAMBEM, G.; CHITUSSI, B.;

HÄRLE, C.C. Paris: La fabrique éditions, 2013. I, 2 pp.29-30.