edição nº 4 - florianópolis, 1998

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Revista Brasileira de Literatura Comparada

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ISSN - o 103~963

A Revista Brasileira de Literatura Comparada é uma publicação anual da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic). entidade civil de caráter cultural que congrega professores universitári­os, pesquisadores e estudiosos de Literatura Comparada, fundada em Porto Alegre, em 1986.

DIRETORIA DA ABRALIC - .1996-1998 Presidente: Raul Antelo (UFSC); Vice-Presidente: Maria Lúcia de Barros Camargo (UFSC); Secretária: Tereza Virginia de Almeida (UFSC): 2a Secretária: Susana Scramin (UFSC); Tesoureira: Ana Luiza Andrade (UFSC); 2 a Tesoureira: Cláudia Lima Costa (UFSC)

CONSELHO DA ABRALIC - 1996-1998 Beatriz Resende (UFRJ); Eduardo F. Coutinho (UFRJ); Evelina Sa Hoisel (UFBA); Gilda Neves da Silva Bittencourt (UFRGS); Paulo Sergio Nolasco dos Santos (UFMS); Renato Cordeiro Gomes (PUC­Rio); Suplentes: ~faria Luisa Berwanger da Silva (UFRGS), Vera Lu­cia Romariz de AraúJo (UFAL).

CONSELHO EDITORIAL Benedito Nunes, Bóris Schnaidermann, Dirce Cortes Riedel, Eneida Maria de Souza, Haroldo de Campos, João Alexandre Barbosa, Jona­than Culler, Lisa Block de Behar, Luiz Costa Lima, Marlyse Meyer, Raul Antelo, Silviano Santiago, Sonia Brayner, Tania Franco Carvalhal, Yves Chevrel.

Os conceitos emitidos em artigos assinados são de absoluta e exclusi­va responsabilidade de seus autores.

Abralic - Associação Brasileira de Literatura Comparada Núcleo de Estudos Literários e Culturais - NELIC - Sala 253 Centro de Comunicação e Expressão Universidade Federal de Santa Catarina Campus Universitário - Trindade 88040-000 - Florianópolis/SC E-mail: [email protected] Fax: (048)331-9988 Fone: (048) 331-6602

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©1998. Associação Brasileira de Literatura Comparada. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados, sem permissão por escrito.

ProduçioGráfica Annye Cristiny Tessaro Victor Emmanuel Carlson

Tiragem 1.200 exemplares

R349

CIP~RASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONIE SINDICATO NACIONAL DOS EDlTORES DE LIVRos. RJ

Revista brasileira de literatura comparada. - N. 1 (1991) - Rio de Janeiro: Abralic, 1991-v.

Anual Descrição baseada em: N. 4 (1998) ISSN 0103-6963 1. Literatura Comparada - Periódicos. I. Associação

Brasileira de Literatura Comparada

98--1200 CDD809.005 CDU82.091 (05)

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Sumário

Liminar Raul Antelo

Proj eções de um Debate Wander Melo Miranda

A Teoria em Crise Eneida Maria de Souza

A Ameaça do Lobisomem Silviano Santiago

Cuentos de Verdad y Cuentos de judíos Josefina Ludmer

Os Contextos da Tradição Universal Raul Antelo

La Cultura Invisible: Rubén Dario y el Problema de América Latina

Graciela Montaldo

"Don't interrupt me": The Gender Essay as Conversation and Countercanon

Mary Louise Pratt

Quatro (2+2) Notas sobre o Sublime e a Dessublimação Italo Moriconi

Sobre la Poética de Juan L. Ortiz: una Mirada de Traductos Willian Rowe

Leituras Impertinentes Maria Lucia de Barros Camargo

Saturno Devorador da Modernidade: Imagens/Sensações Ana Luiza Andrade

Ars Potentior Natura: EI Otro Tiziano de Farabeuf

07

1 1

19

31

45

61

75

85

103

11 7

127

147

Alberto Moreiras 1 6 1

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Liminar

Esta edição é dedicada a Antonio Candido em seus 80 anos.

Raul Antelo

Este número da Revista Brasileira de Literatura Comparada pre­tende ser um entres signo, um sinal entre dois tempos, situado além do universal e após o sujeito. Prosseguindo o debate de indeliberada home­nagem ao Fiat modes, pereat ars, de Max Emst, estampado em De­clínio da Arte/Ascensão da Cultura (Florianópolis, março de 1997), e ao mesmo tempo preparando o VI Congresso da ABRALIC, cujo mote, com prudência interrogativa que equipara comparatismo a estudos cul­turais, há de encerrar a gestão catarinense desta associação, a Revista Brasileira de Literatura Comparada reúne, em seu número 4, varia­dos materiais para esse debate. Em suas diferenças e tensões, eles revelam que, como sabemos, nos últimos cinqüenta anos, o modelo dos estudos literários descansou na oposição entre o cânone e seu outro, a cultura popular. O dictum de um crítico de arte, Clement Greenberg, pode aliás sintetizá-lo: vanguarda ou kitsch? Porém, as guerras teóricas dos anos 80 mudaram, radicalmente, o panorama. Com as abordagens desconstrutivas e pós-estruturais, isto é, com o tópico da "morte da literatura", as oposições entre alta e baixa cultura, ruptura e permanên­cia, centro e periferia tomam-se insustentáveis. As guerras teóricas recentes mostram que, em última análise, a literatura comparada é a teoria da guerra e que, ao mudar o cenário e o objeto das lutas (não mais o indivíduo, não mais o valor, não mais a disciplina, não mais a nação) o específico da literatura comparada, nos dias de hoje, é sua passagem ao ato, sua dissolução, sua transgressão, seu movimento ao exterior de si.

Não é fortuito que comparatismo e guerra se vejam assim asso­ciados. A dimensão universal, central ao comparatismo, só se consoli­da, de fato, manu militari, no início do século XX. Porém, esse movi-

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mento de reorganização dos mapas geopolíticos e acadêmicos trouxe consigo uma nova definição do objeto. A arte passa a perseguir uma beleza de choque, convulsiva, que, não raro, se apropria de elementos primitivos para aprofundar" a percepção e aguçar a sensibilidade. Uma vez alcançado, o conceito de universal muda conseqüentemente. A es­tética dadá se assumirá como detentora de muitas nacionalidades si­multâneas ao passo que o surrealismo associará suas intervenções ao universal particularizado (o estalinismo) ou ao universal em transforma­ção constante (o trotskismo). Todavia, após as análises frankfurtianas sobre a dialética da modernidade, compreende-se melhor até mesmo aquilo que Adorno ou Horkheimer teriam dificuldade em aceitar, isto é, que um saber sem ilusão é uma pura ilusão. Não existe mito puro, nos diz, aliás, Michel Serres, a não ser o saber puro de todo mito. Fundem­se aí, em conseqüência, a poesia e o mito, o cânone e seu outro (Paso­lini, Arguedas, tantos mais), dimensões que, para serem analisadas, pas­sam a requerer novos conceitos operacionais, tais como o sagrado e o profano, o heterogêneo e o homogêneo. Aquilo que se apresenta irre­dutível a toda assimilação (o assassino, o louco, o poeta maldito) define­se como heterogêneo. Narra-se nas vidas infames de Foucault e pra­tica-se para além dos marcos da profissão e da disciplina. Por que deveriamos ser probos se Marx viveu de bolsas, Nietzsche ou Kierke­gaard se recusaram a atender ao bem comum, Blanqui ou Wilde foram confmados a uma cela e Maiakovski ou Benjamin encontraram a via ao exterior no suicídio? Contra a economia do dom, heterogênea, abre-se, pelo contrário, em todos esses casos, como pano de fundo, a sociedade homogênea, de intercâmbio e acumulação, para a qual toda a heteroge­neidade se transforma em subversão.

Tais princípios de heterogeneidade (postulados por Bataille e Leiris, retomados pelo estruturalismo francês de Tel Quel e o pós-estruturalis­mo norte-americano de October, ou ainda por nossos Hélio Oiticica ou Lygia Clark) arrancam a arte do isolamento autoconfiante e da satisfa­ção indulgente. A literatura não é, "não pode ser, uma reles carta de burguesia ou distinção. A literatura situa-se, portanto, para além de uma simples recondução, populista e redistributiva, dos bens simbólicos mas, ao mesmo tempo, posta-se, ainda, para além do refúgio onde se acoberta e monopoliza toda distinção social.

A literatura comparada depende, visceralmente, do desenvolvi­mento de lutas mais amplas daí que o fim da guerra fria em 1989 tenha ferido seu estatuto universalista e afete, em conseqüência, o estudo da arte e da literatura. A pax americana que se segue às conspirações de 1950-80 apresenta, com efeito, um novo avatar da guerra: a luta por megafusões.

Tomando nossa região como contexto, creio poder aventar uma primeira onda de luta e guerra, a do Paraguai, que, em cada tradição

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Liminar - 9

nacional envolvida, profissionaliza os exércitos e politiza as forças ar­madas, cunhando até o gentílico regional: barriga-verde. A ela se segue uma segunda guerra ou onda de modernização, protagonizada dessa vez pelo capitão de indústrias (o Venceslau Pietro Pietra, Cicillo Mata­razzo, os Civita) que capitaliza para si, dissolvendo-a, a sociedade pro­duzida pela onda precedente. A primeira onda guerreira declarara uma tríplice aliança, uma lei comum para os países da região. A guerra da modernização industrial cinde-os e, em conseqüência, os separa, esti­mulando a concorrência entre si, porém, eufemizando também a acu­mulação e, para tanto, lança mão do perigo externo e de todos os fan­tasmas do contágio por contato. É a guerra antropofágica (tupy or not tupy) degradada, muitas vezes, a clichê eufórico; é a guerra dos valen­tões suburbanos de Borges ou das transculturações narrativas moder­nistas de Guimarães Rosa. O período pós-ditadura, no entanto, simula ter ultrapassado esses conflitos, harmonizados agora sob uma espécie peculiar de pax latino-americana, o regime de intercâmbios do Mer­cosul. É necessário, porém, mais do que nunca, interpretar o período atual como modulação diferencial da guerra nômade. Trata-se da pas­sagem do mercado de bens para o mercado de capitais (daí as entida­des bancárias e financeiras liderarem o novo processo de megafusões). Como a renda dos investimentos a longo prazo é menor do que o lucro que se obtém com as aplicações a curto prazo, a própria fusão estraté­gica do capital monetário aparece agora subordinada à fusão estratégi­ca do capital fictício. A poesia e o mito, eis a chave dos príncipes da moeda e suas engenharias geopolíticas.

A poesia, nos disse Mallarmé, remunera os defeitos das línguas. Na guerra simbólica, a literatura comparada visa remunerar os defeitos das particularidades. Para tanto, busca ir além do particular regional ou nacional, tendo que lutar agora com a emergência de novos saberes, via de regra, comprometidos com o investimento a curto prazo, empenha­dos eles mesmos em ultrapassar o próprio conceito de universal. São os estudos da cultura, já praticados na Inglaterra pauperizada pelo fim do colonialismo mas globalizados, irreversivelmente, pela nova ordem mundial.

Nas páginas que seguem tentamos reunir um mostruário de tendências a repensar essas questões sob uma particular visão lati­no-americana, certos de que essa região supra-nacional é a primeira maneira de ultrapassar o estatuto colonial e de, ao mesmo tempo, construir um multiculturalismo específico. Confiamos no debate que elas possam suscitar.

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1 Sobre a noção de cam­po, ver GODZICH, Wlad. As literaturas emergentes e o campo da comparatística. Ca­dernos deMestradolLi­teratura, Rio de Janei­ro,nol3,1995,p.24-25. Campo tem aí o sentido de um recorte do saber culturalmente construí­do e submetido às ope­rações do seu aparato, sendo, portanto "condi­ção da possibilidade do desenvolvimento cultu­ra!".Em vistadisso,afrr­ma-se que "o 'campo' da comparatística é o campo." Ver também BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1987.

Projeções de um Debate

Wander Melo Miranda Universidade Federal de Minas Gerais

o campo que descobrimos é o solo a partir do qual o olhar teórico é formado

e, em conseqüência, condicionado. WIad Godzich

o impacto acadêmico do debate sobre os estudos culturais entre nós pode ser medido pelo espaço que esse debate tem alcançado no âmbito da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), a mais importante associação de pesquisadores da área. À primeira vista, o aparato de saber mobilizado pela abertura de outra via de discussão parece redimensionar os limites da interlocução comparativista até a implosão de seus contornos disciplinares, colocando em xeque sua legi­timidade institucional. Mas a perplexidade diante da nova situação, que para muitos se traduz pela perda de identidade do objeto, é indício me­nos de uma crise do que a reafirmação, em termos radicais, de que o objeto da comparatística é o seu campo 1.

A natureza metateórica dos estudos comparados, assim percebi­da, reverte a expectativa de ausência de rigor conceitual e diluição dos parâmetros de avaliação crítica, uma vez que reorienta a perspectiva­ção metodológica a que submete o objeto para o exame das suas condi­ções semióticas e culturais, que são, em última instância, singulares e localizadas. Trata-se de inquirir a formação de valores que daí de­correm, a partir da alteridade que os constitui enquanto valores dife­renciais e que, portanto, anulam qualquer exigência de universalida­de e totalização.

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A compreensão da literatura comparada como "institucionaliza­ção de um saber sobre a diferença"2 promove um deslocamento critico que busca, por um lado, historicizar o conceito, por outro, abstrair o que está muito contextualizado. Tal operação teórica - formadora e condi­cionada, nos termos da epígrafe acima - distancia o comparativismo da compulsão documental e da avaliação unívoca que por vezes circuns­crevem os estudos culturais à esfera de um novo empirismo, embora não deixe de "localizar o estético na constelação mais abrangente dos processos culturais, no sentido antropológico"3.

A questão tem ocupado com certa regularidade a agenda de dis­cussões no âmbito da critica literária no Brasil, em particular, de forma mais sistemática e contínua, nas atividades promovidas pela direção da Abralic e por seus pesquisadores. A partir do 5° congresso da associa­ção, realizado no Rio de Janeiro de 30 de julho a 2 de agosto de 1996, sob a presidência de Eduardo Coutinho, a discussão adquiriu contornos mais nítidos e incisivos, em virtude do próprio tema escolhido para o evento: "Cânones & Contextos". No dizer de Raul Antelo, afirmou-se aí um registro dominante, o "das políticas de representação"4, contra o qual se insurgiu Leyla Perrone-Moisés, com o texto que obteve grande repercussão e igual polêmica dentre os apresentados. O texto com o título de "Que fim levou a crítica literária?", foi publicado no caderno "Mais!" da Folha de S Paulo em 25 de agosto de 1996, alguns dias após o encerramento do congresso, mostrando inusitada sintonia da mídia com a academia.

A indagação presente no artigo de Leyla Perrone resume as preocupações de parte expressiva dos profissionais da área de Litera­tura no Brasil, meio atordoados com a influência dos estudos culturais de linha norte-americana no país, como se o nosso velho e nunca resol­vido problema do "torcicolo cultural" (Roberto Schwarz) retornasse outra vez. O texto dá forma a esse novo desconforto, abrindo o debate sobre a perda de espaço dos "estudos especificamente literários" na academia e seu enfraquecimento diante das novas áreas de poder nas instituições de ensino. Diz a autora:

Não se trata aqui de negar a utilidade e a oportunidade dos "estudos culturais". Trata-se de defender o espaço dos estudos especificamente literários. O "culturalismo" que atinge a área literária, e não apenas ela, ameaça subs­tituir as disciplinas especializadas por um ecletismo des­provido de qualquer rigor na formação do pesquisador e na formulação de conceitos e juizos5•

Mais adiante Leyla Perrone esclarece de que modalidade de juízo se trata: ')uízo reflexivo e não juízo determinante". Esse juízo seria

l ANTELO, Raul. Dis­curso de posse da dire­toria da Abralic. Floria­nópolis: UFSC, 1996. p. 4. (Inédito).

1 YÚDICE, George. De­bates atuais em torno dos Estudos Culturais nos Estados Unidos. Salva­dor' ANPOLLlGT de Li­teratura Comparada, 1997. p. 1. (Inédito).

t ANTELO. op. cit., p. 3.

5 PERRONE-MOISÉS, Leyla. Que fim levou a crítica literária? Folha de S. Paulo, 25 ago. 1996, Mais!, p. 9.

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6 YÚDICE, Op. cit., p. 1.

Projeções de um Debate - 13

constituído por uma elite intelectual, que na melhor tradição moderna da primeira metade do século :XX, é a responsável pelo estabelecimento de padrões de gosto e validade estética - logo, de um cânone de refe­rência, sem o qual não é possível o julgamento crítico. Como argumento definitivo e legitimador da posição defendida, a autora lança mão da aula inaugural de Barthes, em 1977, no Colh!ge de France, chaman­do a atenção para o fato de o teórico francês insistir na "responsa­bilidade da forma".

Não é dificil perceber as razões - epistemológicas e práticas, chamemo-las assim - da reação contra os estudos culturais, se se tem em conta que estes, ao terem como objetivo "o estudo da formação de critérios de valor"6, colocam em xeque a hegemonia dos valores insti­tuídos pela comunidade de letrados, por meio da revisão do cânone por critérios tidos como extra-literários (reivindicações de minorias e de ex­colônias), que não visam abolir o cânone, o que do ponto de vista de Leyla Perrone seria uma incoerência de princípios. Na verdade, o que essa perspectiva crítica não percebe, por defender a manutenção de um espaço disciplinar fechado ao que está além ou fora de suas fronteiras, é a lógica suplementar, no sentido derridiano do termo, que as referidas reivindicações instauram na cena literária e cultural da contemporaneidade.

Desligitimar esse processo, ao situá-lo como a "doxa triunfante" do pós-moderno (sem que se defina com rigor teórico o que se está considerando sob tal rótulo), é insistir num regime de leitura fundado no valor universal construído pela modernidade ocidental, baseado na es­tética da ruptura, na "superstição do novo" (que Baudelaire já criticava na arte moderna), na rejeição in totum da cultura de massa, vista como a bête noire da atualidade. Da mesma forma, ao imputar as transfor­mações sofridas pela literatura e pela arte contemporâneas à necessi­dade de atender a imposições de um mercado transnacional num mun­do globalizado, sem querer (ou querendo), investe-se na manutenção das literaturas nacionais canônicas, a partir do endosso da idéia de na­ção como entidade una e autônoma.

Tais questões reapareceram, de outra perspectiva, na reunião do GT de Literatura Comparada da ANPOLL, realizada em Salvador, de 28 a 30 de setembro de 1997, sobretudo nas discussões realizadas a partir da conferência "Debates atuais em tomo dos Estudos Culturais nos Estados Unidos", proferida por George YÚdice. A conferência res­saltou a emergência dos estudos culturais no final da década de 70 nos Estados Unidos e o olhar auto-reflexivo que distinguia a nova área de conhecimento da crítica cultural anterior, como pode ser observado já no primeiro número de Social Text, através das contribuições dos cola­boradores da revista, identificados à esquerda do espectro ideológico americano e responsáveis pelas mudanças então em curso. Carentes

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de coerência uniformizadora, os estudos culturais manifestam uma ten­são interna, oriunda das várias tendências que abrigam, bem como man­têm relações de proximidade com os estudos subalternos, os estudos minoritários e os pós-coloniais. De qualquer forma, têm como traço determinante o fato de serem "uma série de perspectivas teóricas e críticas que pretendem desconstruir as bases dos critérios nos quais se baseiam os valores sociais"'. Nesse espaço, a literatura e as artes em geral continuam ainda a "fazer-nos experimentar os processos sociais na sua forma, nos seus usos, nos seus conteúdos"8, embora sem o pri­vilégio heurístico mantido até então.

A perspectiva culturalista e antropológica, assumida de modo a eleger a "performance como prática e a performatividade como princí­pio de análise''9, resulta numa sorte de realismo que, conforme salien­tou Raul Antelo na ocasião, não leva em conta a tradição das vanguar­das. Nessa tradição, ainda segundo Antelo, residiria uma alternativa crítica às representações, mais precisamente através da operacionali­zação conceitual e prática do "ready made", entendido como refuncio­nalização de um objeto já existente e que traria em si uma crítica aos processos de legitimação do valor, através da desconstrução de noções como de origem e fundamento, propriedade e universalismo

A abordagem do objeto cultural pelo interesse literário instaura um antagonismo produtivo na relação da literatura comparada com os estudos culturais, podendo ser considerada como uma sorte de estraté­gia de abertura do objeto e de problematização do seu campo (no sen­tido já explicitado). Para tanto, a própria situação institucional de ambas as áreas de estudo no Brasil é favorável. Nem os estudos culturais, nem a literatura comparada constituem departamentos autônomos nas universidades, definem antes programas de pós-graduação ou projetos de pesquisaJO , que transcendem territórios disciplinares muito marcados academicamente, absorvendo profissionais de distintas subáreas de Letras e afins, na sua maioria provenientes do ensino de Teoria da Literatura e de literaturas nacionais.

Tem-se aí um traço diferencial que nos distingue, por exemplo, dos comparatistas europeus, mais propensos a projetar sobre a Améri­ca Latina a marca filológica de autor, fonte e original. Diferente deles, como lembrou Eneida Leal Cunha no debate do GT, a vulgata para nós é outra - F oucauIt, Deleuze, Derrida - e é com os estudos culturais que provêm dessa biblioteca que dialogamos. Noções daí advindas, como as de disseminação, suplemento, diflérance, literatura menor, nos for­necem o referencial teórico para equacionar o que pede estudo na con­temporaneidade - o local e suas relações com o global. Ao contrário das teorias da identidade, um olhar distanciado ou "estranho" sobre o objeto permite articular o local ao debate internacional da atualidade, contextualizando-o nos termos de uma outra perspectiva, distinta do

7 Idem, p. 7.

8 Idem, p. li.

9 Idem, ibidem.

10 No caso dos estudos culturais, deve-se desta­car o Programa Avança­do de Cultura Contem­porânea da UFRJ (PACCIUFRJ). Atual­mente o Programa reali­za diversas modalidades de debate via internet, do qual podem partici­par os que se cadastram na "home page" da Bi­blioteca Virtual de Estu­dos Culturais do PACC.

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11 LIMA, Luiz Costa. O controle do imaginário e a literatura comparada. Cadernos de Mestrado/ Litera tura, Rio de J anei­ro, n0 13, 1995, p. 49.

12 SANTIAGO, Silvia­no. Democratização no Brasil- 1979-1981 (Cul­tura versus Arte). In: ANTELO, Raul et a\. Declínio da Arte/Ascen­são da Cultura. Floria­nópolis: Abralic/Letras Contemporâneas, 1998. p. 11.

Projeções de um Debate - 15

"elo entre a justificação estética e o princípio de nacionalidade"!!, elo próprio à relação comparativista tradicional.

Melhor pensar na metáfora da fronteira. Implícita à literatura comparada, toma-se espaço de travessia, ao mesmo tempo limite e limiar da possibilidade de elaboração da diferença que os estudos cultu­rais vão acentuar nos estudos literários. No caso brasileiro, desde os anos 70, embora sem o rótulo que viria identificar posteriormente tal área de atuação, alguns téoricos e críticos, provenientes de Letras ou de Antropologia, já estavam trabalhando na fronteira entre literatura e cultura. É o que Silviano Santiago demonstra com precisão no Seminá­rio "Declínio da Arte/Ascensão da Cultura", promovido pela Abralic em Florianópolis, em março de 1997. Com o título de "Democratização no Brasil- 1979-1981 (Cultura versus Arte)", a conferência de Silvia­no Santiago parte de uma série de questões que vale a pena reproduzir:

Quando é que a cultura brasileira despe as roupas ne­gras e sombrias da resistência à ditadura militar e se veste com as roupas transparentes e festivas da democratiza­ção? Quando é que a coesão das esquerdas, alcançada na resistência à repressão e à tortura, cede lugar a dife­renças internas significativas? Quando é que a arte bra­sileira deixa de ser literária e sociológica para ter uma dominante cultural e antropológica? Quando é que se rom­pem as muralhas da reflexão crítica que separavam, na modernidade, o erudito do popular e do pop? Quando é que a linguagem espontânea e precária da entrevista ljor­nalística, televisiva, etc) com artistas e intelectuais substi­tui as afirmações coletivas e dogmáticas dos políticos pro­fissionais, para se tornar a forma de comunicação com o novo público?12

Para o equacionamento das respostas, o crítico demarca o período de 1979 a 1981. Detecta aí alguns momentos-chave do que poderia ser chamado de emergência dos estudos culturais no Brasil, retomando o debate das relações entre arte, vida e política, a partir de alguns textos da época. São eles: as entrevistas reunidas em Patrulhas ideológicas (1980) por Heloisa Buarque de Hollanda e Carlos Alberto Messeder; o livro Retrato de época (um estudo sobre a poesia mar­ginal da década de 70) (1981), do mesmo Carlos Alberto; o artigo "O minuto e o milênio ou Por favor, professor, uma década de cada vez", de José Miguel Wisnik, publicado em Anos 70 - Música popular (1979-1980); o estudo de Cláudia Matos Acertei no milhar (samba e malan­dragem no tempo de Getúlio) (1981).

Cada um desses textos contribui, à sua maneira, para a demo-

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cratização das instâncias de produção e recepção da arte e da literatura no Brasil, por meio de uma perspectiva antropológica que cria novos espaços de enunciação, diferentes daqueles constituídos pelas práticas acadêmicas e políticas até então dominantes. Assim como o debate sobre as "patrulhas ideológicas" encerra de vez a hegemonia da es­querda no âmbito artístico-cultural, no campo da literatura a poesia marginal irá relativizar a especificidade do literário. Diz Silviano:

Esvaziar o discurso poético da sua especificidade, liberá­/o do seu componente e/evado e atemporal, desprezando os jogos clássicos da ambigüidade que o diferenciava dos outros discursos, enfim, equipará-lo qualitativamente ao diálogo provocativo sobre o cotidiano, com o fim de uma entrevista passageira, tudo isto corresponde ao gesto me­todológico de apreender o poema no que ele apresenta de mais efêmero. Ou seja, na sua transitividade, na sua comunicabilidade com o próximo que o deseja para tor­ná-lo seu. 13

A função de "mediador cultural" assumida pelo poema fa\orece processos de identificação que têm repercussões mais amplas no ins­tante em que o cotidiano se politizava e a política se cotidianizava, para retomar a famosa constatação de Caetano Veloso. Não é outro o papel do relato de vida dos jovens revolucionários ou ex-exilados, que a aten­ção crítica de Silviano Santiago privilegia em alguns de seus ensaios anteriores, como uma espécie de virada da literatura brasileira, num sutil acerto de contas com as produções do alto modernismo, no mo­mento mesmo em que alguns de seus mais ilustres representantes, como Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava, traziam a público suas memórias, de elevada qualidade artística.

Na esteira dos relatos de vida dos jovens políticos, que o próprio Silviano pasticha sob a forma de interposta pessoa na ficção Em liber­dade (1981), a emergência dos textos autobiográficos das minorias acentua a natureza "antropológica" que a literatura produzida no Brasil vai adquirindo. Em conseqüência, desfaz-se a idéia de uma nação lite­rariamente una e coesa na sua diversidade. que o modernismo de 1922 contribuiu para afirmar, surgindo em seu lugar um espaço fragmentado e disjuntivo na sua heterogeneidade.

Nesse cenário, a que a indústria cultural globalizada se encar­rega de dar uma feição própria, a atribuição da função de mediador ao objeto literário é uma atribuição de valor em que a diferença intra e intercultural joga a cartada decisiva. Na agonística de valores assim instituída, a questão da literatura nacional brasileira, por exemplo, toma uma outra direção, na medida em que o nacional deixa de ser pensado

n Idem. p. 14.

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14 Cf. SANTIAGO, Sil­viano. Vale quanto pesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. p. 39.

Projeções de um Debate - 1 7

como aquilo que permite dar um significado homogêneo ao que é hete­rogêneo. Colocada sob suspeita, a narrativa da nação que sustentava avaliações anteriores deixa de desempenhar o papel legitimador que vinha até então exercendo e que a equação nacional = moderno sinteti­za com precisão.

A aferição da validade político-cultural de uma obra literária bra­sileira - se, no caso, é ainda de todo cabível o gentílico - não depende mais do seu maior ou menor grau de nacionalismo, nem do pagamento de um possível débito contraído com os centros hegemônicos internos e externos. Vale dizer: a diferença que margeia o texto literário e o cons­titui como tal não se define por uma originalidade intransferível, mas é antes a marca da retomada intermitente de uma cultura por outra. Tra­ta-se, de certa forma, de pensar o texto "fora" da literatura, realizando uma operação desconstrutora que, para chegar ao seu fini., deve aban­donar a especificidade literária imposta de antemão ao objeto por uma comunidade interpretativa dada ou sua reificação por determinados re­gimes centralizadores de leitura.

A dinâmica desse processo supõe que a crítica abandone de vez sua postura ratificadora de padrões universalistas de avaliação e equa­cione teoricamente suas próprias condições de possibilidade frente às singularidades históricas. Se a globalização libera as identidades locais do peso da cultura nacional, o poder residual desta última impede que aquelas sejam fetichizadas, abrindo um novo espaço para a avaliação da cultura outra sem deslegitimar a heterogeneidade que a toma ir­redutível. A globalização resulta, portanto, numa questão de escala ou de comparação, que amplia o horizonte de expectativas do leitor, bem como o espaço cultural e disciplinar da relação comparatista.

Como um antropólogo que não precisa deixar seu país, para lem­brar aqui outra formulação de Silviano Santiago l 4, o crítico contempo­râneo anula a face endógena do intercâmbio entre textos e culturas, com um pé cá e outro lá: dentro e fora de espaços geográficos e disci­plinares. Essa postura lhe permite problematizar o local na sua relação com o global, mais interessado no hiato inerente a uma visão duplamen­te próxima e distanciada do objeto -literário, artístico, cultural- do que nas certezas a que levam as teorias da identidade. É a partir daí que tem início a possibilidade de constituição de um pensamento critico so­bre a literatura na atualidade. É esse debate que o 6° congresso da Abralic, a ter lugar em agosto de 1998 em Florianópolis, continua a propor sob a forma da indagação que o sintetiza - "Literatura Compa­rada = Estudos Culturais?" - e que deixa ainda em aberto a questão que buscamos pontuar.

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A Teoria em Crise

Eneida Maria de Souza Universidade Federal de Minas Gerais

o debate que hoje começa a movimentar a comunidade universitária se baseia na anl1ga ruscussão sobre os efeitos que determinadas teorias estrangeiras prO\ ocam no campo da crítica literária, considerando-se esta como um do,s discursos que ultimamente tem se destacado no inte­rior das Ciências Humanas. Nada mais saudável do que essa abertura ao debate. no qual intelectuais se vêem na obrigação de se posiciona­rem frente a tais questões, no lugar de preferirem continuar apáticos no seu gabinete, reservando-se o direito de expressão apenas ao ambiente da sala de aula. As inúmeras oportunidades oferecidas para o avanço das discussões não se restringem aos encontros acadêmicos, à siste­matização de pesquisas realizada por grupos interdisciplinares, às ses­sões de defesa de teses ou aos grandes congressos internacionais, mas às publicações veiculadas por revistas especializadas, livros e, princi­palmente, pela atuação do intelectual nos lugares aos quais é convidado a se manifestar, incluindo-se aí os meios de comunicação de massa. A recente inclinação de conjugar o saber produzido por especialistas com sua divulgação mais popularizada traduz os diferentes lugares por onde passa atualmente o conhecimento, exigindo-se, na realidade, a revisão de antigos preconceitos relativos à separação entre cultura erudita. po­pular e de massa.

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A crítica literária no Brasil, por sua vez experiente dos caminhos percorridos, tem se apresentado em diversos cenários de elocução, que vão desde a fase da crítica de rodapé dos anos 30 aos 50, até o ambien­te universitário, onde se desenvolve um estudo mais especializado, com a criação, nos anos 70, de cursos de pós-graduação. A sua presença na mídia é, nos dias atuais, reservada a resenhas e a artigos que muitas vezes ultrapassam o âmbito da crítica literária, constituindo-se, com freqüência, em textos que incrementam o debate intelectual entre nós. Mas, antes de tudo, seria preciso lembrar que não se trata mais de se considerar a literatura na sua condição de obra esteticamente concebi­da, ou de valorizar critérios de literariedade, maS de interpretá-Ia como produto capaz de suscitar questões de ordem teórica ou de problemati­zar temas de interesse atual, sem se restringir a um público específico.

A preocupação de representantes da crítica literária quanto à crise por que passa a disciplina é causada pelas transformações culturais e políticas das últimas décadas, razões pelas quais o problema teórico não se restringe apenas à crítica literária. A crescente diluição das fronteiras disciplinares e dos objetos específicos de estudo provoca discussões mais abrangentes na área das humanidades, abalada pela abertura epistemológica e pelo enfraquecimento de territórios. Estudio­sos brasileiros, acostumados a conviver com a chegada. hoje muito mais rápida, de teorias estrangeiras nos lares acadêmicos. \êem-se em con­flito frente aos caminhos da crítica, uma vez que os estudos culturais de origem anglo-saxônica, e atualmente desenvolvidos nos Estados Uni­dos, estariam ameaçando os estudos literários, corrompendo o objeto de análise e distorcendo a teoria da literatura. A mudança do centro produtor de saberes ligados às Ciências Humanas - a Europa pelos Estados Unidos - constitui um dos maiores fatores da polêmica que atualmente se trava no meio acadêmico, considerando-se que os princí­pios norteadores e desconstrutores da teoria literária se concentra\am. basicamente, na Europa. Antigos inimigos do estruturalismo francês. ao lado de novos defensores da literatura como discurso a ser priorizado frente aos outros, assim como da teoria como forma de controle à inter­disciplinaridade desenfreada, estão novamente alertas contra o "impe­rialismo americano" e os efeitos de sua política cultural globalizada.

A história da teoria literária como construção moderna - os gregos a praticavam, mas não na concepção adquirida no século XX - está vinculada à divulgação européia, nos anos 60, da teoria produzida na Rússia pelos formalistas, herdeiros da revolução científica da lingüísti­ca, desencadeada pelas descobertas de Saussure, além do new cri ti­cism americano. Este conceito moderno da teoria literária teve por ob­jetivo a produção científica do objeto de estudo, abolindo-se a visão historicista, psicológica e biográfica do literário e instaurando o princípio da literariedade como valor. Os desdobramentos dessa corrente for-

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malista nos países ocidentais são por demais conhecidos e continuam, até hoje, a ecoar nos discursos que se voltam para a literatura. O caráter sistemático da teoria, a relação funcionalista entre sistema literário e sistema social desenvolvido por Tinyanov, o valor intrínseco da obra literária como construção de linguagem e a sua diferença relativa ao discurso coloquial receberam tratamento mais sofisticado ao longo do tempo, além de terem sido relidos posteriormente através de várias teorias, tais como as da recepção e do efeito, veiculadas pelos alemães Jauss e W. Iser.

Com o boom teórico trazido pelo estruturalismo a partir dos anos 50, as Ciências Humanas retomam as lições saussurianas e elegem o paradigma lingüístico como articulador dos outros discursos, realizan­do-se, nas várias áreas de saber, o trânsito interdisciplinar na constru­ção dos diferentes objetos de estudo. A antropologia de Lévi-Strauss, a psicanálise de Lacan, a leitura sintomal de Althusser, para citar apenas algumas tendências, contribuem para o diálogo que a crítica literária francesa irá manter com outros campos do saber. Embora a maioria dos críticos respondesse pela fidelidade ao objeto da literatura e à des­crição semiológica e lingüística do literário - em substituição à análise estilística e filológica - o intercâmbio disciplinar foi bastante praticado, destacando-se, entre eles, Roland Barthes e Julia Kristeva, responsá­veis pela abertura do texto literário à análise psicanalítica e à ampliação do conceito de texto, pela introdução da categoria da intertextualidade, de origem bakhtiniana. Teóricos da comunicação de massa, com boa aceitação no meio acadêmico brasileiro, contribuíram, através da abor­dagem semiológica, para a expansão do objeto de estudo da teoria, não mais confinado às obras consagradas pelo cânone ou inserido no rótulo literário. Marcada ou não pelas parcerias discursivas, a teoria literária soube pelo menos preservar, até pouco tempo, um espaço de saber consolidado, com suas regras, correntes, procedimentos analíticos, autores e métodos.

A reação contemporânea assumida pela crítica literária frente aos estudos culturais não se restringe aos seus representantes brasilei­ros, mas se encontra também entre os europeus e os próprios norte­americanos. Manifestam-se inconformados não apenas com a "perigo­sa" diluição do objeto de análise, mas também com a presumida ausên­cia de rigor teórico e sistematização metodológica, que teriam sido mo­tivadas, em grande parte, pelas teorias da multiplicidade, da desconstru­ção e da descontinuidade pós-estruturalista de Gilles Deleuze e Guatta­ri, Jacques Derrida e Michel Foucault, referências importantes para a releitura das questões culturais processada pelos americanos. Mas a grande vilã da história se concentra na figura "informe" da interdiscipli­naridade, praticada, segundo seus detratores, sem a observância de leis ou de controle, a ponto de ser considerada, por K. Anthony Appiah, em

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texto de 1993, "an unstructured post-modem hodge-podge"l. A discussão sobre os estudos culturais, a crítica literária compa­

rada e a teoria literária consistiria, segundo alguns teóricos, na transfor­mação da interdisciplinaridade em um novo gênero (Richard Rorty) ou numa outra teoria (Jonathan Culler), em uma nova disciplina ou pós­disciplina, como a definem os críticos culturais. Sem que esse debate seja suficientemente levado a termo, persistirão as dúvidas e as acusa­ções. Refletir sobre as diversas posições teóricas que tratam do as­sunto é uma das formas de tentar historicÍzar as questões e de entender a causa das desavenças. Caso contrário, a discussão não avança e corre-se o risco de se emitirem opiniões equivocadas por falta de inte­resse em conhecer os lugares de onde estão sendo enunciados os dife­rentes discursos teóricos. A identidade requerida às disciplinas ignora os atuais processos de valorização literária e cultural, nos quais são inseridos critérios que ultrapassam o campo particular de cada discurso.

O embate entre as correntes da crítica que postulam a existên­cia de uma teoria rigorosa, sistemática e os críticos culturais, responde pela necessidade de se manter o controle epistemológico em relação ao objeto de estudo. Entre os partidários dessa idéia, incluem-se os repre­sentantes da teoria construtivista alemã, na figura de S. 1. Schmidt, ou aqueles que acreditam na teoria literária como "uma escola de relativis­mo, não de pluralismo" (A. Compagnon)2. Tal controle poderia ainda impedir que o comparativismo e os estudos culturais se transformas­sem num "vale tudo" (Luiz Costa Lima)3; que a interdisciplinaridade praticada pelos americanos fosse vista por S. J. Schmidt como "instala­ção de um armazém de secos e molhados" (Heidrun Olinto)\ ou que o '''culturalismo' que atinge a área literária, e não apenas ela", não mais ameaçasse "substituir as disciplinas especializadas por um ecletismo desprovido de qualquer rigor na formação do pesquisador e na formula­ção de conceitos e juízos" (Leyla Perrone-Moisés)s.

Uma primeira constatação que se extrai dessas opiniões revela a censura ao ecletismo e à falta de rigor na formulação de conceitos e d~ juízos próprios das tendências contemporâneas, em que se tomam frou­xas as articulações teóricas, passivos os juízos de valor e imparcial a prática analítica, em virtude do pluralismo de posições e de métodos. O que está em jogo, entre as tendências culturais e literárias, não se res­tringe apenas à escolha de obras que participem ou não do cânone literário, mas se relaciona ao caráter regulador da crítica cultural, ao considerar elitista a preferência do estudioso por escritores consagra­dos e tradicionalmente aceitos pela comunidade acadêmica. A reação desses autores denuncia a intolerância como atitude pautada pelos mes­mos erros cometidos pela opinião elitista diante da literatura, reservan­do à crítica o direito de escolher os autores "brancos e ocidentais" como objeto de culto e de análise. Não se trata, no entanto, apenas da

J APPIAH, K. An­thony. Geists stories. In: BERHEIMER, Charles. (Ed.) Compara tive Life­rature in the age of mul­ticulturalism. Baltimore: John Hopkins Univer­sity Press, 1995. p. 57.

~ COMPAGNON, An­toine. Le démon de la lhéorie: littérature et seus comnllln. Paris: Seuil. 1998. P 282.

J LIMA. Luiz Costa. O comparativismo hoje. Congresso ABRALIC, 5,1996. In: Anais ... Rio de Janeiro: UFRJ, 1997, p. 81-84.

• OLINTO, Heidrun Krieger. In teresses e paixões: histórias de li­teratura. In: OLINTO, Heidrun Krieger. (Org.). Hislórias de literatura: as novas teorias ale­mãs. São Paulo: Ática, 1996. p. 33.

S MOISÉS, Leyla Per­rone. A crítica literária hoje. Congresso ABRA­LIC, 5, 1996. Anais ... Rio de Janeiro, UFRJ, 1997, p.6.

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6 ELLIS, John M. Lite­rature lost: social agen­das and lhe corruption ofhumanities. Yale: Yale University Press, 1997. p. 201.

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liberdade de escolha e da conservação do gosto estético: as razões que motivam a defesa da literatura como manifestação singular e acima do senso comum, como se sabe, dependem de critérios consensuais de determinada classe social, guiados pela relação entre cultura e poder, cultura e prestígio, critérios esses tributários da concepção mediatizada e institucionalizada da literatura. Por trás da discussão do gosto estético se acham inseridos problemas mais substantivos quanto à diferença de classe, à democratização da cultura e à perda do privilégio de um saber que pertencia a poucos.

Reações dessa natureza são apresentadas por um professor de literatura alemã, John M. Ellis, da Universidade da Califórnia, no livro Literature lost: social agendas and the corruption of the humaniti­es, ao discutir tanto o politicamente correto quanto a falência da teoria como conseqüências graves dos estudos culturais. A causa imediata dessa falência teórica recai na filosofia francesa dos anos 70, represen­tada por Derrida, Foucault, entre outros. Sintomaticamente, uma nova elite pensante é vista pelo autor como detentora de saberes que se caracterizam pela sofisticação e pelo esquecimento da tradição, fazen­do tabula rasa de tudo o que havia sido realizado no passado. Dotada de linguagem própria, essa elite intelectual afastaria os que não se enqua­drariam nos novos conceitos e expressões do momento, criando-se uma situação de exclusão "politicamente incorreta", diria eu. A ameaça teóri­ca e a formação de grupos de resistência existem, como se vê, na própria academia americana. As palavras do ensaísta são provocadoras:

The new elite shared a set of assumptions but not a pen­chant for analysis. One recognized members not by their analytical skill but by the standardized quality of their attitudes. Ali went through similar motions to come to similar conc/usions. Theory was not no longer about conformity. Stanley Fish's Doing What Comes Naturally was typical both in its predictable positions and its ignoring the past: in this book, philosophy of science begins with Thomas Kuhn, serious questions about the idea of truth and the positivist theory of language begin with Derrida, jurisprudence begins with the radical Criticai Legal Studies movement, and cultural relativism is a bright new idea without any previous history6.

Destruir o conceito de origem seria uma das maiores acusações às teorias culturalistas, visto que o que se critica em Stanley Fish é justamente o esquecimento dos verdadeiros precursores teóricos, pela valorização de pensadores contemporâneos. O autor recusa ainda o alto nível de estandardização do saber, na medida em que se abole o

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poder analítico e se privilegia a generalização. Guardadas as devidas ressalvas, toma-se evidente que a sua posição conservadora represen­ta uma grande parcela do imaginário crítico da atualidade, na qual a tradição funciona como lugar de reserva utópica e as possíveis mudan­ças como empecilho ideológico para a preservação de cargos institu­cionais. Reconhecer a tradição como força e não como modelo seria uma das formas de melhor lidar com a proposta desconstrutora de Jac­ques Derrida, por exemplo.

A posição de Luiz Costa Lima em, "O comparativismo hoje", retoma algumas questões do livro de Ellis, com enfoque na urgência de se pensar em categorias capazes de tomar comparáveis os objetos. sem cair em preconceitos ligados a escolhas de ordem elitista ou de outra ordem. Afasta-se do crítico norte-americano ao se colocar contra a atual desconfiança da crítica comparativista em relação à teoria, \ista como responsável pelo universalismo interpretativo. Parte em defesa de uma revisão do próprio conceito de universal, retirando-lhe uma ftm­ção apriorística na formação de saberes, reforçando, paradoxalmente, a impossibilidade de se conceber qualquer conceito sem a sua vertente universalista - romper com esses princípios seria acreditar na formula­ção de teorias desprovidas de propriedades verificáveis. Destituir o objeto de sua homogeneidade interna seria interpretá-lo na sua ausência de propriedade o que o impediria de ser comparável a outro. O valor de cada objeto deve ser determinado como condição indispensável para se tentar construir um solo de discursos que mantenham propriedades afins e distintas, comparáveis entre si.

No momento presente, contemporâneo às acusações di­rigidas ao falso moralismo que a teoria teria provocado. o comparativismo torna-se então o quê? Pode-se defim-lo como o lugar das perplexidades ou como uma área ao vale tudo. De perplexidades: ante a suspeita que recai sobre a teoria como filhote do imperialismo(l) ou rebento do machismo(l) ou da suposta superioridade dos brancos I )

de que modo se poderá exercer a comparação? Pois. como se poderá comparar isso com aquilo sem que se tenha pre­viamente identificado, justificado e legitimado ao menos uma categoria capaz de tornar comparáveis os objetos... comparados? À medida que a perplexidade não é dobra­da, o comparativismo se torna então infestado pelo vale­tudo. Por que diabo não compararíamos os poemas de Rigoberta Manchu com os de Safo?! Não bastaria como categoria legitimadora a heterodoxia política de uma e a sexual da outra? Ou porque não fazer o mesmo com a famigerada Tony Morrison e a hoje desconhecida Caroli-

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, LIMA, Luiz Costa. O comparati vismo hoje. Congresso ABRA­UC, 5. Rio de Janeiro, UFRJ, 1996. Anais ... Rio de Janeiro, UFRJ, 1997. p. 83.

I Cf. OLINTO, Hei­drun Krieger. Interes­ses e paixões: históri­as de literatura. In: Histórias de literatu­ras. op. Cit., p. 30.

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na Maria de Jesus? Não seria dificil descobrir um metro comum; ante o receio de acusações de elitismo, que comu­nidade acadêmica protestaria?7

Na hipótese de se ter, na crítica contemporânea, posições con­trárias à teoria, o que resultaria no "vale tudo" e na perda de critérios de valorização dos objetos em análise, cabe ao pesquisador se munir de categorias que propiciem a identificação do objeto e a particularização das associações feitas. Inexistindo a prática do pensamento como con­dição para que todo intelectual se posicione diante do objeto de estudo, cairia por terra a tentativa de conhecimento da literatura e de seus inúmeros avatares. A preocupação do crítico é pelo resgate da prática teórica como forma de controle do "armazém de secos e molhados" em que se transformou a operação interdisciplinar.

Sem concordar com o que Costa Lima propõe, principalmente quanto ao clima do "vale tudo" e da premência em delimitar o campo da teoria literária como saída para o caos, acredito na necessidade de se­rem consideradas posições teóricas que funcionem como articuladoras das proposições de análise e como elementos dignos de operar o distan­ciamento crítico. Nesse sentido, deverão ser respeitadas as pluralida­des interpretativas, levando-se em conta o inumerável conjunto de no­vos objetos até pouco tempo desconsiderados pela crítica, como os es­tudos das minorias, dos textos paraliterários, da correspondência, do memorialismo, e assim por diante.

No artigo introdutório à coletânea Histórias de literatura, Hei­drun Olinto descreve, com extrema precisão, a tendência das novas teorias alemãs frente às teorias culturais desenvolvidas nos Estados Unidos, principalmente a partir do advento das idéias européias após os acontecimentos do pós-guerra. Reconhecendo a "fraca herança filosó­fica" que caracterizava, na época, o espaço acadêmico americano, a ensaísta constata, na atualidade, a proliferação de perspectivas inter­disciplinares e a tendência a privilegiar "molduras teóricas flexíveis abran­gentes". Essa tendência, tributária da teoria da multiplicidade, foi em parte instaurada pelo livro de Deleuze e Guattari, Mil/e plateaux, de 1980, no qual se constrói a imagem do rizoma, responsável por uma "visão paradigmática do pensamento atual", ao serem postulados espa­ços de dimensões e direções múltiplas e aleatórias8 .

Diante da internacionalização c:tos bens culturais, do avanço in­discriminado da interdisciplinaridade e do surgimento de um vocabulá­rio teórico "miscigenado, de origem incerta", o discurso crítico contem­porâneo torna-se, segundo a ensaísta, pulverizado, por ter se transfor­mado em ')ogo metafórico belo e vago". Na realidade, o que se propõe é a prática de uma interdisciplinaridade séria, através da posição de Siegfried J. Schmidt, ao construir uma ciência da literatura empírica,

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com base em teorias sistêmicas complexas. A resposta à frouxidão epistemológica das teorias pós-modernas é dada por Schmidt através da noção de teoria sistêmica, em que "os sistemas literários são organi­zados hierárquica e holisticamente''9. Para a autora, não há dúvida de que a construção de paradigmas consistentes e definidos teoricamente constitui a maneira mais plausível de controle do discurso assistemáti­co, rizomático e aberto dos estudos literários na atualidade. Heidrun Olinto termina o ensaio denunciando o caráter homogeneizador dos atuais modelos teóricos e parte em defesa da historicização dos conceitos - o que não deixa de ser uma das grandes conquistas das teorias contem­porâneas - e do rigor científico do discurso crítico - que merece res­salvas de várias ordens:

Atualmente existe uma disposição ínfima em aceitar mode­los globaiS homogeneizados que oferecem uma visão coerente e integrada do lugar onde obras literárias ocu­pam espaços inconfondiveis. Para muitos. histórias da li­teratura e, especialmente, conceitos de época perderam sentido e plausihilidade no momento em que os próprios suportes de sua construção são questionados e despedi­dos. (. .. ). O historiador da literatura devia articular teo­rias e não brincar com metáforas, ainda que sejam belas e fascinantes, nômadas e rizomáticas 1o .

Antoine Compagnon, em seu mais recente livro, Le démon de la théorie, realiza um balanço minucioso da teoria literária francesa no período estruturalista - do final da década de 60 à de 70 - com o intuito de eleger essa época como marco de uma significativa tendência teóri­ca. Na introdução, sugestivamente intitulada "Que reste-t-il de nos amours?", um clima de nostalgia é facilmente detectado, considçrando­se que a efervescência cultural desses anos não se faz mais sentir na França - como, aliás, em todo o resto do mundo. Mas a força perma­nente inscrita no ideal teórico transparece nas palavras do autor. que acredita desempenhar a teoria o papel de combate ao senso comum. o que lhe dá, na verdade, o seu verdadeiro sentido. Ao concluir o balan­ço da teoria literária na França, admite que suas reflexões. longe de conduzirem a uma desilusão teórica, refletem mais uma dú\"ida. o que motiva a contínua vigilância crítica - a única teoria conseqüente é aquela que aceita questionar a si própria e colocar em causa o seu próprio discurso I I .

O final do livro registra, contudo, um alerta diante dos equívocos provocados pela tendência atual da teoria pelos ecletismos e pela plu­ralidade metodológica. Na confecção da história da teoria literária, o

9 SCHMIDT, Siegfried, J. Sobre a escrita de histórias da literatura. In: OLINTO, Heidrun Krieger. Histórias de literatura. op. Cit., p. 113.

10 OLINTO, Heidrun Krieger. Interesses e paixões: histórias de li­teratura. Art. cit., p. 42-43.

11 Cf. COMPAGNON, Antoine. Le démon de la théorie. op. Cit., p. 281.

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11 COMPAGNON, An­toine. Le démon de la théorie. op. Cit., p. 281-282.

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autor teve a precaução de apontar as relações entre a teoria literária e a lingüística, nas suas variadas manifestações, sem se deter no diálogo da crítica com outros discursos (o psicanalítico, o antropológico, o social). O objetivo de proceder à revisão da crítica literária francesa teve como princípio a utilização do processo de redução do objeto de pesquisa e a recusa estratégica de ampliá-lo, seguindo o recorte econô­mico do método. Para Compagnon, o conceito de teoria literária estru­turalista se constrói com base no paradigma lingüístico, o que não dimi­nui os seus limites epistemológicos, mas acrescenta um alto grau de rigor e de sistematicidade ao objeto. Os limites são descritos de manei­ra minuciosa e imparcial, notadamente quando se detém na elucidação de uma teoria do texto literário construído com base nos critérios de textualidade e de auto-referencialidade:

La théorie de la littérature, comme toute épistémologie, est une école de relativisme, non de pluralisme, car il n'est pas possible de ne pas choisir. Pour étudier la littérature, il est indispensable de prendre parti, de se décider pour une voie, ear les méthodes ne s'ajoutent pas et l'éclétisme ne mene nulle parto Le pli critique, la eonnaissanee des hypotheses problématiques qui régissent nos démarches sont done vitaux. ( .. .) Je n 'ai done pas plaidé pour une théorie parmi d'autres, ni pour le sens commun, mais pour la critique de toutes les théories, y eompris celle du sens eommun. La perplexité est la seule morale littéraire 12 .

A figura de Barthes funciona como leit-motiv da minuciosa des­crição do autor sobre as noções fundamentais que compõem o campo da literatura e da teoria literária - a literatura, o autor, o mundo, o leitor, o estilo, a história e o valor - por ser um dos responsáveis pela sistema­tização teórica do discurso literário. Por essa razão, Compagnon não deixa de render homenagens ao grande crítico, que se notabilizou, inclu­sive, por romper as barreiras do modelo lingüístico e se entregar a uma prática teórica mais plural e interdisciplinar, embora privilegiasse o dis­curso literário frente aos demais. Pontua, com precisão, as inúmeras inserções de Barthes nos registros literários estudados, tais como a teoria da morte do autor, a valorização do discurso literário pelo seu caráter escriturai, o efeito de real, a transitividade do literário como reforço do aspecto metalingüístico do ficcional e a écrilure como subs­tituta do estilo. São esses alguns exemplos referentes à rica contribui­ção do ensaísta para a "ciência da literatura" e para a constituição de paradigmas que permitiram à teoria ocupar um lugar de destaque no interior das Ciências Humanas.

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A herança francesa não deixa portanto de ser um dos grandes trunfos que a teoria literária carrega, considerando-se que será a partir de sua divulgação que se tornou possível construir um pensamento teó­rico nos centros mais diversificados do mundo. O peso dessa conquista impede às vezes que as tendências contemporâneas da crítica - pautadas pelas descobertas européias e apresentando avanços em relação a elas - sejam aceitas por grande parte da comunidade acadê­mica, como é o caso de Leyla Perrone-Moisés, no texto "A crítica literária hoje", apresentado no 5° Congresso da Abralic. Prevalece aí a mesma preocupação de Compagnon e de Costa Lima quanto ao fato de serem respeitados determinados princípios teóricos com capacidade de impedir o desvario eclético da prática analítica dos estudos culturais, da mesma forma que se postula a retomada de valores estéticos com direi­tos de restituir ao literário o que não lhe é mais atribuído. A grande inimiga continua sendo a situação cultural e política da sociedade con­temporânea, dominada pela desconstrução e o multiculturalismo, con­ceitos que motivam o questionamento do modelo moderno e racionalis­ta de pensamento. A defesa de cânones de referência. enquanto condi­ção para serem retrabalhados os novos preceitos literários não consti­tui, a meu ver, nenhum empecilho para a convivência do saber moderno com o pós-moderno.

Não se trata, tampouco, de transformar o debate em discussão partidária, em que o binarismo funcione como argumento de exclusão, colocando a teoria contra os estudos culturais ou contra a ausência de teoria, a alta literatura contra as demais manifestações paraliterárias, o elitismo contra o populismo, e assim por diante. A defesa de uma teoria que poderia se impor como única e exclusiva não se sustenta mais no atual espaço acadêmico, pela natureza plural das tendências críticas. Se a sociologia atua como disciplina que dialoga com a teoria construti­vista de Schmidt, a filosofia, com os princípios teóricos de Luiz Costa Lima e a semiologia, com as posições de Leyla Perrone-Moisés e de Antoine Compagnon, outros campos de saber poderão continuar a man­ter o diálogo com os estudos literários e culturais. O perigo é acreditar que a verdade se define pela exclusividade e singularidade desta ou daquela disciplina.

Se as fronteiras disciplinares não mais se sustentam em tennos absolutos, a defesa de posições radicais só irão comprovar a dificulda­de de se conviver com os lugares indefinidos do próprio saber contem­porâneo. O conceito de indefinição, longe de significar a circulação caótica e irracional do conhecimento, aponta a necessidade de se pen­sar na terceira alternativa fornecida por Richard Rorty e por Jonathan Culler, ao postularem a substituição da matriz disciplinar por um novo gênero e uma nova teoria. A interdisciplinaridade, de vilã da história poderia receber tratamento mais condizente com sua força de aglu-

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tinação de diferenças e de pulverização dos limites fechados dos campos teóricos.

Infelizmente, toma-se tarefa impossível conservar, na atualida­de, posições radicais contra os desmandos da teoria e o descontrole dos paradigmas de referência. O mundo mudou, nos últimos dez anos, de forma assustadora (para o bem ou para o mai), e por que motivo as­concepções artísticas, teóricas e políticas não deveriam também trocar o caminho tranqüilizador do reconhecimento pelo do saber sempre em processo? Enfrentar esse desafio é uma das formas de continuar a mover o debate teórico, para que este não se transforme em con­senso de grupos ou na apatia acadêmica, provocada por um certo tipo de mal-estar, que não incita a curiosidade, mas, ao contrário, alimenta o conservadorismo.

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A Ameaça do Lobisomem

Silviano Santiago

Homenagem a Borges, dez anos após a sua morte

1. A China é aqui

Ainda nos lembramos das páginas introdutórias de As Palavras e as Coisas (1966), livro em que o filósofo francês Michel Foucault desen­tranha da obra ficcional de Jorge Luis Borges uma classificação cientí­fica dos animais existentes no mundo, tal como ela se encontra relatada numa enciclopédia chinesa. No texto de Borges se lê que "os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) do­mesticados, d) leitões, e) sereias, t) fabulosos, g) cães em liberdade", e assim por diante. Aos olhos do francês, a listagem classificatória se apresenta como exótica. Sua origem está fora do Ocidente, na China.

Durante o periodo a que nós, brasileiros, chamamos de Moder­nismo, ao qual Borges por direito pertence, o latino-americano não teria visto na listagem apenas exotismo. Teria se identificado com as extra­ordinárias categorias inventadas pela imaginação fértil do argentino para inventoriar os grupos desencontrados dos animais existentes na terra, e

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a elas, uma por uma, e a eles, um por um, teria prestado reverência. Só se presta tal reverência ao fogo que está numa metáfora que, ao levar a idéia do exotismo americano para além dos limites ocidentais, até a China milenar, queima o véu que recobre o que nos é familiar desde 1492. A China é o melhor palco metafórico e incendiário para o exotis­mo por excelência deste Outro-do-Ocidente-dentro-do-Ocidente, que é a América Latina. Bárbaro e nosso, escreveu Oswald de Andrade no mais poderoso dos manifestos modernistas, o "Pau Brasil".

Em lugar da reverência ou da identificação, experimentada pelos latino-americanos diante de cada categoria, de cada ser, Michel Fou­cault nos fala, nas páginas introdutórias de As Palavras e as Coisas, do riso, estruturalista e europeu, que lhe inspirou a leitura da enciclopé­dia chinesa inventada por Borges. O riso abala, escreve ele, "todas as superfícies ordenadas e todos os planos que tomam sensata para nós a abundância dos seres". A China de Borges, continua ele, indicia o modo "como o encanto exótico de um outro pensamento [o do latino-america­no achinesado] é o limite do nosso [o do europeu]". De um lado, limita­do pelo "olhar codificado" e, do outro, pelo "conhecimento reflexivo", o filósofo encontra na enciclopédia chinesa de Borges uma "região medi­ana" que liberta a ordem classificatória naquilo que a institui. No espíri­to de Maio de 68, a ordem aprisiona e, por isso, está havendo desordem. A desordem libera e, por isso, tem-se de estabelecer uma tipologia exóti­ca para apreendê-la, de preferência chinesa, com tonalidades cubanas.

Ao contrário de Foucault, o escritor modernista latino-americano teria se detido diante de cada uma das figuras arroladas pela enciclopé­dia chinesa a fim de analisar a sua peculiaridade monstruosa que, nos limites asiáticos inventados por Borges, iriam identificando a peculia­ridade monstruosa dos seres que os descobridores e colonizadores in­ventaram para descrever exótica e grotescamente, barrocamente se quiserem, os seres do Novo Mundo. Na monstruosidade dos trópicos (e não nas delícias tropicais) o exotismo borgeano deu ao latino-america­no a forma mais instigante e mais arregimentadora do seu poder bélico na luta contra o racismo hierarquizante do metropolitano vis-à-vls do antigo colono.

Retomando as categorias de Foucault. agora em contexto dife­rente ao de As Palavras e as Coisas, digamos que o "olhar codificado" do europeu nunca se casou com o "conhecimento reflexivo" do latino­americano. Ou melhor: só se casa no hífen Borges-Foucault, momento histórico-revolucionário dos anos 60 em que o olhar europeu, ao ser tomado de riso diante da própria criatura, o Exotismo, descobre que existe entre ele e esse seu Outro uma "região mediana que liberta a ordem no seu ser mesmo". Na literatura latino-americana essa região mediana teve um nome. Dê-se a ele a alcunha de "realismo fantástico" ou de "real maravilhoso", pouco importa, ambas e outras alcunhas des-

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1 No rastro arqueológi­co de Foucault estaria a ligura extraordinária de Victor Segalen, tal como aparece conceitualmen­te no Essai sur l'Exotis­me. Como diz Gilles Manceron, "il ne s'agit, pour Segalen, d'intégrer à une vision du monde bien européenne des élé­ments de décor venus d'outre-mer, mais de considérer d'autres civi­Iisations en elles-mê­mes, sans les évaluer à la toise des cri teres oc­cidentaux". Pertinente para a nossa discussão é o encontro na China de Segalen com Claudel em 1909. Segalen criti­cava o poeta, dizendo que ele tinha vivido tre­ze anos na China e não sabia uma só palavra de chinês; dizia ainda que nunca fizera abstração da sua cultura e religião. Em carta à esposa, escre­ve Segalen: "Claudel me parle ensuite forte à la lé­gere de I'hindouisme, qu'il me semble ne con­naitre qu'à travers Mi­chelet". Mais pertinen­te ainda seria o estudo contrastivo da presença do citado Claudel e do compositor Darius Mi­Ihaud no Brasil, nos anos de 19l7-18. v., do autor, "A tristeza de um é a alegria do outro", Su­plemento Idéias, Jornal do Brasil, 17 de maio de 1997.

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crevem situações familiares para nós, já que servem para açambarcar a longa História da cultura latino-americana do modo como foi revelada pela escrita ficcional.

Já para o francês Michel Foucault, "a monstruosidade que Bor­ges faz circular na sua enumeração consiste [ ... ] em que o próprio lugar dos encontros nela se acha arruinado. O que é impossível não é a vizi­nhança das coisas, é o próprio lugar em que elas poderiam circunvizi­nhar". A ordem do alfabeto (a,b,c,d ... ), que sempre serviu para ordenar a abundância de seres e animais diferentes, está arruinada. Os latino­americanos sempre vivemos no lugar da desordem nos encontros, nos encontros arruinados, nos escombros catastróficos. Por isso, desde o princípio, tivemos de acatar a vizinhança de guerreiros inesperados, que saem dos mares atlânticos em casas flutuantes, como verdadeiros deu­ses do trovão; tivemos de sofrer como vizinho o peso cultural eurocên­trico, que vem sob o jugo de nova língua, novo código religioso, ambos desestruturantes dos hábitos e comportamentos; tivemos de aprender a conviver com essa presença imposta, extraindo dela o sumo da própria identidade vilipendiada. Essas foram, entre muitas outras, as tarefas latino-americanas na conquista duma região mediana durante o pro­cesso de ocidentalização, região mediana de que a enciclopédia chinesa é o fora tão familiar quanto o dentro.

De que forma Foucault se apropria da "realidade" latino-ame­ricana descrita metaforicamente por Borges? Ao descobrir lá na Fran­ça que a China é aqui na América Latina e acolá, na Ásia I. Ao desco­brir que tudo é familiar.

Sinais precursores dessa descoberta estão na viagem de volta dos produtos culturais colonizados, tema anunciado pelo quadro "De­moiselles d' Avignon", de Picasso. Estão no eurocentrismo fracassado dos anos 60, incapaz de encontrar na tradição cartesiana francesa o instrumental necessário para poder estabelecer uma tipologia que aju­dasse a pensar a desordem ideológica (Che Guevara e Mao Tse-tung, por exemplo) decorrente do fim das guerras coloniais. Estão na emigra­ção maciça das colônias para as metrópoles, questão candente anun­ciada no Velho Mundo quando este, vencido, reinventa o seu Outro sob a forma do racismo no próprio solo nacional, como é o caso paradigmá­ti co dos "pieds-noirs" (argelinos de origem européia) na França. O aqui europeu de Michel FoucauIt é o acolá chinês dos latino-americanos que, por sua vez, é o aqui e agora de todos nós. O velho Ocidente se encontra no seu Outro. Tem como espelho o Outro.

Repensar o solo familiar, tanto a nação européia quanto a história do Mesmo que a constitui, aprontá-lo para uma heterotopia, - eis o legado de Foucault. Escreve Foucault que Borges "retira apenas a mais discreta, mas também a mais insistente das neces­sidades; subtrai o local, o solo mudo onde os seres se podem justa-

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por". Conclui o francês que é impossível "encontrar um lugar co­mum a todas as coisas". Lugar comum - tomemos a expressão nos seus dois sentidos. O primeiro, o histórico-geográfico, a Europa. O segundo, o das "familiaridades de pensamento", para usar a expres­são dele. O Mesmo deixa de ser duplamente lugar comum e, por isso, tudo passa a ser simultaneamente familiar na orgia dos des­centramentos.

Michel Foucault identificou a desordem ideológica francesa (eu­ropéia, mundial) na crise da linguagem, emprestou-lhe um solo arruina­do, por sua vez tomado de empréstimo à imaginação selvagem do ar­gentino achinesado.

O riso francês e estruturalista de Foucault, reverso da reverên­cia modernista nossa e, por isso, a outra face da única moeda corrente no mundo globalizado, acaba por traduzir uma forma de reconhecimen­to por parte do europeu da rica contribuição cultural latino-americana (ou de qualquer outra região colonizada pela Europa) para a compreen­são do estado presente da civilização ocidental. Com a ajuda de Bor­ges, Foucault foi configurando nos seus sucessivos livros o novo e defi­nitivo inimigo dos anos 60, o Mesmo: "a história da ordem das coisas seria a história do Mesmo - daquilo que para uma cultura é algo a um tempo disperso e aparentado, portanto a distinguir por marcas e a reco­lher em identidades".

Concluindo, diremos que a leitura do texto de Borges feita por Michel Foucault, aparentemente original, duplica tanto antigas leituras européias das culturas colonizadas, quanto modernas leituras latino­americanas das culturas colonialistas, e também por isso acaba sendo responsável por uma das mais canônicas leituras do escritor argentino e do período literário (entre nós chamado de Modernismo, repitamos) a que ele pertence.

Ao voltar os olhos em lance vanguardista para o passado colonial da região onde nasceu, transformando-o em manifestação cultural au­têntica, Borges representa o escritor latino-americano. Toma-se expor­tador de exotismo, re-alimentando o esgotamento cultural e artístico do Ocidente europeizado. Esse esgotamento se manifesta, no século XX, pelo desejo de pensar o impensado, limite e graça de toda cultura metro­politana que se quer hegemônica, até mesmo nos seus estertores.

A produção modernista latino-americana e a leitura foucaultiana de Borges têm uma data. Ao caracterizar o extraordinário trabalho dos modernistas brasileiros em texto de 1950, Antonio Candido, em brilhan­te intuição, já tinha desentranhado Foucault na nossa década de 20. Escreveu ele: "As nossas deficiências, supostas ou reais, são reinter­pretadas [pelos modernistas] como superioridades." E acrescentou: "As terríveis ousadias de um Picasso, um Brancusi, um Max Jacob, um Tristan Tzara, eram, no fundo, mais coerentes com a nossa herança

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2 Essas duas metáforas, sabemos, se encontram nos textos jesuítas do século XVI e servem para descrever a "ino­cência" do selvagem bra­sileiro face ao futuro tra­balho da colonização e da catequese. Diz a Car­Ja de Pero Vaz de Cami­nha: "E imprimir-se-á facilmente neles [selva­gens] qualquer cunho que lhe quiserem dar ... " Cunho, informa o dicio­nário, "ferro com gravu­ra, para marcar moedas, medalhas, etc.; a marca impressa por esse fer­ro; uma das faces de cer­tas moedas, na qual se representavam as armas reais".

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cultural do que com a deles." O riso de Tzara, em pleno e distante Dadá, ou o de Michel Foucault, em plena e recente efervescência es­truturalista, é, portanto, mais coerente com a herança cultural coloniza­da do que com a colonialista.

O riso europeu de F oucault, que inverte a cartografia colonialista norte/sul, é despertado pela realidade material latino-americana. Nos­sos autores sempre souberam integrar num solo único, ou seja, atra­vés da linguagem literária e artística, os dois ferozes inimigos inventa­dos pelo etnocentrismo, o Mesmo e o Outro. Leitões, sereias, cães em liberdade e animais pertencentes ao imperador ou desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo, esses seres heteróclitos sempre conviveram familiarmente no mesmo espaço enciclopédico latino-americano.

Essa ocidentalização forçada do Outro pelo Mesmo, onde o den­tro existe para ser tomado e ocupado pelo fora, essa universalização ocidentalizada do Mundo, enfiada definitivamente de fora para dentro e vomitada intermitentemente de dentro para fora, são responsáveis, res­pectivamente, por dois outros textos emblemáticos de Borges, comple­mentares e excludentes. De um lado, a sempre citada biblioteca de Babel (já o nome Babel não reenvia a uma outra e menos disparatada taxinomia chinesa, agora a das línguas humanas?), onde todo o universo nada mais é do que o seu exterior, a sua representação escrita, ordena­da alfabeticamente. Do outro lado, o conto "Funes, o memorioso", onde o mundo desde que é mundo se confunde com o interior provinciano de um homem-enciclopédia, a sua cosmopolita vivência-memória. Fu­nes não esquece um mínimo detalhe que ele percebe, lê ou imagina, por isso é-lhe desnecessária e inútil a escrita. Um erudito sem escrita pró­pria. O narrador do conto nos dá o exemplo revelador: o sistema origi­nal de numeração que ele tinha inventado, "no lo había escrito, porque lo pensado una sola vez ya no podía borrársele".

A memória extraordinária do argentino provinciano só lhe surge quando, ao cair do cavalo, perde totalmente o conhecimento. A memó­ria de Funes se inscreve numa catastrófica "tabula rasa", numa íntima "folha de papel em branco"2. Relata o texto: "AI caer, [Funes - ou será a América Latina?] perdió el conocimiento; cuando lo recobró, el pre­sente era casi intolerable de tan rico y tan nítido, y también las memori­as más antiguas y más triviales". Funes é o único ser humano - compa­rável nisso à biblioteca de Babel - que tem o direito de usar o verbo recordar. Diz o narrador do conto: "Lo recuerdo (yo no tengo derecho a pronunciar ese verbo sagrado, sólo un hombre en la tierra tuvo dere­cho y ese hombre ha muerto) ... " Em contraste às palavras do narrador, leiamos as palavras do personagem, Ireneo Funes: "Más recuerdos lengo yo solo que los que habrán tenido todos los hombres desde que el mundo es mundo".

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Funes tudo lembra (tudo absorve, tudo sabe) e nada transmite. A realidade presente é tão violenta, nítida e íntima para ele, tão personali­zada está na sua deformidade fisica, que não acata qualquer princípio ordenador, venha ele da linguagem escrita, venha ele do ato de pensar. Leiamos outro trecho do conto: "No sólo le costaba comprender que el símbolo genérico perro abarcara tantos individuos dispares de diversos tamaí'íos y diversa forma; le molestaba que el perro de las tres y cator­ce (visto de perfil) tuviera el mismo nombre que el perro de las tres y cuarto (visto de frente)". Funes é o Borges-anti-Borges, já que "era casi incapaz de ideas generales, platónicas" e "pensar es olvidar dife­rencias, es generalizar, abstraer".

Funes é Pierre Ménard, o visível Outro do Mesmo, aquele que, pela escrita da memória, diz que a Europa é aqui na América Latina. Aquele que tudo tem e nada possui. A biblioteca perdura, Funes vive da morte prematura. Morre de uma afluência anormal de sangue no pul­mão. De "congestión pulmonar", diz o conto. A morte prematura pode­ria ter vindo de fora, do tombo que levou quando andava a cavalo; de fora, veio apenas o aleijão. A morte prematura veio de dentro. A aflu­ência anormal do fluido vital interior rouba-lhe o ar, fá-lo desaparecer da face da terra. Resta-nos, como consolo para a perda, a biblioteca de Babel. O Oriente do Ocidente.

2. A Ameaça do Lobisomem

Como dar continuidade a essa leitura de Borges, a essa leitura como guia para a compreensão da atual literatura latino-americana? A continuidade pelo fio condutor Borges não existe. Esta seria uma cons­tatação um pouco simples, mas não simplória, como tentaremos provar. Para que esta nossa fala se alimentasse agora do texto borgeano, teria sido preciso haver neste final de século, do lado nosso, identificação e reverência para com os modernistas e, do lado europeu, riso e apropria­ção para com os latino-americanos. Identificação e reverência, riso e apropriação - essas quatro atitudes, vimos, estão comprometidas com o tempo das vanguardas, com o nosso Modernismo. Representam uma determinada visão da vitoriosa produção cultural latino-americana no século XX, desde o momento histórico em que ela alça vÔO nos anos 20, até o momento da sua consagração nos anos 60, quando espouca o hoom do romance hispano-americano.

Vale também dizer até o momento da sua museificação européia. Todos se recordam da labiríntica ("los senderos se bifurcan") e consa­gradora exposição Jorge Luis Borges realizada no Centre Georges Pom­pidou, de Paris. Os grandes homens não morrem no túmulo, mas na primeira estátua pública. A glória enterra e, por isso, ela é dita (aqui,

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neste texto) póstuma. Não há continuidade. Há solução de continuidade. Mas o texto

de Borges continuará sendo de ajuda, não para que com ele nos identi­fiquemos em reverência, não para que dele se apropriem e riam os iluminados pensadores europeus. Teremos de ler o que foi e permanece recalcado (excluído, marginalizado, assassinado, etc.), tanto no texto de Borges, como no texto modernista latino-americano. Ou seja: aquele elemento, um detalhe apenas, que ameaça o texto borgeano na sua condição de máquina reprodutora, fabricante de produtos originais e canônicos pela universalidade.

Para isso, tomemos como exemplo uma outra enciclopédia de animais. Agora, o Manual de Zoología Fantástica, escrito a quatro mãos, por Borges e Margarita Guerrero, e por muitas outras mãos es­parramadas pelo mundo, aquelas que tomam possível uma coletânea enciclopédica. Detenhamo-nos na leitura do "Prólogo".

O prólogo é uma construção cartográfica típica de Borges. Ele é trabalhado por um grande desdobramento e por desdobramentos meno­res, desdobramentos dentro do desdobramento. O todo compõe um jar­dim - zoológico no caso - de "senderos que se bifurcan" cujo horizonte anunciado é o infinito. O grande desdobramento enuncia e abriga simul­taneamente o jardim zoológico da realidade e o jardim zoológico das mitologias. De um lado, nos diz o texto, a "zoología de Dios" (os animais) e, do outro, a "zoología de los sueõos" (os monstros).

Trabalhemos primeiro com as palavras dedicadas à zoologia de Deus. Elas começam por enunciar um topos clássico da vanguarda. O zoológico real seria o lugar por excelência da criança que existe em cada um de nós. É preciso dar voz a essa nat"veté que descobre o mundo e o reinventa em abusiva enciclopédia. A observação de seres estranhos (não são humanos, não são animais domésticos) numjardim, em lugar de alarmar ou horrorizar a criança, encanta-a. Por isso, ir ao zoológico é uma "diversión infantil" e, por ricochete, uma diversão dos adultos-autores e dos adultos-leitores. Outra bifurcação. Pode-se pen­sar o inverso, continua o prólogo. As crianças, vinte anos depois da visita ao zoológico, adoecem de "neurosis". Como não existe criança que não tenha ido ao zoológico, não há adulto que não seja neurótico. Nova bifurcação no texto. Diz ele agora que a própria idéia de alarme ou horror sentida na primeira visita ao zoológico é falsa, pois o tigre de pano ou o tigre das enciclopédias já tinham preparado a criança para o tigre de carne e osso.

O material bruto do livro está preparado e pronto para duas inter­venções clássicas no universo textual de Borges, sempre saturado de informação erudita. Primeira intervenção. "Platón [ ... ] nos diría que el nino ya ha visto ai tigre, en el mundo anterior de los arquétipos, y que ahora ai verlo lo reconoce". Segunda. Schopenhauer diria que tigres

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e menino são um só, pois ambos são uma única essência, a Vontade. Trabalhemos agora com as pala\Tas dedicadas à "zoología de los

sueõos". Neste grande desdobramento, os seres são todos eles e cada um construídos por... desdobramentos. Ao lado dos tigres e leões do zoológico de Deus, estão as esfinges, grifos e centauros das mitologias. Estes são feitos de dobras de seres que perfazem um novo ser, são todos e cada um "monstruos" (a palavra é recorrente no texto). No centauro, diz o prólogo, se conjugam o cavalo e o homem; no minotau­ro, o touro e o homem. Como vai ser dito no verbete "O centauro", "lo verosímil es conjeturar que el centauro fue una imagen deliberada y no una confusión ignorante". O monstro, novo ser, nada mais é, portanto, do que a combinação (em nada ignorante) de partes de outros seres reais. Uma conclusão se impõe: a própria produção de "monstros" é semelhante à produção do fantástico pelo texto borgeano, este que es­tamos lendo e qualquer outro.

Com os monstros mitológicos, estamos diante de um topos clás­sico de Borges. Nas imagens deliberadas de monstros, as possibilida­des da arte combinatória beiram o infinito. Só não o beirariam, no caso desse manual de zoologia, por tédio ou por nojo do produtor. Portanto, à primeira vista, o zoológico dos monstros, invenção dos homens, seria mais povoado do que o zoológico dos animais, invenção de Deus. Logo o prólogo em evidente e definitivo bom senso corrige a afirmativa an­terior: "nuestros monstruos nacerían muertos, gracias a Dios". Moral: a zoologia dos sonhos, aparentemente mais rica, é mais pobre do que a zoolo­gia de Deus. Prova mais cabal do amor exclusivo e supremo a Deus só existe nas páginas iniciais do Libro dei cielo y dei infimo.

Até este ponto estivemos percorrendo o caminho de uma leitura canônica de Borges. Súbito uma frase final do prólogo, um detalhe, fala de uma ameaça. A ameaça é anunciada e logo exorcizada pelo gesto incisivo de exclusão: "Deliberadamente, excluimos de ese manual las leyendas sobre transformaciones dei ser humano: ellobisón, el werewolf, etc."3. Ou seja: foram excluídos dessa outra enciclopédia os seres que são produto de uma, para usar a expressão de Robert Louis Stevenson na sua famosa novela, "transforming draught".

Estamos fazendo rolar pela mesa da literatura o dado da trans­formação do ser humano no texto de Borges. Está em jogo no proces­so de produção textual não mais a figura do desdobramento do um em dois, ad infinitum, ou do acasalamento do dois em um, ad infinitum, mas a figura da transformação. Transformação, entendamo-nos, é a figura que traduz o puro movimento sem direção fixa, é o movimento do devir outro que é dado, não como o um que é conjunção de dois, a priori morto, mas como "confusión ignorante".

A figura do desdobramento, em Borges, ativa o binarismo de norma e desvio, de saber e ignorância, de Céu e Inferno, de Deus e

J Caberia transcrever aqui uma instrutiva anedota narrada por Claudia Matos ao fi­nal do seu livro Acer­lei 110 milhar (Samba e .lfalandragem no lempo de Gelúlio): "Na conversa que tive com Moreira da Silva, pedi-lhe um esclareci­mento sobre algo que me deixara intrigada num samba que ele ha­via gravado. Tratava­se de um verso impro­visado no breque final, que dizia: 'ôijá me dis­seram até que eu vira­va lobisomem'. Como a ligação do tal lobiso­mem com o resto do sam ba era o bscu ra, embora perceptível, perguntei-lhe: 'Mas afinal, Moreira, o que você diz com essa his­tória de lobisomem? 'N ada, ora. É pra ri­mar, compreende? (cantando:) 'Até mu­dei meu nome ... ôi já me disseram até que eu virava lobisomem ... ' Rima, e cabe bem no tamanho da frase. 'Mas, Moreira, se você pôs essa palavra e não outra qualquer, é por­que tem alguma coisa a ver. Tem uma ligação com o resto, nem que você não perceba, que seja inconsciente. 'E o velho Morengueira, com um risinho de go­zação: ' Bom, ligação lá isso deve ter mesmo. Mas isto ... é o seu tra­balho! Ou não é?'"

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4 O Webster's registra no verbete para/le/: "extending in the same direction and at the same distance apart at every point so as ne­ver to meet, as lines, planes, etc.: in modem non-Euclidian geome­try, such lines and planes are considered to meet at infinity."

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Diabo, ativa a noção de conflito entre norma e desvio, entre saber e ignorância, entre Céu e Inferno, entre Deus e Diabo, etc., optando pela exclusão ao final, ad astra per aspera, do que é dado, ad limine, como desvio. Borges retoma aqui um velho paradoxo popular e místico, dado pelos dicionários4 como pertencente à moderna geometria não-euclidia­na - o que diz que as paralelas se encontram no infinito, paradoxo este, não tenhamos dúvida, que é a garantia da legibilidade do seu texto pelo grande público.

Esse paradoxo está no nosso modernista Murilo Mendes, quando ele afirma, em aforismo, que pelos cinco sentidos também se chega a Deus e está, de maneira bem mais prosaica, no provérbio que diz que todos os caminhos levam a Roma.

Importante assinalar que, ao ativar os pares em guerra, ao ativá­los até o infinito que, como vimos, é recoberto por uma única metáfora vencedora - platônica, schopenhauriana, bíblica ou judaico-cabalística, pouco importa -, Borges empresta ao que julga ser desvio o sentido da bestialidade (e não da animalidade fantástica, pois esta é contemplada pela zoologia, a de Deus e a dos sonhos). Decreta-se assim a impos­sibilidade de que o que é dito como norma se transfigure num devir outro e paralelo, suplementar. Esse devir outro da norma, a ser margi­nalizado e excluído da escrita borgeana, marca sempre a posse do Dia­bo sobre o "ser" e, por isso, O movimento do ser humano em direção ao seu outro precisa ser exorcizado literária e deliberadamente. Não há lugar para o maligno em livro assinado por Borges e companheiros. Desde os anos 80, estamos dizendo à modernidade que ponha o diabo noutro canto.

No nosso Modernismo, o diabo também precisou ser exorcizado, ou assassinado, pelo menos por duas vezes. Um primeiro exemplo. Desde a página inicial de Grande Sertão: Veredas, tem-se de assassinar O

demo que existe nas transformações do bezerro em cachorro, em ser humano. Leiamos as palavras de Riobaldo: "Daí vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser­se viu -; e com máscara de cachorro. Me disseram: eu não quis avistar [00'] Cara de gente, cara de cão: determinaram - era o demo. Povo prascóvio. Mataram." O movimento da transformação, do devir outro, é também a forte presença do Diabo no texto de Guimarães Rosa.

Disso resulta que a encarnação do movimento de transformação se dará na imagem do redemoinho, passageiramente vencedor, é claro. De­pois de duzentas páginas, a imagem do pé-de-vento reaparece no ro­mance, agora descrita em sua concretude. "Redemoinho: o senhor sabe - a briga de ventos. O quando um esbarra com outro, e se enrolam, o doido espetáculo. A poeira subia, a dar que dava no escuro, no alto, o ponto às voltas, folharada, e ramaredo, quebrado, no estalar de pios, assovios, se torcendo turvo, esgarabulhando. Senti meu cavalo como

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meu corpo." Nessa passagem o cavalo é sentido como o próprio corpo do narrador. Não se trata de uma "imagem deliberada" por parte do romancista, ou seja, homem-e-cavalo não representam a invenção do centauro dos sonhos. Pela catálise do redemoinho/Diabo, trata-se de uma "confusão ignorante" - para retomar os ensinamentos do manual de Borges-Guerrero.

Um segundo exemplo. "Lobisomem. Estremeceu com o pensamento. Era como se lhe

gritassem ao ouvido: Assassino! Lobisomem." - eis o que sente o per­sonagem José Amaro no romance Fogo Morto, de Lins do Rego. No universo romanesco do escritor nordestino, os lugares sociais do senhor de engenho e do negro são nitidamente demarcados. Sem lugar preciso fica o homem livre, vivendo de favor nas terras do engenho. Na socie­dade dramatizada por Lins do Rego é ele o personagem passível de viver o movimento de transformação: virar negro, virar senhor. Em Fogo Morto esse lugar móvel é ocupado pelo seleiro José Amaro, que será expulso das terras do coronel Lula. Nem senhor, nem negro, andarilho, lobisomem.

Em noites de lua, o seleiro sai livremente a caminhar pelo campo e, diz o povo, se transforma em lobisomem. A busca de algo além das necessidades diárias - ou seja, a auto-satisfação na comunhão com a natureza adormecida, a liberdade conquistada e a solidão tomada pelo lirismo bucólico - torna José Amaro estranho ao mundo familiar das terras de engenho descritas por Lins do Rego. Pouco a pouco o seleiro vai sendo marginalizado, temido, ridicularizado, escorraçado. O roman­ce historia as varias fases da sua transformação em lobisomem e as respectivas conseqüências.

Ao final do segundo capítulo se lê: "No outro dia corria por toda a parte que o mestre José Amaro estava virando [a partir de agora, os grifos são nossos] lobisomem. Fora encontrado pelo mato, na espreita da hora do diabo; tinham visto sangue de gente na porta dele".

O verbo que o livro mais conjuga para José Amaro é o verbo virar, já que ele nunca é, e se for, será alguém sem identidade definida, ou com identidade a ser definida pelos outros para ser mais justamente marginalizado. Virar nos seus vários sentidos dicionarizados. Virar no sentido de transformar, como neste caso: "Diziam que pelas estradas, pela beira do rio, alta noite o velho virava em bicho perigoso, de unha como faca, de olhos de fogo, atrás da gente para devorar". Também no sentido de desordenar, como no caso do redemoinho roseano, ou neste outro exemplo: "E como [o lobisomem] não encontrava pessoa viva, chupava os animais, matava os cavalos, ia deixando tudo virado com a sua passagem." Ainda no sentido de se sentir incômodo consigo mes­mo: "[José Amaro] Vem como se tivesse um ente dentro dele. Vira na rede, fala só, dá grito no sono." Se transforma em, traz a desordem

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, Não se pode esquecer que o verbo virar, no mundo fortemente se­xualizado de Lins do Rego, comporta um quar­to e sugestivo sentido quando se diz de ser masculino que ele está virando.

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para e, por isso, não se sente bem na própria peles - eis a diabólica presença do lobisomem aos olhos dos familiares e, principalmente, do narrador do romance.

O lobisomem será triplamente excluído em Fogo Morto - das terras pelo senhor do engenho, da comunidade pelo temor religioso do povo e da família pela raiva da mulher. Ele questiona a propriedade rural, o credo religioso e a organização familiar. Pergunta José Amaro: "Por que seria ele para a crença do povo aquele pavor, aquele bicho? O que fizera para merecer isto? [ ... ] E se fosse embora e procurasse outra terra para acabar os seus dias? [ ... ] Tinha receio de sua mulher. Era sua inimiga. Por quê? O que fizera para aquele ódio terrível de Sinhá?" Como arremate, diz a esposa em conversa com a amiga: "Co­madre, eu prefiro a morte a viver mais tempo naquela casa. Uma coisa me diz que ele tem parte com o diabo." Triplamente ameaçador, tripla­mente excluído, resta-lhe a auto-exclusão. Se suicida com a faca de cortar sola, completa o narrador.

Os exemplos seriam inúmeros dessa ligação do verbo virar com o Diabo, também com a série transgressão, sentença, punição, casti­go, exclusão e morte. No Modernismo, não houve lugar de Vida para o ser em transformação entre os seres vivos da zoologia de Deus, entre os seres conjugados e mortos da zoologia dos sonhos. Resta-lhe convi­ver com a dura realidade da transformação, sabendo de antemão que não encontrará como sobreviver a não ser por obra e graça do Diabo.

3. Hyde and Seek: esconde-esconde

Ir ao zoológico, escreveu o casal Borges-Guerrero, era uma "di­versión infantil". Ler a novela The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson, autor que Borges prezava de­mais, como está no prefácio de Ficciones, pode ser também uma brin­cadeira infantil. Pelo menos é o que se depreende do segundo capítulo da novela, "Em busca do sr. Hyde", onde o advogado Utterson, devida­mente alertado pelo amigo e companheiro de conversas, Endfield, co­meça a se interessar pelo novo e desconhecido amigo do médico e também companheiro de prosa, o dr. Jekyll. Ali se lê: "If he be Mr. Hyde," he had thought, "I shall be Mr. Seek."

Esse trocadilho, fazendo o nome próprio virar verbo e o verbo virar nome próprio, é intraduzível, como, aliás, era intraduzível o título original da novela, daí a solução oportunista que acabou pegando nas edições do mundo latino: O Médico e o Monstro; dizíanlOs, esse troca­dilho é intraduzível pois tanto remete para o caráter escondido, noturno e secreto, da personalidade do profissional da medicina, quanto para o caráter detetivesco, legalista, perverso e voyeur, do advogado. O tro-

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cadilho deixa de ser intraduzÍvel no momento em que se descobre que a combinação de palavras é o nome de um jogo infantil clássico, "h ide­and-seek", conhecido entre nós como "esconde-esconde". '"Hide-and­seek" é, informa o Webster's, "a children's game in which some players hide and others then try to find them". Uma outra "diversión infantil".

Não se trata aqui de analisar uma vez mais, e objetivamente, esta famosa novela de Stevenson, mesmo porque Elaine Showalter recente­mente, no livro Anarquia Sexual, fez um brilhante retrospecto da críti­ca stevensoniana e, ao mesmo tempo, avançou uma leitura original que também serve para descrever, contrastivamente, o ethos homos­sexual do fim do século passado com o do final deste6 . Sua leitura, é bom que se diga, coagula o movimento do texto stevensoniano, o movimento dos personagens na homossexualidade latente, na medi­da em que se vale, constantemente, de referências a casos reais, tanto no campo propriamente jornalístico da época (os chamados (ait-di­vers), quanto no campo das pesquisas psicanalíticas (a histeria mascu­lina). Ela esquece a delicadeza humana, demasiado humana de certos jogos: "the ape-like tricks that he [Mr. Hyde] would play me [DrJekyll], scrawling in my own hand blasphemies on the pages of my books".

Tentaremos, pois, brincar de esconde-esconde com o texto de Stevenson e de Borges, como a criança no Manual de Zoología Fan­tástica brincou com a idéia de jardim zoológico. Conta hoje, para nós, o fato de que a transformação do médico no sr. Hyde é uma exibição a mais de um ser virado na jaula do texto modernista e, nesse sentido, estamos solicitando a ele que ele dê continuidade deliberada ao Ma­nual de Zoología Fantástica, estamos pedindo a ele que encontre ali no livro o lugar de verbete que lhe foi negado, a fim de ajudar-nos a desconstruir a ordem conceitual borgeana, vale dizer, o repouso atual do seu texto em estátua pública.

Em contraponto a esta última frase, diz o texto de Stevenson: "Ab, it's an ill conscience that's such an ennemy to rest!"

Liberto da jaula do texto borgeano e a caminhar pela rua londrina, o sr. Hyde é uma constante ameaça pública, como o lobisomem de Lins do Rego. Atropela uma criança, assassina uma importante figura britâ­nica. Sem a presença mediadora do dr. Jekyll, ele causa terror e curio­sidade, alimenta de vida tanto a existência do dr. Jekyll quanto as exis­tências do grupo de amigos. O próprio dr. Jekyll escreve a respeito do amigo em quem se transforma: "But his love of life is wonderful; I go further: I, who sicken and freeze at the mere thought of him, when I recall the abjection and passion of his attachment, and when I know how he fears my power to cut him offby suicide, I find it in my heart to pityhim".

O primeiro personagem da novela a ver o sr. Hyde é o sr. End­field. Ele o descreve (será que chega a descrevê-lo?) para o amigo

, v.. nesse sentido, o ca­pítulo "0 armário do dr. Jekyll", no livro Anar­quia Sexual (Sexo e Cul­tura no Fin de siecle), de Elaine Showal­ter. Tentaremos neste trabalho discordar da sua leitura da "imagem organizadora" da nove­la. Baseada na interpre­tação de Stephen Hea­th, que diz que "a ima­gem organizadora dessa narrativa está em arrom­bar portas, em aprender o segredo que se escon­de atrás delas", Showal­ter acrescenta: "Os nar­radores do segredo de Jekyll tentam esclarecer o mistério de um outro homem, não com a com­preensão nem com a sua disposição de compar­tilhar um segredo, mas pela força" (Rocco, 1993, p. 151). A nossa interpretação, ao privi­legiar a brincadeira in­fantil que está no troca­dilho, se encaminha para uma leitura menos com­prometida com o esta­belecimento de papéis sexuais nítidos para os personagens, sem o de­sejo portanto de arrom­bar a "verdadeira porta da identidade". Prefere, antes, insistir no caráter brincalhão, competitivo e voyeurístico do ethos homossexual.

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Utterson, insistindo na deformidade fisica, que tanto é um dos traços de Funes, quanto das "confusões ignorantes", e insiste principalmente na incapacidade que sente em apreender o indivíduo pela descrição, não por falta de memória, mas por alguma razão que não chega a exprimir: "I never saw a man 1 so disliked, and yet I scarce know why. He must be deformed somewhere; he gives a strong feeling of deformity, aIthough 1 couldn't specify the point. He's an extraordinary-looking man, and yet I really can name nothing out ofthe way. No, sir; 1 can make no hand of it; 1 can't describe him. And it's not want of memory; for 1 declare I can see him this moment".

O segundo personagem a vê-lo, o advogado Utterson, avança um pouco mais no universo borgeano, conseguindo apreender o indiví­duo por uma série de comparações que servem para introduzir o sr. Hyde, pelo avesso, ou seja, pelo caráter diabólico, no universo místico­platônico de Borges: "God bless me, the man seems hardly hurnan! Something tIoglodyctic, shall we say? or can it be the old story of Dr. Fell? or is it the mere radiance of a foul soul that thus transpires through, and transfigures, its c1ay continent? The last, I think; for, O my poor Old Henry Jekyll, if ever I read Satan's signature upon a face, it is on the of your new friend!"

Nesse jogo de esconde-esconde calvinista, o sr. Hyde é a prenda escondida que todos cobiçam como se cobiça o "mal" de que, acreditam, estão se desvencilhando, e o jogo infantil se transforma em outra brin­cadeira similar, a do chicotinho queimado. O dr. Jekyll, ao esconder em casa o sr. Hyde, como a um chicotinho queimado, alimenta a curiosida­de perversa dos seus amigos. Vai-lhes soltando pistas: está quente, está esfriando, está quente de novo - como se o jogo (infantil) do homoerotismo, no texto modernista, só se pudesse dar numa espécie de triângulo onde o outro e semelhante é a mediação para o terceiro e diferente, e, por isso, único cobiçado por todos. Esse truque pode acon­tecer, desde que se tenha a coragem de se destruir o duplo e semelhan­te e se intrometer, pela violência, na dança a três, a quatro, etc. Maior do que o mal-estar causado pela estranha figura do sr. Hyde é o causado pela vitória do mal de que falou o texto de Stevenson para os contemporâneos.

A violência, na novela, não é a que ajuda arrombar as portas do armário, do c/oset, como diz Elaine Showalter, mas a que opera uma definitiva reviravolta no mundo calvinista e vitoriano do fim de século. Em lugar de dar forças ao bem como no modelo ficcional modernista, a violência stevensoniana dá forças ao mal que existe no ser humano móvel, passível de ser transformado em algum outro ser extraordinário ("he's an extraordinary looking man"). Um dos amigos e correspon­dentes de Stevenson, A. 1. Symonds, detecta o perigo da teologia às avessas pregada pela novela e lhe escreve, apreensivo, por ocasião da publicação do livro: "You see Iam trembling under the rnagician's wand

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ofyour fancy, and rebelling against it with the scom of a soul that hates to be contaminated \ .. ith the mere picture of victorious evil. Our on1y chance seems to me to be to maintain, against ali appearances, that evil can never in no way be victorious." Tudo se passa assim na novela porque a violência deliberada só está nos vários personagens que saem à procura do sr. Hyde, todos masculinos, todos solteiros7 •

Já o médico, no seu laboratório, chegou à transformação por um produto do acaso. "Los senderos se bifurcan", em Stevenson, não por obra do esforço classificatório e científico, mas por obra e graça do acaso. "That night I had come to the fatal cross roads. Had I approa­ched my discovery in a more noble spirit, had I risk the experiment while under the empire of generous or pious aspirations, and all must have been otherwise, and from these agonies of death and birth, I had come forth an angel instead of a fiend. The drug had no discrimina­ting action; it was neither diabolical nor divine [grifo nosso]". Nem diabólica nem divina, para o médico, a droga não assinala um sentido único, ela não tem um fim pré-determinado pela lógica científica. Ela permite o jogo das permutações até o infinito da vida humana. A droga significa, pois, a própria disponibilidade que existe para o homem em toda encruzilhada da sua vida.

Não tem sido salientada nas leituras da novela de Stevenson, o fato de que o destino dado à vida do médico, a transformação final do médico no sr. Hyde, ou seja, o fato de que o mal (isto é, a coagulação do duplo em um único ser, a negação da transformação) só triunfe porque naquele exato momento - no instante crucial da experiência - circulava no mercado londrino uma droga impura. O sentido da droga é determi­nado pelo mercado das drogas. Confessa aos amigos o dr. Jekyll: "You willlearn from Poole how I have had London ransacked; it was in vain; and I am now persuaded that my first supply [ofsalt] was impure, and that it was that unknown impurity which lent efficacy to the draught" [grifos nossos]. O universo da transformação é o da impureza no mercado londrino. Do momento em que o médico utiliza apenas a pureza dos produtos que são comercializados no mercado, não é mais possível o jogo das transformações.

O movimento de ida-e-volta da metamorfose não é mais possível porque a droga que o mercado passou a oferecer ao médico era pura: "I sent out for a fresh supply [of salt], and mixed the draught; the ebullition followed, and the first change of colour, not the second; I drank it, and it was without efficiency." A pureza coagula o monstro.

7 Jenni Calder, estudio­sa de Stevenson, obser­va: "11 is interesting and significant that ali the characters in the story are in a sense isolated. They have no wives, no families, no close fri­end-ships. They have servants and they have acquaintances, but that is ali."

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1 Las citas de Arlt remiten a la Obra Completa, Buenos Aires, Carlos Lohlé, 1981, Tomo l. Los locos y "Los mons­truos" de Arlt resu\tan de una pequeila operación de trasmutación para poner­lo a la par de Borges. La operación con­siste en quitar el número cabalístico de la primera novela (Los siete locos) y restituir el nombre original de Arlt a la segunda, titulada Los /anzallamas por Carlos Alberto Leumann. La estética de Arlt ("La vida puerca", "Los monstru­os'') puesta en su lugar, y no en los títu­los o las estéticas de Güiraldes y de Leu­rnann. César Aira ("La genealogía deI mons­truo" "Arlt", Paradoxa, Beatriz Viter­bo Editora, nO 7,1993: 55-71. Artículo datado en 1991) no alude ai título origi­nai de Arlt pero lo Ice dentro de lo que lIama "Ia lógica deI Monstruo", que es una opción formal expresionista. Dice Aira: "En Arlt eI mundo expresionista, de con-

Cuentos de Verdad y Cuentos de Judíos

Josefina Ludmer Yale University

Entramos en el mundo de los delitos de la verdad. En la puerta hay un cartel que reza: "En este sitio dei corpus los cuentos se relacionan formando pares o pa­rejas: pares de cuentos, pares de delitos o parejas de delincuentes" .

En la puerta nos esperan nuestros guías, un par de delincuentes de dos clásicos argentinos dei siglo XX: Emma Zunz (dei cuento "Emma Zunz" de Bor­ges, 1948), que se disfraza de prostituta para vengar a su padre, y Oregorio Barsut (de Los locos y Los mons­truos de Arlt, 1929-31)1, que le dice ai farmacéutico Ergueta cosas como éstas en el capítulo "Un alma aI desnudo" de Los Monstruos:

Sé que con usted puedo hablar, porque lo creen loco ... [ . .) Me creo extraordinariamen­te hermoso [ . .) Cuando menos, fotogénico [ .. } Dicha creencia ha modificado profun­damente mi vida [ . .) porque ha hecho que yo me coloque frente a los demás en la acti-

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tud de un comediante. Muchas veces he fin­gido estar borràcho entre mis amigos y no lo estaba; exageraba los efectos dei vino para observar el efecto de mi presunta em­briaguez sobre ellos. ;.No le parece que pue­do ser actor de cine?

En el mundo de los pares Barsut es el compaiíero ideal de Emma, que guardaba la foto de Milton Sills (un actor dei cine norteamericano de los 20s), en el mismo cajón donde escondió la carta enganosa de la muerte dei padre que abre el cuento el 14 de enero de 1922 (una carta de Feio o Fain, donde lo único claro era la fecha, el lugar y el nombre falso de Emanuel Zunz). En el mundo de los delitos de la verdad la foto de Milton Sills es Gre­gorio Barsut2 .

La pareja fatal de Borges-Arlt ("On cinemato­gráfico romance de fin de semana entre contemporá­neos"), está unida por el delito común de la verdad ai estado y por una serie de extraiías coincidencias, que son las que nos abren la puerta dei nuevo mundo. Nuestros guías -una mujer y un "actor"- nos introdu­cen en el campo semántico de la duplicidad, el traves­tismo, y la simulación, que es uno de los campos de los delitos de la verdad. Y que es en la literatura el lugar de los segundos, los ilegítimos, los resistentes, Ias mujeres, y también el de los "actores". Emma: la joven que actúa de prostituta y guarda la foto de Mil­ton Sills; Gregorio: el "artista" que quiere lrse a Hollywood para volver a Buenos Aires:

La gente me seiíalará con la mano dicien­do: "iEse es Barsut, el artista Barsut; vie­ne de Hollywood, es el amante de Greta Garbo!"

EI "cuento" de la verdad

En los "cuentos" de nuestros guías la lengua es actuación: performance, representación, simulación y falsificación.

Emma y Gregorio nos cuentan que los une el cine

tigüidades excesivas y deforrnaciones por falta de espacio en un ámbito limitado, un interior (su mundo es un interior), es una opción formal. Es inútil pensarlo en térmi­

nos psicológicos o socio-históricos o lo que sea. [ ... ] Pues bien, el mundo expresionista de Arlt es el interior de un organismo, de un cuerpo. No es que lo sea: lo parece, que en términos de representación es lo mismo. EI Monstruo es un organismo. O aI revés, el organismo es eI Monstruo. Despues trataré de hacer la génesis dei Monstruo arltiano. La mirada que ya no puede funcionar por falta de espacio anula toda transparencia e instaura una contigüidad táctil, obscena y horrible, rojo contra rojo, en un medio de sangre donde todo se toca. EI Monstruo es e\ hom bre dado vue\ta, que nos acomprula como un doppelganger espeluznante". (57-58) Arlt puede hacer Monstruo con cualquier material, dice Aira, y trata eI "dispositivo de hacer monstruo": "Todas las aporías arltianas, la de la sinceri­dad, la ingenuidad, la calidad de la prosa, se explican en este dispositivo de la conciencia que pretende asistir a su propio espectácu­lo, el lenguaje que quiere hablarse a sí mis­mo, en una palabra eI Monstruo. Esc dispo­sitivo mismo es el Monstruo." Dice que" 'Monstruo' también es una pa­labra" que necesita explicarse o expresarse. "EI Monstruo \ la explicación progresan juntos hacia eI intínito. Siempre habrá nece­sidad de un suplemento de explicación, ai menos mientras haya tiempo. Pero no es la explicación la que genera ai Monstruo, lejos de ello. Es demasiado razonable para hacerlo. EI monstruo nace de lo novelesco puro, que Arlt encontrá en eI folletín truculento." (61-2) AI fin, Aira se sitúa en relación con Arlt y con el Monstruo: "Yo mismo, proponiéndome como ejemplo de la singularidad extenuada dei tiempo, tre­po a la cinta dei continuo y corro tras eI Monstruo revestido de la ligura irrisoria de la explicación. Ahí puedo elegir entre los posibles de lo real, y elijo, sin razón alguna, solo por hacer girar eI 'círculo de tàctores enigmáticos', la crítica 'impresionista'. Ya no la proyección desdichada de lo simbóli­co, sino la introyección feliz de lo imagina­rio, la recepción dei cine mudo de Arlt, que me alcanza en ráfagas de luz sombría, en visiones deliciosamente escalofriantes: el

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molino de los Monstruos en su carrousel congelado, la Vugen colgada dei Aire: Du­champ la lIamó Perspectiva, yo la lIamo Ins­piración." (70-1)

~ Se encuentran datos de Milton SiIIs en Sol Chaneles y Albert Wolsky, The Movie Makers (Secaucus, N.J., Derbibooks Inc, 1974: 444); en Notable Names in lhe Ame­rican Theater (Clifton, New Jersey, Jones T. White & Company, 1976: 464); en John Stewart (comp.), Filmarama .Vol. 1, The For­midable Years 1893-1919, y en \bl. R The Flaming Years 1920-1929 (Metuchen, N .I., Scarecrow Press, 1975: 232, y 1977: 488). Pero el artículo que muestra la otra cara, filosófica, de Sills (y muestra su biblioteca y por lo tanto justifica a Borges), es el de Dumas Malone ed. Dictianary of American Biography, Vol. IX (New York, Charles Scribner's Sons, 1935), que informa en la p. 164-5: "Su nombre completo era Milton George Gustavus SiUs. Se graduó de la Universidad de Chicago en 1903 con el grado de Bachil­ler en Artes y por un afio y medio permane­ció en ella como investigador y fellow en filosofia. Sus experiencias en las actuacio­nes dramáticas de la Universidad lo prepa­raron para su debut profesional en 1906. Un compromiso con el repertorio de Char­les Cobum le dio experiencia en las obras de Shakespeare. En 1914 dejó el teatro por el cine y en 1916, después de una experiencia preliminar en los mal equipados estudios de New York, se fue a Hollywood donde co­menzó una nueva era de éxito como estrella de cine. Fuera de los estudios estaba muy lejos de la idea popular dei ídolo de cine: su biblioteca contenía libros en griego, en fran­cés y en ruso, y su conversación iba de la filosofia a las ciencias experimentales y de aUí ai tennis o ai golf. Nunca abandonó sus estudios académicos y de vez en cuando daba conferencias en universidades; en 1927 habló en la Escuela de Negocios y de Admi­nistración de Harvard sobre las condiciones dei mundo dei cine. También fue co-autor con Emest S. Holmes de un libro publicado después de su muerte, en 1932, y titulado Values: a Philosophy of Human Needs. A diferencia de muchos actores, fue un hom­bre rico; dejó una herencia de varios cientos de miles de dólares."

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y los 20s, el cine norteamericano de los 20s (y también que los une, después, el cine de Torre Nilsson3), pero en verdad la concidencia más notable, y esto no lo cuentan, es que los dos matan a "un judío" y después se burlan de la justicia con sus "cuentos".

En un viernes de apocalipsis de fines de 1929, Barsut (que vivia de una herencia) mata ai judío Brom­berg (un "esclavo" dei Astrólogo que trataba de desci­frar el Apocalipsis) en alianza con el mismo Astrólogo, que le da el revólver y le devuelve el dinero que le roba­ron; este asesinato es contado por un narrador omnis­ciente sin yo. Barsut es detenido en un cabaret por pagar con el dinero dei Astrólogo (que resultó ser el falsificado por los anarquistas), y se burla de la justicia acusando a toda "la banda" con un delito de la verdad que todos creen.

Esto último lo cuenta, y lo cree, "el cronista de esta historia" que tiene el yo en el capítulo "EI homicidio":

Barsut había sido detenido en un cabaret de la calle Corrientes ai pretender pagar la con­sumición que había efectuado con un billete falso de cincuenta pesos. Simultáneamente con la detención de Barsut se había descu­bierto el cadáver carbonizado de Bromberg entre las ruinas de la quinta de Temperley. Barsut denunció inmediatamente aI Astrólo­go, Hipólita, Erdosain y Ergueta. (. . .) AI ama­necer dei día sábado el descubrimiento dei cadáver de la Bizca convirhó los sucesos que narramos en el panorama más sangriento dei final deI ano 1929. {. .. } No quedaba duda alguna de que se estaba en presencia de una banda perfectamente organizada y con ra­mificaciones insospechadas. (. . .) Las decla­raciones de Barsut ocupaban series de co­lumnas. No cabía duda de su inocencia.

Y el 16 de enero de 1922, un sábado o domingo (según cómo se cuenten los dias), la obrera Emma Zunz (18 aiíos, virgen) llama, con el pretexto de la huelga, para verlo aI anochecer, a Aarón Loewenthal, uno de los due­õos de la fábrica de tejidos Tarbuch y Loewenthal (un "judío avaro" cuya única pasión era eI dinero); se acues-

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ta en el Bajo con un marinero nórdico que babla otra lengua; mata en la fábrica ai judio de '"Iabios obscenos" (en las dos lenguas, ídish y espaõol4) para vengar a su padre, su nombre y su honor; toma el teléfono y se burla de la justicia acusando a Loewenthal con un delito de la verdad que todos creen:

Ha ocurrido una cosa que es increíble... El senor Loewenthal me hizo venir con el pre­texto de la huelga ... Abusó de mí, lo maté ...

EI delito de la verdad de Emma y de Barsut, que todos creen, consiste en un enunciado idéntico ai ver­dadero y legítimo, pero puesto en otro lugar, tiempo y nombres que los legitimos. EI cronista de Borges lo define asi para cerrar el cuento:

La historia era increíble, en efocto, pero se impuso a todos, porque sustancialmente era cierta. Verdadero era el tono de Emma Zunz, verdadero el pudor, verdadero el odio. Ver­dadero también era el ultraje que había pa­decido; solo eran falsas las circunstancias, la hora y uno o dos nombres propios.

Para mostrar el delito de la verdad como "fic­ción creida" (y como más aliá de la división verdade­ro/falso) es necesaria la presencia de un narrador­cronista con su despliegue temporal y espacial. Por­que los "cuentos" de Zunz y de Barsut plantean un problema de secuencia: funden el antes y el des­pués en tiempo y espacio (Emma: me violó, lo maté). La duplicidad los constituye, porque ligan dos campos de representación (dos órdenes dis­tintos) en uno (y por eso pueden ser leídos como alegorías). EI cronista muestra cómo los dos tiem­pos, espacios, nombres, "circunstancias" que se fun­den en uno en "el cuento", pertenecen a dos órde­nes distintos. Zunz y Barsut, con sus "cuentos", revelan la extrana coincidencia entre los delitos de la verdad y los discursos de la verdad: los discur­sos en los que se cree. La crónica es el discurso de la verdad de una cultura fundada en la creencia en la verdad de la confesión.

Por su parte, Evelyn Mack Truitt, Who Was 1J7/O O" Serem (New York: RR Bowker Company, 1983, p. 663), nos infonna sobre algunas películas de Milton Sills que pudo haber • .. isto Emma Zunz (y que también, por supuesto. pudo ver Barsut): Antes deI erimen: 191 5 The Rack; 1917 Patria (serial); 1919 Shadows; 1920 The Week-End; 1921 The Marriage Gamble; AI lhe End O/lhe World; 1922 Buming Sands; Borderland; The Woman "'7/0 Walked Alo­ne; The Marriage Chance. Después deI crimen: 1923 Why Women Re­Marry; The Lasl Hour, A Lady ofQuality; Legally Dead; 1924 Madorma oflhe Streets; The Heart Bandit; 1925 As Man Desires; [ WantMyMan;ALover'sOalh; 1926 Para­dise; TheSilentLover; 1927 Framed; Hard­Boiled Haggarty; 1928 The Barker; Bur­ning Daylight; The Crash; 1929 His Capti­ve Woman; Love and lhe Devil; 1930 Man Trouble; The Sea Wo!f

3 Torre Nilsson filmó "Emma Zunz" de Borges en 1952, con el título Días de odio (y la ubica en la "época actual" dicen los criticas). Y filmó a "Los locos-Monstruos" de Arlt (con el título Los siete locos) eo 1972, durante la guerrilla y la dictadura mili­tar de 1966. Mónica Martin (EI gran BabJ)'. Un hombre como yo no deberia morir nunca. Biografia novelada de Leopoldo Torre Nilsson, Bue­nos Aires, Sudamericana, 1993) se refiere a Dias de odio: "Para demostrar que Emma Zunz -inter­pretada por Elisa Christian Galvé- estaba sola en el mundo la convierte en una mujer taciturna disgustada con lo que la rodea. Ubica la historia en la época actual y hace que Emma camine por una ciudad gris y fa­bril, tapizada con gratlitis a Eva perón. Con estas hebras sutiles solícitaba ai espectador que interpretara que en Buenos Aires eI hombre estaba solo en los conglomerados comunitarios dei peronismo". Mónica Martin hace que Torre Nilsson cu­ente su biografm: "Sólo 80.000 personas vieran Dias de odio. Con Dias de odio vue1vo a ser minoritario. Se prohibió que la película fuera vendida aI exterior y se limitó ai máximo su distribuci­ón en eI país. No sé si porque Borges es un autor no visto con simpatia por el gobierno,

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o porque se piensa que el tema es demasia­do negro o desagradable, que no muestra una Argentina demasiadofeliz."(46-47) En cuanto a Los siete locos: "Cuando me hice definitivamente cineasta, es decir, cuando empecé a hacer a través deI cine cosas que significaban algo de mi visión deI mundo, filmar a Roberto Arlt fue una especie de gran ambición. Como ocurre con casi todos los grandes creadores, se va actu­alizando cada Vf:Z. más. [ ... ] Cuando se estaba por iniciar el rodaje [de Los siete locas], invade la escena Miguel Paulino Tato con una orden oficial para sus­pender la película. Tato era el sinónimo de la censura argentina y en poco tiempo más se convertiria en el mayor enemigo de Torre Nilsson y en el Salieti de su vida. Dicen que cuando se enteró de que Nilsson iba a filmar Los siete locas, se enfermó de envidia. Apa­rentemente, lo odiaba a Roberto Arlt desde la época en que habían sido compafieros de redacción en e\ diatio El Mundo. Arlt había muerto en 1942, pero éllo seguía odiando. EI rencor lo mantenía vivo. Nadie se quedó de brazos cruzados. Toda la gente de Con­tracuadro salió a hacerle frente a la censura y poco tiempo después se levantó la prohi­bición. [ ... ] Los siete locos costó ochenta mil dólares y se hizo en siete semanas. [ ... ] Se estre­nó por fin el 3 de mayo de 1973 en el Gran Rex y treinta y nueve salas simultá­neas." (226-231)

4 Dice Sander L. Gilman (Jewish SelfHa­Ired. Anti-Semitism and the Hidden Lan­guage of the Jews. Baltimore and London, The Johns Hopkins University Press, 1986:72-3) que en 1699 Johan Chtistoph Wagenseil publicó su lllsfrucción sobre la manera judio-alemana de leer y escribir, donde afirmó que el ídish era el instrumento de la conspiración judía. EI vinculo entre los judias que ocultan sus maldades en un lenguaje que no es comprensible al poder, y la idea de que los judias mienten cuando son confrontados por este poder dia ai ídish, percibido no como una lengua sino como el medio para la conspiración, su propio po­der oculto, dice Gilman. Y más adelante se refiere a los Estados Unidos y a Henry Ja­

mes (uno de los escritores que practicó e\ tipo específico de "ficción" que nos intere-

Cuentos de verdad y cuentos de judíos - 49

El cuento de "la ficción"

Lo que dicen Emma y Barsut para burlarse de la justicia después deI ases inato deI ')udío" (simulaciones verbales, duplicidades verbales, falsificaciones verbales que todos creen), esa descomposición verbal de la ver­dad que cierra sus cuentos, es "Ia ficción" de Borges y Arlt. Un "cuento" y un delito de la verdad que implica un uso ambivalente de la lengua, donde lo rnismo vale para dos (vine/me ruzo venir con el pretexto de la huelga). Emma y Barsut no mienten; ponen lo verdadero y legíti­mo en otro lugar, tiempo y nombres que los legítimos ("solo eran falsas las circunstancias, la hora y uno o dos nombres propios"). Ponen la simulación (y también po­nen el delito) en el campo de la lengua y eso es "la fic­ción" literaria en los afios 20 Y 40 en Argentina. Una ficción que pone en contacto verbal a dos simuladores, una mujer y "un actor", con una institución de verdad­justicia-legitimidad en la que se cree (no solamente el estado sino también, en el caso de Arlt, "el cronista de esta historia"), que es la que cree "el cuento". A Emma y a Barsut se les cree, además, porque incluyen en los dos casos una prueba visible para ser creídos: un cuer­po femenino (el "violado" de Emma y eI cadáver de la Bizca), y un cuerpo judio carbonizado. Que es el cuerpo deI delito.

En esa descomposición de la verdad "legítima" (en esa "falsificación") descansa la ficción literaria de Arlt­Borges, una ficción que fue tomada como la ficción.

La política deI cuento

Los "cuentos" de Emma y de Barsut son enuncia­dos performativos, denuncias dirigidas ai estado para burlarse de la justicia, para engafiar y ser creídos: ponen en escena una política de las creencias. No se puede separar los delitos de la verdad de Emma y de Barsut de su textualidad política, porque suponen algún tipo de re­presentación estatal o institucional (una institución legíti­ma en la que se cree) a la que se dirigen para ser creí­dos. En tanto la razón de estado es la racionalidad ligada con "la verdad", los enunciados de Emma y de Batsut no solo serían delitos de la verdad sino también "delitos de

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-la justicia" y "delitos contra el estado". Es decir, acros políticos.

Pero su política es (como su justicia) enigmática, porque se funda en las creencias. Su política es mostrar que la razón dei estado descansa totalmente sobre el apa­rato de creencias y restos arcaicos (que se escriben en los cuerpos, con sangre, y en los nombres legíti­mos). Los "cuentos" de Emma y Gregorio después dei ases inato de judíos son un instrumento crítico que pane a la verdad en delito y genera enigmas en relación con la verdad de la justicia.

Los enigmas dei cuento

Emma Zunz y Gregorio Barsut no sólo matan a un ')udío" en la Argentina de los 20s y 40s5, a un personaje que fue construido como "judío" en la narración (pasión por el dinero o pasión por la escritura), y se burlan de la justicia, todos les creen y quedan en libertad para servir­nos de guías en este mundo, sino que matan, los dos, a "un judío"-"delincuente". Matan a Loewenthal y a Bromberg, que son alternativamente, nunca coinciden­temente, representados como "judíos" (dinero y escritu­ra) o como "delincuentes" (Jadrón o asesino). Emma y Gregorio los matan porque creyeron aI padre de Borges y aI Astrólogo de Arll.

Veamos la construcción dei "judío" en Borges por parte dei cronista o narrador de "Emma Zunz":

Aarón Loewenthal era, para todos, un hom­bre seria; para sus pocos íntimos, un avaro. Vivía en los altos de la fábrica, solo. Esta­blecido en el desmantelado arrabal, temía a los ladrones; en el palio de la fábrica había un gran perro y en el cajón de su escritorio, nadie lo ignoraba, un revólver. Había l/orado con decoro, el ano anterior, la inesperada muerte de su mujer -juna Gauss, que le tra­jo una buena dote/-, pera el dinero era su verdadera pasión. Con íntimo bochorno, se sabía menos apto para ganarlo que para conservarIa. Era muy religioso; creía tener con el Senor un pacto secreto, que lo eximía

sa), y dice que en The American Scene (1907) James se preocupó por el futuro dei inglés a causa de la "conquista hebrea de New York", donde los cafés dei East Side se habían tmns­formado en la "sala de tortum de los idiomas vivos". (p. 316)

l Podría decirse que en los anos 2040 cam­

bia la posición de los judíos en la literatura

argentina; siguen siendo representados, como desde 1880, como usureros extranjeros, ava­

ros, y "femeninos", pero en Arlt y en Bor­

ges son asesinados y los que los matan ha­cen una farsa de la verdad ai estado para

salvarse de la j usticia. Esa "ticción" conti­

núa "Ia realidad", porque el primer pogrom

en Argentina se realizó durante la Semana Trágica, en 1919, con un muerto (y sinjus­ticia estatal); se acusó a Pedro Wald, un re­dactor dei matutino en ídish "Di Presse", de

pretender convertirse en presidente de la Na­

ción "Iuego que triunfara la conspiración 80-

viético-maximalista" (Breviario de ulIa ill­famia. CuademonOI.Comité deLuchaCon­

tra el Racismo y demás formas dei Colonia-1ismo, 1975, p. lO.)

Boleslao Lewin (Cómo fue la inmigracióll ;udía a la Argel/tina. Buenos Aires, Plus

Ultra, 1971) describe los atentados durante la Semana Trágica de enero de 1919, que se desencadenó con la huelga en los talleres de Pedro 'vásena En ese momento, dice Lewin, el judío se hizo antipático, tanto por su condi­ción de súbdito ruso como por la difundida creencia, desde el proceso de Radovitzky,

de que participaban en toda labor "di sol­

vente". [En 1909 eI anarquistajudío Simón

Radovitsky asesinó en un atentado ai jefe de

policía coronel Falcón.) Lewin dice: "por más que sectores oportunistas israelitas

pretenden silenciar el hecho" murió León Futaievsky, miembro de la organización 80-

cialistajudía Avangard; "es también contm­ria a la verdad la tentativa -de gentiles y j udíos- de negar que una de las tristes face­tas de la Semana tile el pogrom que duró desde el jueves 9 de enero hasta el martes 14 dei mismo mes. Su saldo fueron más de 150 heridos graves, centenares de contusos y considerables pérdidas materiales. Los bar­rios habitados por judíos se convirtieron en meta de expediciones punitivas de toda laya de patrioteros que, además de atropellos fi­sicos de todo orden, repitieron la hazana

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deI ano deI Centenario, quemando los li­bros de las bibliotecas obreras judías ubica­das en la calle Ecuador 359 (Avangard) y Ecuador 645 (Poalei Sión )." Lewin seiíala que no se identificaron a los responsables ni se indemnizaron las víctimas (171-174, subrayados nuestros). Lo que Lewin lIama "Ia hazaiía dei ano dei Centenario" fue el primer ataque en 1910. Dice Juan José Sebreli ("La cuestión judía en Argentina", que cierra el volumen de su compilación La cuestión judía en la Argen­tina. Buenos Aires, Tiempo Contemporá­neo, 1968): "AI terrorismo de izquierda se opone eI terrorismo de derecha. Para el Centenario, Luis Dellepiane organiza la Policía Civil Auxiliar, con carácter ad hono­rem, compuesta por ióvenes de las c/ases altas, con el pretexto de cooperar para los festejos, siendo su verdadero objetivo man­tener atemorizados a los obreros. J óvenes paloleros reunidos en la muy exclusiva So­ciedad Sportiva Argentina, presidida por el Barón Demarchi y de la que formaba parte, entre otros, Juan Balestra, se dedican en vísperas deI 25 de mayo de 1910 a incendiar las redacciones de los periódicos La Pro­testa y La Vanguardia, saquear locales sÍl1-dicales y agredir militantes obreros. Estos mismos jóvenes son los autores deI primer pogrom argentino; El15 de mayo; ungru­po de ellos Ilega hasta el barrio judío, en la antigua circunscripción 9a. En la esquina de Lavalle y Andes (actualmente José E. Uri­buru) saquean un almacén judío y llegan hasta la violación de mujeres. Estos hechos son relatados por las propias victimas a los re­dactores dei boletín de la C.O.RA. (Confe­deración Obrera de la República Argenti­na)" (229-30, subrayados nuestros). En cuanto al Barón Demarchi y sus pato­tas, sólo cabe recordar que aparecieron en "Los Moreira" en 1912, con la tàmosa fies­ta que el Barón organizó en el Palais de Gla­ce, con eI objeto de que la sociedad portefía admitiera el tango en su seno.

6 No hay indicios en el texto de que el ape­lIido Zunz sea judío, aunque Borges juega todo eI tiempo con dos nombres y con las variantes entre nombres y apellidos judios y alernanes: Fain o Fein, Manuel Maier o Emanuel Zunz, Eisa Urstein o las dos Kron­fuss.

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de obrar bien, a trueque de oraciones y de­vociones. Calvo, corpulento, enlutado, de quevedos ahumados y barba rubia, espera­ba de pie, junto a la ventana, el informe con­fidencial de la obrera Zunz.

Esta descripción deI narrador contiene uno de los enunciados centrales deI anti semitismo: la avaricia deI judío y su pacto secreto fraudulento con Dios, y ocurre cuando Emma viaja hacia él para matarlo, en 1922.

Pero en otra parte deI texto (en otro tiempo, en 1916) el padre de Emma Zunz juró que Loewenthal era el "verdadero" ladrón (y no él mismo): se lo juró a su hija la última noche que se vieron, antes de cambiar su nombre por el de Manuel Maier y de exilarse en Brasil. (Ella es la única que sabe el nombre secreto y el nombre deI verdadero delincuente. O el nombre se­creto dei delincuente.) ~ Y si el último mensaje oral, personal, de Emanuel Zunz en 1916, cuando le juró la verdad (loen qué lengua'1), que el ladrón era Loewen­thal fue también un engano, para salvar su nombre ante la hija'1 ~Otra farsa -delito- de la verdad'1 Emma le creyó, pero la sospecha de que el crimen es total­mente gratuito tifie el texto. EI delito de la verdad de Emma se basa también en ese pacto secreto de la le­gitimidad (su nombre está contenido enteramente en el nombre deI padre), en el que se cree.

(Otro enigma: loera judía Emma, quiero decir su madre muerta'16 ~Su asesinato es como el de Rabin en 1995: un judío "puro" contra el "verdadero delincuen­te" y por eso lo mata un sábado aI anochecer'1 lO la obrera textil no erajudía y el texto, puesto en los anos 20, es la metáfora borgeana deI hitlerismo y deI pero­nismo de los 40? i, "Emma Zunz" como otra "Fiesta deI Monstruo" para hacer par con Los Monstruos'1)

En Arlt el "judío" aparece en Los locos y el "delincuente" en Los monstruos. En el capítulo "Sen­sación de lo subconciente" por primera vez se dice que Bromberg o El hombre que vio a la partera es judío, cuando plantea los problemas de "interpretación" de las Escrituras.

Mojado y con la cahellera revue lta, se detu­vo a un costado de la escalinata el Hombre

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que via a la Partera. - iAh! es usted - dijo el Astrólogo. - Sí; quería preguntarle qué es lo que pien-sa usted de esta interpretadón dei versículo que dice: "EI dela de Dias". Esta significa claramente que hay otros delas que no son de Dias ... - iDe quién, entonces? - Quiero decir que puede ser que haya cielos en los que no esté Dias. Porque el versículo afIa­de: "Y bajará la nueva Jerusalén". I,La nueva Jerusalén? I,Será la nueva Iglesia? EI Astrólogo meditó un instante. EI asunto no le interesaba, pera sabía que para mantener su prestigio ante el otro tenía que responder, y contestó: -Nosotros, los iluminados, sabemos en secre­to que la nueva Jerusalén es la nueva Igle­sia. [ .. } pero I,por qué usted independiente­mente de otra escritura llega a admitir la exis­tencia de varias delas? Bromberg, guareciéndose en el pórtico, miró la jadeante oscuridad estremecida por la llu­via, luego contestó: - Porque los delas se sienten como el amor. EI Astrólogo mirá sorprendido ai judío, y éste continuó: - Es como el amor. I,Cómo puede usted negar el amor si el amor está en usted y us­ted siente que los ángeles hacen más foerte su amor? Lo mismo pasa con los cuatro cie­los. Se debe admitir que todas las palabras de la Biblia son de misterio, porque si así no fuera el libro sería absurdo. La otra noche leía entristecido el Apocalipsis. Pensaba que tenía que asesinar aGregaria, y me decía si está permitido verter sangre humana. - Cuando se estrangula no se vierte sangre - repuso el Astrólogo.

Este "asesinato" de Gregorio resulta, aI fin de Los locas (en el capítulo "EI guino"), una farsa, una simula­ción de ases inato con la complicidad deI mismo Barsut. Pero en Los monstruos (en el capítulo titulado "Donde

No hay indicios pero no cabe duda porque, a propósito de los nombres, un famoso ju­dío Leopold Zunz figura en la Enciclopedia Judaica. Vol. 16, Supplementary Entries. Je­rusalem: Keter Publishing House, 1972, p. 1235-1240.) Zunz, Leopold (Yom Tov Lippmann; 1794-1886), historiador y uno de los fundadores de la "Ciencia dei Judaísmo" ( Wissenschaft des Judentums). Estudió en la Universidad de Berlín entre 1815 y 1819 dondeadquirió las bases de su enfoque científico; fue parti­cularmente influido por el gran investigador c1ásico Friedrich August Wolf En 1836 fue comisionado por la comunidad para escribir un tratado sobre los nombres judíos como respuesta a un decreto real prohibiendo el uso de nombres cristianos por los judíos (NamenderJuden,1837).

7 EI motivo es "real". porque Bromberg fue "asesino" de Barsut en la ticción en segundo grado o "simulación en la ticción" que es el final de Los locos. Le cree porque lo conoce como un "delincuente simulador" en carne propia.

8 Un cuento que Baudelaire (punlo de parti­da de la "modernidad literaria") escribió en "La moneda falsa" en 1869 ("La tàusse monnaie", en Spleen de Paris. Petits poe­mes en prose) y que Jacques Derrida leyó como "Ia ficción" en Donller le temps J. La fausse mOllnaie. Paris, Galilée, 1991. En eI texto de Baudelaire no aparece el judío sino el mendigo, que es olra encarnación pura dei signo-dinero y por lo tanto de los delitos de la verdad (ai mendigo nos referiremos en­seguida en este Manual). A partir de "La moneda falsa" de Baudelaire que se le da ai mendigo, Derrida define a la falsificación como la ficción e introduce la categoría de convención literaria. "La moneda tàlsa" es "como" la ficción porque parece compartir con ella un rasgo (pasar algo como "ver­dad"), pero no es lo mismo, dice Derrida, porque la convención nos pennite saber que ésta es una ticción. Yo diría: el delito de la verdad-tàlsificación-ticción marca el punto en que literatura y política se unen y se se­paran absolutamente en esta tradición mo­derna, porque el delito de la verdad es ilegí­timo en el campo dei estado, y legítimo en el campo de la literatura. Y hasta puede defi-

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nirla. Pero en el contexto puramente monetario dei ensayo de Derrida sobre "Ia ficción" de la falsificación ai mendigo, aparecen de gol­pe -en dos notas ai pie-los judíos, primero ligados con la escritura y eI dinero a tmvés de Léon Bloy, y después ligados directa­mente con la Biblioteca y con eI plan de exterminio de Baudelaire. Veamos esta últi­ma nota. Derrida se refiere ai racismo anti belga de Baudelaire y cita en la nota 1 de la página 166-7 una secuencia de Mon coeur mis à nu: "Bella conspiración a organizar pam el exterminio de la Raza judía. Los Judíos, Bi­bliotecarios y testigos de la Redención" (Charles Baudelaire, Oc., ed. CI. Pichois, Pléiade, voU: 706). Derrida agrega que Walter Benjamin (en Pasajes. Paris Capital dei siglo XIX) vio en esto una "Gauloiserie" y dijo que Celine continuó en esta direcci­ón. Y conciuye que la idea de Baudelaire de la Exterminación no em tan nueva en Euro­pa, ni propia de la Alemania nazi, pero no la liga con la metáfora de la ficción como falsificación. Dicho de otro modo: Derrida no 100 la rela­ción entre "modernidad", "ficción" como delito de la verdad y la Iegitimidad, y 'juda­ísmo", pero la contiene en su Iibro. Muestra involuntariamente que la metáfom de la fal­sificación para pensar cierta ficción, la teo­ria capitalista de la ficción de Baudelaire, incluye como elemento fundamental ai ju­daísmo (se lo sepa o no, y se esté en favor o en contra). O lo inciuye, o "eI judaísmo" es un aparato que le es paralelo, un par con el cual coincide como narración y como falsi­ficación.

9 Otros textos de Borges de la década dei 40 con nombres en eI título, además de "Pierre Menard", muestran delitos de la verdad (delaciones, falsas identidades o nombres, pactos fraudulentos o juramentos falsos, y en eI campo de la escritura, plagios y pseu­doepigraíismos): "La búsqueda de Averro­es", "Abel~acán eI Bojarí, muerto en su la­berinto", "La forma de la espada" (que es la traducción dei nombre Moon como delator escrito en su rostro), "Funes el memorio­so", "Examen de la obm de Herbert Quain", "Biografia de Tadeo Isidoro Cruz (1829-1874)", Y "Emma Zuni'. Este último es el

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se comprueba que el Hombre que vio a la partera no era trigo limpio") el Astrólogo dice a Hipólita y a Barsut que a Bromberg o "EI hombre que vio a la partera" (no dice allí que es judío), le dieron prisión perpetua por asesino, simuló estar loco y huyó de la cárcel:

- I,Bromberg? .. La historia de Bromberg es interesante. Un tipo de delincuente simula­dor. un poco loco, nada más. Hipólita comprendió. Se dijo: "No me equivoca­ba. Bte demonio queria ganar tiempo. '.'

Hipólita no le cree pero Barsut sí, y tiene sus motivos'.

l,Mintieron (cometieron un delito de la verdad) el padre de Borges y el Astrólogo de Arlt sobre el ')udío" "delincuente"? Emma y Gregorio los matan porque cre­yeron, y les creyeron; sus "cuentos" son una descompo­sición dei círculo de las creencias. A este punto enigmá­tico, aI corazón de los delitos de la verdad, nos han traído nuestros guías.

Sabes o crees ... Sabes o crees saber ... Crees o quieres creer ... dicen nuestros guías. Porque la "fic­ción" como descomposición de la verdad, como re­presentación literaria, como ambivalencia perpetua, como lenguaje donde lo mismo vale para dos, como texto indescifrable; la "ficción" como la forma deI se­creto en literatura y como máquina generadora de enig­mas, la ficción moderna argentina de los 20s y 40s, que fue representada y leída como la ficción, se es­cribe a propósito deI ases inato deI "judío" -"delincuen­te" según el padre y el Astrólogo.

Un camino lateral

Zunz y Barsut... los unen las reproducciones de los aiíos 20s, y también las de los 40s. Los une, en reali­dad, el extraiío movimiento de temporalidades literarias que tiene lugar entre Arlt y Borges, dos escritores estric­tamente contemporáneos (Borges era de 1899 y Arlt de 1900). Tan contemporáneos como Emma y Gregorio, que viven y matan por los mismos afios de 1920. Pero el cuen­to de Emma apareció en 1948, cuando Arlt había muer-

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to, mientras que en el de Gregorio coinciden la fecha de la ficción, la de la escritura y la de la publicación: las tres son estrictamente contemporáneas, como lo consigna el mismo autor en la nota que cierra Los monstruos:

Nota: Dada la prisa con que fue terminada esta novela, pues cuatro mil líneas fueron escritas entre fines de setiembre y el 22 de octubre (y la novela consta de 10.300 lí­neas) , el autor se olvidá de consignar en el prólogo que el título de esta segunda parte de "Los siete locos ", que primitivamente era "Los monstruos ", fue sustituido por el de "Los !anzallamas" por sugerencia de! no­velista Carlos Alberto Leumann, quien una noche, conversando con el autor, le insinuá como más sugestivo el título que el autor aceptó. Con tanta prisa se terminó esta obra que la editorial imprimía los primeros plie­gos mientras que el autor estaba redac­tando los últimos capítulos.

La diferencia temporal de los contemporáneos genera un extrano movimiento, que es el movimiento entre Arlt y Borges y entre los 20s y los 40s en Argentina (y el movimiento de "la ficción"). En ese movimiento, los enig­mas dei presente se tienden hacia adelante, como antici­pación, o hacia atrás, como memoria, y saltan a "otra realidad".

En "Emma Zunz" Borges pone en los aftos 20s los enigmas de los 40s en Argentina: el peronismo y el anti semitismo. Los lleva ai antes, como memoria (como "breve caos que hoy la memoria de Emma Zunz repudia y confunde"). Lleva a los 20s, sabiéndolo, el peronismo y el anti semitismo, para representarlos extrafiamente en "cuento", en delito de la verdad, en otra "realidad": en otro lugar, tiempo y con otros nombres.

Y todo el Arlt de 1929 pone (sin saber lo, como el Astrólogo), los enigmas deI presente en el después de la narración, como visión y anticipación y por eso puede representar, también extrafíamente, la "realidad" de los 40s. Puede representar el hitIerismo y el peronismo dei presente de Borges en "cuento" o delito de la verdad: en otro lugar, tiempo y con otros nombres que los legítimos.

único cuento con nombre femenino, y de una obrera (si se deja de lado "La viuda Ching,

pirata", de Historia universal de la infamia, que es el texto matriz de los delitos verba­les). Los cuentos de Borges con títulos de

nombres girall alrededor de los delitos de la

verdad y la legitimidad, y son políticos o

incluyen alguna referencia política.Y su po­lítica es. tarnbién, ambivalente. Incluyen tam­bién otras lenguas orales o escritas, extraJlje­raso y delitos verbales como nombres falsos, delaciones. y pactos fraudulentos que sosti­enen y acompaiian a la ficción. En todos se combinan crónica y confesión, discursos narrativos de la verdad (cDmo en Los locos­Los monstnlOs) Otros textos de Borges con judíos: "Deuts­ches Requiem", "La fiesta dei monstruo",

"Guayaquil", "EI indigno". Y de Arlt: El ju­guete rabioso. Juan José Sebreli [compil.] La cuestiónju­día en la Argentina (op. cil.) abre ellibro con una "Cronología de la cornunidad judía ar­gentina", que va desde 1856 hasta 1 %7. En 1937 consigna: "Julio: Declaración inicial dei Comité contra el Racismo y el Antisemitismo en la Argen­tina. Jorge Luis Borges forma parte dei Con­sejo Directivo dei Comité."

W Dice Urnberto Eco ("Fakes and Forgeri­es", en VS, 46, 1987: "Fakes, Identity aJld the Real Thing'') que dos cosas diferentes son la rnisrna si ocupan en eI rnismo mo­mento la misma porción dei espacio. Remi­te a Ian Haywood (Faking lt. Art and lhe Po/ilics ofForgery. New York, Saint Martin Press, 1987): hablamos de falsijicación cu­ando algo presente es desplegado corno si fuera el original. rnientras que eI original, si hay uno, está en olra parle. Eco agrega que la falsificación presenta problemas filosófi­cos y semióticos como los de originalidad y autenticidad, identidad y diferencia. Es fal­sificado cualquier objeto producido, usado

o mostrado con la intención de hacer creer que es idéntico a otro, único. Esa pretensión de identidad plantea un problema pragmáti­co, porque algo no es falso si no hay preten­sión de identidad con otro. Las condiciones necesarias para la falsificación son que el objeto sea diferente, hecho por otro, en cir­cunstancias diferentes, y que tenga fuertes semejanzas con el primero.

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a Hannah Arendt, en The Origins ofTota­Iitarianism. New York, Harcourt, Brace & World, Inc., 1966 [38 ed, orig. 1951], discu­te la teoria de los j udíos como chivos emisa­rios en las crisis. Dice que una ideología que tiene que persuadir y movilizar no puede elegir a su víctima arbitrariamente. En otras palabras, aõade, si una {alsificación patente como los "Protocolos de los Sabias de Sión" es creída por tanta gente que puede lIegar a ser eI texto de un movimiento político, la tarea dei historiador ya no es descubrir una falsificación. El hecho esque lafalsificación es creída, y este hecho es más importante que la circunstancia (secundaria, desde el punto de vista histórico), de que es una falsificación. (7, subr. nuestros) Dice Meir Waintrater ("Le mauvais juif de Sion. Antisionisme et antisémitisme: les fortunes d'un concepte", en Léon Poliakov (ed.) Histoire de l'Antisémitisme. 1945-1993. Paris, Seuil, 1994: 19-32) quelos Pro­toc%s eran, sobre un fondo que mezclaba eI plagio literario y la provocaci­ón policial [exactamente como "Pierre Mé­nard", diria yo], "una pura fabulación"; no solamente no había complot, sino que la asamblea de los Sabias solo existía en la imaginación de los funcionarioszaristas que editaron el parifleto . Pero agrega: "No es por azar si los primeros lectores de los Pro­tocolos con{undieron la relmión secreta de los judíos con el primer congreso sionista que se había reunido en Basilea en 1897. [La pusieron en otro lugar, tiempo y prota­gonistas: la pusieron en "delito de la ver­dad", agregaria yo, para que fuera creída.) En los dos casos, continúa Waintrater, la evocación de los judias se asocia con som­bríosfantasmas de dominación. Yagrega: "e1 mito recurrente dei complot sionista se alimenta de las mismas fuentes que esa ex­traõa superstición que lIevó ai Times y a Henry Ford [en los anos 20s norteameri­canos, anado yo] a creer, por algún tiempo ai menos, en la autenticidad de los Protoco­los." (22, subr. nuestros). En cuanto alas falsificaciones argentinas, veamos por ahora sólo este texto de propa­ganda nazi aparecido en 1946, después de la derrota. Se titula Un judío contesta a Ires argentinos, y está editado por una "Liga

argentina por los derechos dei hombre no

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AI hitlerismo lo representa en 1929, en Argentina, con la solución final de Los monstruos: el asesinato deI judío (por parte de Barsut), y el ases inato de la bízca, el exter­mínio por gases y el suicidio (de Er~osain). Y.puede re­presentar extrafiamente aI peronismo, en el después deI anarquismo (en la continuidad de la cultura arge.nti­na entre el anarquismo y el peronismo), con el parade­ro final de la ex prostituta y dei Astrólogo, que desajmre­cieron con el dinero de todos (el de Barsut incluido) y no fueron encontrados, contó "el cronista de esta historia" que la cierra un ano después, en 1930. Hoy sabemos más que él: sabemos que la pareja dei "Astrólogo" y "la ex prostituta" de Arlt se fugaron de la ficción en 1929 para volver a "Ia realidad" de los 40s y después, en dos ciclos diferentes, primero ella como Eva Perón, y des­pu és él como López Rega, para formar un par con el mismo General Perón.

Pero dejemos aquí este extrano movimiento de los contemporáneos Emma y Gregorio, donde las simulta­neidades dei presente oscilan, en la ficción (y en "Ia rea­lidad"), entre el futuro y el pasado. Es por ahora un ca­mino lateral, entre zonas de tiempo, dei mundo de los pares y los delitos de la verdad.

El plan dei cuento

Emma y Gregorio nos guían y nos cuentan sus his­torias ... Las dos se abren cronológicamente, por así de­cirlo (dicen), con el dinero "en delito", junto con "la dela­ción anónima". Como si formaran parte de un cuento semejante, enmarcado con los mismos elementos: como si hubieran nacido el uno para el otro. La historia de Emma comienza con el "delito dei cajero"; la de Barsut con el "delito dei cobrador". La pareja no solo comparte "Ia delación anónima" y ese dinero puro, ese signo-dinero en delito en el punto de partida de cada uno de sus cuentos. atro "dinero en delito" los acompafia y los une en el pun­to final, el día dei asesinato dei judío y dei delito de la verdad, porque Emma rompió el dinero (un acto de "im­piedad" y de "soberbia", dice) que ganó simulando ser prostituta, y a Barsut lo encontraron en un cabaret pa­gando con el dinero falsificado dei Astrólogo.

Sus historias comparten cierto principio y cierto

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:fin; tarnbién comparten el movimiento entre principio y fin (el movimiento mismo de la narración) que responde a un plan secreto. El plan de Emma que es su "cuento" de la justicia, y el plan dei Astrólogo que es su "cuento" de la revolución .

Ese plan o "cuento" de la justicia y la revolución es una de las ficciones de los 20-40 escrita en Argenti­na, en el capitalismo periférico latinoamericano. Dn cuen­to que requiere los momentos y las encamaciones deI dinero puro, deI signo dinero "en delito", como su punto de partida y de llegada, y que requiere además a un ')U­dío" y a un plan secreto. Un plan que conecta aI dinero y a la verdad con "el delito", a propósito dei ')udío"8. Dn "cuento" capitalista (o un instrumento crítico capitalista) de la justicia y la revolución que puede representarse totalmente con el lenguaje de la falsifícación (falsifica­ción verbal, de dinero, de documento, de una prueba, de una obra de arte, deI Quijote). Delito de la verdad, falsi­ficación y ficción literaria ligan lenguajes diferentes que giran alrededor dei mismo eje: lo mismo pera en otro lugar, tiempo y protagonistas. Dinero falsificado por los anarquistas es lo que tiene Barsut en la mano cuando lo encuentran después de matar ai ')udío". Y la falsifica­ción literaria está en el título mismo dei texto matriz de Borges de los delitos de la verdad que, como "Emma Zunz" tienen por título un nombre: "Pierre Ménard, au­tor dei Quijote" (datado en Nimes, 1939), cuyo narrador, aliado con la aristocracia francesa, dice que hará "una breve rectificación" de "Ia Memoria" de Menárd, por­que "cierto diario cuya tendencia protestante no es un secreto ha tenido la desconsideración de inferir a sus deplorables lectores -si bien éstos son pocos y calvinis­tas, cuando no masones y circuncisos, un 'catálogo fa­laz' de sus obras visibles."

(Borges escribe con "Pierre Ménard, autor dei Quijote" su propia iniciación delictiva en "Ia ficción". "Pierre Menárd" (un texto sobre el nombre masculino, sobre la "restauración" de su "memoria"), "dedicó sus escrúpulos y vigilias a repetir en un idioma ajeno un libra preexistente"; "su admirable ambición era producir unas páginas que coincidieran -palabra por palabra y línea por línea- con las de Miguel de Cervantes". Que coinci­dieran en otra lengua, en otro lugar, tiempo, y protago­nistas: que fueran "su ficción", su "falsificación" y su

judío" y datado 1üdische Wochenschau, 2-4-1946. Tiene 30 páginas. Son los anos en que se escribió "Emma Zunz" y, por supuesto, también allí está el "cuento" a la justicia después dei asesinato de judíos. EI marco dei panfleto es narrati­vo: Roberto, gerente de una casa bancaria, cuenta que hace muchos anos "formamos un círculo de cuatro amigos: Marcelo, inge­niero. Raúl, médico, Mauricio, comerciante, y yo". Estaban de acuerdo en todo pero en ocasión de la victoria de los aliados se pro­dujo una ruptura de relaciones porque eI único que mostró entusiasmo fue el comerciante Mauricio que "habla" así: nosotros los judí­os somos los que hemos ganado la guerra y nuestra victoria es tan decisiva que nos lIe­vará ai dominio absoluto sobre todos los pueblos de esta tierra!" (4). Pero no sólo "habla" a los tres argentinos, porque unos días después les manda una carta fechada en julio de 1945. Yentonces "escribe" un 'Judío", porque eI texto de la carta (cuya "cita" ocupa casi todo eI folleto) contiene todos los elementos de nuestros "cuentos de verdad y cuentos de judíos", desde e/ comp/oty e/ p/an (dice que los "Pro­tocai os .... " son efectivamente nuestra "Mag­na Carta" y cuenta el plan para dominar y "devorar a todos los pueblos deI mundo") hasta la reproducción mecánica de la carta. Pera lo que nos interesa hoy es el momento en que este ')udío" pane a la verdad en deli­to (y es creído, dice) cuando se refiere ai Holocausto; nos interesa qué dice "el judio" después dei asesinato de judíos, cuál es su "'cuento": "Mientras tanto hacemos levantar la voz sobre las supuestas atrocidades de los a/e­manes nazis. iQué bien nos ha venido esa terrible epidemia de disentería y tifus en Buchenwald! jCómo hemos podido sacar provecho de ese fenómeno, por lo demás muy frecuente en guerras largas [ ... ] Hoy hemos convertido un campo de concentra­ción para disentéricos y titicas en un campo de masacre de varias millones de seres hu­manos y la gente nos lo lia creído nueva­mente [ ... 1 Y luego esas sepulturas en masa de los centenares de miles de muertos par los ataques aéreos que ni siquiera cabían en las fosas de emergencia y por eso tuvieron que ser quemados por media de lanzalla­mas, etc.

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Han vueIto de los campos de concentración nazis, sanos y salvos, los enemigos máxi­mos dei nazismo, como ser: el ex-canciller de Austria Schuschnigg, luego Thalmann, Jefe dei partido comunista alemán, el obis­po protestante Niemoeller, quien tanto com­batió a los nazis desde el pupitre de su igle­sia y hasta el propio Leon Blum, judío y ex­premier de Francia. Es de com prender que si los nazis no han matado a estos sus ene­migos máximos, menos habrán dado muerte a otros enemígos de menor categoría. Tampoco han matado o vejado a mis conna­cionales los judíos, sólo les habían quitado la libertad de acción, obligándolos así a salir dei país." (23) Una vr:z. leída la "bestialídad", como dice eI gerente, llega eI momento de com prender y el médico Raúl conc\uye: "Ahora lo com prendo todo. Nos han hecho ver el fantasma nazi para enganchamos y quitamos eI último resto de independencia y soberanía nacional que teníamos." (28) Imprimen la carta "creída" dei "judío", re­nuncian a la amistad con todos "los judíos" y exhortan a todos a hacer lo mismo, puesto que obedecen a "regímenes extranjeros in­females y subversivos".

11 Nuestra hipótesis de los pares es que la correlación "moderna" (en los 20-40) de la "verdad" (de la filosofia y la estética de la verdad) con los "judios" se ve nitidamente cuando se la lee desde eI delito. Desde el delito, el par "verdad" y 'Judios" funcionó como cuento literario y definición de la fic­ción. También funcionó en la filosofia euro­pea de los 20-40, cuando eI cuestionamien­to de la verdad apareció como definición dei "pensar" o de la filosofia de la modemidad. Y funcionó, otra vez, "en par" o "en pareja" con el asesinato de judios en la "realidad". Pero veamos qué ocurre con la poesía. Se­gún Anthony Julius (TS. Eliot, Anti-Semi­tism, and Literary Form (Cambridge, Cam­bridge University Press, 1995) lo que hay que interrogar a propósito dei antisemitis­mo de Eliot (que estaba en el aire en los anos 20) son las conexiones entre modernismo y antisemitismo: qué tiene que ver la historia de una infamia con el examen de un movi­miento literario central dei siglo Xx. Esas

conexiones no pueden ser de perspectiva:

leer el antisemitismo desde la perspectiva

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delito de la verdad. Y que incluyeran a "los circuncisos")9. Emma y Barsut nos explican que las políticas dei di­

nero y de las creencias, que rigen en este mundo, conectan la "ficción" con la falsificación y con el racismo en el capi­talismo periférico de los 20s y los 40s. A este punto enigmá­tico, ai corazón de los delitos de la verdad, nos han traído nuestros guías.

La reproducción dei cuento

Los guías nos seõalan la coincidencia final de los "cuentos de verdad" y los "cuentos de judíos" deI par Arlt-Borges, todos "en delito" en el Buenos Aires de los 20s y 40s. Una extraiia coincidencia en los "epílogos". Porque tanto Zunz como Barsut se liberaron de la justicia estatal para reproducir o'el cuento".

En el "Epílogo" de EI Aleph, fechado el3 de mayo de 1949, el mismo Borges dice que el "cuento", ni fan­tástico oi fidedigno, se lo contó Cecilia Ingenieros:

Fuera de Emma Zunz (cuyo argumento es­pléndido, tan superior a su ejecución teme­rosa, me fue dado por Cecilia Ingenieros) y de la Historia dei guerrero y de la cautiva que se propone interpretar dos hechos fide­dignos, las piezas de este libro correspon­den ai género fantástico.

Y en el "Epílogo" de Los Monstruos la última iro­nía (sarcasmo, sátira expresionista de los 20s) de Arlt: Barsut se lo cuenta a todo el mundo, porque en 1930 se va a Hollywood a filmar "el cuento". Dice "el cronista de esta historia" que usa el yo y que es el que creyó las declaraciones de Barsut (y también creyó las confesio­nes de Erdosain):

Barsut, cuyo nombre en pocos días había al­canzado el máximum de popularidad, fue contratado por una empresa cinematográfi­ca que iba a filmar el drama de Temperley La última vez que le ví me habló maravillado y sumamente contento de su suerte: - Ahora sí que verán mi nombre en todas las

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esquinas. Hollywood. Hollywood. Con esta película me consagraré. El camino está abierto.

Los guías (el cuerpo-nombre de una "mujer" y el cuerpo-nombre de un "actor") nos abren el camino por­que cierran la historia que se cree con la historia de su reproducción mecánica.

En una de las calles de este mundo ...

Los enunciados de Emma y de Barsut ai es­tado después dei asesinato dei "judío" definen el delito de la verdad y ai mismo tiempo definen "Ia ficción" de los 20s-40s de Borges y de Arlt. Que es un tipo de representación literaria (que se creyó y hasta fue postulada como "la ficción") que pane la simulación en la lengua, descompone la verdad "legítima", representa el secreto en literatura, y puede ser comparada o metaforizada con la falsifi­cación de dinero. Un delito de la verdad cierra el cuento (o la secuencia) dei dinero, el plan, "el ju­dío"-"delincuente" (si se cree ai padre y ai Astró­logo), y su asesinato.

Esa "ficción", que es una máquina capitalis­ta moderna generadora de enigmas (o un instru­mento crítico capitalista), coincide extrafiamente, en la "realidad", con los "cuentos" dei aparato dei antisemitismo que circularon en Argentina en los 20s, los 40s y después, hasta hoy: (akes and 10r­geries lO (como los "Protocolos" y el "Plan Andi­nia") que siguen el cuento de Emma y el padre, de Gregorio y el Astrólogo: el cuento dei dinero, el plan secreto, y el "judío"-"delincuente".11

Una aclaración final, nos dicen los guías. No quisimos mostrarles el supuesto anti semitismo (o su contrario) de nuestros autores Arlt y Borges (o el de Baudelaire ... ) en esta excursión. Los acompafiamos para dejarlos aquí, en una de las calles de este mundo dei delito, en el punto donde coinciden enigmáticamente esas ficciones de la modernidad de los afios 20s-40s que se creyeron: la que giraba alrededor de "Ia ver­dad" y la que giraba alrededor de "el judío".

dei modernismo puede trivializar el horror en la historia judía contemporáuea, y ai re­vés, interpretar eI modernismo desde la pers­pectiva deI antisemitismo parece perverso y reductivo (38). EI problema, para Julius, es la idea de la "verdad poética"; la idea de que la poesía tiene una relación diferente con eI mundo que la prosa (y que es superior a ella), que no hace atirmaciones sobre el mundo sino que muestra "verdades" sobre el mundo o, en la versión deconstructiva, sobre eI len­guaje (75). Estas ideas subyacen a los soste­nedores dei simbolismo. que dio el contexto para la composición de la poesia de Eliot, y también deI New Criticism, que dio eI con­texto para su recepción, dice Julius. Eliot

escribió sobre el simbolismo, y el New Cri­ticism popularizó la idea modernista de la literatura basada en una estética kantiana­simbolista, no "significante". La estética de estas escuelas de poesia y crítica no emergió de un vacío teórico; se ligaron con viejas opiniones sobre las pro piedades de la poe­sia y la literatura en general (76). La poesia simbolista devino elmodelo de toda la poe­sia, a diferencia de la prosa (y esto se ve en Sartre, dice Julius) y representa "eI descu­brimiento de que las palabras pueden tener sentidos aunque no referentes". Julius sostiene que la poesia puede ser pro­posicional, y que las obras literarias pueden escribirse para dramatizar un conjunto de creencias (77). Por ejemplo, el poema de Eliot "Sweeney Among the Nightingales" juega con la noción de una conspiración ju­dia. (Los Protocolos fueron publicados en Inglaterra en febrero de 1920, y eI Times y otros periódicos sostuvieron su autentici­dad). Es I/lla obra alltisemita y modernista: vali jl/lllos, dice Julius. La poesia introduce la noción de un narrador que obstruye la lectura dei poema como un rompecabezas que oculta una respuesta. El punto central dei poema es que no hay respuestas (86). Los esoterismos, intangibilidades y visio­nes rarificadas dei simbolismo parecen tor­narlo invulnerablc a las vulgaridades dei an­tisemitismo. Generadora de ambigüedad, destinada a ser leída con un sentido dei ma­tiz y de la pluralidad de sentidos, la poesía produce la impresión de que no puede caer en eI prejuicio (92). Julius dice que eI antisemitismo dei simbo-

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lismo es un efecto de esa poética, y también de su lucha contra ella. Es la Iradición que se abre con Baudelaire y culmina en Paul Valéry, como el mismo Eliotescribióen 1946. La tradición de la relación de la poesía con la música, y no con el sentido (95). Julius in­siste en que el antisemitismo de Eliot es evidencia de un simbolismo en clÍsis: lo in­tuitivo deviene lo programático, y lo vago y sugestivo, una fantasía de conspiraciones (108). Es fácil caracterizar el discurso antisemita en ténninos simbolistas, dice Julius. EI an­tisemitismo borra la distinción entre e\ mun­do real y el imaginario. También, cuando se lo disimula, puede ser vago y sugestivo. Como el simbolismo, el antisemitismo pos­tula órdenes que no corresponden ai mundo real. Julius no afirma que el antisemitismo sea involuntariamente simbolista o que el simbolismo sea potencialmente antisemita, pero sí que hay suficiente congruencia entre los dos como para hacer posible una poéti­ca simbolista antisemita. Esta es una posi­bilidad que las distinciones entre lo !iterario y lo no literario, lo ficcional y lo mítico, no pueden negar, concluye Julius (96, todos los subrayados son nuestros).

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Como 110sotros (dicen Emma y Gregorio para despedirse), esos cuentos se implican mutuamente, van juntos aunque se cambien de lugar y de signo, uno refiere ai otro, cada Ul10 está dentro dei otro: son un verdadero par ... 12

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Raul Antelo Universidade Federal de Santa Catarina

Dizer que a vida é sonho quer dizer que a vida é pensamento. Nesse fragmento de Novalis, que Borges traduziu em 1934, esconde-se sintoma­ticamente o movimento das mais recentes leituras borgeanas.

Uma geração atrás, de fato, os cíclicos retornos das ficções que hoje nos ocupam eram interpretados como postulações da irrealidade, seja na vertente pioneira e benevolente de Ana Maria Barrenechea, seja na tendência negativa e intolerante do grupo Contorno. Mais re­centemente, porém, a obra de Borges vem sendo lida como uma pecu­liar postulação da realidade e, nessa corrente, se descontarmos as bio­grafias pessoais, à maneira de Didier Anzieu ou Rodriguez Monegal, poderíamos inscrever esse peculiar reencontro de Borges com seu des­tino sul-americano, tramado por Davi Arrigucci em Enigma e comen­tário; a postulação por Sonia Mattalia e Jopep Ma. Company de efeitos de superficie realista nos relatos aparentemente mais evasivos; a ex­ploração de alegorias políticas nas leituras de Beatriz Sarlo ou as son­dagens de aberta referencialidade histórica com que Daniel Balderston questiona se o escritor está mesmo Fora do contexto? (É sintomático, aliás, que o sinal de pergunta só apareça na segunda edição da obra, em espanhol, já que o original inglês se alinha, decididamente, sem nuances,

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pelo partido anti-irracionalista, Out of context). Portanto, ler que a vida é sonho se traduz hoje em dia como a

vida é racionalidade, paradoxo que, alimentado pelo próprio mecanismo do escritor, foi desentranhado, antes de mais ninguém, pelo mesmíssimo Borges, enquanto leitor de Henri Bergson.

Com efeito, ao resenhar As duas fontes da moral e da religião para o jornal Crítica, em setembro de 1933, Borges compreendeu que há instintos e há instituições. Os primeiros, reagindo a estímulos fisicos específicos, extraem do mundo externo satisfação para suas neces­sidades ao passo que as instituições, porém, criando mundos próprios e intersticiais entre as pulsões e o mundo externo, podem ser entendidas como autênticas elaborações ou traduções, isto é, artificios que liberam o sujeito da coerção natural para introduzi-lo em outra ordem, discursi­va, onde o movimento, momentaneamente, se detém. A instituição po­deria assim ser definida como um sistema organizado de recursos ou recorrências. Ela não se confunde, entretanto, com a lei. Entre a lei, que limita ações, e a instituição, que nos fornece modelos efetivos de ação, existe a mesma distância que entre o cânone e o corpus literários. Em outras palavras, a teoria institucionalista é uma teoria literária que põe o negativo fora da história, no reino das necessidades, para nos apresentar a sociedade como instância genética: criativa, positiva, in­ventiva. Nessa linha de análise, Borges interpreta que, para Bergson,

la facultad que origina creencias religiosas o adhesiones morales y políticas nada tiene que ver con el poder origi­nador de la verdad. AI igual que el sentido común y todo lo que comúnmente pasa por inteligencia humana, aquella facultad no es sino la resultante de la conjorma­ción dei hombre ai medio social en que vive y esta confor­mación es una particularidad inherente ai orden univer­sal de las cosas.

Essa característica, entretanto, não deve se confundir com passivi­dade adaptativa, uma sorte de determinismo duro, quase bestial, que retira­ria ao homem toda liberdade de opção. Contrariamente, pois, aos animais,

gracias ai predominio de la inteligencia sobre los instin­tos, el hombre presenta una mayor variabilidad y mutacio­nes más numerosas dentro de su sujeción mental ai am­biente. Es una diferencia casi cuantitativa, fuera de la cual la humanidad ofrece, en el orden de los incentivos y las

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normas de la conducta, un mundo muy semejante ai de la vida de los insectos. Se mueve y se agita en la aventura diaria' de la existencia dentro de una estructura ideativa que ha heredado en toda su integridad a la manera en que se hereda un nombre. A este orden moral y político, Bergson denomina "cerrado" y opone a él un orden crea­do por los esfoerzos de individuas excepcionales y deno­minado "abierto ", cuyas creaciones, puramente intelec­tuales. van a enriquecer el patrimonio ético de la raza, no sin antes asumir caracteres orgánicos en la sociedad o en el consenso de los hombres.

Contra o mundo fechado dos insetos-mass~ a ordem aberta dos homens valerianos, puramente intelectuais como Mr. Teste, enrique­cem "o patrimônio ético da raça". Sublinho apenas o conceito patrimo­nial que, como sabemos, há de ressurgir ao debater, mais adiante, a questão da tradição; mas destaco, no momento, a inexistên­cia de luta ou oposição, de dialética, enfim, entre ordem fechada e ordem aberta. Há, porém, entre ambas mútua pressuposição.

Una y otra estructura de la conducta humana. la "cerrada" y la "abierta" tienen formidables razones de ser. La pri­meira, según el filósofo francés, es una foerza natural que sirve en el hombre como contrapeso de otras foerzas or­gánicas. Protege ai hombre contra peligros de un ejer­cicio sin contralor de la inteligencia. Los resguarda con­tra la destrucción social que semejanle ejercicio podría traer o contra las desazones con que sorprendería a un individuo una interpretación de la naturaleza en términos comprensibles únicamente por él. No importa que e/lo /le­ve a los hombres invariablemente a erigir ídolos en el or­den moral y político, tales como los que resultan de huma­nizar a los dioses o endiosar a los hombres, ya que ai hacer una y olra cosa el individuo obtiene en su ubica­ción en el universo un sentido de comodidad para él y de salvaguardia para sus semejantes.

Portanto, Borges entende que Bergson postula um terreno comum à religiosidade e à racionalidade, onde duração, memória e impulso vital se entrelaçariam para evitar a religião da razão. Não repugna a Bergson (nem a Borges, aliás) que esse vínculo comum possa ser interpretado como místico.

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Lejos de ser una autointoxicación con algún éxtasis deri­vado de apasionadas adhesiones políticas y morales, la intuición, en su expresión mística, es el poder con que los hombres excepcionales proporcionan finalidades y bases a la acción. Es con este poder que los grandes creadores en las ciencias y en las religiones complementan el sentido critico de que se valen para examinar la actualidad y la particularidad, dejando en descubierto para la posteri­dad la visión con que logran penetrar en los arcanos de la universalidad y dei devenir.

Como se vê, o que atrai a Borges nesta filosofia é um relativo distanciamento em relação a uma lógica dos possíveis históricos. Ao contrário, Bergson (e atrás dele, Borges) inclinam-se por uma lógica da virtualidade que Deleuze irá mais tarde definir em termos precisos. Nessa perspectiva, o virtual não precisa se realizar; basta-lhe com se atualizar e, na atualização, já não regem a semelhança ou a limitação do real mas a diferença e a variação de todo ato. Portanto, o próprio do virtual, a identidade, por exemplo, é existir na forma de uma diferença, criando suas próprias linhas de diferenciação para, justamente, se atua­lizar. Essa identidade, cuja característica primordial é a diferença, per­tence a um tempo único em que partes variáveis e potenciais se encon­tram em um todo virtual, o arcano da universalidade e do devir. A varia­bilidade ou duração é, portanto, a realidade do virtual, uma multiplicida­de que difere em natureza; mas a memória, por outra parte, arma ou representa todos esses graus de diferença na multiplicidade virtual ca­bendo, por último, ao impulso vital, traçar as linhas de diferenciação em que o virtual se atualiza, o que permite, aliás, que o homem tome, atra­vés do é/an, consciência de si ou, em palavras de Borges, um lugar no universo, em que haja conforto para si e confiança para os outros. A duração é em última análise suporte da subjetividade; lembremos, a título de ilustração, do terceiro argumento, el único, de um ensaio ante­rior a esse, "La duración dei infierno", de 1929: existe eternidade de céu e de inferno porque a dignidade do acaso (/ibro albedrío diz, sinto­maticamente, a primeira versão) assim o requer: "o tenemos la facultad de obrar para siempre o es una delusión este yo". Mas o que nesse te:\:to ainda era disjuntivo, no exame da obra de Bergson se toma paradoxal já que o autor de Ficções julga que a teoria das multiplicidades e a ontologia nmemônica são simples decorrências de um método, o da intuição:

La intuición, pues, es para Bergson exactamente /0 que se ha llamado la razón para las más nobles tradiciones de la filosofza. La intuición con él, como con Platón y Espino-

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sa, lejos de /levamos a una actitud antiintelectual o an­/irracionalista, en cualquiera de las esferas de la ver­dad, exalta el intelecto y la razón a la jerarquía dei único poder que hace que la vida humana valga la pena ser vivida.

o conhecimento define-se, em conseqüência, como abstração ou aférese, um excesso dos dados imediatos que renunciamos a com­preender em sua literalidade e que apenas imaginamos em sua late­ralidade como signos externos, variáveis e sensíveis, que nos tocam. Essa abstração, como se compreende, supõe a ficção, já que explica o mundo por imagens mas, ao mesmo tempo, a obliqüidade da ficção supõe em contrapartida abstração, já que ela própria imbrica elementos abstratos segundo uma ordem de associação ou de transformação ex­terna que se condensa, para lembrarmos do Tratado sobre a reforma do entendimento de Espinoza, na expressão fingo ad libitum causam.

Permitam-me, portanto, valer-me dessa premissa, fingo ad libi­tum causam, para perseguir em Borges uma gênese virtual para sua conhecida teoria sobre o escritor argentino e a tradição.

Como é sabido, o texto é fruto de uma conferência realizada no Colégio Livre de Estudos Superiores de Buenos Aires em 1952. Sua primeira publicação sai na revista do próprio colégio, Cursos y confe­rencias, no início de 1953 e a segunda, dois anos depois, na revista Sur. Aliás, em Sur, lemos, já em 1941, uma sorte de protoversão, ainda iné­dita, desse ensaio, suscitàda pelas teorias historiográficas de Carlyle, quem em On heroes, hero-worship and the heroic in history, "dijo y sigue diciendo" aquilo a que o ensaio aponta, que os periféricos carece­mos de tradição definida, carecemos de um livro capaz de ser nosso símbolo perdurável. Mas não se interprete a carência como imperativo:

entiendo que esa privación aparente es más bien un alivio, una libertad y que no debemos apresurarnos a corregirla.

Em outras palavras, o que Carlyle diz e continua dizendo é que "gozamos de uma tradição potencial que é todo o passado", enunciado temporal que, em Borges, se traduz em coordenadas espaciais, uma vez que ele mesmo invoca o fato de, através de Baudelaire, ser Poe parte inalienável da tradição francesa, da mesma forma que, através de Fitzgerald, um místico persa, Urnar Bin Ibrahím Aljayami, Ornar Khayarn, se incluira na tradição inglesa - é bem verdade que menos em versão literal do que em forma de "rapsódia autônoma", como lembrará um outro ensaio da época.

Em poucas palavras, a história torna-se previsível capítulo de uma ficção fantástica já que

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En la literatura rige la misma ley general que en el deter­minismo: basta que un hecho ocurra para que sea nece­sario, fatal.

Temos, nessa fonnulação, uma variante de urna idéia de Sêneca, colhida nas Naturales questiones, isto é, a de que tudo quanto aconte­ce é signo de algo que acontecerá, idéia previamente desenvolvida por Cícero em dois tratados, De divinatione e De fato, muito apreciados por Borges.

Analisando pouco depois, em 1944, o livro de Davidson sobre The free wil/ controversy, Borges esquematizará a disputa entre de­tenninistas e intuicionistas apoiado em fontes mais próximas dele como O dilema do determinismo de William James:

Los deterministas niegan que haya en el cosmos un solo hecho posible, id est, un hecho que pudo acontecer o no acontecer; James conjetura que el universo tiene un plan general, pero que las minucias de la ejecución quedan a cargo de los actores.

Nesse dilema de traidores e heróis, as minúcias - "el dolor fisico, los destinos individuales, la ética" - é que definem o relato, a tradição, como algo que foge do detenninismo. A tradição não é instinto mas instituição.

Confundir, portanto, uma literatura com alguns traços distintivos do país que a produz, além de ser noção relativamente nova, romântica, tem o inconveniente de confundir o lateral (uma identidade) com o lite­ral (uma réplica) ainda com o agravante de, ao mesmo tempo, separar dois sinônimos, tradição e tradução. Coloca-se, então, o escritor a per­gunta crucial; mas afmal,

iCuál es la tradición argentina? Creo que podemos con­testar fácilmente y que no hay problema en esta pregunta. Creo que nuestra tradición es toda la cultura occidental, y creo también que tenemos derecho a esta tradición, ma­yor que el que pueden tener los habitantes de una u otra nación occidental (..) Creo que los argentinos, los sud­americanos en general, (..) podemos manejar todos los temas europeos, manejarlos sin supersticiones, con una irreverencia que puede tener, y ya tiene, consecuencias afortunadas.

Cabe aqui observar que esse acaso de livremente manipular tex-

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tos, uma vez que eles não passam de diferença ou diferimento através do tempo, nos remete à idéia complementar de que o tempo é simples diferença ou diferimento através dos textos. Corrobora essa articula­ção ou abstração do leitor uma reincidência escriturária, na medida em que o argumento conclusivo sobre o escritor argentino e a tradição é o mesmo da duração do inferno, donde não seria exagerado concluir que, para o escritor sul-americano, como diria Borges, a tradição é um infer­no que dura. Ganha, assim, outro sentido a idéia de que "nuestro patri­monio es el universo"; ou de que podemos

ensayar todos los temas, y no podemos concretarnos a lo argentino para ser argentinos: porque o ser argentino es una fatalidad y en ese caso lo seremos de cualquier modo, o ser argentino es una mera afectación, una máscara.

Se o valor é uma sensibilidade que dura, é conveniente ao mes­mo tempo observar o contexto em que se insere essa declaração e avaliar que o gesto que em 1955 exclui o ensaio sobre "Nossas impos­sibilidades", de Discussão, por achá-lo fraco, é o mesmo gesto que escolhe outro texto, decerto tido como mais forte, "El escritor argentino y la tradición", mera transcrição de uma aula dos anos 50, e o coloca ao lado desses outros ensaios anteriores a 1930 onde se argumenta que "en el impensable destino nuestro, en que rigen infamias como el dolor carnal, toda estrafalaria cosa es posible". Como poderíamos ler essa operação histórica, abismal e fantástica, de colocar uma reflexão apa­rentemente determinista, sustentada sob o tardo peronismo, entre tex­tos de clara euforia modernizadora, rica em mesclas e acasos, do tardo radicalismo?

A resposta a essa pergunta talvez se encontre na nota de rodapé que acompanha "O escritor argentino e a tradição" e que o define como variação: "versão taquigráfica de uma aula proferida no Colégio Livre de Estudos Superiores". Detenhamo-nos nessa instituição. Sorte de Universidade popular ou alternativa, sem subvenção oficial mas com financiamento privado, o Colégio teve atividade opositora relevante sob o peronismo sendo, em algum momento, obrigado a fechar suas portas. Um de seus mecenas e docentes, o economista Felix Weil, relembra em suas Memórias que um dos atrativos maiores do colégio era ter o mes­mo sistema de admissão do Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt, a famosa Escola de Frankfurt, que ele mesmo fundara, com dinheiro da família. Como registra Barbara Freitag, um cartel de cereais, instalado na Argentina no final do século passado, financiara, com suas exporta­ções de grãos para a Europa, não só os estudos de Felix Weil, filho do dono, mas o próprio Instituto. Foi, em última análise, o trigo sul-ameri­cano que permitiu ao grupo de intelectuais formado por Horkheimer,

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Adorno, Benjamin, Lukacs, Pollock, Fromm e até mesmo Saussure so­breviver aos turbulentos tempos da guerra, "dando ao Instituto uma autonomia e independência que poucos centros de estudos tinham na época". Em 1934, porém, o Instituto se transfere para Nova York e como "International Institute of Social Research" filia-se à Universida­de de Columbia, "mantendo, no entanto, sua autonomia financeira que lhe fora assegurada graças ao auxílio irrestrito do 'especulador de grãos' da Argentina". Com a emigração, entretanto, seus integrantes reorien­tam suas vidas. Marcuse vai trabalhar no "Office of Strategic Servi­ce"; Pollock se toma conselheiro do Ministério da Justiça norte-ameri­cano; Lowenthal dirige a "Voz das Américas" enquanto Felix Weil, o fundador e financista, regressa à Argentina e elabora a política fiscal do governo militar nos anos 30. Figura heterogênea e emblemática da modernização autoritária, Weil é, para retomarmos a expressão que Borges reserva a Omar Khayam, um rapsodo autônomo que enriquece "o patrimonio ético da raça" como fazendeiro moderno, mecenas, pro­fessor universitário e alto funcionário de um governo de fato.

Antes mesmo de Keynes elaborar sua Teoria geral da ocupa­ção, o juro e o dinheiro, alguns economistas neoliberais já percebiam a necessidade de intervenções específicas para tirar o capitalismo de seu torpor. Dentre eles, Federico Pinedo, o ministro, ou Antonio de Tomaso e Felix Weil, seus assessores, todos socialistas independentes, davam ao governo militar a feição progressista e avançada que reque­ria a expansão do capitalismo no país. Aliás, o primeiro contato de Weil com Pinedo é ilustrativo do conceito de modernidade com que operava o mecenas de Frankfurt. Sua tese era clara: necessidade de ocidentali­zar a economia nacional como passo prévio para qualquer ensaio socia­lista. A ocidentalização, para Weil, dependia da criação do imposto de renda, até então desconhecido no país, imposto que ele mesmo passa a redigir sendo promulgado como leis 11.682/3 do governo militar. Dupla feição do intelectual funcionário: no Congresso impõe o cânone ao pas­so que no Colégio define o corpus da modernização.

Com efeito, no Colégio Livre de Estudos Superiores, Weil difun­de suas idéias a respeito das intervenções estatais para saneamento econômico. Na série de artigos publicados em Cursos y conferencias, sobre "EI problema de la economía dirigida" (a. 4, nº 9; a. 5, nº 9 e a. 5, nº 8 de 1936), fruto de suas conferências no colégio, Weil defende claras posições ortodoxas, ainda que analise o caso argentino não exa­tamente como economia planejada mas como economia controlada. Em uma de suas aulas, lança mão do conceito de moda para afastar os temores generalizados em relação a uma economia planejada:

Un Estado con la economía dirigida, significa necesaria­mente un Estado con la propaganda dirigida. Por ello la

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cuestión de los diversos gustos en cuanto ai consumo, no juega un papel de importancia. En la economia dirigida el Estado sabrá dirigir también los gustos, dirigir el con­sumo: esto no tiene nada de extrano y ni siquiera de anor­mal. El profesor americano Loeb, ha descubierto el fenó­meno dei "helio tropismo ". Una cierta clase de pececillos en un aquarium expuesto ai sol, nadan en distintas direc­ciones; pero basta echar unas gotas de cierto ácido, para que los peces se pongan a nadar en una sola dirección. Y si se pudiera preguntar a és tos, porqué lo hacen, el/os responderian seguramente que "por propia voluntad", y no se darian cuenta de que se ha echado en su ambiente ciertas gotitas de propaganda. Por ello sostengo que den­tro de un Estado en esta forma, con la propaganda bien centralizada, el consumo fácilmente se amoldará a las conveniencias de la producción, y con esto podrán des­aparecer todos los temores de que la economia dirigida tropezaria con grandes dificultades por no poder satisfa­cer todos los diversos gustos. Especialmente debemos des­tacar que no es cierto que la economia dirigida tiende a nivelar los gustos, a nivelar el modo de vivir. No se trata de eso: nadie piensa en que se fabrique p. e. solamente una clase de corbatas. Pero, deI otro lado no hay razón valedera alguna, para que se siga producúmdo como hoy, sin sentido alguno, miles y miles de tipos de corbatas.

Weil analisa o poder do capital sobre a moda. Sua posição é determinista e, para voltarmos à tensão entre instinto e instituição, diría­mos que para Weil a moda é instinto, mera necessidade heliotrópica. Veja-se, portanto, a distância que o separa de outros frankfurtianos como Benjamin, interessado, ao contrário, pelo poder da moda sobre o capital, a partir das considerações de Simmel em relação à moda como fenômeno cada vez mais integrado, ocidentalizado, e articulado à organização do trabalho. Mas distante também do relativismo exibido pelo filósofo Enrique Butty ao expor, nas mesmas páginas de Cursos y conferencias, as rela­ções entre a duração de Bergson e o tempo de Einstein. A posição de Weil, pelo contrário, é contundente: a única saída para a crise é uma economia planejada socialista que, mesmo sem mercado, sustentaria um "quase-mer­cado" em que a concorrência positiva afastaria o fantasma da burocratiza­ção. Para tanto, urge que dirigentes dinâmicos, os tecnocratas, cuidem do sistema, idéia que ilustra com um típico recurso futurista:

Los directores de fábricas dentro de la economia dirigida son algo as! como los jefes de regimiento en la guerra.

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Essa aproximação entre economia socialista e estética fascista não se corresponde, entretanto, com a pura e simples identificação en­tre nacional-socialismo e socialismo soviético. Em um curso ditado no Colégio Livre, em dezembro de 1939, Weil se opõe, precisamente, à equação niveladora entre os dois regimes (tese sustentada por Horkhei­mer no Instituto e pelo senador Lisandro de la Torre, no Congresso) com o argumento de que o nazismo preservou a propriedade privada e, conseqüentemente, as leis de mercado, sem ameaçar, de fato, o capita­lismo mas oferecendo-lhe, ao contrário, alternativas de sobrevivência e defesa perante o avanço comunista. Os efeitos dessa política são cla­ros: manutenção da classe operária em nível anterior ao da guerra, proletarização dos setores médios e enorme enriquecimento dos grandes capitalistas. Para ilustrar quem são os donos dessa Alemanha reposta pelo nazismo nas trilhas do capital, o professor Weil apela a um símile:

Es como si en nuestro país el control de los precios que se estableció recientemente y que está ahora en manos dei Dr. Bullrich, se hubiese entregado ai Sr. Luis Colombo, Presidente de la Unión Industrial, manteniendo este últi­mo sus funciones en ambos cuerpos. O como si se hubiere nombrado ai Presidente de la Asociación de Asegurado­res como Superintendente de Seguros de la Nación, en lu­gar dei ex-subsecretario de Hacienda, Sr. Saénz.

Seria tão ridículo como se um intelectual socialista defendesse o programa neoliberal ou, para retomar a boutade de Brecht, corno se um especulador de trigo, angustiado pelos sem-terra, doasse sua fortu­na para urna fundação financiar pesquisas sobre a fome no mundo. Nos dois casos, o rapsodo autônomo teria o mesmo nome, Weil. É claro que se o professor de economia não vê o ridículo do símile é porque ele está ativamente implicado nessas contradições. A tese da ocidentalização da sociedade, em sua leitura determinista, não está dissociada da milita­rização da produção e da concentração do capital. Por isso quem, invo­luntariamente, nos fornece urna chave para entender esse imbroglio de ocidentalização, militarização e determinismo é outro emigrado ale­mão ao Novo Mundo e, mais do que isso, outro WeiU, Kurt, que, numa comédia da Broadway de 1941, Lady in the Dark, imagina a saga de urna mulher sem qualidades, Jenny, ao longo de uma vida desastrada até que, na meia idade,

Jenny made her mind up at thirty-nine she would make a trip to the Argentine She was only on vacation, but the Latins agree Jenny was the one who started the good neighbour policy.

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Como Jenny, Felix Weil é pride as a penny e com essa sorte de candura original empreendeu em 1944 sua obra de maior fôlego, Ar­gentine Riddle, onde traça o retrato de um país semicolonial que, em­bora politicamente independente, continuava sujeito a interesses econô­micos britânicos, enfrentando assim duas facções, de um lado, os novos industrialistas e, de outro, os velhos agraristas. A figura transicional entre ambos grupos era, para Weil, a de umjovem coronel, ainda minis­tro, Perón. Não vê nele, como não vira antes no comunismo, um equi­valente do nazismo já que, em sua opinião, o fascismo sul-americano é autoritarismo doméstico mas nunca nacional-socialismo ou fascismo importado e por uma razão muito simples, porque o nazismo é autorita­rismo de controle diante da crise recessiva ao passo que o peronismo é autoritarismo planejador em função de expansão da economia. A oci­dentalização que Weil portanto propõe para a Argentina (nem peronis­ta, nem marxista) soa às vezes como desenvolvimentista e outras como agudamente premonitória. Em "New literature on the industrialization of Latin America" (1947) chega a ponderar se a ruptura dos antigos vínculos coloniais com a Europa e a ansiosa busca de modernidade não acabaria levando as nações latino-americanas a serem estados dos Esta­dos Unidos da América, cabendo perguntar-se então se a perda da sobera­nia não estaria vantajosamente compensada pelos beneficios econômicos vindos da troca de estatuto.

É claro que estes textos não têm nada a ver com o ensaio de Borges. No entanto, eles têm tudo a ver. São lidos no mesmo salão do Colégio Livre; são estampados nas mesmas páginas de Cursos e con­ferências. Todos propõem a ocidentalização da sociedade argentina. Todos falham no diagnóstico. Weil julgou que Perón podia ser o nome da modernização afinada com os interesses da potência emergente. Antecipou-se. É mérito que caberia à terceira onda peronista. Borges, por sua vez, em "O escritor argentino e a tradição", quis separar-se de soluções que se tornaram "quase instintivas, que se apresentam sem a colaboração do raciocínio" e propôs soluções céticas a esse respeito.

Mi escepticismo no se reflere a la dificultad o imposibili­dad de resolverlo, sino a la existencia misma del proble­ma. Creo que nos enfrenta un tema retórico, apto para desarrollos patéticos; más que de una verdadera dificuJ­tad mental entiendo que se trata de una apariencia, de un simulacro, de un seudoproblema.

"EI simulacro" é, justamente, uma das ficções de El Hacedor, onde o narrador nos diz que a história, incrível, aconteceu "y acaso no una vez sino muchas, con distintos actores y con diferencias locales. En ella está la cifra perfecta de una época irreal y es como el reflejo de un

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sueõo, ( ... ) una crasa mitología". Para temperar esses arroubos racio­nalistas, deveríamos observar que um mito é um mito desde que alguém não o considere como tal; a partir do momento em que um mito passa a ser lido como mito e, pior ainda, a ser analisado ou adjetivado, por exemplo, um mito crasso, ele já não é mais mito; torna-se história. O mito sofre assim do mesmo traço que poderíamos atribuir-lhe à arte moderna: o nominalismo. Para que o mito seja mito (para que exista arte, literatura argentina, tradição universal) é necessário que essas categorias sejam objeto de crença, aceitos seus conteúdos e institucionalizado o arbítrio de seu artifício, criando então um espaço ambíguo, próximo da religião mas não menos próximo da razão, um espaço enfím de emancipação. Poderíamos retomar neste ponto uma formulação de Caillois, le mythe c 'est la religion des autres, para entender que, em sua leitura cética dos problemas do escritor argentino e a tradição, Borges menosprezou a religião dos outros sem suspeitar que, na série literária, "Perón" se traduziria com outros dois P: Puig, Piglia. Borges, enfim, não chegou a ver que o universal foi universal quando, interpretado como elevação ou sublimação, despertava credibilidade. Hoje, entretanto, praticado como neutralização proliferante e indefinida de todo valor, ele se denomina globalização e produz mais e mais entropia ou, como diria Baudrillard, o grau xerox do valor.

Dez anos depois da morte de Borges, confrontados, de um lado, com uma ordem mundial aparentemente irreversível e, de outro, com a obstinada insurreição de singularidades irredutíveis, leituras paradoxais se impõem e superpõem. Em perspectiva negativa, conceitos univer­sais como tradição nos parecem atualmente místicos, crassa religião dos outros, noções incapazes de responder a um mecanismo complexo - globalização das trocas, universalidade dos valores, singularidade das formas - que, de certa forma, o nominalismo e ceticismo modernos (borgeanos) ajudaram a criar. Em perspectiva positiva, porém, a mo­dernidade tardia não pode mais ser interpretada como mera intransitivi­dade da escritura mas como perda de toda unidade entre ficção e dic­ção, unidade apenas reconstruída ou realizada só depois, como virtuali­dade emotiva, através da excepcionalidade aristocrática do texto e a normalidade democrática das obras. Aí reside o vínculo "político", "na­cional", ainda potencial para a literatura.

Poderíamos então voltar ao ponto de partida, a Novalis, e enten­der que a vida que nos coube viver é de fato crassa mitologia mas que esse mito é também pensamento, um pensamento que somos obrigados a decifrar em cada arranjo. Mas podemos ainda voltar a Bergson e entender que, face à insistência do universal e à resistência do singular, a arte não pode se confundir com elas nem mesmo com a sociedade que através da arte fabula. Contra o aspecto, ora coletivo, ora individu­al, da arte narrativa e fabuladora, Bergson (como Borges) se inclinava

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pela ficção como abstração das variabilidades, alternativa, de um lado, sensível à violência dos imperativos e à arrogância do necessário mas, de outro, não menos sensível à suspensão do jogo e à indeterminação do contingente.

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La Cultura Invisible: Rubén Dario y el Problema

de América Latina

Graciela Montaldo Universidad Simón Bolívar

Hay en la cultura letrada deI Fin-de-siecle latinoamericano algo que definitivamente se ha perdido, aquello que Walter Benjamin, llamándolo «aura» de la obra de arte, definió como la constatación de una lejanía y una distancia con el objeto dei deseo cultural; las distancias -espe­cialmente las estéticas- ya son irrecuperables en el fin de siglo, que promueve -paradójicamente, a través deI artificio- la ilusión de la transparencia cultural a través de la reproductibilidad mecánica. Ben­jamin (1989) habla deI aura menos como una condición de las obras de arte que como una relación que se establece entre ellas y el sujeto que las contempla y la relación aurática es, precisamente, la que el fio de siglo ve desvanecerse. El proceso se da paralelamente en Europa y en América Latina y está ligado a la constitución de las indus­trias culturales a escala global.

En este trabajo, me interesa revisar un aspecto de esa nueva configuración de la estética en el mundo de la cultura a través de las crónicas de Rubén Dario: las alianzas intelectuales que arma Darío y las negociaciones de una identidad subcontinental que organizan el mundo de su escritura en función de la idea de una cultura hispanoamericana. Elijo las crónicas porque en ellas se pone en escena un conjunto de estrategias para debatir la identidad y, a su vez, porque son textos que

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tienen una circulación más amplia que los especificamente literarios I. Si el problema de fundar las propias tradiciones culturales pertenece, en su aspecto programático, a la historia culturallatinoamericana desde la Independencia, el fin de siglo plantea una nueva fonna de ese proble­ma: la escritura que bajo el signo de la modemización comienza a ex­pandirse en la cultura occidental -Ia letra bajo el orden de la industria cultural- será portadora dei sistema de semejanzas y diferencias que, entre otras instancias,los viajes, las exposiciones universales, la prensa, las migraciones, la unificación deI positivismo como paradigma de inter­pretación y -en los países de América Latina- la organización de los Estados nacionales, ponen en circulación. Semejanzas y diferencias cuya catalogación, pero más especificamente su jerarquización, los intelec­tuales latinoamericanos debatirán en sus textos.

1. Afiliaciones y Alianzas

Ya Halperín Donghi (1987) destacó las nuevas relaciones que se traman en el fin de siglo entre Espana e Hispanoarnérica y el papel central que los debates acerca de la lengua y las tradiciones culturales tienen en ese proceso: "Sin duda, la aceptación deI carácter irrevocable de la secesión americana [ ... ] se traduce no solo en la intensificación de las relaciones diplomáticas sino en el esfuerzo por entablarlas en otras esferas" (78). Una de esas esferas será la de la cultura, a través de intercambios propiciados por la Academia de la Lengua y de textos como la Antología de Poetas Hispanoamericanos (publicada en 1892 con motivo dei IV Centenario) de Menéndez y Pelayo que "reflejaba, a la vez que el éxito alcanzado por la institución en sus esfuerzos por ganar un eco ultramarino, las dificultades de todo orden que el manteni­rniento de esa conexión todavía afrontaba ... " (78) pues era difícil hacer una selección desde Espana de materiales de América Latina, muchas veces inhallables en la península. A pesar de esto, no son sólo las insti­tuciones oficiales las que promueven vínculos más estrechos sino que la rnisma industria cultural encuentra en el nuevo escenario de bienes sim­bólicos, lugar para su expansión: "A la vez, desde comienzos dei siglo XX Paris ve disputada por Barcelona la posición de principal centro editorial para toda Hispanoamérica adquirida un cuarto de siglo antes, y al comenzar la entreguerra ya las antiguas Indias ofrecen mercado para la mitad de la producción editorial espafiola" (79). Creo que en esta dimensión ampliada de las industrias culturales deI fin de siglo, hay que leer ciertas adhesiones identitarias latinas que trabajan los textos de muchos intelectuales. La cuestión de la identidad hispanoamericana fonnaría parte de los intentos de crear condiciones de lectura -dentro y fuera deI continente- para una literatura que aspira a hegemonizar una

1 La crónica es ese géne­TO de circulación nove­dosa pero cuyo estatu­to cultural aún no se ha estabilizado en el Fin­de-siecle. Seilala Susana Rotker: "Más de la mi­tad de la obra escrita de José Martí y dos terci­os de la de Rubén Da­rio, se componen de tex­tos publicados en peri­ódicos" (1992: 13).

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práctica cultural que, en el subcontinente, comienza a hacer cada vez más clara su fragmentación.

Los lazos que vuelven a Espafia extranjera e íntima a la vez son los. caminos de un mismo proceso de inserción y reconocimiento en el cual los intelectuales tendrán un lugar central. Proceso que no será ajeno ai que están experimentando las élites espanolas que intentan "europeizar" a Espana pero disponen, fundamentalmente, de las rela­ciones con América Latina como espacio real de intercambio. De ma­nera semejante, también los países más modernos de América Latina aspiran a la "europeización" de sus culturas nacionales aunque tan sólo sea en la forma de un cierto reconocimiento, una visibilidad, en la esce­na internacional. Miguel de Unamuno (que, por periodos, alimentó a su familia con la paga de La Naeión de Buenos Aires) en ellado espafiol y Rubén Dario (que por afios vivió de la misma empresa) en el hispano­americano, son dos ejemplos de intelectuales ligados por conexiones estéticas, profesionales y laborales en ese afán de volver a trazar el mapa cultural. Aunque Francia fuera el paradigma estético moderno y Paris su capital, entre espafioles e hispanoamericanos comienzan a tra­zarse los vínculos de una marginalidad o periferia evidente que la idea de un hispanoamericanismo unido podria llegar a revertir. En ese des­plazamiento de "Europa", la latinidad reasegura la pertenencia a una comunidad diferenciada que establece vínculos no territoriales sino de afinidades culturales y tradiciones negociadas, como si Espaiía e His­panoamérica se desprendieran de sus respectivos continentes y fijaran una relación "espiritual", entre sus deres, por sobre las diferencias. Diferencias que se marcan doblemente, con la tradición europeapredo­minantemente francesa y con la amenaza de la hegemonia "yanqui" en la escena latinoamericana.

En este sentido, pocos periodos de la historia intelectual hispa­noamericana muestran tanta euforia como el fio de siglo.Muy probable­mente sea Ariel (1900) de José Enrique Rodó el texto que condensa, bajo varias alegorias, el punto más alto de esa euforia evidente; siendo también el texto a partir deI cual esa historia eufórica comienza a desin­tegrarse. Es dentro de esta idea que los intelectuales hispano-america­nos -en tanto clase supranacional- rearmaron el mapa de sus afectos y lealtades ideológico-culturales a través de la legitimación de nuevas versiones sobre una identidad subcontinental y reacomodaron su agen­da temática. Los cuatrocientos afios de la Uegada de los espafioles a América, la guerra de Cuba, la definitiva erradicación de las colonias espafiolas en América, vuelven a poner en el centro dei debate el pro­blema de la identidad intelectual, rearrnando los alcances de una suerte de confraternidad panlatina que autoconstituye a "los cultos" en elite capaz de dirigir la cultura como un dominio separado de la práctica política. En este contexto, el problema de lo nacional se reforrnula y la

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identidad hispanoamericana se fortalece. Mezclando argumentos iluministas, positivistas, idealistas -mo­

dernos- Rodó escribe a sus veintinueve afios un ensayo para la juven­tud de América como un llamado, una interpelación, a la aristocracia dei espíritu que debe, necesariamente, guiar a las muchedumbres cie­gas. Lo escribe desde varias posiciones de poder: el saber y la Acade­mia como fundamentos de la élite intelectual; el orgullo y la supremacía -incomprabable pera declamada- que otorga no haberse destacado, por desprecio de la vida material, en las empresas que denomina prác­ticas, utilitarias; la declaración de que los intelectuales son los únicos capaces de ver y comprender un "más alIá" de la vulgaridad de lo cotidiano. Una parte considerable dei ensayo se dedica, con la doble lógica que construye todo el texto, a profetizar la caída estrepitosa der modelo norteamericano por basar su dominio únicanlente en "lo mate­rial" pues padece además de una connatural incapacidad para las obras "dei espíritu". Sobre esta carencia dei otro, la fertilidad dei espíritu de las elites intelectuales latinas arma su futuro. Espiritualidad que cancela no solo el mundo de la materialidad sino, especialmente, el de la política y que implica inscribir só lo bajo el signo de la negación la nueva condi­ción deI intelectual: deI dinera, de la política, no se habla como positivi­dad en literatura pera son, por ello, el tema prioritario. Y por tanto es prioritario expulsar a la plebe y las turbas dei escenario de la cultura restringiendo su uso a una práctica basada exclusivamente en el presti­gio de la tradición. EI desprecio hacia Estados Unidos implica el reaco­modo de Espana en el discurso de las elites latinoamericanas, pera tam­bién implica el reacomodo de valores en el interior de las culturas nacio­nales: no ai utilitarismo (la vida organizada según los valores modernos), sí a la espiritualidad (la necesidad de las aristocracias intelectuales). Dario había manifestado tempranamente estas relaciones de manera más politizada que Rodó; escribió sobre los "yanquis":

... las horas que entre el/os he vivido las he pasado con una vaga angustia. Parecíame sentir la opresión de una montana, sentia respirar en un pais de ciclopes, comedo­res de carne cruda, herreros bestiales, habitadores de ca­sas de mastodontes. Colorados, pesados, groseros, van por sus calles empujándose y rozándose animalmente, a la caza deI dol/ar. (1950: 569)

Casi se enuncia la inrninencia de un peligro: una nueva barbarie puede conquistar a América Latina; aquella que amenaza no sólo con el "contagio" de su vulgaridad sino con la desembozada intervención eco­nómica. Frente a esta coyuntura, la clase intelectual cierra sus filas rescatando más que las tradiciones criollas, una nueva alianza con el

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2 Conviene recordar la dimensión de esta con­sagración: "No da la im­presión de que Azul... tuviese un éxito de ven­tas inmediato ... el libro habría de esperar hasta las cartas de Valera en EI Imparcial de Madrid, en octubre de 1888, para empezar a ser 'buscado y conocido tanto en Es­pana como en Améri­ca'" (Martínez en Da­rio 1995: 29).

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hispanismo, no tanto como alternativa frente a la penetración norte­americana sino como regulación interna de los nuevos públicos latino­americanos. La historia parece repetirse: si en el periodo de la Emanci­pación hispanoamericana también las élites de crio\los independentistas habían buscado las formas de crear una clase política que excluyera a negros, indígenas, gauchos, los intelectuales deI fin de siglo, crearán un consenso sobre el tipo de "aristocracia deI espíritu" que puede contri­buir a elaborar los programas políticos de las elites y que detenga el avance de las crecientes clases medias.

2. Los vínculos

Cuando Juan Valera consagra Azul... en 1888 comienzan a esta­blecerse los más firmes lazos culturales deI Fin-de-siecle entre Espana e Hispanoamérica2 . Pero esos vínculos son completamente zigzaguean­teso Con la frase lapidaria "No exagero" concluye Darío un párrafo en su crónica "La novela americana en Espafía" (1898) donde \lama la atención sobre el desconocimiento que los espafíoles tienen de Améri­ca: en la prensa se confunden los países aI dar noticias, para los espano­les los latinoamericanos son más o menos mulatos y comen guayabas. Darío ve que entre la definición de la identidad y la construcción deI estereotipo só lo hay un cambio de posición. Reconoce asi la necesidad de unificar posiciones creando un locus de enunciación colectivo, que sobrevuele las diferencias para evitar el estereotipo europeo y obtener visibilidad en el escenario mundial. Son los valores modernos, precisa­mente, los que amenazan con despojar a la América hispana de su capacidad de modernización. Darío ya había sefíalado en 1889, refirién­dose a los problemas centroamericanos: "No es Europa únicamente donde se nos desfigura y se nos falsifica: es en la América deI Sur, que nos ignoran; en la América deI Norte, que nos panamericanizan" ("Igno­rancia y Malicia": 74). Frente ai afrancesamiento en bloque dei medio inte­lectual en el que vivia (Chile, Buenos Aires) y de sus propios gustos estéticos, Dario sitúa a América Latina en una relación estrecha con Espa­fí.a quizás como la mejor estrategia para obtener una visibilidad cultural. Reconocida la debilidad, se propone la unión como alianza alternativa:

De tal manera la raza nuestra debiera unirse, como se une en alma y corazón, en instantes atribulados; somos la raza sentimental, pero hemos sido también duefíos de la fuerza .. ./ Desde México hasta la Tierra dei Fuego hay un inmenso continente donde la antigua semilla se fecunda y prepara la savia vital, la fUtura grandeza de nuestra raza: de Europa, dei universo, nos /lega un vasto soplo cosmo-

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polita que ayudará a vigorizar la selva propia. Mas he aquí que dei norte parten tentáculos de ferrocarriles, bra­zos de hierro, bocas absorbentes ... (1950: 574)

AI mismo tiempo, muy probablemente toda exageración sea poca cuando se trata de describir y pensar el gusto "europeizante" de los artistas e intelectuales dei fm de siglo latinoamericano. Como ha sena­lado Edward W. Said (1993), el europeísmo se había constituido en el siglo XIX en una ideologia que habia penetrado todo (desde la c1ase obrera ai feminismo) y un paradigma homogéneo regia las identidades culturales de los modernos occidentales. Los intelectuales y artistas "esteticistas" latinoamericanos jugaron un rol central en la difusión de los gustos modernos de la cultura occidental poniendo ai alcance de sectores cada vez mayores el gusto de las tradiciones estéticas moder­nas, homogeneizándolos y tratando de borrar, por captura, las diferen­cias. AI hacerlo, les dieron también a esos sectores acceso a sus mis­mas prácticas culturales. En la cultura mundializada, sin embargo, esa homogeneidad es para los latinoamericanos el despliegue de todas las diferencias posibles.

En este contexto, probablemente sea Dario quien mejor visuali­ce que los lazos con Espana son fundamentales y mucho más producti­vos que los lazos con los paises centrales de la cultura europea. Y digo esto sin olvidar las muchisimas citas en que Dario afirma su devoción por Paris. Los lazos con Espana son la posibilidad de afirmar una nueva identidad intelectual en el continente. Dario apuesta aqui a la consolida­ción de un sistema de la lengua y las tradiciones frente a un mundo que excluirá, inevitabIemente, a América Latina condenándola a represen­tarse como barbarie o como carencia. Propone, entonces, una alianza entre débiles que edifica sobre el "espiritu" una nueva grandeza cultu­ral. Su hispanoamericanismo (y el de los muchos que lo retoman) es asi la respuesta a los diferentes reacomodos que le darán a los países lati­noamericanos un lugar ya claramente periférico dentro de esa cultura mundializada que crea, sin embargo, la ilusión de homogeneidad. Res­puesta que es menos critica que alternativa, menos de conflicto que de consolidación de clase intelectual.

Dario no deja de aprovechar la oposición Estados Unidos -Espa­fia para retomar sus temas más entranables: la aristocracia dei espiritu, el desprecio por la "mesocracia" y el valor de la cultura letrada en la consolidación de una identidad continental que sea la reserva de valores éticos. La negociación con Espana, en este sentido, es posible y desea­ble pues no se hace en desventaja. Espana para Dario es una ruina que hay que reconstruir; en ese diagnóstico (el "crepúsculo de Espana") paralelo ai que están haciendo los espafioles, los intelectuales hispano­americanos, pueden -si se lo proponen- cumplir un rol protagónico:

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Los que vienen, los que son hoy esperanza de Espana, deben asentarse sobre l.as viejas piedras dei edificio caí­do, y sobre él comenzar la reconstrucción, poniendo la idea nacional en contacto con el soplo universal; mante­niendo el espiritu espanol, pero creciendo en la luz dei mundo. (1950: 578) Espana no es el fanático curial, ni el pedantón, ni el dómi­ne infeliz, desdenoso de la América que no conoce; <la Es­pana que yo defiendo se /lama Cervantes, Quevedo, GÓn., gora, Gracián, Velázquez; se llama el Cid, Loyola, Isabel; se llama la hija de Roma, la hermana de Francia, la ma­dre de América. (1950: 576)

AI mismo tiempo, su interés en construir puentes intelectuales con la renovación cultural en Espaiía lo llevó a escribir constantemente sobre su literatura y a establecer contactos personales muy sólidos con los principales escritores de los centros intelectuales espafioles. El elo­gio a la espafiolizante novela dei argentino Enrique Larreta, La gloria de don Ramiro (1908), va en esa misma dirección: "Su libro es, en su género, con la honesta abuelita Maria dei colombiano Isaacs, lo mejor que en asunto de novela ha producido nuestra literatura neomundial" (1916: 989). Pero, ai mismo tiempo, el pálido elogio de la cruzada hispa­noamericanista de Manuel Ugarte deja en claro que, en términos políti­cos, la solución le merece su más explícito escepticismo.

En esta oposición, Estados Unidos se visualizaba como un ene­migo potencial no solo en cuanto a la política de intervención centro­americana <sino también como "inventor" dei "diarismo" que, para Da­río, condenaba a un lugar secundario a la literatura y al escritor aristo­crático pues lo obligaba a profesionalizarse. "EI artículo de fondo, el artículo meditado, pensado, de otro tiempo ... está reemplazado con la crónica más o menos escandalosa, con la descripción y e1 detalle inúti-1es, con el trabajo exclusivo de los reporteros ... " (1890: 121); "Los que han impulsado por este camino el periodismo actual son los yanquis. [ ... ] Todo lo ha invadido la información. [ ... ] Todo está amenazado por el nuevo diarismo" (122-124).

No hay que olvidar que por entonces, tal como lo anota Enrique Gómez Carrillo, "Era la época, en efecto, en que los periódicos de Es­paiía y América. comentaban los debates deI Ateneo sohre si la forma poética estaba o no llamada a desaparecer" (1974: 232); es decir, se debatía sobre la "desaparición" de< la poesía, sobre el fio deI arte, pues todos los intelectuales de la época visualizaban las nuevas prácticas relacionadas con I(). escritura, las de los medios, extendidas cada vez hacia más lectores, como una amenaza (y en realidad lo era, mucho más de lo que se suponía) a las "beBas letras". También Dario, en las

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"Dilucidaciones" de EI canto errante (1907) se había hecho cargo de la pregunta por la desaparición de la literatura en la sociedad moderna.

Como suele suceder con ese tipo de preguntas, siempre tienen un carácter retrospectivo: pueden formularse en la esfera pública sólo cuando aquello por lo que preguntan ya ha acontecido. La formulación de la pregunta por la desaparición de la forma poética es el medio en que va inscrita su propia respuesta: aunque Dario subraye que jamás va a desaparecer, en realidad, sabemos que, como tal, ya babía desapa­recido pues el arte de elites se había transformado en algo diferente. Será actividad de los poetas, (auto)convertidos en "raros", argumentar sobre esa pérdida e imposibilidad pero, fundamentalmente, será su ta­rea crear un nuevo tipo de literatura, negociadora con las nuevas prác­ticas culturales de las sociedades finiseculares.

Y eso es lo que bará Rubén Dario: negociar, renegociar las poé­ticas posibles en culturas en las que el arte lia perdido completamente su posibilidad de interlocución tradicional pero, para curiosidad de to­dos, interpela a otros sujetos. Esos nuevos sujetos (emblematizados en las mujeres y las mucbedumbres) son los que despojan, con su consu­mo, aI arte de su relación aurática pero son los que le conceden, sin embargo, el valor de un universal con el que quieren entrar en relación.

Lo que comienza a ser la cultura de masas opera de manera decidida, con una fuerte presión, sobre el discurso letrado a través de diversas formas de la novedad y la tradición, y si los canales de circula­ción no son exactamente los mismos que los deI arte tradicional, sus mecanismos comienzan a parecerse peligrosamente. Lo que revela Azul... es, entre otras cosas, no la construcción de la tan mencionada voluntad esteticista de Dario sino el diálogo que mantienen sus textos con problemáticas, coyunturas y polémicas culturales de las sociedades latinoamericanas deI momento pero, de manera especial, con las nue­vas formas en que circula la cultura bajo las condiciones de progresiva "mundialización''3.

3. Hispanoamericanismo

Creo que la escritura de Dario inaugura una imposibilidad, la deI concepto mismo de arte -tal como se lo concebía en la vieja tradición letrada- en la sociedad latinoamericana finisecular. No es el "arte puro" lo que la escritura de Dario viene a problematizar sino más bien el arte que se adapta a los nuevos requerimientos de las industrias culturales y aprende a convivir con sus nuevas exigencias y formatos. Ahí también -creo- reside la novedad que pronto supieron ver sus contemporáneos, que rápidamente se convirtieron en seguidores. Rubén Dario hizo la tarea por todos: incorporó el arte aI mercado pero ai mismo tiempo

J Baste recordar ese otro aspecto de los vinculos culturales entre Europa y América Latina: los tours de las Compaí'lias de Zarzuelas, de Opera, la lIegada de revistas y periódicos y las nuevas tecnologias que acercan la información y difun­den con rapidez las nue­vas prácticas de la mo­dernidad.

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mantuvo la ilusión de una cierta "aura" que los textos autorreflexivos y herméticos explicitaban como discurso hegemónico. De ahí la forma en que se expandió la estética modernista en la canción popular posterior, porque la forma es lo que primero toca a los nuevos sectores que ingre­san a la cultura letrada y encuentran en la complejidad formal de los textos de Dario y deI modernismo la consolidación de la idea que, a través de la enseõanz.a pública y de las escrituras que difunde la indus­tria cultural, tienen de lo poético, lo literario y la belleza y que conside­ran valioso apropiarse ante las perspectivas que abre el ascenso social.

La opción por el hispanoamericanismo parece ser, en el Fin-de­siecle, la alternativa de los letrados eo conjunto frente a los cambios que las identidades nacionales están atravesando; pero, fundamental­mente, parece ser la alternativa de la clase intelectual frente a los des­plazamientos y reacomodos de la esfera de la cultura impactada por los cambios de la industria cultural. Pensar lo hispanoamericano implica, entonces, entreI azar dos problemas, identidad y alianza coyuntural en­tre culturas periféricas; con ambos en la mano, los letrados contribuirán a fortalecer ciertas posiciones de clase intelectual amenazadas por las aspiraciones de los nuevos sectores ascendentes.

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"Don't interrupt me": lhe Gender Essay

as Conversation and Countercanon

Mary Louise Pratt Stanford University

Like the Sanyasis-Nirvanis of the Vedas, who taught in a whisper in the crypts of the temples plegarias y evocations which were never written down, woman, sUent and re­signed, crossed the frontiers of centuries repeating, with frightened secrecy, the magic words: freedom, justice.

Victoria Ocampo, Woman and her Expression, 1936 (p. 246)

T he two students walked in looking downcast. They had just come, they reported, from yet another literature course whose syUabus inclu­ded no women writers. This time it was a course on the Latin American essay. There were, the professor had explained, no women essayists of sufficient -caliber to merit inclusion in the course. "Who says?" they asked, "and how do we know it's true?"

Most literary scholars and teachers have been affected in some

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way by the toma de conciencia ('taking of consciousness ') that has taken place in literary studies regarding processes of canonization. Even the most conservative scholars find they must now defend the proposi­tion they once could take for granted: that canons consist of intrinsically great works that have risen to the top by virtue oftheir greatness, the cream on the milk. This 'naturalized' concept of canons has been thoroughly undermined by literary historians on empirical grounds. Two oftheir arguments have been particularly forceful: first, they have demons­trated that canons, 'eternal' as they may seem in a given historical mo­ment, are anything but stable over time, that today's masterpiece was yesterday;s doggerel, and probably tomorrow's too. Second, criticai scholars have explored the ways canons and canonization processes are socially determined, along lines that correspond to lines of social hierarchy. (Even many traditionalists concede this point. Many agree that canons are built around the interests and ideologies of ruling classes, genders, and races, and simply argue that these are ideologies which they, as traditionalists, subscribe to.)

Canon-busters, that is, scholars who seek to open processes of canonization to historical scrutiny, ofien find it useful to distinguish two dimensions of their inquiry: the exposure of canons as structures of exclusion and as structures ofvalue. The first (the easy one) involves finding works which meet the criteria for inclusion in the canon, but which have been excluded for 'illegitimate' (nonliterary) reasons. This is the case of, say, texts denied canonization because their author is a woman. Such an argument could be made for the fiction of Juana Ma­nuela Gorriti, for example, or most of the poetry of Gabriela Mistral. Often, as in the case ofGorriti and Mistral, the excluded writings were widely read in the author's own time, only to be lefi behind by andro­centric literary historians committed, consciously or otherwise, to main­taining male govemance over culture and the literary.

The second inquiry, into canons as structures of value, is more difficult. This is the project of showing that the criteria used to deter­mine literary value are themselves constituted in ways that reflect struc­tures ofhegemony in the society. This involves questioning the process through which 'legitimate' literary inclusions and exclusions are made. Texts by members of subordinated or marginal social groups, the argu­ment goes, will always appear, as the professor said, "to lack suflicient caliber to merit inclusion", ifthey are read through the codes of inter­pretation and value that produced the exclusionist canon in the first place. Canons, from this perspective, are overwhelmingly self-confir­ming structures, reproducing themselves through practices ofreading, in the most basic aspects of literary experience, such as horizon of expectation, geme, subject matter, language or point of view. Readers trained in/on canonical texts, it follows, are by definition unequipped to

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evaluate texts by subordinated or excluded groups. They will invariably misread such material, dislike it, dismiss it as illegibile or (more likely) trivial in content and formo To evaluate noncanonical writing, this argu­ment goes, you must first leam to read it. To judge it on the basis of established literary norms is by definition to pre-judge it, and repro­duce the structure of exclusion that marginalized it in the first place. Canons are not just Iists of books, but value machines that generate their own truth.

Just as access to literacy, to institutions of writing, and to the circuits of print culture have been socially restricted, so has access to canonicity and the power to canonize. The latter power has rested above all with the academy, traditionally one ofthe most exclusionary institu­tions of alI. No one disputes that the wave of criticai and relativistic thinking about canonization in the 1970s and 80s was itself a result of the steady democratization of universities in the industrial countries after World War 11. The transnational crisis of 1968 began, as we ali recall, in student movements that initially rallied around the critique of canonical structures of knowledge in the academy. No one disputes the pivotal role played by feminism in opening up this inquiry, and upholding it against harsh and relentless attack.

It would be hard to find a literary corpus more androcentrically constituted than the Latin American essay. Its anthologies (those great rnirrors of canonicity) are veritable monuments to male intellectuality, their tables of contents populated by a dozen or so familiar, and worthy, narnes: Bello, Echeverria, Sarmiento, Montalvo, González Prada, Hos­tos, Martí, Rodó, Henriquez Urena, Vasconcelos, Mariátegui, Martínez Estrada, Arciniegas, Reyes, Picón-Salas, Zea, Paz, Anderson Imbert. A brief survey of essay anthologies and criticism in my university li­brary (Skirius 1981, Earle et aI. 1973, Vitier 1945, Rey 1985, Ripoll 1966, Urrello 1966, Guillén 1971, Foster 1983) revealed few exceptions to the male monopoly: Chilean Gabriela Mistral, included among 26 au­thors in an anthology of 20th century essays (Skirius, 1981), and Puerto Rican Concha Meléndez, author ofthe shortest excerpt in an anthology of contemporary essays (Guillén 1971). A comprehensive history ofthe Latin American essay (Earle et aI.) included brief mentions of Melén­dez, her compatriot Margot Arce, and Argentinian Victoria Ocampo. In an innovative and illuminating criticai study ofthe essay that appeared in 1983, North American critic David Williarn Foster raised the question ofwomen's essayistic practice in a brieffinal chapter on Victoria Ocam­po's Testimonios, which are most conspicously characterized, he ar­gues by the insignificance of their subject matter. Foster attempts to argue for reading strategies that would recover a serious intent for the Testimonios, yet his analysis remains compatible with the traditional view of women as outside the truly intellectual. One is struck, more-

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over, that this critic chose to consider Ocampo's Testimonios. Ocampo after ali wrote many pages of what are unambiguously essays. Why, one wonders, have they not been candidates for criticai studies, course syllabi, or anthologies ofthe genre? In one ofthose essays, a three part work titled La mujer y su expresión ('Woman and Her Expression,' 1936) Ocampo offers a possible diagnosis for her own exclusion. "I believe," she wrote,

that for centuries ali conversation between men and wo­men, as soon as they enter on a certain terrain, begins with a 'Don 'f interrupt me' on the part of the man. Until now, the monologue seems to have been his preferred form of expression. (Conversation among men is simp/y this same monologue in dialogue form.) (p.13)

Men, she concludes, "do not feel, or feel only very weakly" the need for dialogue with women ("that other being similar and yet diffe­rent"):

In the best of cases, he has no tas te for interruptions. In the worst case, he forbids them. Hence man is content to talk with himself, and it matters little to him whether any­one listens. As for him listening to anyone else, it scarcely occurs to him. (p.13)

Applying Ocampo's terms, one could say that literary history has construed the essay as one of those male monologues which women have been either discouraged or prevented from interrupting. Ocampo offers a grim account of women's response to the centuries of 'Don 't interrupt me.' Women, she says, have "resigned themselves, for the most part, to repeating crumbs (migajas) ofthe masculine monologue, sometimes concealing among them some seeds ofher own sowing (algo de su cosecha)" (p.13). In what follows, I propose to offer a few observations about the male monologue that has been canonized as the Latin American essay, followed by some remarks suggesting that wo­men's participation in the genre has perhaps been livelier and more coherent than Ocampo saw it - perhaps she had more foremothers than she knew.

The criollo identity essay, that 'centaur of genres'

Let me begin with a generalization bome out by those antholo­gies and criticai studies I mentioned earlier. What has formed the back-

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bone of 'the Latin American essay' as a canon has been a particular strand of intellectual inquiry, whieh 1 will call the criollo identity essay. (Criollo here is used in its Spanish meaning, denoting the class of Spa­nish Americans who identify themselves as of European descent, and who after independence composed the ruling elites of most Spanish American countries.) I propose this label 'criollo identity essay' to refer to a series of texts written over the past 180 or so years by criollo (i.e. elite Euro-american) men, whose topic is the nature of criollo identity and eulture, particularly in relation to Europe and North America. The textual series reflects an ongoing problematic. How, the identity essay asks, are criollo identity and culture to be defined and legitimated in the post-independence era? How might criollo hegemony represent itselfto itself? What is, or should be, its social and cultural project? Most stu­dents of Latin American literature can readily list many members of this essay canon. It is sometimes seen as beginning with Bolívar's Ja­maica letter or the prologue to Bello's Grammar; its first undeniable monument is Sarmiento's Facundo, followed by Martí's Nuestra Améri­ca ('Our America'), Rodó's Ariel, Vasconcelos' La raza cósmica ('The Cosmic Race'), Mariátegui's Siete ensayos de interpretación de la realidad pernana ('Seven Interpretive Essays on Peruvian Reality'), Henriquez Urefia's Seis ensayos en busca de nuestra expresión ('Six Essays in Search of Our Expression'), Paz's Laberinto de la soledad ('Labyrinth of Solitude'), Retamar's Calibán. There are of course many other candidates for this list.

Now obviously the texts enumerated above differ a good deal among each other. Some were written as books, some as polemics, some as journalism; some originated as speeches delivered in public (not to mention Bolívar's letters or Bello's Prologue). Some pose the identity issue at a national levei, others from a continental or hemis­pherie perspective. Whatever the differenees, it seems a matter of empirical observation that the criollo identity essay was (as they say in Hollywood westems) no place for a woman. (Skirius (1973:9 and passim) poetically titles it 'that centaur of genres. ') The explanation is no mys­tery. By definition, women are one of the populations that the criollo identity essay undertook to exclude from full social identity. The spea­king subject of that canon, in other words, is male (and white) in a directed, exclusionary way. It is the figure ofthe pensador, the thinker, proprietor and producer of el pensamiento, from which women were by their nature excluded. As culture, citizenship and criollo hegemony were ongoingly mapped and remapped by Latin American intellectuals, men (elite, Euroamerican men, in fact) privileged themselves as the full bearers of culture, citizenship and hegemony. The exelusion of women from this sphere of power was an intrinsic part of the project. Women were to be disempowered from speaking as citizens for all citizens.

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Needless to say, this discursive situation reflected women's legal and juridical status under nineteenth century republicanism. Historians have described the processes by which women (along with many other sectors of society) were denied full citizenship in the American repu­blics, denied such powers as property rights, voting rights, reproductive rights, education, access to public office (even to public speech!) and equality under the law. Fortunately, women's access to literacy, print culture and the public sphere were established in principie before the republican era; they could not be silenced completely. If they were to speak and be heard, however, they were to speak as women. And that, as I shall discuss below, is what they did.

Women intellectuals and the 'gender essay'

To the extent that the criollo identity essay IS 'the Latin Ameri­can essay,' there indeed will be no women essayists in the canon: this is how canons ongoingly reproduce their own truth. It is equally a matter of observation, however, that women intellectuals continually refused to heed the reverberations of what Ocampo called the 'Don't interrupt me.' Right from the beginning, within their restricted access to educa­tion and to print, criolla (Euroamerican women) writers sought to assert themselves as social subjects, as agents of history, and as pensadoras. In fact one can readily identify a women's countercanon to the criollo identity project. Running parallel to the male-based identity essay, criolla intellectuals generated a tradition which could accurately be called the gender essay. As a label, I use this term to denote a series of texts written over the past 180 years by Latin American women, whose topic is the status and reality ofwomen in society. It is a contestatory litera­ture that aims, using Ocampo's terms once again, to interrupt the male monologue, or at least challenge its claim to a monopoly on culture, history, and intelIectual authority. As with the men's identity essay, the full corpus ofwomen's writing on gender would comprise hundreds of texts and thousands of pages. A few examples by some better known women writers include Gertrúdis Gómez de Avellaneda's "La mujer" ('On women,' 1860), IuanaManso's "Emancipación moral de la mujer" ('Moral Emancipation ofWo-men,' 1858), Mercedes Cabello de Car­bonera's "Influencia de la mujer en la civilización moderna" ('Influence ofWoman on Modem Civilization,' 1874), Clorinda Matto de Turner's "Las obreras dei pensamiento en América Latina" ('The Workers of Thought in Latin America', 1895), Soledad Acosta de Samper's La mujer en la sociedad moderna ('Woman in Modem Society', 1895), Alicia Moreau de Justo's Elfeminismo y la evolución social ('Femi­nism and Social Evolution,' 1911) and Socialismo y la mujer ('Socia-

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lism and women,' 1946), Amanda Labarca Hubertson's Adónde va la mujer? ('Where are Women Going?', 1934), Teresa de la Parra's In­fluencia de la mujer en la jormación dei alma americana ('The Influence of Women on the Formation of the American Soul,' 1930/ 1961), Victoria Ocampo's La mujer y su expresión ('Woman and her expression', 1936), Magda Portal's Hacia la mujer nueva ('Towards the New Woman,' 1933), Rosario Castellanos' Sobre cultura jemeni­na ('On Women's Culture', 1950) and Mujer que sabe latín ('Woman who Knowes Latin,' 1973). The above catalogue is emphatically NOT proposed as a potential canon, but only as an index of the large, conti­nuous and unexamined body of essayistic production by women around the question of gender.

Though it does not always say so outright, the gender essay con­tests the disenfranchisement of women implied by the criollo identity essay, and indeed by ali the official institutions of politics and culture in modem state societies. Historically, it can be read as the women's side of an ongoing negotiation in Latin America as to what women's social and political entitlements are and ought to be in the post-independence era. Ideologically, its discussions of womanhood are eclectic, operating both \\ithin and against patriarchal gender ideologies. Like the criollo identity essay, the gender essay continues to be a productive genre today. Alongside the outpouring of scholarly writings on women, texts like Julieta Kirkwood's Ser política en Chile ('To be a Political Wo­man in Chile,' 1986) and Heleieth Saffiotti 's A Mulher na sociedade de classes ('Women in Class Society,' 1969) have their roots in the tradition of public discourse I am trying to identify here.

I described the gender essay as mnning parallel to the identity essay in Latin American letters. Both are associated with the figure of the public intellectual who writes fiction and poetry and also engages actively in joumalism and public affairs. Ofien, as with the male tradi­tion, gender essays began as public oratory. One of the many instances is Matto de Tumer's "Workers of Thought," originally delivered at the Academy of Buenos Aires to a huge and affectionate public there to welcome her following her exile from Peru in 1895. Teresa de la Parra's "Influence ofWomen on the Forrnation of the American Soul" originated as a series of acclaimed public lectures she delivered in Bogotá in 1930. There was Amanda Labarca's address on women to the UN General Assembly in 1946. And of course there are the radio talks by Ocampo, where she sounds much less the elitist than she is usually made out to be.

Obviously the parallels between the criollo identity essay and the criolla gender essay does not mean the two can be read or analyzed in the same way. Reading habits for the gender essay have not been widely developed among scholars of Latin American literature and intellectual

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history. Indeed the most basic kind of scholarly mapping has yet to be performed on this body of texts. One or two generalizations can be risked at this point, however. To begin with, as the titles above suggest, the gender essay typically draws very little on the categories of the national, at least until the post World War 11 period. Though over­whelmingly concemed with defining women's citizenship, its writers tend not to speak either to or as subjects ofparticular nations. They are more likely to be concemed with the status ofwomen in modem nation­states in general. Secondly, among the materiais I have examined, at least two conspicuously different generic models seem to be at work in the gender essay. On the one hand, many of these texts take the form of a historical catalogue, in which the writer enumerates examples of women who have made significant contributions to society and history. Analytical commentary on woman's social and existential condition is interspersed among the vignettes. Matto de Tumer's "Workers of Thought..." takes this form, enumerating a panorama of women crea­tive writers ofher day. Acosta de Samper's Woman in Modern Socie­ty (1895) is an astonishing book-Iength instance, cataloguing the contri­butions of dozens ofwomen revolutionaries, charity workers, missiona­ries, moral thinkers, doctors, politicians, artists, writers and educators throughout Europe and the Americas, f TOm the French Revolution to her present. The contemporary vitality of the historical catalogue is attested by such recent encyclopedic volumes as Lydia Sosa de New­ton's Las argentinas ayer y hoy ('Argentine Women Yesterday and Today,'1967) or AngeIes Mendieta Alatorre's La mujer en la revolu­ción mexicana ('Women and the Mexican Revolution,' 1961).

At times the historical catalogue aims simply to assert the pre­sence and participation ofwomen in history, culture, and public life. Ofien, in the celebration of mujeres ilustres ('illustrious women ') it provides little more than a distaff version of criollo class privilege. This is perhaps a literature more of fact than of ideas, yet its task must not be underesti­mated. Under the aegis of positivism, women's subordination is ofien by what are claimed to be objective observations about their 'natural' capacities and limitations. Obviously it has been essential to combat such ideologies with empirical evidence of what women in fact ha ve done on the social stage. At the levei ofthe social imaginary, the histori­cal catalogue also insists on the reality ofwomen as agents ofhistory, a role denied them by official historiography. Within the hegemony Df positivist thought, these essays ofien make the argument for women as agents of progress or human evolution, rather than as regressive ele­ments that need to be patronizingly brought up to par. In what is one of the richest instances of this genre, Teresa de la Parrà's "Influence of Woman on the Formation ofthe American Soul" (1930) combines the historicaI catalogue with a profound meditation on the process of reco-

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vering submerged histories through fact and imagination. From a feminist perspective, the vitality of the historical cata­

logue in contemporary writing is scarcely a cause for unambiguous re­joicing. Historical catalogues of women's achievements are still being produced because the basic gesture they make is still necessary. In the face of overwhelming androcentrism in the official institutions ofknow­ledge, it is still necessary to assert over and over again, the simple fact of women's social agency and their capacity for purposeful activity.

A second discursive practice within the gender essay is the ana­lytical commentary on the spiritual and social condition of women. Here women writers challenge men on the intellectual terrain that has always been considered the domain of the essay, the terrain of pen­samiento ('thought'). Among the texts I have mentioned, Gómez de Avellaneda's gender essays exemplify this mode, as do those ofManso, Moreau de Justo, Labarca, Portal, Ocampo and Castellanos. Rather than seeking to reproduce male pensamiento, however, the analytical gender essay ofien proposes altemative forms of intellectuality that challenge the male prerogative to define what counts as thought. Gómez de Avellaneda's tripartite essay on "La mujer" supplies an interesting nineteenth century example of this intrervention. Here the main project apparently is to strategically construct an altemative epistemological foundation from which to refute both the supremacy of secular rationa­lity and the relegation of women to matemity. She opens her essay by distinguishing herself from "an elegant Spanish publicist" who has authored a recent volume on "the history of the fair sex." 'The idea does not enter our mind," she asserts,

to accompany him over the vast terrain of his philosophi­cal exploration, nor to lend him new and unknown data to enrich and support his theories. (p.285)

Rather, she says, she will begin with the subject of sentiment, an area in which, she argues, the supremacy of women remains unchallenged. To clear a space for her own authority, she admits cer­taio forms of male superiority - but only provisionally:

We concede without the slightest reluctance, that men re­ceived from nature a superiority in physical strength; we will not even dispute in the space of this brief artic/e the intellectual superiority which he so immodestly bestows on himself The conviction suffices us, and we say so sincere­ly, that no one can in good faith deny our sex the supre­macy in ... the immense sphere of sentimento (ibid.)

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Lest her readers devalue sentiment, Avellaneda immediately in­sists that lofty sentiments are the key to ali great souls, particularly the capacity for sacrifice, which women possess most fully. In an obvious response to the secular rationalism that underwrote male intellectuality, she goes on to anchor women's social and intellectual authority in two entirely different sites: the Bible and the body. The pain of childbirth establishes the divine right of woman as "queen ... of the vast domi­nions of sentiment" (287). The monarchic vocabulary here challenges the republican values that diseofranchise womeo. Meo, Avellaneda asserts, corrupt the divine right ofwomeo: only by reproducing on her own could Mary produce a divine child, in contrast with Eve, whose relations with Adam produced "descendencia corrompida" ('corrupt descendants'). The "bloody pages of religious heroism," Avellaneda argues, readily dispel any notioo of women as weak or unequipped to participate in public affairs. She returns to the Bible and offers what today would be called a feminist reading ofthe story of Christ. Through textual commentary she presents a dialectic, juxtaposing male obtuse­ness with female wisdom. While Jesus moves around Judea performing miracles and converting the poor, she observes:

The doctors of the law pursue and accuse him of distur­bing public order. The ignorant women follow him, blessing lhe womb Ihat conceived him. The Pharisee who receives him does not offer him water for the required ablutions. The sinfol woman arrives to wash his feet with her tears.

(p.288)

The juxtapositions go 00. Pilate orders Jesus beaten; Pilate 's \\ ife, "disturbed by mysterious presentiments," sends messengers begging for his life. The chosen (male) disciples disappear (alI but one) at the crucifixion, while three women remain to become the privileged wit­nesses of the resurrection.

It is worth underscoring here that AvelIaneda's tool for legitima­ting woman's social and epistemologica1 authority is her literary power as a reader and interpreter oftexts, in this case the Bible. The high point of her argument is a purely textual observation (note again the monar­chic image):

Woman! here is your son says lhe Redeemer lo Mary, sym­bolizing ali men in Sainl John. Note it well: he does not call her his mother, because the Queen of lhe martyrs does

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nol represent simply lhe augusl MOlher of lhe Messiah; she represenls woman - the rehabilitated woman, the sanc­tified woman, woman the co-redeemer, whose great hearf can conlain lhe maternity lhe universe. (p.290)

Though the point is easily lost on contemporary readers, Avellaneda's argument is a radical one in the context of dominant views ofwomen and citizenship in her time. Her reading insists on an absolute separation of womanhood from mOlherhood. The former, she insists, must be privileged over the latter - the Bible itself says so. Implicit is an aggressive repudiation ofrepublicanism's highly successful program of defining women's social value solely in terms of matemity.

Part Two of the essay takes the challenge a step further, ad­dressing the question of whether there are any grounds for considering women weaker than men, and whether women's superiority in matters of the heart necessarily implies their inferiority in matters of intelligence and character. Eventually, Gómez de Avellaneda openly lays claim to the domain of pensamiento ('thought');

Not only are we disposed to declare, with Pascal, that great thought is bom from the heart, bul we are struck by lhe idea thal lhe most glorious deeds ... have always been the work of sentimento (p.293)

This argument provides the basis for Part Three which arrives at the heart of the matter, the capacity of women "to govem peoples and administer public interests." Avellaneda's interest is not, and never was, to establish an altemative sphere of action for women; what she seeks are alternative points of entry into spheres of over which action men were illegitimately claiming a monopoly - such as the Spanish Royal Acade­my, from which she was excluded solely on the basis of her gender.

Some seventy years later, in Woman and her Expression (1936), Victoria Ocampo likewise begins by evoking and enacting a gender­conscious female intellectuality distinct from the male tradition. Unlike Avellaneda, however, Ocampo seizes possession of the key term pen­samiento right from the first sentence. "Lo primero que pienso ai ha­blaros," (emphasis mine) she begins ('The first thing I think' on addressing you'):

is that your voice and mine are conquering my great enemy, the Atlantic ... I have always seen the Atlantic as a symbol of distance. It has always separated me from beloved peo­pie and things. 1f it was not Europe, then it was America that I was missing. (p. 9)

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When she retumed from the United States via the Panama Ca­nal, she "gave thanks to heaven" that the long separation imposed by the Pacific had also been "defeated."

In complete contrast with the Americanist and, in this period, frequently nationalist identifications of the identity essay, Ocampo po­ses herself as a resolutely global subject for whom the mediation of distance is a primary task. Lest anyone think she is speaking only of geographical and not social distance, Ocampo's oceanic image leads into an anecdote about a translantic phone call she overhears in Berlin. An Argentine businessman calling his wife in Buenos Aires begins the conversation with the phrase ''No me interrumpas" ('Don't interrupt me'). This anecdote leads into the discussion of male monologue quo­ted above. Ocampo's female pensadora ('thinker'), on the other hand, knows the world through dialogue and mediation. "Interrupt me," she says to her listeners. "This monologue does not please me. It is to you I wish to speak, not to myself' (p.12). She poses women's expression as a struggle first and foremost against the enforced male monologue, and against women's conditioning to "offer herself as a holocaust." Nowa­days, says Ocampo, the woman on the other end of the phone call is daring to say:

This men s monologue does not relieve me either from my sujJerings or from my thoughts. Why resign myself to re­peating it? I have something else to say. Other sentiments, other pains have tom my life, other joys have illuminated it for centuries. (p.14)

Like Avellaneda (and de la Parra), Ocampo's preamble leads into a three part essay, the first on women's subjectivity, the second on matemity and social reproduction, and the third on public and nationallife.

As a tradition and a praxis, the gender essay is inextricable from the vast joumalistic literature on women and the gender system that has formed a conspicuous and continous aspect of Latin American public discourse throughout its history. Few themes have a more continuous presence across the vast range of Latin American perio-dical litera­ture. For many women writers, from Clorinda Matto de Turner, Delmi­ra Agustini to contemporary novelist Isabel Allende, short journalistic pieces on women were their point of entry into print; for many, from Juana Manso and Juana Manuela Gorriti, to Marta Brunet, Alfonsina Storni, and Rosario Castellanos, such writing was an ongoing source of income and a way to maintain a public presence in print. Rosario Cas­tellanos' noted Mujer que sabe latín ('Woman Who Knows Latin') is a compilation of such journalistic articles; so is Amanda Labarca' s 1946

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Feminismo Contemporáneo ('Contemporary Feminism'). (I will be discussing men's contribution to this literature below.)

Contextualizing countercanons

As with any effort to read marginalized writing 'into' a discur­sive field monopolized by a canon, there is a strong momentum to read the gender essay strictly as a response to male intellectual authority in general, and to the criollo identity essay in particular. 1 would like to suggest, however, that such a move should not monopolize the interpre­tation. Moreover, such a move is justified only if it runs both ways. The criollo identity essay, that is, must also be read as a response to the demands of women (and other marginalized groups) for full inclusion in society. This may seem a radical notion, and perhaps it is. It requires reading the claims ofthe criollo essayists not as sui generis expressions of a particular imagination, but as contested claims arising out of a profound and ongoing legitimation crisis. "Do I really have to think about women when I read the Jamaica letter, Ariel. The Labyrinth of Soli­tude?" the reader asks. Yes! Vou do! Vou have to (Ieam to) think about Bolívar's letters in the context ofthe ones Manuela Saenz wrote, where she assumed a political and historical authority that were later denied her. Vou have to demand tbat Rodó's Ariel and Retamar's Calibán explain tbemselves to Miranda and to Sycorax. Vou have to think oftbe problem Magda Portal and Alicia Moreau posed for Mariátegui. Vou have to ask Paz what he was afraid of when he reduced Mexican women to the role of La Chingada, and what Elena Garro and Rosario Castellanos have had to say about that. Hegemonic writing, so the ar­gument goes, must be seen as constituting itself in response to tbe coun­terhegemonic claims ofthose it subordinates, just as counterhegemonic writing must be read in relation to hegemony. The difference is that tbe hegemonic writers do not always have to name their others (in this case, women) in order to constitute a discourse, where as subaltems usually must do so in order to challenge the institutions of knowledge, often on their own terms.

Three adjustments are required to prevent the argument here from being excessively reductive. First, the two categories I proposed at the beginning, the gender essay and criollo identity essay, obviously do not begin to exhaust the essayistic production of either sexo Both men and women in Latin America bave written about everything under the sun. This fact is much better known about men than ahout women, however. As women are read back into the literary and intellectual histories which have elided them, their overall intellectual production

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must be read, sifted, and thought about. Second, though women are absent from the canon of the criollo

identity essay, it would be a complete mistake to say that women wri­ters never wrote on the criollo identity question or never undertook to speak for the social whole. They did, though they were rarely canoni­zed as legitimate interlocutors on such matters. \lIbere but in the litera­ture of identity are we to put Gorriti's Panoramas of lift (1876) or Matto de Tumer's Four Lectures on South America (1985/1909)? Or Mistral's Messages: Telling about Chile (1957)? Or Sosa de New­ton's biographical essays on the generais of the independence wars? Or short pieces like Marta Brunet's article "Americanismo también es obra femenina" (' Americanism is also the work of women ') in EI Re­pertorio Americano in 1939?

In addition to their work on the identity question there exists of course an enormous and largely unexamined corpus of social and civic writing by women in Latin America. History, education, religion, and morality were ali areas of general social inquiry on which women inte­llectuals regularly wrote. In the nineteenth century, in addition to her articles on women, Peruvian Mercedes Cabello de Carbonera wrote book length studies on Cuban independence and on The Injluence of the Arts on the Moral and Material Progress of Peoples. Her com­patriot Clorinda Matto de Tumer wrote a collection of Penei! Sketehes of Illustrious Amerieans. In addition to her essay on "The liberties, rights and duties ofwomen," Puerto Rican socialist Luisa Capetillo wrote books on Humanity in the Future (1910) and The Injluenee of Mo­dem Ideas (1916). Magda Portal wrote essays on "Latin America in the face of Imperialism" and "In Defense of the Mexican Revolution" (1931). The list is endless, and so far little read. Women writers were also prolific in the genre of civic poetry ('poesia civil '), while their auto­biographical works, from Gorriti 's Peregrinaciones de una alma triste ('Wanderings of a Sad Soul,' 1876), to Eva Perón's La razón de mi vida ('My Reason for Living,' 1951) ofien offer decidedly altemative visions of national reality and the national good.

The third corollary is that men did, of course, write essays about women and about feminismo In fact they did so endlessly, perhaps ob­sessively. They had to! In the face of women 's activism, their sheer numbers, and the manifest contradictions between democracy and gen­der inequality, an intense, ongoing propaganda effort was required to uphold women's subordination and to control their place in the social imaginary. This was particularly so during the 1920s and 30s when the levei ofparticipation in ali manner ofwomen's organizations escalated enormously, and women's political activity began to focus on the de­mand for suffrage. During these decades, published writing by men about women became prolífico A few male intellectuals more commit-

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ted to democracy than to their gender privilege wrote in support of women's equality and emancipation. It remains to be determined what male writings would fall into the category ofthe gender essay as I have specifically it. While Hostos' "Scientific Education ofWómen" (1873) is the only essay on women that has entered the essay canon, scholars have now begun to attend to the writings of Sarmiento and Echeverría on women (GarreIs 1989), the gender manifesto that is Mármol 's essay on Manuela Rosas (Masiello 1992), Gonzalez Prada on "EI problema de la mujer," (Kristal 1987), Vaz Ferreira Sobre flminismo (Moraiia, s.d.) and others. In tbree recent books examining debat~s on gender in Co­lumbia (Jaramillo et alo 1991), Argentina (Carlson 1987) and Chile (Santa Cruz et aI. 1978) respectiveIy, the bibliographies show about a fourth of the books about women published bet\veen 1910 and 1940 written by men. Needless to say, this literature runs the full breadth ofthe ideolo­gical spectrum, from Jesuits defending the Catholic order to socialists envisioning a gender revolution.

Here too, then, is a large corpus of writings needing to be sorted, sifted, and incorporated into scholarly accounts. Men's writings on the gender system, it seems, have been forgotten for the same reason wo­men's have: women and gender have not been regarded as significant subject matter for real pensamiento. But of course this reason overlays the workings ofthe patriarchal imagination, which seeks always to posit a normative male subject. In their encylopedic treatment of major male essayists, Earle and Meade (1973) completeIy elide alI mention of their writings on women. No matter which gender does it, apparently, writing about gender remains "women's work"! And of course indifference and neglect in this instance mask the unconscious momentum preven­ting the question of gender inequality from becoming a central item on the intellectual agenda and in the process of social understanding.

These bodies of largely unexarnined essayistic literature suggest that an importaot dimension of Latin American intellectual history has been omitted from academic awareness. The debate on gender, as car­ried on by women and men, across the ideological and social spectrum, and across the whole of Latin American history, should hold as central a place in Latin American intellectual history as the identity debate does. It should be recognized as absolutely central to the ongoing self­creation and self-understanding of Latin American societies. The gen­der essays of such writers as Gómez de Avellaneda, Ocampo, Labarca, de la Parra, Kirkwood, Castellanos and others should be in the essay anthologies and on the syllabi alongside those of their male contempo­raries. Women should be present as both the objects and subjects of pensamiento. It is a matter of both recovering the work, and learning how to read it.

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Quatro (2+2) Notas sobre o Sublime e a Dessublimação

Italo Moriconi Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Dialéticas do sublime

Os discursos do sublime na modernidade são marcados por uma ten­são constitutiva, interna, que os coloca em permanente confronto com a dessublimação. Em contrapartida, se a dessublimação pode à primeira vista ser tida como a Beatriz vanguardista, o simples fato de que a arte moderna pós ou anti romântica tenha sido, há já muito tempo, epica­mente instalada nos museus e instituições culturais e pedagógicas, é a prova de que os discursos dessublimadores da modernidade passaram, paradoxalmente, a ocupar também lugares do sublime. Sendo dessubli­mador o gesto iconoclasta, é sublime sua incorporação às narrativas históricas que lhe conferirão atributo de modelo estético no interior de uma tradição de ruptura (evocando o termo de Octavio Paz). Esse processo já foi mais do que identificado pelo pensamento estético dos últimos 30 a 40 anos. Já se sabe que todo ato disruptivo em arte acon­tece marcado pela fatalidade de um destino: o de sua futura assimila­ção, pedagogização, fetichização. Nesse sentido, se quisermos assumir o discurso da periodização, seremos levados a constatar que a

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consciência estética (e portanto moral) ocidental atinge concretamente (e não só especulativamente) uma condição hiper-irônica, super-cética, pois a transgressão já não pode mais ser outra coisa senão apenas citação da transgressão, encenação mimética e distanciada da trans­gressão, em suma, espetacularização ritualizada da transgressão.

A transgressão estética e comportamental torna-se funcional e passa a existir e adquirir sentido e valor nos marcos hiper-estetizados (porque hiper-irônicos) de uma economia geral da performance. Eco­nomia regulamentada pelas formas dinâmicas de um mercado em que enunciados "críticos", "diferenciais" ou "desviantes" não se contra­põem ao sistema e sim o integram, emprestando-lhe os atributos pós­modernos da abertura, diversidade, pluralidade, democracia. Integram o sistema até mesmo quando tematizam as franjas, os limites em que a realidade dele se revela meramente imaginária, construída, arbitrária. O informe, o excêntrico, o flertar com o descontrole, são elementos constitutivos e previsíveis na forma dinâmica da utopia democrática pós-moderna, pelo simples motivo de que tudo que é de alguma maneira formal e lingüisticamente regulado acaba por tematizar/encenar auto­reflexivamente seus próprios limites, suas fronteiras com o sem-forma, sua porosidade em relação ao além ou aquém da forma. Em suma, sua relação com o fora da linguagem.

Muito mais imediatamente ameaçadora para o desejo de formas abertas e plurais é a pulsão retrógrada, fascista, sempre presente, per­manentemente ativa, direcionada para restaurar a idéia e a prática de um sistema totalizante, excludente, fechado, homogêneo. É nesse tipo de sistema, próprio da modernidade canônica, e apenas nesse tipo de sistema, que uma cultura ou estética da transgressão pode ser interpre­tada e vivida como pura negatividade em relação ao todo. Nesse senti­do, que une indissoluvelmente política e estética no pensamento con­temporâneo, verificam-se duplamente funcionais tanto a arte quanto os comportamentos oferecidos no mercado como minoritários, transgres­sivos, experimentalistas, vanguardistas. São funcionais na corrente a favor da democracia midiatizada de massas, porque são funcionais no processo permanente de resistência, pela diferença, às tendências fas­cistizantes. O fascismo é o único adversário à altura da democracia, porque também é de massas e também é midiático.

No quadro da dualidade sublime/dessublimação, resta perguntar se num contexto de tal forma funcionalizado como o que se esboça na mencionada utopia ainda pode subsistir algum tipo de relação diferencial qualitativa entre os dois termos, já que o dessublime converte-se fatal­mente em sublime e este, por seu turno, constrói-se da incorporação de inúmeros atos dessublimadores. A equivalência geral de valores de que tanto se fala para definir a pós-modernidade revelaria então a comple­mentaridade dinâmica entre os dois termos, com o valor negativo da

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dessublimação sendo dialeticamente indispensável à manutenção e progresso do todo. Em matéria de teoria estética, será exagero afirmar que tal tipo de concepção provavelmente ajudaria cabeças inclinadas às seduções fascistizantes de uma cultura normali­zada pelo consenso e harmonia? Difícil dizer, fácil desconfiar.

Porém, no interesse de uma clarificação terminológica, mais gra­ve que essas dúvidas e rebatimentos ideológicos seria chegarmos à conclusão de que tentar formular a categoria dessublimação talvez seja inútil, à medida que o próprio termo sublime, na variedade de seus usos normativos (nos sécs. XVII e XVIII), filosóficos (XVIII e XIX) e teóricos (séc. XX), tem se prestado a nomear conceitos e práticas que, de outro ponto de vista, podem ser encarados como vinculados a dis­cursos dessublimadores. Assim, por exemplo, o abjeto, o grotesco, até mesmo o paródico em sua versão pastiche, não só se prestam a ser dialeticamente subsumidos ao sublime enquanto momento negativo, mas também podem ser simplesmente declarados como o próprio sublime. Nesta segunda linha de abordagem, o abjeto torna-se caminho privile­giado ou mesmo exclusivo para o sublime (evocando aqui certas místi­cas cristãs), a transgressão é já sublimação, a citação é ato retorica­mente sublime de remissão a uma grandeza passada inatingível no pre­sente. A ó'dessublimação" no caso nada mais seria senão modalidade moderna do sublime. O sublime moderno deveria ser então definido como sublime dessublimado ou como emergência do sublime na des­sublimação. Sabe-se que arrancar o sublime da letra dessublimada foi missão freqüentemente imputada à poesia moderna. Que se pense em Baudelaire. Que se pense, entre nós, na leitura de Manuel Bandeira por Davi Arrigucci J r.

De qualquer maneira, há um jogo de mão dupla a ser considera­do, mesmo que a dança terminológica revele-se insuficiente para esta­bilizar vocabulários referentes a cada pólo. Estabilizar a dualidade, des­de que em sentido paradoxal, agonístico, parece mais importante que determinar conteúdos unívocos para cada um dos pólos. Desde logo, ficar com a dualidade no mínimo representa o esforço de rejeitar abor­dagens monológicas das práticas e enunciados estéticos. Independente disso, cabe de fato verificar se os discursos do sublime, na variedade do que dizem, estão sempre fazendo alguma coisa em comum. E verificar se o interesse na separação conceitual e na especificação de uma ques­tão da dessublimação em estética pós-moderna de fato remete a práti­cas resistentes a subordinações dialéticas. Se se pode falar em emer­gência do sublime no interior de práticas dessublimadas e dessublima­doras (as quais seriam, no processo, desveladas enquanto meras apa­rências, ilusões ideológicas), por que não se pode falar também na emer­gência do dessublime em contextos sublimes?

Os discursos do sublime na modernidade, para se afirmar, preci-

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sam negar ou absorver a negatividade do não-sublime. Tal é o impulso que anima o movimento ascético operado pelo sublime kantiano contra o fundamento dessublimado (fisiológico, psicológico) do sublime de Burke. Movimentos estruturalmente análogos de dupla negação pode­rão ser rastreados nas estéticas românticas que, em terras alemãs ou britânicas, derivaram e deslocaram o discurso kantiano e seus suces­sores. Mais tarde, o não-sublime forneceu o solo discursivo para boa parte dos vanguardismos do séc. XX, a despeito de espiritualismos tipo Kandinski ou metafisicas do instante tipo Bamett Newman1• É só em referência a esse solo que uma noção de dessublimação pode se tornar pertinente para pensar a estética hoje, embora do ponto de vista antro­pológico certas manifestações da dessublimação vanguardista possam ser pensadas nos marcos de tradicionais dialéticas cristãs, como a já mencionada relação entre o sublime e o abjeto.

A diferença crucial entre a dessublimação vanguardista e a des­sublimação na mística cristã é que a primeira tem no sublime um alvo inimigo, ao passo que a segunda tem nele meta a ser alcançada. Assim, as estéticas de vanguarda (aqui incluídas aquelas ligadas à técnica, como o cinema) liberam historicamente a dessublimação de sua clausura dia­lética, embora não eliminem a dualidade com o sublime. A partir do modelo assim obtido, proponho caracterizar o sublime, de maneira ge­nérica, como movimento de elevação espiritual, movimento de ascese, afastamento deliberado das condicionantes corporais. Por contraste, a dessublimação será encarada como força rebaixadora, desespirituali­zadora, direcionada para a reintrodução da corporalidade nos discursos e nas práticas, movimento enfim de vinculação radical da estética à contingência e à pura materialidade.

Sublime kantiano e ascese

A grosso modo e como ponto de partida, pode-se então dizer que os discursos do sublime buscam compreender e legitimar valores esté­ticos na perspectiva da espiritualização e da relação do espírito com o infinito e o indizível. Embora o sublime em Kant diga respeito apenas à relação de conhecimento entre sujeito e natureza, sua reapropriação pelas teorias da arte é possível à medida que fornece um léxico apto a repor em tempos de crise terminal do classicismo a noção atávica no Ocidente de que arte grandiosa é aquela que, pelos caminhos do pa­lhos, eleva nosso ânimo até a região de um "não-sei-quê" pleno e mis­terioso, um "não-se i-quê" celestial ou profundo capaz de apaziguar o tumulto das emoções. Na Analítica do Sublime, a concepção tradicional recuperada pelo classicismo francês do século XVII (cf. a tradução de Longino por Boileau) é refraseada nos marcos da revolucionária teoria

I Ver "L'instant, New­man", um dos ensaios em que Jean-François Lyotard desenvolve um discurso do sublime para legitimar (enqua­drar, no sentido do "pa­rergon" derridiano) o experimentalismo abs­tracionista da pintura de nosso século.

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do conhecimento que constitui a moldura de todo o pensamento kantia­no e que gira em tomo do problema das condições pelas quais é pos­sível existir um sujeito cognitivo e moral (ou seja, o sujeito humano, sujeito transcendental). Sabe-se que as três faculdades fundamentais nas quais Kant decompõe esse sujeito são a imaginação (poder de es­quematizar figurativamente), o entendimento (poder de objetivar em leis e conceitos) e a razão (poder de criar idéias abstratas). Nos termos da releitura operada na Crítica do Juízo, o sentimento do sublime emer­ge quando a razão consegue derrotar a perturbação que o pensamento do infinito causa sobre a imaginação.

O infinito fala de uma grandeza além de toda matematização, aponta portanto para o fracasso da formalização, fracasso da forma. O infinito não pode ser apresentado figurativa ou projetivamente pela ima­ginação nem representado lógica ou conceitualmente pelo entendimen­to. Ele defronta o entendimento conceitual e a razão moral do sujeito com o Informe, o desprovido de forma e de lei. Trata-se de um confron­to que ameaça até de extinção o sujeito transcendental, pois este, por definição, só existe à medida que controla o objeto. A ameaça de extin­ção do sujeito se dá aqui num plano moral e epistemológico, mas ela é análoga ao sentimento que o assalta no plano fisico, ao ser posto em confronto, desta vez, com o que Kant chama de "dinâmico-sublime na natureza". Sentimento de iminência da morte que assalta o sujeito quando este constata sua fragilidade diante das forças da natureza. No discur­so kantiano, o medo da morte e das forças da natureza acaba por fun­cionar como suplemento comparativo que permite dramatizar o caráter extremamente ameaçador daquilo que não pode ser representado me­diante qualquer tipo de formalização. É o apaziguamento dessa ameaça que propicia o sentimento do sublime, manifestação de um prazer espe­cial, prazer mesclado a desprazer, prazer arrancado da consciência do perigo de perda dos sentidos, no plano fisico, e perda do Sentido, nos planos moral e epistemológico.

A consciência de estarmos permanentemente acossados por for­ças superiores a nós, no plano fisico-natural, assim como a possibilidade do colapso das representações, no plano das faculdades cognitivas (ima­ginação e entendimento), constituem o momento negativo e preliminar na experiência do sublime. Ao passo que o momento afirmativo, sem o qual essa experiência não se completa efetivamente, enraíza-se na cons­ciência adquirida pelo sujeito de que, pela razão, consegue pensar o infinito (isto é, consegue pensar o inapresentável) e consegue também contornar, domesticar ou mesmo vencer as forças da natureza, a come­çar pelo controle do próprio corpo com seus apetites desordenados. Se a experiência do belo se dá na contemplação, diz Kant que a do sublime se dá como movimento. O sublime é conquistado no decorrer da luta com a negatividade. Na experiência do belo, o sujeito contempla e se

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compraz com sua capacidade de produzir formas. Na do sublime, ele se orgulha do fato de que a Idéia (produto de sua pura liberdade) supera a Coisa (a contingência incognoscível da matéria). Resulta que o sublime kantiano é o sentimento de prazer muito solar, muito confiante e ilumi­nista, ocasionado pela constatação de que o poder criador da razão humana é tão forte que pode circunscrever pela forca da idéia as ameaças representadas pelo Outro dessa razão - a corporal idade animal, as catástrofes naturais, os abismos e a morte, o incomensu­rável e a treva.

Kant fala numa destinação supra-sensível do espírito. Se todo conhecimento humano passa necessariamente pelos sentidos (como se pode ler na Crítica da Razão Pura, em concordância parcial com os empiristas ingleses), o infinito, o todo absoluto, a força final da natureza representam o limite do humano porque não podem ser objetivados como fenômenos - são realidades supra-sensíveis. Mas é aí que entra a Ra­zão, como faculdade superior do sujeito transcendental. Ao contrário da imaginação e do entendimento, que só funcionam a partir dos dados por assim dizer processados pela sensibilidade, a Razão consegue esta­belecer comércio com o supra-sensível porque ela própria é supra-sen­sível. A confiança de Kant é tanta que, através da conexão entre sen­timento sublime, razão e supra-sensível, ele comete a ousadia (sutis ironias da Terceira crítica ... ) de igualar e até inverter a relação entre o humano e o divino, praticamente colocando, já na Analítica do Sublime, a hipótese do Deus judaico-cristão como subproduto da Razào2.

A noção de destinação supra-sensível do espírito como ponto de chegada da análise dos sentimentos estéticos (o belo e o sublime) evi­dencia o caráter ascético da teoria kantiana3 , no sentido de que promo­ve a substituição ou o abandono da sensibilidade e do corpóreo em favor do império da razão. Na verdade, a operação ascética trabalha ao longo de toda a argumentação desenvolvida na Crítica da Faculdade de Juízo Estética, a primeira parte da Crítica do Juízo, parte em que estão incluídas as analíticas do belo e do sublime. A operação ascética determina o encaminhamento da analítica do belo e, por tabela, volta a impregnar as deduções sobre o gosto, com as quais Kant fecha a men­cionada primeira parte, para depois entrar na crítica do juízo teleológico (segunda parte da Crítica do Juízo).

Pois o sentimento do belo irrompe da auto-contemplação do su­jeito ao comprazer-se com sua própria capacidade de reconhecer for­mas na natureza e produzir formas na arte. O belo é o sentimento de apreço do sujeito ocasionado pela consciência do universal da formati­vidade como algo ligado não à natureza mas a seu poder de colocar em acordo entendimento e imaginação. O trabalho livre da imaginação di­recionado pela inteligência enquanto mera faculdade dotadora de for­mas. Assim, se no sublime a realidade corpórea/corporal é seqüestrada

l A esse respeito, leia­se o final do #28 da Crítica doJuízo: "Por­tanto, a sublimidade não está contida em nenhuma coisa da na­tureza, mas só em nos­so ânimo, na medida em que podemos ser conscientes de ser su­periores à natureza em nós e através disso tam bém à natureza fora de nós ... Tudo o que suscita este senti­mento em nós ... cha­ma-se então sublime; e somente sob a pres­suposição desta idéia em nós e em referên­cia a ela somos capa­zes de chegar à idéia da sublimidade daque­le ente que provoca respeito em nós, não simplesmente através de seu poder, que ele demonstra na nature­za, mas ainda mais através da faculdade, que se situa em nós, de ajuizar sem medo esse poder e pensar nossa destinação como subI i me para além dele."

1 Sobre o ideal ascéti­co na cultura intelec­tual a referência pri­meira é a Genealogia da Moral de Nietzs­che.

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pela razão, no belo ela o é pela forma, ou, se quisermos ser mais preci­sos, pela questão da forma. A estrutura mesma da Crítica do Juízo tem uma dimensão narrativa, como se fosse um épico do sublime, nar­rativa que se desvela e se desdobra num crescendo de sucessivos graus de ascetismo: do belo ao sublime, deste ao gosto (que é puro senso comum) e daí ao gênio (que recria o belo na arte) e finalmente à teleo­logia, onde o fim último da natureza é dado como uma espécie de vírgu­la na concretização dos fins da razão.

Perda da aura: a dessublimação segundo Walter Benjamin

o ensaio de Walter Benjamin sobre a obra de arte na época de sua reprodutibilidade elabora o esboço de uma teoria do simulacro que é uma estética dessublimadora. Na noção de perda da aura Benjamin produz uma figura da dessublimação. Em contrapartida, a noção de aura realiza a proposta de crítica materialista dos discursos do sublime. O sublime aurático não é desdobrado de uma série de argumentos es­peculativos, como em Kant, ou posteriormente em Lyotard, e sim evi­denciado no seu caráter concreto, vinculado a práticas determinadas, históricas. Uma estética do sublime se baseia na contemplação do qua­dro em seu hic et nunc e no conjunto de comentários literários ou filo­sofantes que o emolduram. Já a estética da dessublimação terá como paradigma a ordem do simulacro, representada, no ensaio, pela vivên­cia do cinema. A cultura estética da dominante cinema substitui a cultu­ra estética da dominante quadro, assim como esta substituira a cultura da dominante arquitetônica dos afrescos e mosaicos. A cultura estética da dominante quadro é regida pela aura, ao passo que a da dominante cinema tem por princípio ativo a destruição ou dissolução da aura.

As diversas modalidades de práticas de destruição ou dissolução da aura que Benjamin aborda neste e em outros escritos a partir de fins dos anos 20 apontam para o exercício de um discurso não sublime de justificação e valoração da arte. Se na tradição estética moderna em­blematizada em Kant o sublime se caracteriza como auto-contempla­ção do poder criador da razão em função de sua capacidade de abstrair-se e elevar-se acima de tudo que é fisiológico, material ou ca­oticamente natural e informe, o caminho trilhado por Benjamin será exatamente o inverso, ao enraizar a atividade de conceituação do simu­lacro na interação entre corpo e meios de produção, entendidos como suportes imanentes da significação nas situações de recepção da arte. Dessublimar aqui significa abandonar o terreno de urna estética idealis­ta em favor de uma estética materialista. A concepção da relação entre o estético e o social é desabstratizada, historicizada em termos do que hoje se pode chamar questão do patrimônio. Vejamos sucintamente como

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se desenrola esta parte do argumento de Benjamin. Uma das características mais destacadas por Benjamin na ir­

rupção das massas como ator coletivo no cenário da sociedade moder­na é a desvinculação delas em relação à tradição cultural européia, construída a partir da herança afetiva e do acervo de obras preserva­das pelos membros das classes aristocráticas e burguesas. É só no âmbito dessa concreta cultura aristocrático-burguesa que adquire sen­tido e coerência a cultura estética regida pelos valores da aura. A situa­ção paradigmática da contemplação do quadro reproduz a distância que separa elite de plebe, cultura erudita de cultura popular, objeto pedagó­gico bem constituído de sujeito anárquico e desejante. Nesse sentido, a emergência das massas emblematiza a noção de modernidade, enquan­to valor oposto à tradição, entendida esta como ligação orgânica e vital entre o presente e o passado. Por sua origem plebéia, física e afetiva­mente dissociada das memórias e disciplinas auto-formativas aristocrá­tico-burguesas, o mundo da sociedade de massas mostra-se efetiva­mente revolucionário, de tal maneira que a memória válida para a cultu­ra moderna não poderá coincidir com aquela na qual sempre se reco­nheceram os escalões sociais mais antigos e altaneiros.

Mas a ruptura dos elos orgânicos entre a sociedade moderna do início do século e a tradição dentro da qual se haviam forjado os ideais civilizatórios da cultura pós-renascentista e pós-iluminista guarda as­pectos ainda mais dramáticos e irreversíveis. Tendo o ciclo histórico da modernidade ocidental atingido seu apogeu, marcado pela europeiza­ção do mundo na esteira da globalização do capital, o centro mesmo dessa civilização entra em colapso e mergulha no processo autofágico que leva à sua autodestruição em dois capítulos: as guerras mundiais, marcadas, para usar uma expressão de Benjamin, pelo "monstnlOso desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem", A hege­monia cultural do Ocidente globalizado atravessa o Atlântico. Agora, todo um oceano separa o passado sublime do presente dessublimado. A produção imaginária precisa cortejar a plebe rude analisada por Toc­queville e poetizada por Walt Whitman. E o discurso franco-alemão da estética, através do texto benjaminiano, abre um parágrafo para o camundongo Mickey.

O fim da tradição cultural não significa, porém, que se atire total­mente ao mar a bagagem da herança eurocêntrica. Sendo a tradição dada pela ligação orgânica com a herança, o problema que se coloca com o deslocamento da hegemonia da estética para a cultura america­nizada de massas é a perda da ligação automática que definia original­mente essa ligação. Não é que a herança cultural deixe de existir, ela deixa é de fazer sentido a priori. Em "Experiência e Pobreza", a ques­tão é colocada de forma interrogativa: "( ... ) qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a

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nós?". A resposta aí prefigurada identifica uma transformação ou re­funcionalização do valor em geral dos valores culturais: a herança cul­tural deixa de valer como presença autenticada da tradição que vem de longe e passa a valer por sua atualidade e por sua proximidade, no sentido de que é preciso que ela se legitime como próxima para que possa adquirir relevância. Assim, a relação com a herança cultural tor­na-se seletiva, fragmentária, descontínua, arbitrária, iconoclástica, pa­rodística. Ela se torna também mais pragmática, imediata, efêmera, afastando-se do campo do sublime.

Também o simulacro se rege por lógicas de atualidade (ou atua­lização) e proximidade (ou aproximação). O desenvolvimento das téc­nicas - da litografia à fotografia e ao cine-jornal- instaura uma dimen­são estética ligada ao cotidiano e ao ritmo da imprensa. A dessublima­ção da arte proposta por Benjamin significa ligá-la estreitamente à prá­xis cotidiana. Intervenção no cotidiano, reflexão sobre o cotidiano, mul­tiplicação de perspectivas sobre o cotidiano, utilização do cotidiano como arma política contra o sublime apropriado pelo espetáculo público fas­cista: eis aí alguns caminhos apontados pela estética sugerida no ensaio sobre a obra de arte. É a partir do interesse de uma política de valoriza­ção das vivências do cotidiano, visto como contraforça à alienação in­duzida sistemicamente, que se pode atribuir valor de arte à imagem­quadro legada pela tradição ou pasteurizada no simulacro. A recepção da arte torna-se portanto operação de dotar os objetos estéticos de um sentido de atualidade. O valor atualidade torna-se mais decisivo que o valor de testemunho.

Do ponto de vista da produção, o simulacro cinematográfico ou televisual caracteriza-se pela possibilidade de multiplicar infinitamente os ângulos de visão de uma mesma realidade no interior de uma se­qüência sintagmática. Ele realiza de maneira muito mais eficiente cer­tos aspectos da proposta cubista, que pretendia projetar a temporal ida­de decomposta numa superfície formada por múltiplos planos de senti­do simultâneos. É estruturante no simulacro a decomposição analítica da imagem através da multiplicação de pontos de vista que a rapidez dos mecanismos técnicos de apreensão e montagem permite superpor. A multiplicação das perspectivas do olhar é uma tarefa infinita na esté­tica, na ética e na pedagogia da idade da câmera. Essa estética também aqui se opõe frontalmente à estética do sublime. Pois o infinito indizível e incorpóreo ao qual alude o sublime tradicional transforma-se aqui no infinito de desdobramentos da própria materialidade.

A certa altura, Benjamin compara os trabalhos do pintor e do filmador. Observa que o primeiro não pode jamais abolir a distância entre a realidade dada e sua própria interação com a tela. Ao passo que a lógica do trabalho do filmador é bem outra, pois dirigida pelos movi­mentos de aproximação e decomposição do dado. O filmador "utiliza

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instrumentos destinados a penetrar, de modo mais intensivo, no coração da realidade." Na estrutura da realidade representada, tal como vista por Benjamin, o simulacro assemelha-se ao bisturi do cirur­gião, enquanto a imagem pictórica é análoga ao impor de mãos do cu­randeiro. Se na estética sublime da representação voltada para a con­templação observa-se em todos os planos da interação (criação, objeto, recepção) um abismo, mediante técnicas de abstração, entre a imagem da representação e a experiência perceptiva, na ordem dessublimada do simulacro a representação se dá num corpo a corpo entre proje­ção da imagem e fisiologia. Imagem e corpo presente, imagem e coisidade do real, imagem imersa alternando-se pendularmente com imagem abstraída.

Inconsciente ótico

Uma das principais metas visadas pela estética desauratizada é a infinitude de perspectivas em que se desdobra o cotidiano. Com base nisso, Benjamin fala de um inconsciente ótico, desenvolvendo no ensaio sobre a obra de arte, com referência ao cinema, léxico anteriormente apresentado no escrito intitulado "Pequena história da fotografia", de 1931. A câmera revela dimensões da experiência que não são habitual­mente tematizadas pelo olhar no cotidiano. São dimensões vividas, mas não focalizadas pelo sistema ótico natural. O inconsciente ótico é for­mado por aquilo que não é tematizado pelo olhar mas faz parte das percepções do cotidiano. Diz Benjamin: "Se é banal analisar (..) a maneira de andar dos homens, nada se sabe com certeza de seu estar durante a fração de segundo em que estica o passo. Conhe­cemos em bruto o gesto que fazemos para apanhar um fuzil ou uma colher, mas ignoramos quase todo o jogo que se desenrola realmente entre a mão e o metal, e com mais forte razão ainda devido às alterações introduzidas nesses gestos pelas flutuações de nossos diversos estados de espírito. É nesse terreno que pene­tra a câmera, com todos os seus recursos auxiliares de imergir e de emergir, seus cortes e isolamentos, suas extensões do campo e suas acelerações, suas ampliações e reduções. " Microcirurgia do olho de vidro no detalhe do cotidiano.

Em tomo do jogo entre o vivido (no sentido de percebido apenas no inconsciente ótico) e o focalizado (no sentido de tornado consciente ao olho natural ou técnico), Benjamin resgata certa potência positiva na cultura de massas. Esta se apresenta como manifestação de barbárie na medida em que se limita a formas de entretenimento, diversão gros­seira de plebe rude, passatempo para reposição de força de trabalho. Mas o Benjamin de "A obra de arte na época de sua reprodutibilidade

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técnica" vê na diversão ou distração apenas uma forma histórica, uma situação paradigmática, em que se agencia a formação de valores esté­ticos. Ele apresenta então um esboço de análise da forma diversão.

A defesa da cultura da diversão assume valor antitético em rela­ção à cultura da reflexão, da atenção concentrada, da contemplação. Ela pode ser lida também como reivindicação dos direitos da sensibili­dade sobre os da reflexão. Uma inteligência de base profundamente intuitiva e sensorial é o que Benjamin propõe. Mas o descer à base sensorial para justificar um pensamento estético associa-se a um des­cer na escala social, afastando-se dos hábitos seculares da classe dos pensadores, deixando-se envolver pelas vivências da plebe rude, ten­tando uma inteligência específica dessas vivências. É fácil resvalar para uma leitura populista ou demagógica dessas idéias benjaminianas. Para evitar isso, basta lembrar a moldura histórica e perspectivista na qual se enquadra o esteticismo do nosso autor. A sensibilidade não é um conti­nuum nem um universal. Ela é múltipla e heterogênea.

A tentativa de pensar a contrapelo de uma valorização aprioristi­ca da reflexão associa os temas da diversão e do inconsciente ótico. A diversão configura uma forma de recepção distraída e dispersa. Distra­ção e dispersão do olhar, mas percepção tátil, vivencia!. Através da expressão "inconsciente ótico", Benjamin quer falar de uma dimensão sensorial marcada pela dominante tátil. Paralelamente, portanto, à au­sência de reflexão e à dispersão do olhar, ocorre a recepção tátil. A recepção do cinema é tátil porque é ambiental e coletiva. Daí o paralelo entre cinema e arquitetura, que Benjamin elabora nas seções finais de seu texto. A recepção da arquitetura no cotidiano também é tátil, ambiental, coletiva.

A estrutura da recepção cinematográfica fornece o modelo pelo qual se pode analisar a recepção coletiva ativa. Esta segue o critério da dispersão. "A massa distraída ( ... ) faz a obra de arte mergulhar em si, envolve-a com o ritmo de suas vagas, absorve-a em seu fluxo". A recepção se dá como ato coletivo de vivência, em que o objeto flutua entre um olhar e outro, tematizado em momentos diferentes e de for­mas diferentes. Recepção cinematográfica como sonambulismo inter­mitente da atenção. Fluxo da vivência para a focalização, e vice-versa, e novamente ao reverso, agitando a multidão como vagas, núcleos de atenção num mar de pulsões. No entanto, a atenção dispersa, ao foca­lizar-se, o faz de maneira muito mais intensa, pela rapidez com que se sucedem as mudanças e associações de imagens na linguagem do si­mulacro tecnicamente produzido. É o efeito de choque provocado pelo cinema. Entre o choque e o sonambulismo. Sonambulismo como di­mensão inconsciente que acompanha a vigília. Vivência do choque: o corpo como que se eletrifica. Prefigura-se aí o espetáculo de rock.

Através da tematização do inconsciente ótico, articulam-se no

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discurso de Benjamin positividade da revolução simulacral e avaliação também positiva da experimentação surrealista, tratada em ensaio se­minal de 1929. Avaliação atravessada por uma inquietação pedagógi­co-política, não fosse Isidore Ducasse seu primeiro avatar. Imagem é pulsão, pulsão é imagem: tanto na recepção do cinema quanto na expe­riência surrealista, a formação do valor pressupõe a dissolução do obje­to na materialidade tátil e sua correlata vivência pulsional. A força do simulacro está na desmaterialização da imagem à medida que se rema­terializa como pulsão nos corpos individuais e coletivos. Já na experi­mentação surrealista, abordada só pelo lado literário, o apogeu da cultu­ra letrada européia suscita dialeticamente a experiência da desmateria­lização da obra e sua rematerialização enquanto vivência extremada da vida literária.

Para Benjamin, o valor fundamental do texto surrealista está no fato de ser o "precipitado literário de uma certa forma de existên­cia". Ou seja, uma existência que é artefato existencial, que se expe­rimenta sem os suportes da espiritualidade ou da pedagogia afetiva pro­posta pelo patrimônio aristocrático e burguês. Uma existência entre desertificada e frenética que pode utilizar-se das drogas alucinógenas (embora com ressalvas devido a seu caráter indisciplinado r) como pro­pedêutica para o que Benjamin chama de superação da iluminação re­ligiosa, que devemos entender como superação da prática da aura. Em contraste, a iluminação profana, desentranhada da experiência sur­realista, é aquela que ocorre não a partir de uma relação de acesso distanciado ao acervo destacado da vida cotidiana. A iluminação profa­na ocorre por imersão integral do corpo nas angulações espaciais da cidade moderna. Auto-reflexividade do corpo. Celebrar a cidade é o solo de fascinação que pode refuncionalizar a estética no imaginário de ferro, vidro, pó, projetado pela cultura dessublimada.

A diferença entre as hegemonias da pintura e do simulacro tec­noindustrial e eletrônico pode ser então refraseada como tensão entre regime visual estruturado, cujo paradigma é a contemplação estática de um objeto visual, e inconsciente ótico, definido como multiplicação e decomposição perspectivísticas, por um lado, e redes dobramento do jogo errante das pulsões imagéticas, por outro. O perspectivismo pós­moderno dessublima e dissolve a perspectiva renascentista. A imagem pulsional desejante, pulsando na retina tal qual pulso feérico, dissolve e absorve a imagem construtivista. O regime visual estruturado pelo qua­dro vincula-se à focalização, de tal modo que a noção de inconsciente ótico deve ser vinculada aos processos de desfocalização e plurifo­calização da cultura visual. Entre os processos de desfocalização, a estética da imersão ambiental, que transforma cada poro num terminal auto-reflexivo, como quiseram nossos Hélio Oiticica e Lygia Clark.

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Uma observação final. A corporalização narcísica e exibicionis­ta da cultura intelectual, elogiada por Benjamin no ensaio sobre o surrealismo, assim como a especificação de uma subjetivação coletiva envolvendo o tátil, nas teses sobre o simulacro cinematográfico, não esgotam a parada da teoria estética contemporânea a favor da dessu­blimação. A luta (dualidade agonística, double bind) entre sublimação e dessublimação é insuperável, se entendermos cada um dos pólos como pulsões sempre já atuantes no corpo e entre os corpos da cultura. Tal­vez o momento atual da civilização do simulacro nos obrigue a uma recolocação dos termos. O simulacro cinematográfico, com sua vivên­cia massificada em circunstâncias de aglomeracão fisica, parece favo­recer a ênfase em estéticas da dessublimação. Mas o que dizer do momento atual, em que a hegemonia da imagem passou para o simula­cro eletrônico, para a televisão, o vídeo, a tela do computador, terminais capilarizados, individualizados e não mais massificados, não mais pres­supondo a proximidade dos corpos, suas interações. Nesta fase capila­rizada, é possível que o movimento sublime recupere força no contexto mesmo da cultura do simulacro.

O simulacro eletrônico pode produzir no receptor a aparência de uma total coincidência entre pulsão e sinal imagético. Os últimos res­quícios de uma suposta interioridade corporal seriam, paradoxalmente, seqüestrados pela materialidade instantânea da imagem. A interiorida­de existindo enquanto algo exibido e recebido como imagem material, apartada, promovendo um movimento de separação, a pulsão separada da interação física, a pulsão separada de si e se contemplando a si própria em espetáculo: libidinagem hiper-irônica. Nesse sentido, o si­mulacro eletrônico incorporaria a dualidade sublime/dessublimação como tensão constitutiva, tensão energética. Teríamos aí uma estética nem sublime, nem dessublime, mas ambas as coisas ao mesmo tempo.

Rio de Janeiro, junho de 1998.

Dedico este texto ao mestre e amigo Luis Costa Lima, que me fez

ler Kant nos idos longínquos dos anos 80 e Benjamim, na era ainda

mais remota dos anos 70. Desnecessário dizer que os resultados em progresso

dessas leituras são de minha

exclusiva responsabilidade.

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Referências bibliográficas

BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Trad. Sergio Paulo Rouanet. S. Paulo, Edit. Brasiliense, 1985.

BURKE, Edmund. Uma Investigação Filosófica Sobre a Origem de Nossas Idéias do Sublime e do Belo. Trad. Enid Abreu Dobránszky. S. Paulo, Edit. Unicamp/Papirus, 1993.

DERRIDA, Jaeques. La Verité en Peinture. Paris, Flammarion, 1978.

KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade do Juízo. Trad. Valério Rohden e António Marques. Rio de Janeiro, Forense Uni ver­sitárua, 1993.

LYOTARD, Jean-François. L'lnhumain - Causeries sur le temps. Paris, Galilée, 1988.

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral - Um escrito po­lêmico. Trad. Paulo Cesar Souza. S. Paulo, Edit. Brasiliense, 1987.

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Sobre la Poética de Juan L. Ortiz:

una Mirada de Traductor

WilliamRowe King's College, Londres

Para el que traduce los poemas de Juan L. Ortiz, y por eso los lee con una atención especial, la voz es el elemento más difícil. Esa voz consti­tuye, es claro, un factor importante de su poética, quién sabe si no la más importante, si tomamos la noción de voz en su sentido más amplio: es decir, la voz como soplo, respiración, acento -modalidad en que la existencia deviene sonido y vice versa. Esa idea implicaria también la entonación: porque el acento -el canto que se oye en el habla de cual­quiera- es la materia que modela la entonación, y ésta vincula el decir con el entorno espacial y temporal y, a la vez, acarrea la emoción. "De dónde surge esa voz? Esta seria, en el fondo, una pregunta sin respues­ta -sólo se puede hablar de las maneras en que se da y de cómo ese don altera el entorno, entorno que incIuye, obviamente, el idioma y el oyente. Específícamente, tenemos, en la obra poética de Juanele, un lenguaje propio y único, elaborado desde el idioma hablado de una re­gión en relación con "el entorno de ciertas islas", y también desde una concepción de la poética, cuya vertiente principal seria el simbolismo de Mallarmé y Valéry.

Decir lo anterior es delinear un campo de fuerzas y de accio­nes pero no volcarse en el movimiento de la voz en los poemas de

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Juanele. Se ha dicho que esa voz posee un carácter oriental. Podría ser. Pero hay en aquella pai abra cierta vaguedad: suele connotar lo meramente extrano Habría que dejarse orientar, entonces, por el suceso poético especifico.

Empezar a kcr un poema de Juanele es entrar en un diálogo que pronto se revela como un diálogo múltiple: un diálogo de la voz que habla consigo misma (que se pliega sobre si misma), dei hablante con otro/a hablante, dei escuchar con el decir. La hilación de esas voces conforma, a la vez, un tejido. Pero i,dónde reposa el tejido, en quê tiem­po o espacio? Es decir, la voz que se pliega sobre si misma, i,en dónde se pliega? Y esa voz dentro de la voz, i,dónde surge?

Una buena proporción de los poemas de La orilla que se abisma, que aparece por primera vez en En el aura dei sauce (1970), !levan títulos que ya implican uno o varios interlocutores, como "Sabéis, amigos" o "Me dijiste:". En el segundo, el diálogo se inicia alrededor de un sonido:

-Escucha, es un latido, solamente un latido, o qué? de la ranUa, no? (809)1

-un sonido que surge desde lo no-humano y que deviene voz. Ese sonido no es objeto delimitado por un código de la representación (código cultural) sino un evento acompafíado por preguntas, dudas, in­certidumbres:

En el pulso de las hierbezuelas o de la lunilla,

él?,.. o dónde, o dónde,

si la circulación dei silencio, melodiosamente, nos anega, sí, también a nosotros ...

y no tenemos, de pronto, orillas ... :

Ya las preguntas mismas, ai hacerse, devienen eventos de un diálogo que va surgiendo, y no imposiciones retóricas que determinan un orden discursivo. Para el traductor, quizás de manera especial para el que traduce aI inglés, surge el problema de recrear lo que hay de tenue y a la vez de poderoso en ese preguntar. i, Cómo evitar que las preguntas tengan un matiz de interrogación (catequismo, sala de clase, cuartel), que se sientan como signos y actos de una voluntad impositiva?

El problema se da ai nivel de la entonación: i,cómo aligerar esa voz, cómo conseguir que sus insistencias no pesen sobre el oído (que no cerquen sino que abran)? En cuanto a la dicción, busqué entre los poe­tas dei renacimiento inglês (Spenser, Sydney) esa frescura verbal que sabe desplazarse entre el concepto y lo sensorial sin dificultades, fres-

1 Las citas son de Obra completa, Santa Fe, Universidad Nacional deI Litoral, 1996, y los números entre parénte­sis se refleren a la nu­meración de las páginas de esa edición.

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1 D. H. Lawrence, "Poe­try of the Present", en The Complete Poems, Harmondsworth, Pen­guin,1982,pp.181-186.

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cura que es también dulzura. Pero el tono era otro, no se daba allí. Tampoco se daba en otros poetas de lengua inglesa. Pensé en la inqui­sición ritmica que hace G. M. Hopkins de los símbolos, pero el ritmo y la estructura dei verso no tenían nada que ver. Entonces no quedaba sino elucidar cómo el poema mismo manejaba la cuestión dei tono.

Las preguntas en la poesía de Juanele no promueven el acerca­miento a un fin(alidad) -ejercicio de definiciones, establecimiento de lugan:s prIvilegiados, de lecturas estables- sino distienden. Atenúan, pero no rompen, la tensión. Y esto tiene consecuencias considerables para la p00tica. AIIí la estructura dei verso en Juanele, radicalmente no repetitiva. La distensión como principio de composición está, desde lue­go, en "Un coup de dés" de Mallarrné, y tiene en ese poema importan­tes consecuencias para el manejo de la sintaxis, cuyas articulaciones dejan de coincidir con la idea dei verso (el retomo dei oído, la mano, el ojo, senalado por el espacio de la página). Por otra parte, una suerte de distensión está implícita en la propuesta de D. H. Lawrence de una "poesía dei presente", que consistiría en "un plasma vivo", sin orienta­ción hacia un pasado o un futuro, noción que se encama en las caden­cias variables de sus poemas después de 19182 • Pero Juanele afiade algo más: el intersticio. Las dudas, incertidumbres, distensiones son un suceder de intersticios dentro de intersticios, entre cuyos efectos está el de suspender cualquier finalización. Pero los efectos no son sólo sintác­ticos, temporoespaciales; hay algo más misterioso, como por ejemplo

EI gri/lo, el grillo, a la orilla dei mundo ... (454)

- un escuchar atento pero no enfocado, no centrado:

Y no seda, en su nivel, esta canita que, líquidamente, vocaliza las acentuaciones sin fondo,

una emisión en que suspira, entre las briznas, el himeneo, ése,

el mismo dei espacio y el tiempo,

aunque en una dimensión que únicamente, únicamente, canta

en el pasaje dei ser? (812)

Las preguntas por el sonido, a la vez que llegan a "trizar .. ./ la continuidad misma", nos aproximan a la zona dei écstasis:

no podemos menos de miramos ai trizar, aún, con los filos, ya dei [hálito,

la continuidad misma (811)

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EI primer sonido, el latido de la ranita -aunque en el poema esa aseveración no tiene forma de predicado sino de pregunta- desata una hilación de sones-ritmos -sentidos, auscultados, hablados, envueltos en el diálogo de voces, y asÍ tejidos. Y las voces se banan en el entorno de sonido que a la vez deviene música: "acento" / "acentuación" / "tonillo" / "modo" / "notas" / "cadencia" / "tintineo" / "escala", etc. EI poema puede oirse como un devenir-música del entorno ("los armónicos de este mar") pero a la vez como una auscultación extremadamente deli­cada, atinada por la duda:

En qué escala, pues, el oído para la campanilla de ese sentimiento que se olvida a menudo

de sí en una suerte de eternidad

que duda? (809)

Este sentir traspasa las fronteras entre la interioridad y la exterioridad de la persona ya que ni el origen ni el destino de la voz podrian llamarse persona o personaje. La voz ocurre simultáneamente con el oir -oir la voz equivaldria a dar voz aI oir- y hay en ambos un hálito, una aspira­ción que permea cuerpo y entorno.

~En dónde ocurre este devenir dei sonido? -ésta, que en el fondo seria una pregunta por el libro, por la concepción dei libro en Juanele, tiene varias respuestas: "sobre los tejidos de Octubre" (809); "sobre la sabanilla sin tini que espuma para las celebraciones,l el 'navío de Isis'" (810). Ocurren también, sobre esas superficies, apariciones de lo visi­ble: "la noche, por encima de esas fibras, pálidamente se vacía/ más allá de su límite ... " (810). No se trata de un espacio dado de antemano, por la tradición o la modernización: "qué imposible, por otra parte, el de una vida que debemos remitir/ a un laberinto de espejos/ por sobre tapices de mataderos, y ésos, desde luego,l de la evasión/ en una dicha de gasolina ... " (811); sino de lo que tiene que inventarse sobre el vacío: "canta tambíen, y a su modo, lo terrible de jugar el azar/ de una chispa sobre los abismos ... " Si en estas frases se siente el aliento de Mallanné, hay también otra cosa: una necesidad que pertenece a la segunda mitad deI siglo XX, a una época en que las sensaciones y los símbolos se han desprendido mutuamente:

Canta y no confUl su tonillo, no, a las afinaciones de los ángeles,

ni menos ai ajuste de los hilos que alguien trama

debajo, no (812)

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3 Helen in Egypt, Libro 2, Sección 3. La obra tar­día de H. D. -como la de Juanele- asume el riesgo de la torpeza de la expresión cuando la necesidad lo exige.

4 el resto de la estrofa va así: Et quelle paix sem­ble se concevoir!/ Quand sur l'abime un soleil se repose, / Ouvrages purs d' une éternelle cause,! Le Temps scintille et le Songe est savoir.

Sobre la Poética de J uan L. Ortiz - 121

Es por eso, sin duda, que los poderes que Juanele llama "Ias 'superiori­dades' dei éter" van suspendidos entre comillas ("silfides", "devas", "el navío de Isis", etc), pero también por eso la distribución supremamente libre de los sonidos en el aire y de las frases en la página.

Pero aclarar estos puntos es -para quien traduce- sólo una parte dei problema. Porque queda un hecho: que el sujeto de la visión no es eI ser abstracto, sino, como en la poesía de H. D., "she herself is the writing"3 ["ella misma es la escritura"] - y que este es también un hecho dei lenguaje: las muchas maneras puntuales en que el decir se localiza en relación con el entorno, con sí mismo, con interlocutores. En lugar de la mito-grafia que para H. D. configura el escribir, encontra­mos en Juanele el diálogo-tejido dei escuchar y el ser escuchado, que se sostiene, en materia verbal, gracias, por ejemplo, ai despliegue variado de las expresiones adverbiales, que van definiendo modos y maneras -allí la música también. Las frases, liberadas de la sub- o super-ordina­ción lógica, sintáctica, métrica, cantan, cada una a su modo. Y si la palabra es el suceder dei aliento, el poema mismo es un suceder, ade­más de las cosas que en ella ocurren: como escribe Robert Creeley,

Things come and go.

then ler them.

En J uanele ocurre una modificación de la relación de uno con el Ienguaje que es difícil de definir. Si una de las bases de su poética está dada por el simbolismo francés y la liberación dei lenguaje que éste implica, hay algo importante que aBade Juanele. Consideremos un par de versos de Le cimitiere marin de Valéry:

Quel pur travail de fins éclairs consume Maint diamant d'imperceptible écume4

La espuma deleznable se vuelve "diamante" y allí queda, el fuego hera­ditano detenido por la imagen visual-sonora, sostenida ésta por la for­ma métrica regular y fijada por la rima: tal es eI movimiento deI poema de Valéry. En Juanele, mientras la dicción es semejante, las figuracio­nes dei fluir están acompafíadas por interrogaciones y distensiones, de sonido, entonación y sintaxis Cella dice o llega a punzar, mejor, para eI que debe venir, / unos minutos de plata").

Para llegar a esto, hay un aprendizaje:

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-Aunque de los "aprendices ", es verdad, el movimiento salta a la "vía de la leche"

(retornaria la "dispersión ", paradójicamente entonces, ai seno?)

y abre una manera de ofrenda, ai fosforecer el camino ... un apuro, acaso, de trepadoras

en emulación con las otras, por florecer, también, el vértigo? O el desplegamiento,

luego de la concentración, ésta, que hace todavía, todavía nuestra "verdad" o nuestra facilidad,

en el deshora de los junios que no terminan de mirarse, curvados sobre el ombligo,

o en este Octubre que quisiera sellar, hasta "a la letra ", así, "trasnochadamente"

los labios de la vigilia en abandono de espaldas, en grada, sólo, a unas sílabas? (811)

El aprendizaje podría leerse, me parece, como uno que incluiría el de Juanele mismo: un camino que pasa por la trascendencia vía figuracio­nes celestiales -herencia no muy difícil de identificar en la poesía lati­noamericana- y luego por un desprendimiento: un fluir más abstracto y a la vez más afinado hacia la micropercepción, que seria, me parece, uno de los logros más difíciles de la poesía de Juanele. Fosforecer, trepadoras, florecer, vértigo pueden leerse en clave mt:tafórica. pero ~qué sucede si uno lee estas palabras en el mismo nivel que el desple­gamiento y la concentración? -es decir, "a la letra". Las palabras concretas dejan de ser figuraciones de alguna otra cosa y las palabras abstractas, de ser de alguna manera anteriores (la concentración y el desplegamiento permean todo, siempre están). En cuanto a técnica de escritura, se trata de una ruptura con el relato productor de metáforas, tan insistente en algunos libros dei 50 (Elena y los elementos de Juan Sánchez Peláez o La estación violenta de Octavio Paz, para mencio­nar dos).

Cabría mencionar aquí el manejo particular dei eje metafórico dellenguaje que caracteriza la poesía de Juanele. En el poema "Pueblo costero" dei libro La brisa profunda (1954) se incluyen una serie de expresiones metafóricas que a primera vista servirían para vincular los objetos simples de un pueblo dei Litoral con un imaginario más amplio. Consideremos algunos ejemplos:

Y este pescador de silencio que !lega de una fiebre de silencio, yaún demora, noctumo, sobre los nácares grasos y la teila (452)

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1 Charles Olson, Com­plete Prose, Los Ange­les, University of Cali­fornia Press, 1997, p. 206. Ver los siguientes capítulos: "D. H. Lawren­ce and the High Tempta­tion of the Mind" y "The Escaped Cock".

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-esos "nácares" no echan mano a un repertorio de imágenes literarias para adquirir un aura poética, como en la poesía neoclásica, sino sen­sualmente puntualizan los restos del pescado asado, como tampoco el "silencio " es mitologizante sino puntual. Cerca del comienzo del poema la mirada recae sobre algunos niños pobres (aunque no se usa ese adjetivo):

Ved esa cabeza pálida, de diez años, de pescado imposible, que por poco os fijará desde los mismos oídos (451)

yel "pescado" no nos lleva hacia afuera del entorno sino hacia unas relaciones precisas y específicas entre las cosas (perceptibles cuando se mira la cabeza de un pez muerto).

y esta "abuela" toda envuelta que busca todavía los velos de la hora para destocar su plata y diluirla entre lirios de jabón, en cuclillas ...

que son transformaciones dentro de lo local y cotidiano, semejantes a las de la poesía simbolista pero llevadas por otro camino. La mirada no es filtrante como la de Valéry, para quien la espuma se vuelve "diaman­te". Tampoco busca en lo mitológico las maneras de resolver el ardien­te mundo fenoménico -la frase es de Charles Olson, quien la toma de Lawrence5 - como sí lo hace paz en sus libros del '50. Estas caracte­rísticas hacen que los versos de Juanele ofrezcan a veces al traductor el problema de evitar la poeticidad universalizante. A la vez, ya que construyen una poesía a partir de una materialidad local, son caracterís­ticas que desautorizan una buena proporción de las historias de la poe­sía latinoamericana, historias que desde luego funcionan como modela­ciones de la lectura.

Esta conciencia, desprotegida de las figuras de la trascendencia y de las rutinas de la repetición, ha pasado -o sigue pasando- por el aprendizaje de los límites del sacrificio o de la ofrenda que producen una refulgencia espectacular, fosforescente, pero que no cabe en el deshora del tiempo cuyo fluir es la escritura misma, en que los adver­bios "todavía, todavía" imponen una modalidad intersticial a la aprehen­sión, que se descubre en la letra, en lo que se aproxima a una grafia del espíritu: un devenir del latido, de la sílaba, de la letra, sin los humos del sacrificio.

Hay un momento en El coloso de Maroussi (1941), libro por otra parte raigalmente opuesto al sacrificio en todas sus manifestacio­nes, en que Katsimbalis, el gran raconteur y poeta de la voz, ha quedado dormido con la boca abierta, y Henry Miller inquiere por la voz ausente:

What an astounding thing is the voice! By what miracle is the hot magma of the earth transformed into that which we cal!

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speech? If out of c/ay such an abstract medium as words can be shaped, what is to hinder us from leaving our bodies at will and taking up our abode on other planets or between the planets? [ . .} Who or what is powerful enough to eradicate this miraculous leaven which we bear within us like a seed and which, afier we have embraced in our mind ali the universe, is nothing more than a seed - since to say universe is as easy as to say seed, and we have yel lo say greater things [ . .}6

iQué cosa más pasmosa es la voz! "Por qué milagro se trans­forma el magma ardiente de la tierra en lo que llamamos el habla? Si dei barro puede formarse un medio tan abstracto como la palabra, i,qué nos impedirá dejar nuestros cuerpos cuando nos de la gana y tomar residencia en otros planeIas o entre los planetas? [ .. ] "Quién o qué seria tan poderoso como para eradicar esta levadura milagrosa que /levamos adentro como una semilla y que, después de que hayamos brazado en la mente la totalidad dei universo, no es más que una semilla - ya que decir universo es tan fácil como decir semilla, y nos quedan todavia cosas más grandes que decir [ . .}

En Juanele también, surge una voz cósmica, infinita como el mundo fenoménico, a la vez seminal e intersticial. Esta voz es acompaiiada por "una suerte de eternidad / que duda", que a la vez se hace voz, y vuelve sobre la primera y la abre en intersticio:

Ah, pero esa eternidad, sin explicárnoslo, la hiere, mas de la herida

sangra, un sí no es, de dulzura que ti ti la, anónimamente, o que apenas se deja adivinar,

sobre los tejidos de Octubre . .. (809)

Si en la propuesta de Lawrence por una poesía dei presente está inscri­ta la necesidad de rehuir las formas métricas regulares -Ias que regulan y alisan la duración- en la poesía de Juanele se trata de un surgir que no se deja consumir por un esquema que se nutre de,él, ni fijar por una trascendencia a costa de la sangre. EI único esquema es el libro, el de

6 Henry Miller, The Colossus of Marous­si, Harmondsworth, Penguin, 1963, p. 77

toda una vida, un libro procesual-un libro que habla de la posibilidad de 1 La vitesse de libéra­

una historiografia no sacrificiaI, contra la Ciudad teletópica -Ia frase es tion, Paris, Galilée,

de Paul Virilio7- que disminuye o suprime el planeta ai producir un 1995.

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olvido de otros tiempos (pasados, futuros) o espacios que no sean los dei horizonte de la teIecomunicación instantánea. Y ese suprimir, es necesario decirlo, estuvo algún tiempo incubándose ya que remonta, aI menos, hasta la época de la gasolina.

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Leituras Impertinentes

Maria Lucia de Barros Camargo Universidade Federal de Santa Catarina

Refletir sobre os rumos e a situação da poesia brasileira contemporâ­nea implica não apenas pensar sobre a produção poética mais recente, ou aquela que poderíamos atribuir aos "anos 90", mas também voltar os olhos para poetas das décadas imediatamente anteriores que possam de algum modo nos ajudar a ler o que temos hoje. Poetas que, inseridos na história recente de nossa poesia, nela possam ter deixado traços, filiações, desdobramentos, seja pela adesão, seja pela resistência.

Nenhuma escolha é aleatória. Toda escolha é excludente. Acre­dito que a opção pela leitura cruzada de dois poetas significativos da poesia brasileira contemporânea nos permite, a partir das diferenças e, por que não, das convergências, levantar alguns pontos de referência crítica para nossa poesia deste fim de século. Um homem, uma mulher; a construção, a expressão; a linguagem, o sentimento; a metrópole, a província; o barroco, a bíblia, a pós-modernidade. Haroldo de Campos e Adélia Prado. Tentativa de reler em conjunção dois aparentes antípodas.

Além das notórias diferenças entre as duas dicções poéticas, outra questão se antepõe à tentativa de aproximar tais poetas: haverá contemporaneidade entre eles? Em termos meramente cronológicos, é possível considerá-los como pertencentes a distintas gerações, apesar

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de a diferença de idade entre ambos não atingir uma década: o então jovem poeta cosmopolita, paulistano das Perdizes, inicia sua atividade poética em fins da década de 40 (1949, para ser mais precisa), adquirin­do reconhecimento e notoriedade já na segunda metade dos anos 50 como um dos criadores da poesia concreta, ao passo que a moça do interior, provinciana da mineira Divinópolis, estréia como poeta quase 20 anos depois e vê sua poesia chegar às grandes cidades a partir de 1976, com a publicação do primeiro livro, Bagagem! , sucesso de públi­co e de crítica, a que se acrescentam outros quatro livros de poemas, publicados entre 1977 e 1988, posteriormente reunidos num único volu­me em 1991 2 , além de alguns livros de prosa de ficção.

Haroldo protagonizou a vanguarda concretista nos anos 50, man­tendo desde então forte militância em defesa de uma poética de rigor formal, desenvolvida com afinco: constante participação no cenário cultural brasileiro, intensa atividade crítica e tradutora, produção poéti­ca relevante, como podemos ler em Xadrez de estrelas, que reúne sua produção poética entre 1949 e 1974, em Signância quase céu, em A educação dos cinco sentidos3, para mencionar apenas seu percurso poético até fins dos anos 80. Crítica, tradução, poesia - atividades mu­tuamente contaminadas e em constante diálogo. Nos anos 70, Haroldo de Campos já é poeta e intelectual reconhecido, legítimo representante, no Brasil, de uma poética construtivista e centrada na experimentação de linguagem. E, se é impossível separar a trajetória de Haroldo de Campos do movimento da poesia concreta, pode-se afirmar que, nos anos 80, sua poesia adquire contornos bem distintos e distantes do con­cretismo fouf court, os quais, acrescidos da produção crítica e traduto­ra, nos permitem situar Haroldo como legítimo representante da poesia brasileira contemporânea.

Adélia surge no cenário poético brasileiro em pleno período da chamada poesia "jovem" e "marginal", sem ser exatamente nem jo­vem, nem marginal. Seu primeiro livro nada teve de "alternativo": foi publicado por editora, circulou convencionalmente através de livrarias. teve excelente vendagem. Tratava-se de uma poeta nova, ou melhor, inédita; não se tratava de uma "poeta jovem": Adélia Prado já comple­tara 40 anos em sua estréia poética. Estréia que traz uma dicção lírica e coloquial, de expressão íntima e prosaica, próxima do discursivo, que fala do amor e do sexo, do casamento e da bíblia, da vida cotidiana da mulher, em versos que parecem passar ao largo das experimentações de linguagem e dos debates sobre os rumos da arte e da poesia protago­nizados por Haroldo desde 1956, com vinte anos de antecedência, por­tanto, ao lançamento de sua Bagagem poética.

Aproximar os dois poetas a partir do conceito cronológico, dia­crônico de contemporaneidade traz, portanto, alguns problemas. O mes­mo se pode dizer de uma aproximação sincrônica, além da cronologia,

1 PRADO, Adélia. Ba­gagem. Rio de Janeiro: Labor, 1976. As edições posteriores saem pela Editora Nova Fronteira.

~ Pela Editora Nova Fronteira (Rio de Janei­ro), saem, além das ree­dições de Bagagem, O coração disparado (1978) e Terra de Santa Cruz (1981); pela Edi­tora Rocco (Rio de Ja­neiro), saem O pelicano e A faca no peito (am­bos em 1988). A Poesia rellnida sai em 1991, pela Editora Siciliano (São Paulo).

J Xadrez de estrelas: percurso textual, 1949-1974. São Paulo: Pers­pectiva, 1976. Signân­cia quase céu. São Pau­lo: Perspectiva, 1979 . .4 edllcação dos cinco sen­tidos. São Paulo: Brasi­liense, 1985.

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4 CAMPOS, Haroldo de. Texto e história. A operação do texto. São Paulo: Perspectiva, 1976, p. 21. Segundo a "Nota bibliográfica", p. 151, este texto foi pu­blicado em 1969 na re­vista Aut Aut, Milão, com o título "Avanguar­dia e Sincronia nella Let­teratura Brasiliana Odi­ema".

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que busque a contemporaneidade de formas, tal como propõe o próprio Haroldo via Jakobson, em texto datado de 1967, publicado pela primei­ra vez nos idos de 1969, em italiano, e que chega ao Brasil no mesmo ano de Bagagem:

... a literatura é o domínio do simultâneo, um simultâneo que se reconfigura a cada nova intervençêio criadora. Cada época nos dá o seu 'quadro sincrônico', . graças ao qual podemos ler todo o espaço literário - um espaço lite­rário onde Homero é contemporâneo de Pound e Joyce, Dante de Eliot, Leopardi de Ungaretti, H61derlin de Trakl e Ri/ke, Púchkin de Maiakóvski, Sá de Miranda de Fer­nando Pessoa. 4

Obviamente, tal conceito de simultaneidade não se confunde com o de pluralismo, ainda não discutido à época, no Brasil, embora, na prática, seus efeitos já pudessem ser detectados. Como o elenco citado a título de exemplo bem o demonstra, o domínio do literário, para Harol­do de Campos, é também o domínio da alta cultura, e, na esteira de Pound e seu "make it new", o dos poetas inventores. Domínio que tem valores claros, em que se destaca o "novo", entendido na poesia como o não discursivo, o não lírico, e sim a vanguarda, o experimental, que tenha a linguagem e, nela, a palavra como centro, numa prática poética em que o rigor e o fim do verso são as palavras de ordem. Dentre tais conceitos e valores, a poesia de Adélia Prado não se incluiria, não po­dendo nem figurar dentre a "poesia válida" para Haroldo de Campos, e nem ser lida conjuntamente à sua, a partir de um mesmo olhar.

Se tais conceitos e valores não são consensuais nem hegemôni­cos, especialmente a partir dos anos 70 a diversidade da produção poé­tica parecia indicar não apenas o fim do concretismo, mas o fim do conjunto de valores defendidos pela estética da experimentação e do rigor. E em boa parte do que se disse sobre essa poesia dos anos 70/ 80 há um tom de desencanto, de nostalgia, de perdas. Vejamos al­guns exemplos.

Dizeres críticos

Em entrevista concedida a Augusto Massi, publicada em 1988, Alfredo Bosi procura justificar seu interesse pela "cultura brasileira" como conseqüência do desinteresse que a literatura brasileira contem­porânea lhe provoca:

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Como se limitar, hoje, no Brasil, à literatura pela literatu­ra? [. . .] Não estou falando, estatisticamente, da enxur­rada de livros inúteis, mal pensados e mal escritos, que a indústria editorial nos impinge para dano da economia planetária. Não é isso. Falo da irrelevância mesma da vida literária mais recente ou estreante no conjunto pensante e sensivel da cultura brasileira tomada como um todo. Alguns jovens mais refinados traduzem, glosam, parafraseiam, pa­rodiam, pasticham: são máquinas de escrever à procura de assunto { .. }. Outros, ao contrário, creem ter muito a dizer, querem lançar tudo 'de qualquer jeito', mas não saem de um nivel coprolálico ou semipanfletário;{ .. } Hoje, um lei­tor de poesia ou de ficção sente extrema dificuldade de alimentar-se de um repertório de estreantes (até a década de 50 a situação era bem outrap.

o desencanto do crítico é bem explícito: não encontra na literatu­ra pós anos 50 - e nem poderia encontrar - as marcas valorativas de uma literatura que já não existe, que já não atende aos preceitos dese­jados, nem clássicos, nem modernos. Ressente-se tanto da falta de con­teúdo, como de acabamento formal; depara-se com uma literatura que não cumpre uma função utópica, que não atribui sentidos, ou que não exerce a resistência às ideologias, tal como dantes. Em suma, ao res­sentir-se da impossibilidade de trabalhar a "literatura pela literatura", o crítico está registrando o rompimento, talvez definitivo, de um postulado bastante caro à modernidade: a autonomia da arte.

Mas certamente o mundo não é mais o mesmo e, apesar da nos­talgia da perda de um determinado conjunto de valores, tais como um projeto estético inserido num projeto histórico ou a potencialidade críti­ca e a originalidade da obra literária, o leitor de Croce e Vico, de Hegel e Gramsci, critico marxista e cristão, deixa entrever, mesmo que às avessas, alguns aspectos importantes, tanto em relação às possibilida­des contemporâneas da própria literatura dentro da sociedade de con­sumo e globalizada, como em relação à possível abordagem dos novos produtos literários. Evidencia, a contragosto, que um determinado pro­jeto estético se esgotou a partir dos anos 50.

Centrando sua crítica nos homens, já que os livros, em sua maio­ria, são "inúteis, mal pensados e mal escritos", Bosi divide os autores contemporâneos em duas categorias, ambas impiedosamente deprecia­tivas: os que citam, em lugar de lembrar, e aliam refinamento à falta de assunto; e os que dizem qualquer coisa "de qualquer jeito", combinando "grossura" e brutalidade das formas e conteúdos. Constatando que "não há muito que esperar de uns ou de outros", pergunta: "será que o rótulo inexpressivo de pós-moderno basta para cobrir esse vazio?"

S Céus, infernos: entre­vista de Alfredo Bosi a Augusto Massi. Novos Estudos - CEBRAP. nO 21 . São Paulo, julho de 1989, p. 1I0-1I!.

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! No Brasil, houve duas publicações deste en­saio: na revista Novos Estudos - CEBR4P nO 12 (São Paulo, junho 1985, p. 48-61) e na Re­mate de Males nO 7 (Campinas, 1987, p. 95-107). As referências, no texto, seguem essa últi­ma edição.

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Certamente um rótulo - exterior e vazio por definição - não po­deria preencher a lacuna deixada pela perda de valores que não encon­tram mais plena ressonância, que não respondem às contingências e coerções do mundo atual. Mas um rótulo, em sua função metonímica, pode evidenciar, neste caso, que estamos lidando com outras obras, portadoras de outros valores. Podemos pensar que há outros tipos de sensibilidade estética, que pedem diversas estratégias de leitura. Mais do que de um vazio, trata-se de novas formas e valores ainda não ple­namente assimilados.

Estendendo sua desesperança à esfera da crítica literária, Bosi registra, também às avessas, um processo correlato às mudanças veri­ficadas no campo da produção criativa: mais do que a mera interação entre os vários domínios do conhecimento, a quebra de fronteiras entre a teoria literária, a história cultural, a filosofia, para citar alguns. As delimitações precisas de campos teóricos, as afirmações da cientifici­dade de cada área de conhecimento, com métodos e objetos bem de­marcados, já não convencem plenamente. Já não há autonomia. Já não há fronteiras rígidas. Será o vazio da teoria literária? Perda de sua especificidade? Ou ganho de um outro modo de se constituir e de­senvolver?

A tais perguntas, a passagem que Bosi empreende da "literatura pela literatura" para a "cultura brasileira" como objeto de trabalho e reflexão parece responder. O critico aponta, sem o dizer nem querer, para a interpenetração dos campos, para as discussões teóricas pós­estruturalistas, bem como para suas apropriações norte-americanas. Abre-se, na reflexão do crítico, o espaço da pluralidade, mesmo que para negá-lo e apesar da nostalgia da busca de um tempo perdido talvez para sempre.

Apesar do mesmo tom de desencanto face à ausência de valor literário na produção poética contemporânea, expresso desde o título, o ensaio que Iúmna Simon e Vinícius Dantas publicam em 1985 - "Poe­sia ruim, sociedade pior"6 - demonstra, a priori, uma posição bastante distinta: em lugar da recusa apriorística, os críticos dispõem-se à leitura, dedicando-se ao exame da produção poética dos anos 70 rotulada de "poesia marginal".

Tal rótulo se deve às características de produção e veiculação dos livros de poesia à margem do sistema editorial. Características bas­tante eremeras, aliás, uma vez que no início dos anos 80 vários dos até então "poetas marginais" passam a integrar a série "Cantadas Literárias" e viram "best-sellers" da Editora Brasiliense, à época uma grande editora. A integração desses poetas no circuito editorial e a abertura política vivenciada no país no início dos anos 80 permitem a própria leitura crítica da poesia dos 70 pela possibilidade de desvinculá­la tanto do carisma da produção alternativa, quanto do sentido de resis-

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tência política que lhe fora atribuído. É nessa possibilidade crítica que se localiza a leitura de Iúmna e

Vmícius, buscando, "na forma poética", as "respostas objetivas acerca dos conteúdos dessa poesia, revelando as conseqüências de sua des­qualificação literária" (p. 99). A desqualificação - tanto da própria sen­sibilidade como de suas formas de elaboração literária - implica, segun­do os críticos, uma tendência à "banalização completa de efeitos", uma vez que não há possibilidades para desenvolvimento de estilos individuais e sim coletivização, anonimato, "indiferenciação de valores e critérios." Indo além, os críticos detectam, na poesia dos 70, uma "jovialidade", ou, digamos, "adolescência": poesia desliteralizada, fácil, pronta para o con­sumo lúdico, hedonista e descompromissado, sem a rebeldia e o incon­formismo que caracterizavam, em décadas anteriores, a atividade cul­tural, da literatura ao rock-and-roll. Concluem que estamos às voltas com uma "nova sensibilidade literária" em construção, que tem nesta poesia um elemento formador, cuja expressão seria adequada à socie­dade de consumo que rapidamente se consolidou entre nós, apesar das contradições: "os sintomas atuais denunciam o amplo espectro da crise pós-moderna que aqui já faz suas misérias" (p. 96).

Se para Alfredo Bosi o termo "pós-modernidade" não passa de um rótulo inexpressivo, tão inexpressivo quanto lhe parece a poesia destes tempos, para Iúmna Simon e Vinícius Dantas trata-se de um conceito que pode dar conta da análise do novo contexto cultural. O que não significa, também para estes autores, o elogio qualitativo da literatura produzida sob o signo da pós-modernidade, nem a adesão ao estilo de vida típico da chamada sociedade pós-moderna. Afinal, desde o título, o leitor do ensaio é avisado que se trata de uma poesia ruim produzida por uma sociedac!.e pior. Convergência, portanto, entre as posições vistas até aqui.

O termo pós-modernidade surge aqui como um conceito de po­der explicativo para algo diferente, algo que já não consegue ser expli­cado pelas teorias poéticas da modernidade a não ser em termos de perda, vazio, ou mera nostalgia. Não exclusivo dos estudos literários, é introduzido a partir do hoje antológico texto de Jameson, "Pós-moder­nismo e sociedade de consumo", publicado pela primeira vez no Brasil no mesmo número 12 da Novos Estudos, traduzido por um dos autores do ensaio, Vinícius Dantas.

Apesar da referência explícita à "poesia marginal" e de os exem­plos utilizados remeterem a poetas que se vincularam de algum modo aos grupos identificados como de "poetas marginais", o tema é tratado de modo generalizador: "a expressão poética hoje não toma qualquer distância da experiência e da linguagem cotidianas, nem mais aspira a idealizações formais"(p. 95 - grifo meu). Em outras palavras, não ha­veria mais estéticas do rigor. Ou, ainda, não mais haveria conteúdo

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1 Refiro-me aqui aos poetas "inaugurais" do movimento marginal (se é que o termo "movi­mento" se aplica!), no início da década de 70, como Chacal, Cacaso, Geraldo Carneiro, Eudo­TO Augusto, Bernardo Vilhena, entre outros.

I "Poesia e modernida­de", ensaio publicado em duas partes: "Da morte da arte à constelação" (Folhetim nO 403, Folha de São Paulo, 7/10/84) e "O poema pós-utópi­co" (Folhetim n° 404, Folha de São Paulo, 14/ 10/84).

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crítico, e "este quadro sintomático atravessa a sensibilidade poética bra­sileira e pode ser diagnosticado pela substância anti-literária e pela des-caracterização estilística das tendências atuais" (p.l 06). .

Ao menos em parte, os críticos têm razão: neste final de século há, de fato, um questionamento quanto ao conceito de valor literário, ou seja, quanto ao próprio conceito de literário. Também é verdade que, dentre os poetas da geração marginal, especialmente os que vivencia­raro o período que poderíamos chamar "fase heróica'" , a desintelectualiza­ção e a recusa do experimentalismo, do rigor formal, ou seja, da heran­ça cabralina e concretista eram explícitas e, quiçá, programáticas. No entanto, ao longo da década de 70 os poetas "marginais" não eram os únicos estreantes na cena literária, como o surgimento de Adélia Prado o demonstra, e talvez a abordagem desse momento na poesia contem­porânea brasileira deva levar em consideração, no confronto com os pressupostos estéticos anti -líricos, toda uma vertente de recuperação lírica, não necessariamente epigonal, nem desliteralizada, na constitui­ção de outras tradições que irão se firmar na pluralidade de poéticas com que convivemos hoje. Um dos aspectos dessa "recuperação líri­ca", que não se define necessariamente pela expressão de um eu lírico, ou pela re-subjetivação de que falava Merquior, está na releitura de uma certa tradição lírica do modernismo brasileiro e da lírica moderna de um modo geral, que não se inclui na "tradição válida" do concretis­mo, por exemplo. Digamos, mais Mário, Bandeira, e Baudelaire, menos Oswald, Drummond e Mallarmé.

Se os modos de reouperação lírica através de certas releituras das tradições na constituição da poesia dos anos 90 e no confronto com as novas condições sociais ainda precisa ser melhor estudado, nas leitu­ras da poesia dos 70 que vimos examinando o que parece incomodar os ensaístas seria, de fato, o processo de banalização, a naturalização de procedimentos e a conseqüente ausência de sentido crítico, que de fato houve, mas não em todos os poetas mencionados no ensaio. Se de um lado registra-se a nostalgia da perda dos valores críticos e estéticos da modernidade literária e, nela, do poder de negatividade das vanguardas históricas, desdenhando o aspecto lúdico, prazeroso e até sedutor dessa "nova poesia", os críticos podem perceber, por outro lado, algumas iro­nias da história: a poesia que vem dos 70 cumpriria, como farsa, o pro­jeto concretista de estabelecer uma comunicação direta com o público, porém ao contrário: em vez de comunicação de formas, comunicação direta de "realidades". Em vez de idealizações utópicas quanto ao poder transformador da palavra poética, o registro do cotidiano ba­nal, do presente.

Ao concluírem o ensaio, Iúmna e Vinicius citam então recente reflexão de Haroldo de Campos sobre a poesia contemporânea, publi­cada em outubro de 1984 no Folhetim. s. em que o poeta defende, para

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estes tempos "pós-utópicos" (e não pós-modernos), a vigência de uma prática poética marcada pelo diálogo com a tradição, ou seja, a poesia contemporânea deve trazer a marca explícita da intertextualidade. Na primeira parte, Haroldo rediscute o conceito de modernidade a partir dos pontos de vista diacrônico (Jauss) e sincrônico (Octavio paz), ele­gendo este último como o corte que lhe permite defmir as relações entre poesia e modernidade, a partir de "Um lance de dados" (Mallar­mé). Na segunda parte, traça o legado de Mallarmé, inclusive pela re­leitura de Baudelaire, atribuindo a este último a "função critico-negati­va" que concluiria a história da modernidade, enquanto Mallarmé e sua linhagem, através da "função critico-histórica", abririam o espaço da "pós-modernidade", ou, em outras palavras, o após-Baudelaire, espaço das utopias vanguardistas, que, no caso brasileiro, desembocam, claro, na poesia concreta. Para Haroldo, portanto, o momento atual se carac­teriza como "pós-utópico", em que o princípio-esperança é substituído pelo princípio-realidade; o projeto totalizador das vanguardas dá lugar à pluralização das poéticas possíveis e a poesia da modernidade dá lugar à poesia da agoridade.

Mas se os ensaístas concordam com Haroldo na desconfiança para com a desqualificação literária, discordam da possibilidade vislum­brada pelo poeta de encontrar, no cenário pós-utópico, possibilidades de a poesia da agoridade "velejar incólume às intempéries da barbárie". Afmal, o panorama descrito por Iúmna e Vinicius como a evolução da poesia brasileira a partir do "fenômeno marginal" leva os autores a concluírem que

o que está sendo socializado é uma experiência de poesia afetada no mais alto íntimo de sua capacidade de formu­lar e revelar ao mundo promessas do novo. É imprescindí­vel dotar o conceito contemporâneo de poesia de um con­teúdo crítico, mas seria ainda a formulação mallarmeana de poesia absoluta apta a nos guiar em meio às solicita­ções do presente? De qualquer maneira, é irretorquível que a experiência poética culturalmente desqualificada de hoje depõe acerca de um estado objetivo da sensibili­dade contemporânea; o que não tem muitos encantos mas pode vir a ter sua força. (p.J06)

Como vislumbramos nas palavras de Alfredo Bosi, o que lemos aqui é, de fato, o declarado desejo de encontrar, na poesia contemporâ­nea, algo perdido da poesia moderna: sua possibilidade critica. Mas, apesar da nostalgia, lemos também o reconhecimento de que estamos diante de uma nova sensibilidade, de uma nova poesia, e a disposição, quem sabe fmgida, para ver, ou esperar, algo de positivo. Creio que aí

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9 NUNES, Benedito. A recente poesia brasilei­ra: expressão e forma. Novos estudos - CE­BRAP nO 31. São Paulo, outubro de 1991, p.171-183.

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está a diferença de postura entre os críticos: um, recusa em bloco a produção recente; os outros, mesmo a desqualificando também em blo­co, ao menos dispõem-se a lê-Ia e, quem sabe, a entendê-Ia.

Adotando postura crítica totalmente diversa diante da poesia con­temporânea brasileira, sem deter-se na desqualificação literária e muito menos sem recusá-Ia, Benedito Nunes procurou mapear as linhas que caracterizariam o conjunto da poesia brasileira dos anos 809 . Embora partindo de um recorte temporal aparentemente mais restritivo, o autor, sem cair em generalizações fáceis ou em definições valorativas aprio­rísticas ou preconceituosas, traça um abrangente quadro da poesia bra­sileira no período examinado. Uma observação inicial define a amplitu­de de sua sondagem: "Não se trata apenas [00'] de uma notícia sobre o que há de mais novo na poesia brasileira. Nosso intuito é levantar, do ponto de vista da expressão e da forma, algumas linhas característi­cas do conjunto da produção poética brasileira, dentro de um marco cronológico definido: a década de 80" (p. 171).

A busca de linhagens orienta o "olhar para trás", na definição das "matrizes históricas" atuantes na poesia contemporânea e que es­tão, para o crítico, na tradição moderna brasileira. Tradição que se cons­tituiu por cerca de 40 anos e que dá a perceber, nos anos 50, traços distintivos. Assim, a obra de João Cabral somente poderá ser lida e compreendida, diz Benedito Nunes, a partir do fundo da tradição mo­derna, antes de se constituir, ela mesma, em uma linhagem interna. Do mesmo modo os poetas concretistas que, apesar de se colocarem como a possibilidade de superar a tradição moderna, projetando-se para o futuro, visavam, mais do que à "anti-tradição", à instauração de uma "outra tradição". De qualquer modo, o pano de fundo dos debates e especialmente das recusas e rupturas é a tradição da poesia brasi­leira moderna.

Procedendo ao mapeamento histórico, o crítico passa pelos des­dobramentos concretistas, que incluem a discussão do engajamento, seja poético, seja político. Comungando, neste ponto, com os críticos que acabamos de ver, Benedito Nunes registra também, nos anos 70, a existência de uma poesia, no geral, de má qualidade, com o abandono da tradição moderna, quando não o desprezo por ela. Mas não atribui tais efeitos à "condição pós-moderna", ou à sociedade de consumo e de massas, e sim a um sentimento de decepção com a cultura associada aos fantasmas do autoritarismo ou ainda ao cultivo de atitudes trans­gressivas a todos os códigos. O crítico refere-se, certamente, às fortes mudanças no campo do comportamento, que podem ser associadas à contracultura e que marcaram a virada dos anos 60 para os 70.

Benedito Nunes registra ainda o "aturdimento dos críticos da época, indiferentes ou perplexos" (p.173), e considera que, graças ao casamento entre poesia e música popular evitou-se um período total-

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mente perdido em termos de produção poética. Juízo rigoroso, sem dú­vida, inas que não desqualifica homogeneamente a "poesia marginal", podendo perceber, em vários poetas nela incluídos, valores e qualidades literárias. Quanto aos anos 80, objeto declarado de seu ensaio, conside­ra-os uma década, comparada às anteriores, "pouco ruidosa, nada polê­mica, sem embates teóricos" (p.175)IO.

"Em nosso tempo, a arte poética não pode ter urna só medida; ela não é mais canônica, é uma composição de cânones" (p. 178). Essa afirmação resume o que venho discutindo: muito do que se lê como perda qualitativa na poesia contemporânea passa pela eleição de um cânone, por um critério de valor. Mas estamos no terreno da pluralida­de, do cruzamento de cânones e, para Benedito Nunes, no campo da hermenêutica, já que "a compreensão canônica exige a hennenêuti­ca". Dessa união, o crítico e filósofo distingue dois resultados: a tradu­ção como atividade poética e o fazer crítico da poesia enquanto henne­nêutica dos textos, isto é, enquanto historicidade.

Buscando ordenar o múltiplo, encontrar afinidade entre as dife­renças, o critico reafirma, primeiramente, o que, na produção poética contemporânea, talvez esteja na origem da sua pluralidade: "fora do ciclo histórico das vanguardas", os poetas ')á não se acham mais sob urgente pressão da busca do novo - o império da tradição moderna". Dentre esses, Benedito Nunes cita os que considera as "melhores vo­zes reflexivas da poesia recente", de que participam inúmeros poetas de distintas gerações.

Se as catalogações são sempre problemáticas, especialmente dentro dos limites de um ensaio relativamente curto, mas que se quer abrangente, importa a percepção de que o ponto definidor da poesia contemporânea é a convivência da diversidade, em regime de pluralis­mo estético: poemas de teor classicizante, versos breves e rememorati­vos, iluminação epifânica, poesia encantatória, ritmo de canção, sacra­lização do cotidiano, verso gnômico. De tudo um pouco. Distingüem-se ainda nesse conjunto heterogêneo os poetas em que a glosa e a paródia são preponderantes, pela prática do que o ensaísta denomina "esfolha­mento da tradição": "conversão de cânones, esvaziamento de sua ftm­ção normativa, em fontes livremente disponíveis com as quais inces­santemente dialogam os poetas" (p. 179). Para Benedito Nunes, ape­nas essa relação intertextuallivre e múltipla, esse passeio atemporal e extraterritorial pela "Biblioteca de Babel", pode explicar os paradoxos e as contradições em obras como a de Ana Cristina Cesar.

Finalmente, a tentativa de condensar em algumas linhas as ca­racterísticas de algo que é, por seu caráter híbrido, praticamente incon­densável, leva o crítico a traçar quatro modos básicos de formar, cons­tantes na poesia contemporânea: "a tematização reflexiva da poesia ou a poesia sobre a poesia; a técnica do fragmento; o estilo neo-retórico;

10 Embora essa afirma­tiva mereça discussão e até alguns reparos, as­sim como outras afir­mações relativas à insti­tucionalização da críti­ca entre o jornal e a uni­versidade, acredito que não caiba aos propósi­tos e limites deste en­saio discuti-Ias aqui. Deixo-as, portanto, para outros escritos.

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11 Trecho da entrevista concedida por Haroldo de Campos a Susana Célia Leandro Scramin em 28/6/90. Ver SCRA­MIN, Susana C.L. Para além do cisco do sol no olho. Florian6potis: UFSC, 1991, anexo L p. 31 (dis­sertação de mestrado).

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a configuração epigramática"(p. 179). Sem ignorar, obviamente, que todos esses elementos - formais e/ou conteudísticos - já estavam na poesia moderna. Mas, observa o crítico, "a retomada graças à qual hoje reaflora, verdadeira recapitulação retrospectiva do modernismo e de sua tradição, passa pelo duplo crivo axiológico, valorativo [ ... ]: o herme­nêutico [ ... ] e o histórico-crítico [ ... )" (p. 179). São estes dois crivos que introduzem tanto as releituras do passado, ou a prática intertextual, como a possibilidade de ainda repensar, criticamente, o próprio mundo, situando-se, paradoxalmente, "ao mesmo tempo dentro e fora da história real". E é sob o signo do paradoxo e da intertextualidade programáticas que me parece possível empreender a leitura dos poetas de nosso tempo.

Dizeres poéticos

Se admitimos a emergência de um novo tipo de sensibilidade poética, de novos e vários princípios estéticos, onde situar, no quadro da poesia brasileira contemporânea, o "novo" Haroldo de Campos da poe­sia da agoridade? O poeta tem consciência de que

o pós-utópico é um momento dificil em que você tem que saber que não é mais possível uma solução coletiva, sa­ber que não há mais plano-piloto para reger seus poemas. Tem que se descobrir qual é o poema que você pode fazer na circunstância atual, na agoridade, a cada agora que surge. A cada novo momento se faz um poema, num mo­mento x eu faço 'Baladeta à moda toscana', num momento y eu escrevo 'O opúsculo goetheano ", num momento z eu escrevo 'Finismundo a última viagem '. Em todos eles está presente a bagagem que eu adquiri como poeta concreto, quer dizer, eu não faço poesia concreta há mais de 20 anos. Se eu escrever um livro de sonetos, vão me chamar de poeta concreto ... 11

De fato, o poeta de A educação dos cinco sentidos não é mais um poeta concreto. Retoma o verso, após ter declarado seu fim. Verso também praticado por Adélia Prado.

Para proceder à leitura, ora cruzada, ora em paralelo, dos dois poetas, é preciso tocar, inicialmente, em algumas questões não aborda­das diretamente pelos críticos que acabamos de comentar.

A "eliminação de fronteiras" é um dos conceitos mais abrangen­tes e mais consensuais quando se trata da pós-modernidade. Por ele transitam as tensões especialmente no que diz respeito à relação entre

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o fácil e o dificil, vanguarda e kitsch, letrado e popular, o alto e o baixo, cultura erudita e cultura de massa, passado e presente, cânone e anti­cânone, originalidade e citação, arte e vida, além de outras, com as conseqüentes implicações relativas à banalização e à indústria cultural. Tensões muito próximas de nós. É a partir dessa perspectiva que pode­mos ler, por exemplo, algumas das aparentes contradições num autor como Haroldo de Campos. Não poucas vezes a crítica brasileira, ao tratar do concretismo, acentuou, com reprovação, as propostas de vín­culo entre a poesia e a propaganda, signo maior da sociedade de consu­mo, contidas em vários textos de Haroldo. Era a partir da "alta poesia", Maiakovski e Mallarmé, que o poeta-crítico-teóríco-tradutor afirmava, em 1957: "O poema concreto instiga um novo tipo de tipografia e pro­paganda e mesmo um novo tipo de jornalismo, além de outras possíveis aplicações (Tv, cinema, etc.). [ ... ] uma reversão de interesses, do jor­nal, de certas técnicas do jornalismo, para a órbita da poesia concreta não seria, portanto, um acontecimento desconcertante"12.

A posterior aproximação com o movimento tropicalista e com Caetano Veloso, bem como as "performances" de projeções de poe­mas nos céus paulistanos e europeus através de raios laser, podem ilustrar um tipo de relação com a indústria cultural distante das previ­sões adornianas. Em "Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira", ensaio redigido em 1980, ao historiar a trajetória do movimento concretista em suas aproximações com a música, Haroldo explicita, positivamente, as relações possíveis entre a "cultura erudita" e a "cultura de massas":

Mais tarde, esse percurso poesia/música de vanguarda (erudita) reverteria para uma excepcional conjuntura bra­sileira: Augusto de Campos seria o principal crítico e pro­pugnador da nova música popular de Caetano Veloso e Gilberto Gil [ . .}. O produssumo, como definiu D. Pignata­ri: a poética de invenção no consumo de massa, para além do ceticismo adorniano ... Imagine-se só, como termo de comparação e demonstração, esta convergência ideal: Os 'Beatles' compondo em contato presencial com John Cage sobre textos de e. e. cummings ... J3

Por outro lado, tanto a reivindicação de critério de autoridade emprestado pelo campo do erudito, no caso por Mallarmé, Maiakovski e John Cage, como a sofisticação tecnológica e, ainda, o princípio no r­teador de toda uma vida de militância cultural - "O Preceptor - Meis­terludi - dá o tema: rigorl"14 - exemplificam mais do que a eliminação das fronteiras entre o erudito e o massivo, entre o fácil e o dificil, sua tensão. Ou ainda, olhando por outro ângulo, como diria Rouanet, não se

12 Poesia concreta - Lin­guagem - Comunicação. Teoria da Poesia Con­creta: textos críticos e manifestos. 2" ed. Au­gusto de Campos, Ha­roldo de Campos e Dé­cio Pignatari. São Pau­lo: Duas Cidades, 1975.

13 Metalinguagem & outras metas. São Pau­lo: Perspectiva, 1992, p.249.

14 Ciropédia ou a educa­ção do príncipe. Xadrez de estrelas. Obra citada, p. 47. Neste poema de 1952, já estão presentes algumas imagens que marcam as concepções poéticas de Haroldo, in­dependentes do concre­tismo, e que reaparecem com vigor em A educa­ção dos cinco sentidos.

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15 ROUANET, Sérgio Paulo. O novo irracio­nalismo brasileiro. As razões do iluminismo. São Paulo, Companhia das Letras, 1987, p. 124-146.

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trata de nivelamento entre cultura de elite e cultura de massas, e sim, da tentativa, utópica, diga-se, de superar o elitismo, superando o "monopó­lio da cultura superior por parte da classe alta"'5. Todavia, é preciso acentuar que, ao falarmos das fronteiras e sua eliminação, estamos adotando não o conceito simplista de homogeneização de produtos culturais, mas da tensão que se estabelece, ora por apropriação mútua, ora por contaminação, não necessariamente depreciativa, entre es­feras que se queriam, ao menos teoricamente, distintas, autônomas e hierarquizadas.

A entrada de Adélia Prado no cenário cultural brasileiro toca em questões similares. Grande vendagem de seus livros - "best-seller" poético? -, manifestações favoráveis na crítica. Uma poesia aparente­mente fácil, comunicativa, quase uma prosa coloquial, tratando de "coi­sas de mulher" entre outras coisas, direta em sua fragmentação. Uma poeta-prosadora vinda de uma cidadezinha do interior mineiro, que se já não chamasse Divinópolis, certamente assim seria nomeada a partir da palavra religiosa de Adélia Prado. Produziu poemas que em menos de dez anos se transformaram em "Dona Doida", texto para teatro ence­nado com sucesso, por todo o país, pela muito competente, mas nem por isso menos "global", Fernanda Montenegro. E se o teatro está no campo da chamada "alta cultura", as estratégias de montagem e divul­gação dos espetáculos a partir da notoriedade dos atores obtida como "artistas de televisão" reforça. em vez de eliminar, as tensões entre o campo da arte enquanto esfera supostanlente autônoma e a indústria cultural. Se tais fatos não servem para valorizar, por si só, a obra de Adélia Prado. tamb~m nào a desvalorizam. Colocam, simplesmente, a tensão de que úmos tratando. Isso sem falar dessa mesma tensão ela­borada na própria obra, o que abordarei mais adiante.

Outra fronteira que se dilui, ou melhor, se tensiona na pós-moder­nidade, é a de gênero, entendida em sentido amplo. Gêneros literários se mesclam, se aproximam, dialogam. A critica e a teoria surgem no poema; a poesia contamina o ensaio; a prosa de ficção, a história. E vice-versa. Os gêneros autobiográficos ganham estatuto literário, vida e ficção se confundem e se interpenetram. Os exemplos abundam, mas para ficar apenas com os meus eleitos nesse ensaio, basta lembrar o constante vaivém entre crítica, teoria e poesia na obra de Haroldo, mediadas pela atividade tradutora. E, inclusive, uma certa discursividade (poesia dis­cursiva é igual a poesia tradicional, pregava Haroldo), tons circunstan­ciais e elementos autobiográficos podem ser lidos nos poemas de A educação dos cinco sentidos. Adélia, por sua vez, funde ficção e realidade, mistura sua própria vida à obra, transporta elementos da pro­sa para a poesia e vice-versa. Isso sem falar nas relações de gênero, em que feminino e masculino se redimensionam e vêem suas hierarqui­as canônicas serem subvertidas, quando não diluídas, mesmo sem mili-

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tâncias feministas explícitas. Quanto à fronteira entre o universal e o particular, traduzida em

termos de internacionalização e regionalização, ou ainda de cosmopoli­tismo e provincianismo, sem tocar diretamente nos ensaios de Haroldo de Campos que recobrem praticamente todas as questões envolvidas no debate contemporâneo, a leitura cruzada das obras poéticas de Ha­roldo de Campos e Adélia Prado exibe, quase por si só, a tensão entre estes dois pólos. Relativização e deslocamento da idéia de um centro, de um único lugar simbólico a partir do qual se pode produzir poesia de boa qualidade. Lugar polivalente que pode incluir o sujeito.

Se a eliminação de fronteiras, ou em outras palavras, a tensão entre limites é um elemento caracterizador da atividade artística pós­moderna (sem esquecer das outras atividades), concordo com a posi­ção de Linda Hutcheon em priorizar, dentre os aspectos caracterizado­res do pós-moderno, a relação com o passado:

aquilo que quero chamar de pós-moderno é fundamental­mente contraditório, deliberadamente histórico e inevita­velmente político. Suas contradições podem muito bem ser as mesmas da SOCiedade governada pelo capitalismo re­cente, mas, seja qual for o motivo, sem dúvida essas con­tradições se manifestam no importante conceito pós-mo­derno da 'presença do passado '. [. . .} não é um retorno nostálgico; é uma reavaliação crítica, um diálogo irônico com o passado da arte e da sociedade [. . .}. 16

Certamente se pode objetar, mais uma vez, que a modernidade efetua, através da paródia, a reavaliação crítica do passado. Aliás, é pela oposição paródia/pastiche que Jameson distingue, respectivamen­te, modernismo/pós-modernismo, com sinal negativo para o segundo termo da conjunção. É preciso, no entanto, observar que o "retomo ao passado" empreendido pelos poetas contemporâneos pode ser afirma­tivo, sem deixar de ser crítico, sem deixar de ser historicidade, sem deixar de ser uma reinterpretação. E tal retomo se dá de forma progra­mática: seja pelo pastiche, recuperando estilos e formas esquecidas para deslocá-los, seja pelas várias formas e fontes de citação, seja pela intensa atividade tradutora e transcriadora, como diria Haroldo, seja pelo resgate dos esquecidos pela história oficial.

Intensificação da intertextualidade, ou, melhor dizendo, da hiper­textualidade - e penso, é claro, nos Palimpsestes de Genette - como projeto estético-crítico, como modos de retomar ao passado, instauran­do descontinuidades, desestabilizando certezas, relativizando o conceito de novo. Eis um dos paradoxos da poesia e da própria cena contempo­râneas: exatamente onde ela é acusada de eliminar a referencialidade

16 Poética do pós-mo­dernismo: história, teo­ria,ficção. Trad. Ricar­do Cruz. Rio de Janei­ro: Imago, 1991, p. 20

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17 Esse ponto foi trata­do por Susana Scramin em sua dissertação de mestrado, já referida.

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do tempo histórico, deslocando, cruzando e sobrepondo tempos e textos diversos, é exatamente nessa prática desestabilizadora que se dá a his­toricidade, que se potencializa a crítica.

Na poesia de Haroldo de Campos a presença do passado sem­pre foi muito forte. Mesmo nos tempos da militância concretista, em que a poesia que se pretendia propor e, até, impor, projetava-se nitida­mente para o futuro a partir de seu compromisso com um presente de modernização, ou, mais ainda, num tipo de presente que se via como literalmente na "vanguarda", mesmo aí a presença do passado é muito forte. Não há dúvida de que se tratava de um processo de legitimação da própria prática concretista, através da construção dos antepassados. Um passado construído pela seleção rigorosa da 'tradição válida", que deseja reescrever a própria história a partir do presente autocentrado. No entanto, sem jamais ter renegado os princípios teóricos que enfor­maram sua militância poética e cultural, o Haroldo de Campos dos anos 80 intensifica sua atividade tradutora e transcriadora, abre o leque de possibilidades e amplia suas incursões pelo passado, indo aos textos, por assim dizer, fundadores: Homero e a Bíblia; Finismundo e Qohelet.

É sem dúvida A educação dos cinco sentidos, único livro de poemas publicado por Haroldo de Campos nos anos 80, o que melhor exemplifica essa poesia "da agoridade", que não se confunde com poesia do momento presente, e se constrói, paradoxalmente, pela inten­sa revisitação do passado. Sem entrar na visão pedagógica que funcio­naliza esta poesia desde o título - título do livro como um todo, de uma parte dele e do poema de abertura17 -, vamos encontrar, no conjunto do volume, uma grande heterogeneidade entre os poemas. E o leitor mais antigo de Haroldo certamente se surpreende ao encontrar, neste livro, grandes diferenças em relação ao anterior, Signância quase céu, e talvez se surpreenda ainda mais ao constatar que poemas bem mais antigos do próprio Haroldo, poemas pré-concretistas, em pleno uso do verso aí ecoam. Dessa volta a seu próprio passado, à "Ciropédia ou a educação do príncipe", Haroldo retoma as imagens do rigor e da edu­cação pela poesia.

Dos 50 poemas que, divididos em cinco partes, compõem A edu­cação dos cinco sentidos, cerca de 20 são poemas longos, seja para os padrões concretistas, seja para aqueles em voga nos anos 70. São poemas com mais de vinte versos, sendo que a "Ode (explícita) em defesa da poesia no dia de São Lukács" combina seu verboso título com 144 versos! Sim, versos. Porque neste livro não mais nos deparamos com a palavra estilhaçada no branco da página, com O poema constelação predominante até o livro anterior. Isso não quer dizer que Haroldo tenha "retrocedido" em sua poética, raciocínio aplicável apenas numa pers­pectiva evolucionista linear. Bem ao contrário, creio que o poeta retra­balha sua poesia, enriquecendo-a com as múltiplas possibilidades de com-

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posição a partir da biblioteca e que a história da poesia lhe dá. Este livro conta, de algum modo, histórias da poesia. Primeiro, da

própria poesia desenvolvida por Haroldo e seus pares, não sem uma boa dose de ironia, mas também de narcisismo e de rancor, de auto­referencial idade autobiográfica um tanto cabotina: "a" poesia é igual à sua poesia; os percalços "da" poesia são os percalços do poeta ressen­tido frente a seus contemporâneos - "e todo mundo querendo tricapi­tar/ há mais de trinta anos/ esses trigênios vocalistas"18. No entanto, além de registrar sua luta poética, Haroldo parece subvertê-la ao rea­firmar conceitos de poesia pelo olhar de um eu, de um sujeito situado no tempo e no espaço e que rememora, na velhice, sua própria história; que expõe versos de circunstância, apesar das mediações de linguagem e dos distanciamentos daí decorrentes, como na série "Austinéia des­vairada"; e que escava textos remotos no tempo e no espaço, passean­do entre o pensamento e a poesia: revisita Heráclito e a lírica de Mitile­ne, revê al-Ghazzali e Heidegger, vai à China do século VIII para rees­crever Li Po em duas versões, depois de rever Mencius. Passeia pela Provença, traduz uma anedota barroca, homenageia VaUejo, citando Sousândrade e Shakespeare, inventa um diálogo entre Ungaretti e Le­opardi e, num dos melhores poemas do livro - "Baladeta à moda tosca­na" - desloca para a São Paulo contemporânea a balada do exílio de Guido Cavalcanti 19. Além do processo de recriação, em que parodia versos e imita o estilo, Haroldo praticamente infla o poema com tal abundância de citações e alusões, de ordens e tempos diferentes, aca­bando por construir um poema sem fronteiras demarcadas, pleno tam­bém de lirismo, humor, sutil ironia e extrema riqueza sonora. Um bom poema, digamos, pós-moderno.

Mas não basta. Além da presença ostensiva do passado, explíci­ta nas longas e detalhadas "notas" que complementam os poemas no final do livro, a variedade e intensidade das citações e referências, ao longo de quase todos os poemas, fazem de A educação dos cinco sentidos um exemplo mais do que eloqüente da hipertextualidade, ou da intertextualidade acirrada e programática que parece caracterizar, sem demérito, a poesia contemporânea. Não há apenas destruição ou devoração do passado, ou rupturas que se queiram nítidas e definitivas. Há homenagem e resgate, que também se tomam críticos ao espraia­rem a idéia de uma "única" tradição, ao trazerem elementos díspares para uma renovada percepção estética contemporânea.

Se em Haroldo de Campos o retomo ao passado literário, incluin­do-se nele o seu próprio, é ato explicitamente programático em seu fazer poético mais recente, o mesmo não se pode dizer da poesia de Adélia Prado. Pelo menos quanto à explicitação. É verdade que seu comentadíssimo poema "Com licença poética", que abre Bagagem, dialoga com outro poema de abertura, o "Poema de sete faces", o pri-

18 "Ode (explícita) em defesa da poesia no dia de São Lukács", obra ci­tada, p.104-127.

19 Haroldo distingue este seu poema, "inspi­rado" em Guido Caval­canti, da tradução pro­piamente dita, feita por ele como adendo ao en­saio "O doce estilo novo: (Bossa-nova) na Itália do duocenlo", pu­blicado no Folhetim nO 339, Folha de São Pau­lo, 1717183. Caracteriza­se, assim, a distinção entre "transcriar" como ato tradutor e "criar a partir de", relativizando o conceito de originali­dade.

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20 "Bitolas", poema do livro Coração Dispara­do. Em Poesia reunida, p.205.

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meiro que se lê em Alguma poesia, no primeiro livro de poemas de Carlos Drummond de Andrade, já devidamente canônico em 1976. Di­álogo retomado por Adélia em outros poemas do mesmo livro, assim como em outros poemas dos outros livros, em que além de Drummond entram na conversa, muitas vezes sendo citados nominalmente, Guima­rães Rosa, Murilo Mendes, Fernando Pessoa, Castro Alves, Casimiro de Abreu, Álvares de Azevedo, Gregório de Matos, Manuel Bandeira ou Camões. História oficial da literatura brasileira, diria certamente Haroldo de Campos. E, nessa história, a relação mais forte, mais explí­cita, um misto de amor e ódio, e de elaboração da tão moderna "angús­tia da influência" se dá com a "herança" do mineiro de Itabira. Mas há também alusões menos corriqueiras a qualquer estudante de poesia, como no verso "Já li 'mar de sargaços'; seja o que for, é belo"20. Terá Adélia Prado lido Jean Rhys?

Não me parece, contudo, que essa presença do passado, ou essa intertextualidade seja o ponto mais forte ou mais detenninante na obra poética de Adélia Prado. Não é tão evidente o projeto de elaboração poética a partir de outros textos do acervo literário aludido, dessa bibliote­ca quase que oficial. Embora esteja bastante presente esse passado, o que lemos em "Licença poética" é, paradoxalmente, uma poeta que se propõe uma tarefa fundadora, geratriz de uma linhagem que se definirá pelo papel feminino, pela diferença. No lugar do anjo torto que vive na sombra, surge o anjo esbelto que toca trombeta; à sina de ser gauche na vida, sobrepõe-se a de carregar bandeira. Num ato inaugural: " ... Cum­pro a sina.! Inauguro linhagens, fundo reinos/ - dor não é amargura.! .... Nai ser coxo na vida é maldição pra homem.! Mulher é desdobrável. Eu sou." (p.ll)

Certamente a defesa de uma poesia de expressão lírica no Brasil de 1976 pode ser lida como volta ao passado, como retrocesso. Como volta a um passado romântico, mas com dicção coloquial e moderna. Mas que recusa a maldição do poeta moderno e busca suas raízes num passado extremamente mais longínquo do que aquele representado pela produção literária brasileira que a antecede. A mesma imagem de re­cusa das heranças imediatas e da busca de re-fundação a partir de raízes antiqüíssimas reitera-se em lugares inaugurais na poesia de Adé­lia: está também no primeiro poema do segundo livro. Significativamen­te, o poema chama-se "Linhagem". Poema longo, discursivo, descreve/ narra situações corriqueiras, modos de vida de "pais" e "avós" despro­vidos de heroísmos e "que jamais pensaram em escrever um livro". Nada de heranças nobres, de dicções poéticas "elevadas". Mas, diz o poema, "Minha árvore ginecológica! me transmitiu fidalguias, gestos mannorizáveis", e falas que só se atualizam na palavra poética depois de depuradas em novo ato inaugural, que nega origem, ascendências ou marcas de autoria: "esta sentença não lapidar, porque eivada/ dos solu-

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ços próprios da hora em que foi chorada,! permaneceu inédita, até que eu,! cujas mães e avós morreram cedo,! de parto, sem discursar,! a trasmitisse a meus futuros,! enormemente admirada."

A mesma preocupação em marcar uma ancestralidade quase além do tempo, e por isso mesmo indefinida, e a poesia como expressão do sentimento, como fruto da experiência emocional transmissível, mes­mo que mediada pelo diálogo com outras vozes, é recorrente e retoma, ainda uma vez, num poema de Pelicano; último livro de poesias de Adélia Prado. Em "Heráldica", o poema se abre com dois versos de­cassílabos, barroquizantes, à Gregório de Matos, nitidamente paró­dicas, para, a partir do terceiro verso, baixar e mudar o tom, reto­mando o discurso sobre a poesia e sobre a crítica com muitas alu­sões a fontes diversas:

Grande luxo é ser pobre por escolha, tentação de ser Deus que nada tem, orgulho incomensurável. Por causa disso sou advertida de que muitos me precederão no Reino, os ladrões, os maus poetas e pior, os bajuladores que os louvam.

Sei quando um verso é mau, quando não vem desgarrado da margem ignota da alma.

Só posso dizer que é amor esta fadiga de catar as pérolas. descobrir nos brasões a milenar linhagem. Ninguém sabe o que diz quando fala dos pobres.

Parece que essa busca nos "mil avós", busca da milenar linha­gem, que se refunda na mulher desdobrável confrontada a valores poé­ticos garimpados na tradição, mas encontrados fora do centro, "na mar­gem ignota da alma", parece que essa busca, ao ser lida na relação com a religiosidade erotizada, ou com a sexualidade sacralizada, sinais in­vertidos que marcam toda a obra de Adélia, aponta para um passado textual muito antigo e muito presente nessa obra. Passado que faz a convergência com a obra de Haroldo de Campos e que, se leva a pro­dutos poéticos aparentemente muito distintos enquanto realização, leva também a uma espécie de iluminação compartilhada pela imagem do sol, pelo mesmo solo: a Bíblia, a tradição barroca.

Sol, lua, ouro, prata, amarelo, roxo. Um cisco de sol no olho. Um jogo que pode ser jogado pelos dois parceiros neste ensaio. Metáforas

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solares e desdobramentos do amarelo em que os dois poetas se encon­tram. Encontram-se para nos deixar ler que os rumos da poesia brasi­leira dos 90 pode ter assimilado, da imaginária conjunção destes poetas, na pluralidade de seus caminhos, não a desqualificação literária, não o novo pelo novo, não a imediatez da vida travestida de poesia, mas as possibilidades de, cruzando linhagens e linguagens da tradição, encon­trar o rigor e a simplicidade. Encontrar poesia.

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1 Charles Baudelaire, "La Modernité" in Oeuvres Completes de Baudelaire, texte éta­bli et annoté par Y-G Le Dantec, "Bibliothe­que de la Pléiade", Pa­ris: Gallimard, 1958, p.892.

Saturno Devorador da Modernidade:

Imagens/Sensações

Ana Luiza Andrade Universidade Federal de Santa Catarina

As alegorias são no reino do pensamento o que são as ruínas no reino das coisas.

(Walter Benjamin. Origem do Drama Barroco Alemão)

Depois do final da palavra começa o grande uivo eterno. (Clarice Lispector, A Paixão Segundo GH)

A identificação romana entre Saturno, o' deus da fartura que devora os filhos, e Cronos, o deus do tempo dos gregos, antecipa a voracidade de tempos modernos. A linguagem artística circula numa temporalida­de voraz, ao incorporar-se em formas culturais significantes, desde a fórmula baudelairiana: "La modernité, c' est le transito ire, le fugitif, le contingent, la moitié de l'art, dont l'autre moitié est l'eternelé et l'immuable"l. Segundo Deleuze, entre os dois presentes de Crooos, o da subversão pelo fundo e o da efetuação nas formas, há um terceiro, pertencente a Aiôn, deus da locução, atuante no "momento perverso" instantâneo e superficial de contra-efetuação, que o subdivide, e que traz à tona o devi r-louco das profundidades.

A modernidade da pintura de Goya "Saturno devorando um de seus filhos" (1820-1823) consiste na imagem corpórea de um presente que devora, mas um presente sendo incorporado pelo passado que já é fantasma do presente: "um já que ainda não é e que já não é mais".

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Saturno sobe à superfície da tela de Goya como um ancião que emerge das profundezas, transmutado em Cronos, fantasma em plena opera­ção aiônica na incorporação de sua cria: uma concepção temporalleib­niziana. Como diz Deleuze, "nada sobe à superfície sem mudar de natu­reza"2. Mas é a própria mudança na natureza que está em processo no quadro de Goya: o ancião, em seu ato de devorar o filho, já é um fantas­ma em metamorfose pela boca escancarada e voraz com que destrin­cha um corpo para alimentar-se e assimilá-lo na perpetuação do ato canibal, ou tomar-se "outro", através da incorporação. A superficie da tela parece apontar antes para sua profundidade oculta, para o presente saturnino de incorpor",ção do fantasma, ou seja, para uma linguagem anterior à de Sua própria produção: fantasma que volta às origens exte­riores, extra-ser que passa do acontecimento figurativo ao genésico - o abocanhar voraz do filho no passado que desemboca na devo ração futura do pai -, corpo incorporado que se toma incorporador. A força da linguagem imagística aqui se volta ao acontecimento originário cultu­ral: a representação da espécie animal ampliada no corpo humano que, ao devorar um outro reduzido, apropria-se tanto das forças adversárias (exocanibalismo) quanto das ancestrais (endocanibalismo), canibalismo enfim, que antecede a própria linguagem imagística de que é constituída a matéria-prima da pintura.

Ao considerar a pintura de Goya em sua meditação sobre os mistérios da matéria, pintando as trevas num tempo de luzes, Jean Sta­robinski aproxima-o a Beethoven não só pela perda gradual da audição, mas pela obstinada superação de si mesmo na "extraordinária transfor­mação de estilo" em poucas décadas. Goya é um anacronismo numa época que consagrou a idéia de Cronos, surgindo com a própria pala­vra, inconforme, ou fora de seu temp03.

Coincidente à representação de Goya no ato incorporador que assimila e reproduz o mesmo, Octavio Paz nos lembra o sentido político da máquina do Estado moderno, "máquina política do sistema capitalis­ta, uma superestrutura, é o modelo das relações econômicas, as gran­des empresas e negócios, à imitação sua, tendem a converter - se em estados mais poderosos que muitas nações"4. Como alegoria de um Estado moderno, o quadro evocaria a ascensão do individualismo re­nascentista representado pelo monstro Leviatã de Hobbes, para quem a sociedade moderna controla o seu estado natural predatório apenas por interesse. A matéria se transforma no poder de incorporar ou na fragilidade a ser incorporada, para Hobbes, contemporâneo de um des­membramento da terra simbólico do estabelecimento das fronteiras do "eu" individual, terra previamente imaginada como um corpo de propri­edade comunitária que se divide, na representação do homo economi­cus5 • O tempo devorador que se representa no velho monstro de Goya evoca pois, o antigo fantasma renascentista do corpo cuja força voraz

1 Gilles Deleuze, La Lógica deI Sentido, trad. prol. Miguel Morey, Barcelona/B. Aires: Pai dós, 1989, p. 13944.

J Jean Starobinski, Os Emblemas da Razão, São Paulo: Cia das Le­tras, p. 499.

• Octavio Paz, El Ogro Filantrópico História y Politica 1871-1978, Barcelo­na: Seix BarraI, 1983, p.85.

I Maggie Kilgour, From Commllnion to Cannibalism: an ana­tomy of melaphors of incorporation, New Jersey: Princeton Uni­versity Press, 1990, p. 145.

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6 Michel Foucault, As Palavras e as Coisas: uma arqueologia das ciências humanas, trad. Antonio Ramos Rosa, prefácio Eduar­do Lourenço e Virgílio Ferreira, Lisboa: Por­tugalia Editora, p. 443 e275.

7 Jean Starobinski (Montaigne em Movi­mento, trad. Maria Lucia Machado, São Paulo: Cia das Letras, 1993) cita Montaigne: "Escrever é, por uma alienação consentida, constituir o corpo se­gundo aquele que apa­rece para si mesmo, é produzir o tecido ver­bal - o texto - ofereci­do à compreensão do leitor virtual. O texto é esse estran ho objeto que tira a sua vida do desaparecimento do seu artesão. A obra escrita, modo vicarian­te de nossa existência, rastro destinado a so­breviver a nós, exteri­oriza a vida e interio­riza a morte." (p. 41)

S Maggie Kilgour, From Communion to Cannibalism, p. 149.

Saturno Devorador da Modernidade - 149

assimila o tempo ao se corporificar no espaço, ao desdobrar-se na cena paradoxal de um tempo imutável em sua velhice disparada - tempus edax rerum (o tempo que tudo devora) - deslocando-se no espaço da tela - sua metade artística antropofágica bestializando-se na moderni­dade capitalista fragmentada que representa um tempo presente dividi­do pelo trabalho.

Sobretudo, a pintura de Goya anteciparia a passagem do pensa­mento clássico ao moderno, o ser humano entre o seu ser finito e a suspensão do devir, coincidente ao impasse foucaultiano do homem moderno e seu duplo: "A cultura moderna pode pensar o homem por­que pensa o finito a partir de si mesmo". Para Foucault, incorporador de Freud, o que distingue o pensamento moderno é precisamente "tra­zer a lume esta parte de sombra que recolhe o homem nela, é a reani­mação do inerte ... " e, o que se revela no fundamento da história das coisas e da historicidade humana, "é a distância a escavar o Mesmo, e o afastamento que o dispersa e o junta nos dois extremos dele mesmo. É esta profunda espacialidade que permite ao pensamento pensar sem­pre o tempo - conhecê-lo como sucessão, prometê-lo como fecho, ori­gem ou retomo." Se a reflexão histórica, no classicismo, girava em tomo da lógica e da ontologia, na modernidade, questiona-se sentido, forma de verdade, forma de ser, e a reflexão histórica gira em tomo das "relações entre significação e tempo"6.

Contemporâneo de Montaigne, para quem a linguagem do escri­tor presentifica a incorporação saturnina de um pensamento moderno? a Anatomia da Melancolia, também do século XVII, de Robert Bur­ton, tece a analogia entre o texto e o corpo humano, seguindo as etapas mentais humanas às profundidades enlouquecedoras do processo me­lancólico, dentro do ideal renascentista de colecionar autores, na tenta­tiva humanista de restaurar o passado através do modelo erasmiano, como membros dispersos de um corpo mutilado que se reunifica em sua completude original. Justificando-se pela frase Omme meum, nihil meum de Macrobius, Burton foge da questão da autoria em relação à propriedade dos autores a serem incorporados, sem deles roubar, mas comendo-os, na substituição das metáforas de posse pelas de alimen­tos. Isolado e até insular, no autoconsumo incorporativo de sua lingua­gem, segundo Maggie KilgourS, Burton chega a antecipar a Robinson Crusoé de Defoe, em sua existência mediatizada por textos. E é por essa via textual de incorporação que a sua produção se estenderia ao lado sul do Atlântico, nos traços de descendência saturnina de casmur­ros e borgianos.

Porém, é Walter Benjamin que, ao recuperar a modernidade de Baudelaire, percebe na descontinuidade temporal o resíduo fmal das coisas, no sentido em que Cronos era inseparável dos corpos que o enchiam de causas e matérias enquanto Aiôn povoa-se de efeitos que o

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recorrem sem enchê-lo jamais.9 O pensamento melancólico de Benja­min já se produz em fragmentos alegóricos de um corpo arcaico des­membrado. Pela teoria alegórica, ele coleciona (como Burton) mas, ao invés de autores, objetos residuais que subdividem o presente em pas­sado e futuro, vivendo além do presente pelos seus escritos, em sua rebeldia. Pela teoria melancólica, ele próprio emerge desmembrado à superfície, em imagens fotográficas pensativas, fragmentos represen­tativos de um original morto que se quer ressuscitar. A partir de quatro fotografias de Benjamin, de 1927, 30, 37 e 38, Susan Sontag busca reconstituir, à feição de Montaigne, de Burton, e do próprio Benjamin, um corpo de "flâneur" disperso pelas cidades como "reminiscências do eu" em "espaços perdidos" de pensamentos imagísticos, associando alegoria e melancolia à produção do "eu" como projeto, "algo a ser construído". Como explica Sontag:

Para o indivíduo nascido sob o signo de Saturno, o tempo é o meio da repressão, da inadequação, da repetição, mero cumprimento. No tempo, somos apenas o que somos: o que sempre fomos. No espaço, podemos ser outra pessoa. O escasso senso de orientação de Benjamin e sua incapaci­dade de interpretar o mapa de uma rua transformam-se numa paixão pelas viagens e no domínio da arte de se perder. O tempo não nos concede muitas oportunidades: ele nos impele por trás, empurrando-nos pela estreita pas­sagem do presente que desemboca no futuro. O espaço, ao contrário, é amplo, fértil de possibilidades, posições, interseções, passagens, desvios, conversões, becos sem saída, ruas de mão única. Na realidade, demasiadas pos­sibilidades. Como o temperamento saturnino é vagaroso, propenso à indecisão, às vezes precisamos abrir caminho de faca na mão. Às vezes acabamos virando a faca contra nós mesmos JO•

Nas fotos em que Benjamin aparece pensativo e sempre olhando para o canto esquerdo da fotografia, caberiam suas próprias palavras sobre o temperamento saturnino em Origem do Drama Barroco Ale­mão:

O olhar voltado para o chão caracteriza o saturnino, que perfura o solo com seus olhos. Tschering escreve: "Quem não me conhece pode reconhecer-me por minha atitude. Olho sempre para o chão porque brotei da terra, e agora olho para minha própria mãe. As inspirações da mãe-ter­ra despontam aos poucos para o melancólico, durante a

9 Deleuze, La Lógica dei SeI/tido, p. 173.

10 Susan Sontag, "Sob o Signo de Saturno" in Sob o Signo de Saturno, trad. Ana Maria Capovilla e Albino Poli Ir., Porto Alegre SP: L&PM, 1986, p. 91.

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11 Walter Benjamin, Ori­gem do Drama Barro­co Alemão, trad. apreso Sergio Paulo Rouanet, São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 175.

11 Ned Lukacher, Primai Scenes Literature Philo­sophy Psychoanalysis, Ithaca and London: Cor­nell University Press, 1986, p. 283-5.

13 Jorge Luis Borges, "EI A1eph" in EI Aleph, Ma­drid: Alianza/Emecé, 1978, p. 171. Citação e comentários por Emir Rodriguez Monegal, "O Tempo e Eu" in Borges por Borges, trad. Ema­ni Ssó, Porto Alegre: L&PM, 1987, p. 78-85.

14 Walter Benjamin, Ori­gem do Drama Barro­co Alemão, p. 172.

Saturno Devorador da Modernidade - 151

noite da meditação, como tesouros que vêm do interior da terra; as intuições instantâneas lhe são alheias 11.

Para Benjamin, o princípio da compreensão histórica é sinônimo da liberação edipiana. Sua atração melancólica pelas subterrâneas pro­fundezas da memória chegam ao submundo arcaico da metrópole mo­derna como ecos de uma fascinação edipiana que penetra maternal­mente os mistérios ctonianos da antiga terra. No centro do labirinto, no lugar do Minotauro, como mostra Ned Lukacher em seu estudo das imagens dialéticas de Benjamin, fica a prostituta, o segredo do mistério das ruas e a experiência liminar, o que constitui, para Benjamin, a zona do pré-ontológico da linguagem I 2. A viagem ao recôndito mistério pro­duz, em seu centro, a visão saturnina incorporativa do "multum in par­vo", descendo à terra como no "Aleph" borgiano: "vi el Aleph desde todos los puntos, vi en el Aleph la tierra, y en la tierra otra vez el Aleph, yen el Aleph la tierra". O tempo borgiano, por outro lado, identifica-o ao autoconsumo saturnino dos artistas: "O tempo é um rio que me arre­bata, mas eu sou o rio; é um tigre que me destroça, mas eu sou o tigre; é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo. O mundo desgraçada­mente é real; eu, desgraçadamente, sou Borges" 13 .

É o tempo melancólico da dialética saturnina explicado em sua metamorfose cronológica de acordo com o mito, que Benjamin explica em suas oposições extremas:

Essa concepção não é dualista apenas com relação à ação externa do deus, mas também com relação ao seu destino próprio e pessoal, e isso de forma tão abrangente e tão nítida. que poderíamos caracterizar Cronos como um deus dos extremos. Por um lado ele é senhor da idade de Ouro .. . por outro lado, é o deus triste, destronado e humilhado .. . por um lado, gera (e devora) inúmeros filhos ... e por ou­tro, está condenado à eterna esterilidade, por um lado é um monstro capaz de ser vencido pela astúcia mais vulgar, e por outro é o deus antigo e sábio, venerado como a inte­ligência suprema, ( .. ) É nessa polaridade imanente da concepção de Cronos ... que o caráter específico da con­cepção astrológica de Saturno encontra sua explicação definitiva - esse caráter que em última análise é determi­nado por um dualismo intenso e fundamental/ 4•

Ao contrário de Robert Burton, a teoria da melancolia de Benja­min se produz a partir da representação de um corpo desmembrado, ou das descontinuidades representadas nas coisas como resíduos, o que coincide ao pensamento de Foucault: "É a partir da arquitetura que

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ocultam, da caesão que mantém o seu reino secreto sobre cada uma de suas partes, é do fundo dessa força que as faz nascer e nelas permane­ce como imóvel mas ainda vibrante, que as coisas por fragmentos, per­fis, bocados, lascas, vêm oferecer-se, muito fragmentariamente, à re­presentação"15. Assim, os retratos instantâneos de Benjamin reprodu­zem a ilusão imagética saturnina moderna como produto das profunde­zas de seu olhar penetrante, revelado no tecido de sua linguagem. Os seus pensamentos imagísticos, ao contrário, expressam a emergência de passagens fragmentárias que, como fósseis ou cadáveres, decifra­dos ou desenterrados, reconstituem pela incorporação saturnina, um corpo histórico que se reanima com a recolocação do signo em sua circulação sangüínea.

Um exemplo desta reconstituição histórica é o seu fragmento significantemente intitulado "O Anel de Saturno ou Sobre a Construção em Ferro". Nele, Benjamin recupera o momento pré-industrial em que o ferro é substituído, como matéria-prima, pelas máquinas a vapor, na Europa. A partir de uma citação de Um Outro Mundo de Granville, ao falar de uma ponte cujas extremidades podiam ser visualizadas ao mes­mo tempo e cujos pilares se apoiavam sobre planetas que se conduziam de um mundo a outro por uma mesma calçada de asfalto maravilhosa­mente lisa, o pilar 333.000 repousava em Saturno, o que convence o espectador de que o anel deste planeta não era outra coisa senão um balcão circular sobre o qual os saturninos vinham à noite tomar a fres­ca16 . As pontes do texto são construídas a partir de suas extremidades - de um lado, a visão utópica e de outro, a da matéria - o "ferro" figurando como uma das camadas de um palimpsesto histórico que ex­plica a sua substituição nas estradas, o seu uso imitativo em móveis de madeira preciosa e a moda dos materiais que imitavam outro materiais (vidros imitando porcelana, mesas de ferro imitando junco trançado, etc.) marcando inclusive a passagem do arquiteto ao construtor, do au­tor ao executante, com a vitória do engenheiro no caso da fabricação da torre Eiffel, considerada, pelo primeiro historiador das construções de ferro, como uma forma intermediária de construção, ainda em seus andaimes. As pontes que ligam as descontinuidades entre os materiais, suas formas intermediárias ou seus andaimes esquecidos, na constru­ção da alegoria, indicam pois, os limites significantes de um corpo histó­rico desmembrado, que se desdobram em significados esquecidos de sua função contínua.

É a partir de uma consciência descontínua da história moderna entretecida, na multiplicidade transitória de máscaras em que se encar­na involuntariamente o escritor, em sua necessidade de ter/ser outros, e ainda como uma filha devotada de Saturno, que Clarice Lispector se representa. Para ela, a verdade do inconsciente e do mundo é a mesma, "resíduo final de todas as coisas".17 Ao comentar Perto do Coração

15 Michel Foucault, As Palavras e as Coisas, p. 318.

16 Walter Benjamin, "L'Anneau de Saturne ou De la Construction en Fer", in Paris, capi­lale de XIX .... si ec/e, Paris: Cerf, 1992, p. 882.

I' Clarice Lispector, "Tempestade de Almas" in Para Não Esquecer, São Paulo: Siciliano, 1992. A citação com­pleta é: "A verdade é o resíduo final de todas as coisas, e no meu incons­ciente está a verdade que é a mesma do mundo" (p. 119).

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1I Berta Waldman, .4 Paixão Segundo Clari­ce, São Paulo: Brasilien­se, 1983, p. 28.

19. Clarice Lispector, Para Não Esquecer, p.

35.

20 Walter Benjamin, "The Work of Art in the Age of Mechanical Re­production" in ll/umi­nations, intro. Hanna Arendt, transl. Harry Zohn, New York: Scho­cken Books, 1968, p. 158 e 226.

21 Clarice Lispector, Para Não Esquecer, p. 8.

Saturno Devorador da Modernidade - 153

Selvagem, Berta Waldman descreve um processo proustiano de asso­ciação entre tempo e memória através de sensações:

A fábula do romance avança e recua, progride e regride, patina sobre si mesma, em sua intenção de reconstruir uma identidade: a de Joana. Como a reconstrução não se faz linearmente, o fio da infância filtrado pela memória, e, por vezes inventado, atravessa a narrativa ao sabor das associações que o presente propicia. Assim, o passado da protagonista não se confina nos capítulos que lhe são destinados, mas cresce, irrompe e invade, sob forma de sensações, o presente que já é .fUturo, que por sua vez se torna passado, num fluir contínuo 18.

Como o "eu" benjaminiano, o "eu" c1ariceano emerge da transi­ção dialética entre o arcaico e o moderno: um corpo que se reescreve das memórias de suas antigas máscaras: ao incorporar o "outro" que nela se encarna como máscara, "primeiro gesto voluntário humano", o "eu" fica à beira de si e "a lembrança é em carne viva"19. Por isso, as múltiplas faces que incorpora a linguagem desse corpo à carne da es­critura, emergem como imagens inconscientes ao serem reveladas como intimidades anônimas. A sensação do corpo é pensada em Clarice, à medida que a imagem paradoxal do excesso e da carência se entretece no avesso e no direito de um cruzamento entre o escrever e a entrelinha silenciosa. É a entrelinha que busca, no resíduo, o enigma excepcional. Por isso, para Clarice, recuperar o objeto "espelho", por exemplo, não significa trazer à tona a superficie reprodutiva benjaminiana nem como "ilusão de novidade" nem como "fantasmagoria" de uma história cultu­ral, ao sabor da "falsa consciência burguesa"2o, mas a possibilidade infinita da multiplicidade do espelho na isenção da imagem, "uma das verdades mais dificeis: o seu gélido silêncio sem cor. É preciso entender a \iolenta ausência de cor de um espelho para poder recrià-lo, assim como se recriasse a violenta ausência de gosto da água"21.

Penetrar no espelho clariceano significa recusar-se à visibilidade especular da reprodução que se exemplifica na fotografia, para sondar, na própria matéria, o seu "mistério" de coisa, o que a identifica com uma saturnina, "malgré elle-même". Se a fotografia, para Benjamin, constitui o refúgio do valor de culto da arte, na modernidade, ela é também a expressão da lembrança passageira da face humana, sua melancolia e beleza. Para Clarice, no negativo da imagem pensativa que emerge do retrato melancólico benjaminiano, a imagem do objeto não passa à palavra, mas o objeto, em sua opacidade, toma-se um enig­ma enquanto a palavra que o designa fracassa em seu intento: "só quando falha a construção é que obtenho o que ela não conseguiu"22.

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panhola) [a língua], o sujeito latino-americano habita um universo de representação estigmatizado pelo trauma da identidade fraturada" o que conflitua entre a universalização do paradigma europeu e um subs­trato de experiências declarado irredutível a essa lógica imposta de racionalização e simbolização cultural, dentro da qual a corporalidade originária materna figura como o reprimido que o conquistador anexa ao seu domíni027 •

No entanto, Pequena Flor é canibalizada mas também é canibal, "tabula rasa" e "matriz-originária" ao mesmo tempo, exibindo, entre os dois contextos, a descontinuidade histórica tanto do canibalismo ao qual pertence, como do consumo moderno. Porém, na volta dialética c1ari­ceana, Pequena Flor cobiça as botas do antropólogo, ou seja, assimilan­do o contexto consumidor, ela é consumo que reproduz a necessidade.

Para Benjamin, Pequena Flor, em seu corpo-resíduo-matriz-ori­ginária, refletindo a interseção entre a consciência mítica e a da nature­za, em seu potencial ainda não realizado de futura mãe, representaria a continuidade impossível do corpo originário ou a realização do sonho utópico por excelência. No entanto, ao ser convertida em "tabula rasa", ou seja, desprovida de história, Pequena Flor torna-se fragmento. re­presentando a incongruidade de uma história americana não reconheci­da pelo europeu, e. em suas dimensões diminutas, ela não possui nada além do futuro do antropólogo que a "descobriu", incorporando-a à sua história. Ela passa então a representar o impasse histórico dos povos colonizados cujo passado não é reconhecido pela história oficial e cujo presente permanece expectante (gravidez) e em conflito entre passado e futuro; o que Leopoldo Zea percebe na expectativa histórica dos po­vos colonizados: "um ser que se nega a ser o que é para ser algo distin­to; um ser que só se caracteriza pelo que quer chegar a ser"~~.

Na dialética saturnina do desmembramento, enquanto para Ben­jamin, pensar o objeto é trazê-lo de volta à sua significação histórica, arrancando-o do tempo contínuo de uma história de vencedores, para, através dos seus fragmentos, estabelecer a ponte histórica do vencido, para Clarice, o ato de consumir o objeto liga-o à continuidade natural de um corpo invisível ao expor a continuidade interrompida do vencido no anacronismo de sua história. Se para Benjamin, "somente é possível se ler o passado porque está morto" e somente se pode entender a história porque é fetichizada em objetos fisicos"29, para Clarice, somente é pos­sível se ler o passado porque está vivo, e o objeto só passa a existir com o fracasso da linguagem para incorporá-lo. Benedito Nunes define o espaço c1ariceano como "agônico" pelo desdobramento do sujeito que narra: "Narrar é narrar-se: tentativa apaixonada de chegar ao esvazia­mento, ao eu sem máscara, tendo como horizonte - existencial e místi­co - mas não mítico - a identificação entre o ser e o dizer, entre o signo escrito e a vivência da coisa, indizível e misteriosa"30 No entanto, exis-

27 Nelly Richard. La

Estrati!icaciólI de los

A1arKelles sohre Arte, CI/ltl/ra y Política. Santiago de Chilc: Francisco Zegerls, 1989, p. 22.

28 Leopoldo Zea, "Di­aléctica dei Pcnsami­cnlo Latinoamericano" in EI PellsatllielltoLa­tilloatllericllllU, Barce­lona: Editorial Aricl. 1976, p. 22.

29 Susan Sontag, "Sob o Signo de Saturno", p.97.

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12 Clarice Lispector, A Paixão SeguI/do CiH, ed. crítica org. Bene­dito Nunes, Coleção Arquivos, Florianópo­lis: UFSC, 19RR, p. 17.

2l Ana Luiza Andrade. "O Corpo-Texto Cani­bal em Clarice Lispec­tor" in Discl/rso. Teo­ria y Al/aZvsis. 16. México: UNAM, pri­mavera 1994. p. I-IS.

24 Berta Waldman. Pai)((io Segulldo C/a­rice Lispeclor. p. I.

25 Clarice Lispector. AgI/a Viva. Rio de Ja­neiro: Nova Fronteira. 19RO. p. 9.

26 Clarice Lispector. "A Menor Mulht:r d(, Mundo" in Laços de f(lIl1i/ia. p. 77.

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o corpo textual clariceano, rebelde a toda a lógica capitalista, se desloca em direção às origens canibais que o geraram23 . O canibalismo de um corpo feminino emergente da linguagem saturnina clariceana instaura uma economia sensorial que se enraíza e que foge às formas referenciais repressivas e reprodutoras na esquizofrenia cultural do capitalismo. Alimentada tanto pela possibilidade transformadora aiôni­ca do modernismo, quanto pelas possibilidades de incorporar as dife­renças paradoxais em Cronos, ao escapar à forma fixa, a matéria-pri­ma da escritura c1ariceana se representa por uma "carne viva" dos sentidos, que, assemelhando-se ao material intermediário das passa­gens do anel de Saturno benjaminiano, se nega tanto ao estado definiti­vo de produto final quanto ao da origem: seu corpo-texto é sempre passagem do que incorpora ao ser incorporada.

Similarmente a Susan Sontag, ao tentar, por um processo alegó­rico de reconstituição, uma possível biografia benjaminiana através das fotos, Berta Waldman tenta reconstituir a possível biografia de Clarice através de auto-retratos textuais de uma escritura que renasce do en­tretecer fragmentário de si mesma, nas metamorfoses de suas várias vidas, "encarnações involuntárias" que resultam de um processo de "coser para dentro"24. Para Clarice, o "ser" e o "ter" são estados fron­teiriços do ter/ser como um "tecer" ou um "entretecer": "Cada coisa tem um instante em que ela é. Quero apossar-me do é da coisa"2s.

O processo c1ariceano de incorporação das diferenças a partir do limiar entre natureza e cultura se toma emblemático em "A Menor Mulher do Mundo"26 na cena histórica da colonização em que o nativo se representa na figura minúscula de uma pigméia negra e grávida ao ser "salva" de uma tribo canibal vizinha e resgatada à civilização pelo antropólogo francês Pretre. recebendo o nome colonizado de Pequena Flor. Passando a ser ironicamente "canibalizada" pelos mecanismos de consumo de uma sociedade burguesa que a fetichiza, Pequena Flor é a incôngrua representação do excesso e da carência de um corpo sócio­cultural e ao mesmo tempo, é maquinaria tecnológica aperfeiçoada en­quanto continuidade do fragmento no todo: ela está grávida. A sua in­congruidade é similar à do percurso do objeto artístico, segundo Benja­min. De "objeto de culto" perde o seu valor, ela passa ao contexto capitalista de uma sociedade burguesa de consumo. Reproduzida em fotos "de tamanho natural", sua própria natureza é transformada na fotografia, ao ser "exibida" à cultura de massa que a consome, simultâ­nea e analogamente ao novo ritual canibal moderno pelo qual perde a sua "aura" de corpo-matriz-originária e passa a ser "tabula rasa" no novo contexto, tomando-se o novo fetiche do consumo. Coincidente­mente, Nelly Richard lembra que: "Desde o primeiro corte operado pela Conquista que cinde a consciência do território e divide o seu no­mear entre significante (o corpo indígena) e significado (a palauas es-

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te um corpo-texto canibal no limite da linguagem cIariceana, que, ao encarnar-se no objeto, este se volta contra ela: "possuir" é uma neces­sidade saturnina. Assumindo-se como objeto de consumo Pequena Flor reproduz sua necessidade, entrando na reciclagem da indústria culturaPI.

Como o "fóssil" de Benjamin, o objeto residual de Clarice é um fantasma da memória incorporador dos sentidos esquecidos: em "O Crime do Professor de Matemática"32, para enterrar a memória de haver abandonado seu cão de estimação, o professor enterra outro cão que encontra morto, mas libertando então sua memória do cão verda­deiro, desfaz o "falso enterro do cão desconhecido", desenterrando-o. Suas ações, "falsamente matemáticas" em sua dialética revertida, re­velam a irônica incorporação da natureza tipicamente canina de enter­rar e desenterrar ossos. No entanto, o fantasma do desconhecido coin­cide ao "crime menor", como em Benjamin, deixando seu rastro trai­çoeiro escondido num passado falsificado, lembrança não incorpo­rada, fossilizada, e que é preciso desenterrar para renovar-se. Cla­rice empurra o visível ao extremo para nele ver o invisível das inten­sidades sensoriais originárias, expondo a "lembrança em carne viva" de um corpo de linguagem suprimida: "Mas já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas"33.

É a própria Clarice que nos adverte: "Nós somos canibais. É preciso não esquecer. É respeitar a violência que temos. E quem sabe, não comêssemos galinha ao molho pardo, comeríamos gente com seu sangue."34 A partir do momento em que o comportamento do homem só passa a fazer sentido na dialética das ações que revelam a animalidade como limite da memória de seu ser cultural, através da qual sua huma­nidade se renova, o corpo saturnino devorador representa-se em seu radicalismo. Em "A Bela e a Fera ou a Ferida Grande Demais"35 exis­te um confronto com a miséria crua por uma senhora da alta sociedade que encara pela primeira vez, surpreendida, a ferida grotesca na perna de um mendigo que, por sua vez, a devora com os olhos. A falta de reconhecimento, num mesmo corpo social, de sua própria ferida, indica a autofagia cúmplice do canibal/canibalizado no ponto de in­terseção benjaminiano entre a natureza mítica e a tecnologia mo­derna. Este ponto se abre como um "buraco", vazio representativo de uma fome que se desdobra no enigma que a gerou. Para a senhora, o mendigo representava o potencial da natureza mítica; para ele, a se­nhora representava o seu desejo de consumo nunca preenchido. Entre a consciência mítica e a da natureza, a fome do corpo gerada do "apar­theid" social e o desejo consumidor, a ferida torna-se simbólica, fantasma que se metamorfoseia na cisão entre um primeiro e um terceiro mundos -de um lado, a comercialização espetacular da miséria, e de outro, a tecno­logia de ponta - tal boca escancarada de um corpo saturnino devorador.

30 Benedito Nunes, O Drama da Linguagem: uma Leitura deClarice Lispector, São Paulo: Ática, 1989,p. 155.

31 Raul Antelo, em seu "O Objeto Textual e a Memória" (evento "C la­rice Lispector 70 anos", UFSC,17/8/95)textocrí­tico esclarecedor da (dis)função do objeto em Clarice, ao compa­rar versões de "O Rela­tório da Coisa", detec­ta, no "c" do objecto o "osso duro de roer na modernidade" porque, "no lugar deste 'objec­to' impossível, o que se encontra sempre é um objeto que se apresenta de fonna obscura e enig­mática, como coisa ou mercadoria, como signo equívoco e, ao mesmo tempo, esquivo." (p. 10).

31 Clarice Lispector, Laços de Família, São Paulo: Francisco AI­ves,1960, p. 139.

J3 Clarice Lispector, Para Não Esquecer, p. 20.

34 Clarice Lispector, "Nossa Truculência" in A Descoberta do Mun­do, apreso Vera Queiroz, Rio de Janeiro: Francis­co Alves, 1994, p. 269.

31 Clarice Lispector,

Paixão Segundo GH, edição crítica org. Bene­dito Nunes, p. 155.

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36 Clarice Lispector, "Onde Estivestes de Noite" em Onde Esti­vestes de Noite, Rio de Janeiro: Francisco Alves 1992, p. 64.

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A força saturnina de um fim que atrai para o retomo às origens da criação, carregando consigo a possibilidade da imagem terrífica do fantasma como um profeta do passado despertada pelo Saturno de Goya, se produz em "Onde estivestes de Noite"36. Neste texto, existe a mes­ma prefiguração imagística anterior à produção, o passado como profe­cia do futuro, colocando a linguagem em comunicação com seus própri­os limites imagísticos: supersensações corpóreas sobem à superficie textual na exposição da bestialidade humana como um grau zero da imagem, como um negativo fotográfico sensorial em seus excessos ol­fativos e sonoros. O faro do cão prenuncia os cheiros, o uivo possibilita a música, as sensações se misturam, e a palavra jà é residual: "Fogo, grito, cor, vício, cruz."

No auge da voracidade, a divindade andrógina que preside a or­gia noturna, como o Saturno de Goya, expõe a dobra entre o "narrar e o narrar-se". É o enunciado que come a enunciação - "Comerás o teu irmão ... " e, mais adiante, "Comerei o teu irmão e haverá um eclipse total e o fim do mundo" - em ecos de Paixão Segundo GH: "Eu estava comendo a mim mesma, que também sou matéria viva do saba­th." Curiosamente, em "Onde Estivestes de Noite", o resíduo enigmáti­co é a imagem colorida que escapa ao preto-no-branco e ao branco-no­preto como sentido e avesso de sentido entretecidos nas imagens pro­féticas da linguagem ao se produzir em negativo fotográfico da sensa­ção: entre o preto e o branco a referência enigmática é dirigida a quem se nega a ser iniciado na noite ou vive "em carne aberta" na "cegueira da luz do dia" (quem não tem segredos) ou se subtrai de si mesmo, como a ruiva e vermelha daltônica que não podia se ver, assim como não atendia a ninguém, pois seu nome, Psiu, era vermelho. Só via a cruz verde na parede de seu quarto, e que lhe parecia vermelha. A cruz é o resíduo emblemático do símbolo religioso, o vestígio cristão, e o verme­lho é o vestígio da cor da proibição, lembrando o sinal fechado do trân­sito. Psiu é o vestígio enigmático do som da palavra que se revela em seu signo ambivalente: de um lado, proibição, sinal de calar-se, a inter­dição da saturnália. De outro lado, o chamamento. Entre o seu som e a sua imagem de palavra, Psiu! vibra no corte silencioso entre a atração e o interdito.

A saturnália c1ariceana penetra no dia seguinte como estado in­terior de penumbra que afiora em efeitos sensoriais, numa linguagem sinestésica que parte da "lembrança em carne viva" para terminar na distração do pensamento, quando os fiéis, ex-participantes da orgia no­turna, fazem o sinal cotidiano da cruz, "distraídos" do rito proibido da noite, como que diretamente saídos do antigo apocalipse de orgasmo pagão, ao desembocar no sensacionalismo barato de uma modernidade periférica. O texto intertece sensações ao fotografar a "carne viva" dos sentidos, tomando-os fronteiriços uns dos outros, o negro à beira do

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branco, as cores escuras penetrando os sons: "As trevas eram de um som baixo e escuro como a nota mais escura de um violoncelo." Clari­ce constrói as pontes entre as sensações como matéria-prima da lin­guagem, expondo a gênese de um corpo-texto em suas camadas senso­riais interpenetradas, num rito de passagem que representa a mudança de uma sensibilidade artística cujo vestígio é o próprio traço ritual, a uma sensibilidade moderna sensorial, cuja velocidade no tempo quase não deixa vestígios: "Um anjo pintado por Fra Angelico, séc. XV, voejava pelos ares: era a clarineta anunciadora da manhã. Os pos­tes de luz elétrica não tinham ainda sido apagados e lustravam-se empalidecidos. Postes. A velocidade come os postes quando se está correndo de carro."

A passagem de um tempo prolongado ao instante superficial da simultaneidade, na interferência de Aiôn sobre Cronos, de um golpe só, devora Thomas Edison, inventor da luz elétrica e Fra Angélico. O mis­tério da noite se faz enigma para o dia quando, de seus vestígios ritualís­ticos proibitivos, a consciência surge a partir de máscaras burguesas personificadas. O enigma permanece na falta de identificação das ori­gens, só seus vestígios são incorporados à carne viva do texto, como imagens forjadas em branco e preto, geradas da representação de um corpo fragmentado, ou da impossibilidade de representá-lo em sua con­tinuidade.

Sem dúvida, as imagens à tona do texto de Clarice evocam as imagens fantasmagóricas do drama barroco, tal qual o alegorês benja­miniano, ainda que os pensamentos-imagens benjaminianos se transfor­mem nas sensações imagísticas pensadas por Clarice. O alegorês de Clarice se diferencia na relação entre palavra, coisa e origem: se para ela, possuir o objeto também é ser possuída pelo objeto (enquanto para Benjamin, possuir o objeto seria redimi-Io, restituindo-o à significação), a partir do momento em que este se incorpora à palavra, nela se encar­na e se toma máscara. O objeto de Clarice é o eterno enigma inomi­nável das origens temporais: o já que ainda não é ou já não é mais, coincidente ao fracasso da palavra que se busca no "atrás do atrás do pensamento".

Se a não-coincidência temporal do "ter-ser" da linguagem c1ari­ceana abre a possibilidade de representar os excessos e as carências de um corpo sensorial lembrado a um corpo que se tece pela linguagem, existe uma coincidência instantânea no "ter-ser" benjaminiano na inter­seção da natureza mítica e da consciência tecnológica, de onde surge o novo. Se para Benjamin ainda existe um lugar para a representação que privilegia a visibilidade, sua penetração na matéria busca documen­tar suas passagens às novas formas modernas. Nesse sentido, Saturno assume a representatividade do quadro de Goya na correspondência da assimilação imagística reprodutiva de um capitalismo canibal. Para Cla-

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31 Walter Moser, "L' Antropophagie du Sud au Nord" in Can­fluences Littéraires: Brésil-Québec: les ba­sesd'une camparaisan, Les Editions Balzac: Collection L'Univers du Discours, 1992, p. 150.

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rice, a imersão no mistério da coisa problematiza sua representação pela interpenetração das sensações que ela invoca, construindo pontes entre formas simbólicas através da simultaneidade temporal da escritu­ra. Se a percepção se renova pelas sensações, o Saturno clariceano é anterior ou posterior ao representável, e portanto se cumpre na profe­cia do passado, ou seja, na simultaneidade autofágica que ele evoca, dentro da concepção temporal leibniziana do monstro de Goya no que ela antecede à visualização.

No entanto, ambos contestam uma concepção tradicional de his­tória em sua linhagem heróica, na representação de um continuidade temporal corporificada em Cronos. Ambos partem das exclusões, dos fantasmas da memória, dos resíduos territoriais, de uma descontinuida­de histórica, enfim, representada por um corpo fragmentado ou um mundo esquartejado. Clarice se exclui deste mundo para descobrir, na forma­ção do pensamento que o constitui, um outro mundo: o corpo-texto cla­riceano se tece a partir das exclusões da história legitimadora dos pode­res estabelecidos que colonizam um corpo pensante burguês.

A poética de criação, instantâneo representativo da contra-efe­tuação de Aiôn sobre Cronos, voracidade temporal que devora as ori­gens vislumbradas a partir do desdobramento residual, é o solo saturni­no comum de seu trânsito fronteiriço pela modernidade, na passagem do valor artístico de culto à cultura de massas. Benjamin mata o objeto de seu antigo contexto para restituí-lo à significação histórica em seu transitar residual e efêmero, assim como ele próprio se mata, tornando­se objeto residual em suas fotos, para que o ressuscitemos de seu eter­no transitar fragmentário. Clarice morre e vive no processo autobiográ­fico escriturai que busca incorporar o objeto, tecendo a palavra residual à carne viva textual para que, nos fracassos dela própria, se possa ao menos pensar os excessos e as carências das sensações suprimidas e acumuladas através dos tempos, o que, em última instância coincide ao silêncio significante de um corpo historicamente ilegítimo.

Nos limites de uma história de violência caracterizada pela cisão de um corpo arcaico que se fortalece em sua voracidade e cujas des­continuidades constituem a própria matéria desmembrada de que se nutre, a antropofagia cultural passa a ser "um vasto processo autofági­co" na modernidade pós-colonialista, como Walter Moser observa, a partir da exportação de um antropofagismo "made in Brazil".37 A ultra­passagem do momento modernista deglutido r e transfomlador assinala a volta às origens satuminas representadas num tempo-espaço que se abre (ferida? caverna?) aos primórdios canibais, a um presente que força as culturas hegemônicas a reconhecer a ferida canibal nelas pró­prias. Tanto Clarice quanto Benjamin, chegam, via identitária ou hete­rológica, a um dilema de renovação cultural seme-Ihante, que se vis­lumbra na relação entre legitimidade e visibilidade: pela via identitária,

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Benjamin alimenta-se da morte do objeto para tomá-lo visualmente re­conhecível. Pela via heterológica, Clarice renuncia à tentativa de visu­alizar, para lembrar o invisível das sensações corpóreas irreconhecí­veis, impedindo-nos de esquecer a pluralidade de que nos nutrimos, a confluência de heterogeneidades que somos. Em última instância, tanto para um quanto para o outro, o corpo satumino é invisível enquanto lido e visível enquanto lembrado, fantasma de um tempo voraz, assim como o ancião moderno de Goya, que, na incorporação de seus próprios limi­tes, nos penetra e nos devora.

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Ars Potentior Natura: EI Otro Tiziano de Farabeuf

Alberto Moreiras Duke University

Que la escritura tenga una "misión fundamental de desalienación" (lI) como dice Severo Sarduy en uno de los textos críticos más influ­yentes de su generación, Escrito sobre un cuerpo (1969), es sin duda uno de los ideologemas fundacionales deI boom: en realidad, uno de los que mejor permiten entender la distancia experiencial que separa su época, todavía vanguardista, de la nuestra, que ha dejado de serlo. La frase misma quizá no pueda hoy leerse más que como síntoma de un modo particular de alienación estética.

Pero cabe argumentar que el boom, aI menos en alguno de sus segmentos, y no sólo en el constituido por el postboom con el que a veces se asocia a Sarduy, llega ya tardíamente a la aventura que simul­táneamente propone; en otras palabras, que la escritura como desalie­nación es, para ciertos textos deI boom, apótrope de su sentida inefi­ciencia. Por eso Sarduy, en su controvertida celebración de la escritura sádica, comienza postulando su carácter "fantasmático" (Escrito 11), es decir, la absoluta inalcanzabilidad de su objeto. Paradójicamente, se­ría tal carácter fantasmático lo que organiza la auténtica radicalidad de tal escritura:

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la aventura dei marqués se desarrolla en un nível fantasmá­tico, en ese plano, inasimilable aun para la sociedad, de la escritura. Su desenfreno es textual. .. [PJoco llevó a /0 que se considera la realidad, poco tradujo la verdad de sus fantasmas. Por el/o su revolución es, aún hoy día, intole­rab/e. (Escrito 11)

Entre la postulada inalcanzabilidad deI objeto de escritura y la también postulada misión de desalienación se abre un dilema no tanto estético como intelectual y práctico-político. La exploración de tal dile­ma fue un importante mecanismo generador de literatura y pensamien­to en un momento histórico que hoy tendemos a considerar pertene­ciente a un pasado no por cuasi-inmediato menos lejano. Sigue siendo función de la crítica teorizar el cambio histórico en la ideología estética. EI primer paso para tal teorización es la comprensión precisa de los elementos organizadores deI campo literario en el momento histórico bajo estudio. Si ha llegado el momento de pasarle cuentas ai boom de sus inversiones ideológicas, no podrá dejarse de lado el intento de com­prender y hacer crítica de los ideologemas fundacionales que sustentan su mayor radicalidad autoconsciente.

Este ensayo propone examinar la tensión entre desalienación e inalcanzabilidad dei objeto de escritura en uno de los textos inspiradores de Sarduy, que constituye por otra parte uno de los ejemplos más per­turbadores de escritura sádica latinoamericana: Farabeuf, o la cró­nica de un instante (1965), de Salvador Elizondo. En la medida, además, en que la novela permanece infraestudiada en la tradición crítica latinoamericanista, este ensayo es también un modesto acto de restitución l .

La escritura sádica sarduyana, en cuanto escritura de la desalie­nación, haIla su limite en la constancia paradójica de que no puede dar­se más que como repetición de sí misma: "Ia búsqueda de ese objeto para siempre perdido, pero siempre presente en su engano, reduce el sistema sádico a la repetición ... EI código preciso de la invocación ... no es más que la prescripción de las condiciones óptimas para que una presencia, la divina, venga a autentificar la intervención de los objetos, venga a encarnarse, a dar categoría de ser a lo que antes era sólo cosa" (Escrito 14).

Lo paradójico es precisamente esa desesperada confianza en que la inversión libidinal en la escritura pueda, bajo el pretexto de la desalienación, desembocar en la fetichización absoluta de la práctica estética como forma de entrada en el ser. El ejemplo que funciona paradigmáticamente en "Del Yin ai Yang," primer ensayo de Escrito sobre un cuerpo, es Georges Bataille, yen especial dos de sus textos, explicitados como representación ekfrástica de fotografias: la glosa de

I EI mejor ensayo entre los escasos existentes sobre Farabeuf, aparte deI ya citado de Sarduy, es el de Rolando J. Ro­mero, "Ficción e histo­ria en Farabeuf"

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Les larmes d'Eros a la fotografia deI Leng Tch'e~ y "una de las últimas páginas que escribiera" Bataille (en Ma mere) fantaseando la contem­plación por el narrador de su madre en "repugnantes posturas": "La alegría y el terror anudaron en mí un lazo que me asfixió. Me asfixiaba y gemía de voluptuosidad. Mientras más esas imágenes me aterrori­zaban, más gozaba ai verias" (16, 17). Bataille expresa con concisión el misterio de un goce libidinal de carácter estético y estéticamente extremo, formalmente definible como ekfrástico, cuya expresión litera­ria tiene a su vez la curiosa función mimética de proveer a su lector de la posibilidad de experiencia que lo genera.

Ekfrasis es una vieja figura que tiene que ver con la represen­tación verbal de la belleza, y más concretamente, aunque originalmente usada como tropos retórico determinante en los discursos panegíricos, ha llegado a referirse a toda reproducción verbal de obras artísticas perceptibles mediante el sentido visual, y tanlbién mediante el auditivo. Según Russell Berman, fundamentalmente de acuerdo con Sarduy, "ekfrasis transmite el deseo de un objeto ausente" (76). Para Berman, el juego de presencia y ausencia en la representación ekfrástica depen­de de una dialéctica doble, dado que la ekfrasis invoca como presente un objeto que falta, y dado que se apropia dei habla en escri-tura para producir, o suscitar, una imagen visual (76). La conjuración ekfrástica de una representación visual en el campo literario es ya suficientemen­te enigmática de por sí. En cierto sentido, suspende o difiere la referen­cia: toda representación visual a su vez remite a aquello que representa, y esta mediación está comprendida por la ekfrasis misma; si el sentido de la ekfrasis depende dei sentido de la obra plástica reproducida en palabras, la ekfrasis, ai mediar el sentido, posterga o complica la mani­festación de sentido.

Por otro lado, sin embargo, y de forma incluso contradictoria, la ekfrasis parece liquidar el clásico problema literario de la referencia, dado que, en la representación ekfrástica, el signo visual se toma, por así decirlo, no como signo, sino en su propio derecho, como objeto signi­ficado. Es decir, en la ekfrasis el signo representado es a la vez signo de algo y ese algo mismo. Por lo tanto, la ekfrasis, lejos de postergar la manifestación dei sentido, es una especie de atajo ai sentido. La refe­rencia dei texto no depende ya de la interpretación, sino que está inrne­diatamente dada, deícticamente dada, en la apelación a la obra plástica verbalizada, que es o se toma como signo de sÍ misma. Es este segundo aspecto de la ekfrasis el que puede intensificarse como escritura sádica.

La contradicción ekfrástica es la siguiente: en el procedimiento ekfrástico hay a la vez una postergación dei sentido, puesto que la lite­ratura refiere a la mediación de sentido dada en otra representación estética, y un adelantamiento dei sentido, dado que la ekfrasis refiere, no ya ai mundo en general, sino al mundo interpretado en otra represen-

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tación, y por lo tanto a un sentido ya manifiesto. Hay una forma simple de mediar esta contradicción dei objeto ekfrástico, que es decir que ekfrasis traduce una literatura sin objeto, una literatura donde el objeto se ha retirado para dar paso a la alegoria infinita. Ekfrasis, o por lo menos la forma particular de ekfrasis que Sarduy usa sin teorizarla como tal, es escritura alegórica, y el allos a donde conduce, siempre el enigma de un jeroglífico. EI sentido opaco dei jeroglífico es el sentido que la ekfrasis a la vez difiere y revela. Voy a definir el lugar de esa opacidad, esa carencia sustantivada de objeto, como signo terríble: el lugar donde signo y referente se encuentran como mutua destrucción. Tal seria ellugar deI placer sádico que propone Bataille y suscribe Sar­duy. Pero voy a sostener que Elizondo elude la contradicción ekfrástica ai llevarla a un tercer grado de reflexión o metarreflexión mediante la intercalación en su texto de una representación visual que permanece secreta aunque legible, solamente indicada o aludida: EI desollamiento de Marsias, de Tiziano.

La fascinación que la fotografia dei Leng Tch'e representa para la escritura dei boom motiva el texto de Sarduy, que es a su vez glosa ekfrástica de dos instancias novelísticas: una contenida en Rayuela (1963), de Julio Cortázar, y otra afectando a la totalidad de Farabeuf La formulación teórica que alcanza a esbozar Sarduy de estas instan­cias de escritura va más aná deI tema de la escritura como instrumento de desalienación y desemboca en una noción que sólo posteriormente, en un texto sobre José Lezama Lima, llegaria a articular como propio de la escritura neobarroca latinoamericana: que la escritura es "signo eficaz," es decir, que efectua aquello que anuncia ("On heredero" 5 91)2. En tal apoteosis se daria para Sarduy la gran transgresión escriturai del boom en su límite, el momento propiamente revolucionario de la mo der­nidad estética que le era contemporánea: "Lo único que la burguesia no soporta, lo que la 'saca de quicio,' es la idea de que el pensamiento pueda pensar sobre el pensamiento, de que el lenguaje pueda ha­blar dellenguaje, de que un autor no escriba sobre algo, sino escri­ba algo" (Escrito 19-20). Lo que se escribe es, sin embargo, bajo esta invocación, signo terrible, ekfrasis sádica. "Mientras más me aterrori­zaba, más gozaba:" terror y goce de la imagen en la escritura, pulsión de muerte dei sujeto de la escritura dada la inalcanzabilidad fantasmáti­ca de su objeto.

La idea de que la escritura puede en algún momento limite ven­cer sus bordes convencionales como sistema de representación y pasar a crear su pro pio objeto tiene fuertes resonancias en la historia de la vanguardia literaria latinoamericana. En la versión de Sarduy tal transi­tividad adquiere una particular complejidad, puesto que el objeto que la escritura crea es siempre de antemano objeto perdido. De alúla impor­tancia emblemática dei procedimiento ekfrástico. Corno veremos en el análisis

2 Sarduy remite en su noción de "signo efi­caz" a la teología triden­tina, que es para él sín­toma o manifestación deI "primer barroco" ("Un heredero" 590): "Los padres tridentinos pri­vilegian, contra la con­cepción luterana de la fe, lo que, sin saber que así promulgan toda una se­miología dei barroco, de­nominan el signo eficaz: una operatividad de los sacramentos por el he­cho mismo de su ejecu­ción" ("Un heredero" 591).

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que sigue, el procedimiento ekfrástico articulará, en aI menos un ejemplo de escritura deI boom, Farabeuf, una meditación estético-filosófica de largo alcance, empeiíada en una indagación límite de los límites deI sentido.

Que la obra de arte pueda crear su propio objeto, en lugar de simplemente representarlo, es un ideologema consistente con el postu­lado metafisico de la razón productiva o de la extrema subjetividad cartesiana dei fundamento de conocimiento. Sarduy es consciente de la raíz metafisica de lo que maneja. Su propósito es alcanzar lo que él denomina una inversión o conversión metafísica a partir precisamente de la práctica sádica:

En "Kant avec Sade" Jacques Lacan ha senalado cómo el héroe sádico, por alcanzar su finalidad, renuncia a ser suje to, es pura búsqueda dei objeto. EI héroe kantiano, si existiera, sería justamente lo contrario: para él no habría ningún objeto a que dar alcance, lo único que contaría sería la moral sin finalidad, sería sujeto puro. Sujeto mo­ral sin objeto, el kantiano sería un héroe sano; búsqueda dei objeto sin suje to, el sádico es un héroe perverso. (Es­crito 14)

Conviene notar lo que es por otra parte ya obvio, pero no ha sido suficientemente explicitado. EI héroe sádico sarduyano, que es para Sarduy, glosando a Cortázar y a Elizondo, el héroe de la vanguardia escriturai dei boom, es una inversión dei héroe autocreacionista de la metafisica moderna. En cuanto inversión, sin embargo, permanece dentro de su paradigma, que no alcanza a afectar. La desalienación propuesta no es por tanto más que un juego en el Iímite de la alienación: es, sin embargo, también nada menos que un juego en ellímite. Si la "misión fundamental de desalienación" atribuida a la escritura, aquello que para Sarduy en su momento guarda la última potencia desestabilizadora de la práctica estética, fracasa en su misma autorreflexividad, no es menos cierto que el fracaso guarda dimensiones historiales que no conviene desestimar o abandonar demasiado pronto.

En Farabeuf la ekfrasis es ai menos triple, y digo aI menos por­que está siempre multiplicada por un juego de espejos enfrentados. Pero eI texto circula en apariencia alrededor de tres representaciones vi sua­les fuertemente enfatizadas. Una es el cuadro de Tiziano Venus sagra­da y Venus profana, donde dos mujeres hacen frente ai espectador en la encrucijada de tener que decidir entre ellas [Figura I]. Entre las muje­res hay un sepulcro en cuya pared un bajorrelieve representa, según Farabeuf, forzando quizá la interpretación dei motivo tizianesco, una escena de "connubio cruento de un sátiro y un hermafrodita" o "flage­lación erótica" (Farabeuf 22) [Figura 2]. Del fondo dei sepulcro un

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nino trata de extraer algo [Figura 3]. Lo que el nino trata de extraer se describe asi: "Trata tal vez de sacar de esa fosa un objeto cuyo signifi­cado, en el orden de nuestra vida, es la clave dei enigma" (22). Elobjeto en el fondo dei sepulcro es el objeto perdido a propósito dei cual la novela se escribe, o la escritura se produce.

Otra representación ekfrástica es la conocida fotografia deI Leng Tch' e, tomada en 1905 por LouisCarpeaux en Beijing, y posteriormen­te reproducida en el segundo tomo dei Nouveau Traité de Psycholo­gie de Georges Dumas, en donde puede haberse inspirado Bataille para su inclusión en Les larmes d'Eros [Figura 4]3. Leng Tch'e (o Leng­T'ché) era un método de tortura aplicado a los magnicidas en la China imperial, que consistia en su desmembramiento sistemático y público. La fotografia, que produce una extrana fascinación, está también en­tendida por referencia ai enigma: "una imagen imprecisa en la que se representaba, borrosamente, un hecho incomprensible" (16), una foto­grafia, le dice el narrador a su interlocutora, "que amas contemplar todas las tardes en un empeno desesperado por descubrir lo que tú misma significas" (49). Esta segunda representación está incorpo­rada allibro no sólo en calidad ekfrástica, sino también en reproduc­ción fotográfica.

EI tercer gesto ekfrástico es un garabato escrito sobre un cristal empanado: "Era un nombre o una paI abra incomprensible -terrible tal vez por carecer de significado- un nombre o una palabra que nadie hubiera comprendido, un nombre que era un signo, un signo para ser olvidado" (50). Pero de ese signo olvidable se dice también que "tenía un significado capaz de trastocar nuestras vidas" (51).

La alegoria de Tiziano tiene una larguisima tradición iconográfica que Erwin Panofsky entre otros ha estudiado, pero en cuyo pormenor no puedo entrar'. En la tradición neoplatónica, las dos Venus represen­tan la doble via deI conocimiento, el conocimiento material y el conoci­miento espiritual, cuya alternativa sale aI paso de todo iniciado en los saberes gnósticos. La reproducción fotográfica de un momento de la tortura de Leng-T' ché, en la glosa de Farabeuf, también implica ese doble camino. EI Supliciado es un criminal que sufre justo castigo o bien es un santo que en eI momento de su muerte se abre a la contemplación extática deI supremo placer. EI supliciado a1canza en la tortura un su­premo conocimiento negativo de su cuerpo o bien es radicalmente des­alojado de su cuerpo en la máxima intensificación deI dolor que lleva a Ia muerte. Por último, la novela acabará por revelar que el garabato en eI vidrio es un hexagrama chino, liú, y que "Ia disposición de los trazos que lo forman recuerda la actitud deI Supliciado" (150).

Las tres ekfrasis hacen alusión aI tema deI Hombre Desollado (la de Tiziano, en la escena deI sepulcro). Pero el Hombre Desollado es también la figura adivinatoria que recurre en las preguntas que la mujer

) Romero comenta las discrepancias en la serie de fotografias sobre el suplicio publicadas por Dumas y Bataille: Ba­taille no retoca ni recor­ta (405). Ver Romero 403-06 para la historia de tales fotos.

4 Ver en especial "Re­flections on Love and Beauty," en Problems in Titiall, 109-38.

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en Farabeufhace alI Ching, y cuyo referente es el siguiente: "He aquí a un hombre que sufre de una inquietud interior y que no puede perma­necer en donde está. Quisiera avanzar por encima de todo, por encima de su propia muerte. Si lanzaras de nueva cuenta las tres monedas y cayeran tres yin en el sexto lugar, tal vez comprenderías el significado de esa imagen, la verdad de ese instante: Cesa el/lanto, /lega la muer­te" (56). El Hombre Desollado viene a ser en Farabeufla figura ekfrás­tica de la experiencia artística, jeroglífico cuyo sentido, como veremos, se agota en su propia figuralidad. El Hombre Desollado es la represen­tación en Elizondo deI héroe sádico sarduyano. Y tarnbién una vuelta de tuerca con respecto de él, como veremos.

De esas tres representaciones ekfrásticas, la fotografia deI Leng­Tch'é está privilegiada hasta el punto de que su reproducción gráfica viene inserta en el texto. Se dice: "En la contemplación de ese éxtasis estaba figurado mi propio destino" (119). La obsesión con la fotografia dei supliciado en su suplicio es una obsesión erótica. Toda la trama textual se orienta a la presentación deI suplicio como fuente de máximo placer ai tiempo que como lugar deI máximo horror: "Aspiras a un éxta­sis semejante y quisieras verte desnuda, atada a una estaca. Quisieras sentir el filo de esas cuchillas, la punta de esas afiladísimas astillas de bambú, penetrando lentamente tu carne. Quisieras sentir en tus muslos eI deslizamiento tibio de esos riachuelos de sangre, ~ verdadT' (36). En la foto como jeroglífico y lugar de absoluta fascinación abismal, figura de la violencia dolorosa y placentera, en la violencia que organiza el campo de deseo está también la cualidad irónica y enigmática deI jero­glífico deI Hombre Desollado: el jeroglífico en tanto tal difiere la revela­ción que guarda, pero ai mismo tiempo revela la infinita posposición de su sentido ("Cesa el/lanto, /lega la muerte").

La totalidad de la novela de Elizondo puede entenderse como ekfrasis de la fotografia deI Leng-T'ché. La fotografia es ellugar de un jeroglífico donde el horror confluye con el placer. Signo ambiguo en su profunda brutalidad, la fotografia remi te a la problemática deI sentido en la encrucijada: ~debemos leer la foto como mera constatación de una crueldad histórica, resistiendo así radicalmente su poder de fascinación,? ~o debemos dejarnos llevar por esa fascinación, y decidir entonces si ella depende de nuestra identificación con el verdugo o con la víctima, o con ambos? ~Es esa fascinación de la foto emanación de su cualidad de objeto artístico, de objeto bello, o es cabalmente la belleza aquello que precisamente no podemos admitir como presente sin depravación? ~Es la foto un problema moral, o un problema estético? Por último, de la indecibilidad de las numerosas encrucijadas que el supliciado en la esta­ca plantea, ~lIega la foto a transformarse, misteriosamente, en un pro­blema de signo teológico -y no sólo porque la imagen cristica es tarn­bién aqui obvia, y convenientemente resaltada en la glosa, sino sobre

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todo porque lo teológico es ya lo único que puede mediar nuestra per­plejidad ético- estética en el momento de la abyecta contemplación a la que la foto nos obliga? "Cuál es en todo caso la fuente de la conexión entre lo erótico y lo teológico en la foto, si la hay? "Y cuál es la relación entre lo erótico, lo teológico y lo estético? De darse, se dará en la irre­solución alegórica que el jeroglífico propone como límite dei texto.

La exégesis que propone Sarduy deI episodio de la aparición de las fotos de Leng-T'ché en el capítulo 14 de Rayuela apunta hacia esa conciliación supuestamente antimetafisica de lo erótico, lo teológico, y lo estético en el sujeto de la novela. Para Sarduy, "Rayuela es una novela sobre el sujeto. La búsqueda de Oliveira (Ia de la totalidad gno­seológica) es la de la unidad dei sujeto" (Escrito 25). Parecería, pues, que Rayuela quebranta la perspectiva antikantiana, sádica, poOstulada por Sarduy para la escritura de objeto perdido. O precisamente: la quebrantaría, excepto por la aparición de Wong, poseedor de las fotografias de tortura ai magnicida. Wong introduce en la novela, nos dice Sarduy,

una referenda vacía. Y es el detentor dei sitio vacío, el único cuya posición no está marcada por la expresión de una ideología (ni por expresión alguna) , ese cuya senal es la ausencia, constantemente referido por los otros y constantemente en silencio, es ese portador de la nada quien posee la panoplia fotográfica en que Bataille había encontrado la conversión. (Escrito 27)

La "extraíieza" de "la aparición de Wong y su pensamiento" va­cío (Escrito 27), la aparición de las fotos, vendria a perturbar grave­mente el relato sobre la totalidad dei sujeto. Wong es eI jeroglífico que en Rayuela marca la irrupción de la perspectiva sádica como teología negativa: "Que el acceso aI vacío, que el 'camino' pase por la contem­plación deI suplicio" (Escrito 27).

En tal contexto, Farabeuf debe ser interpretada como la radica­lización sostenida de tal perspectiva: el intento de presentación de lo impresentable sádico, que Cortázar no pudo más que invocar. En cuanto impresentable, la presentación debe darse en técnica ekfrástica. "[T]oda la experiencia [relatada en Farabeuj] no sería más que la dramatiza­ción de un ideograma, algo que podia ser como la ruptura de la metáfo­ra que representa todo signo, el hallazgo deI fundamento real que se esconde bajo toda seiíal, de la realidad primera dellenguaje ideogramá­tico" (Escrito 28). La búsqueda allímite de tal fundamento real, o fim­damento en lo real, en su máxima intensificación libidinal, es lo que venimos entendiendo por búsqueda sádica en la escritura.

Farabeuf es para Sarduy "el libra de la literalidad sádica" por-

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que el relato insiste en la (re)conversión en real de la experiencia ekfrás­tica o ideogramática registrada en el suplicio. "Asi se va describiendo el rito, repitiendo la fónnula, escribiendo la crónica de ese instante cuyo significado último es la muerte y cuya metáfora es elliú. Metáfora que la praxis 'meticulosa' de Farabeúf va a invertir, va a devolver a su literalidad inicial" (Escrito 29). Y es asi que la novela, la escritura, puede aspirar a abandonar su condición ancilar respecto de lo real, y pasar de ser escritura sobre algo a escribir ese algo mismo: a fuerza de repetición fantasmática, reificación estética dei limite en la experiencia sádica. Hasta aqui llega la interpretación que Sarduy realiza de la nove­la de Elizondo.

Quiero introducir ahora otra representación visual, nunca men­cionada en la novela, pero que la domina hasta el punto de afectar cada una de sus páginas. De manera a mi juicio todavia más cierta que en lo que respecta a la fotografia dei Leng-Tch'é, todo Farabeuf es ekfrasis dei cuadro de Tiziano conservado en la Pinacoteca de Kromeriz, lIama­do EI desollamiento de Marsias, o Marsias scorticato da Apolline [Figura 5]. En su monografia de 1962, Titian: The Flaying of Mars­yas,Jaromír Neumann notaba que el cuadro, fechable entre 1565 y 1570, y perteneciente por lo tanto a la ancianidad deI pintor, había sido relativamente poco atendido por la critica: "El cuadro presentado en la literatura especializada en 1924 por el historiador de arte checo E. Dos­tál ha sido hasta el momento tema de comentarios breves y no ha sido usado en análisis más profundos" (9). A pesar dei relativo desconoci­miento de la obra según Neumano hasta los anos sesenta, la incorpora­ción explícita dei otro cuadro de Tiziano (fénus sagrada y fénus pro­fana) a la novela, aiiadida a la evidencia fonnal que presento a conti­nuación, es indicio suficiente a mi parecer para sostener que el texto de Elizondo refiere sutilmente aI Desollamiento de Marsias como a su objeto perdido o carta robada, en un juego abismal de espejos en el que la foto es ekfrasis de tercer grado con respecto de la composición alu­dida pero no mencionada.

El cuadro relata el mito ovidiano dei duelo entre Apolo y Marsias, que pierde Marsias, siendo condenado por el dios aI desollamiento. Aunque en el mito las Musas actuaron como jurado, en la versión de Tiziano es Midas, el rey de los Frigios, quien ocupa esa posición. Neu­mano detecta en la representación de Midas un autorretrato dei maes­tro, lo cual resitua la composición tizianesca como meditación alegórica deI artista sobre el destino humano (Neumano 19 ss.).

Lo que actua a mi juicio como evidencia formal de que Elizondo persigue secretamente una voluntad de glosa ekfrástica de El desolla­miento de Marsias es la curiosa similitud estructural entre el cuadro de Tiziano y la foto de Carpeaux. En la foto, según Farabeuf, "la disposi­ción de los verdugos es la de un hexágono que se desarrolla en el espa-

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cio en tomo a un eje que es el supliciado." También "los trazos que ... forman" eI hexagrama liú "recuerdan la actitud dei supliciado" (citado en Es&ito 28). EI desollamiento de Marsias sigue la misma estructu­Ta, definida por las diversas figuras congregadas en tomo ai cuerpo invertido dei sátiro: dos versiones de Apolo, dos ayudantes a la ejecu­ción, Midas, y un pequeno sátiro cuya mirada está orientada hacia el espectador, así como dos perros. Para Neumann, "el sistema entero de composición se basa en una serie de triángulos que encajan entre sí por encima y por debajo y se unen en una forma deltoide que le da unidad ai lienzo" (12). La similitud con la composición fotográfica está realzada por la presencia en esta última de figuras que funcionan como contra­partidas de las presentes en la composición pictórica: no sólo el funcio­nario imperial y los verdugos, también el espectador dei acontecimiento que mira hacia el espectador de la composición visuaiS.

En la interpretación renacentista dei mito de Apolo y Marsias, el desollamiento se entendía como Redención según la Iínea cristiano-pla­tónica. Apolo descubría valores superiores en el interior dei cuerpo dei sátiro. EI mito alegoriza, para los exégetas renacentistas, el triunfo de las artes superiores sobre las inferiores. Neumann suscribe tal entendi­miento como propio de Tiziano, y lo consagra como entendimiento ca­nónico para la tradición crítica:

La victoria de la lira de Apolo asumió un doble significa­do en el trabajo de Tiziano. Por un lado, estaba vinculada a la idea de la armonía dei cosmos y dei espíritu humano, y, por el otro, se relacionaba con la idea de Redención [cristianaj. Esa interpretación depende de la idea simbó­lica dei acto de castigo mismo. Tiziano no concebía el de­sollamiento como revelación de cualidades negativas, sino como descubrimiento de valores más altos ocultos en el interior dei cuerpo, como proceso de purificación y pro­moción. (22)

Según tal entendimiento dei mito, lo que pareceria estar en juego en Farabeuf, y aquello de lo que entonces dependerian las imágenes visuales mencionadas y su representación ekfrástica, es la victoria de lo apolíneo sobre lo dionisíaco en su sentido protonietzschean06 . Ese tema deberá ser entendido en relación con el tema dei triunfo dei amor espi­ritual-el amor místico- en el otro cuadro de Tiziano que Elizondo men­ciona y utiliza, Vc?nus sagrada y Vc?nus profana.

Pero no es exactamente de amor místico de lo que habla Fara­beuf EI poder de la foto que Farabeuf glosa la constituye en signo sagrado: lugar deI horror y de la muerte, la foto es también lugar dei éxtasis místico donde el sentido puede manifestarse. La foto es ícono

I Dejo a la discreción dellector notar otras se­mejanzas estructurales por lo demás obvias aunque no menos enig­máticas. No todas ellas derivan por cierto deI hecho de que ambas re­presentaciones lo son de una ejecución.

6 Sobre las relaciones que lIamo protonietzs­cheanas entre lo apolí­neo y lo dionisíaco, ver en particular eI capítulo "Miti d'amore e d'ar­monia," de Augusto Genti1i, Da Tizianoa Ti­ziano,71-87. De parti-

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cular interés para la in­terpretación de Fara­beuf, es la constatación de Gentili de que, para la crisis deI humanismo renacentista en la que él coloca a Tiziano, "ogni conciliazione di apolli­neo e dionisiaco appare dunque precaria: il pre­dominio dell' armonia apollinea, che tende ad istitutionalizzare i con­cetti, funzionali aI sis­tema, di civiltá e cultu­ra, non puó ammettere I' alter-nativa deI' disor­dine' e deve necessaria­mente emarginare la 'dissonanza' dionisiaca. socialmente corrispon­dente aI rifiuto delle norme ordinatrici vigen­ti, ad una 'ebbrezza' sempre critica nei con­fronti dell'asserto ut1i­ciale" (75). En estas pa­labras de Gentili la in­terpretación canónica de El desollamiento de Marsias, que hemos visto en Neumann, em­pieza a hacerse proble­mática, con consecuen­cias que se senalarán para el entendimiento de la novela de Elizondo.

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de una práctica extática dei sufrimiento, en la que la destrucción siste­mática dei cuerpo, que es mímesis de la pérdida fantasmática dei objeto primario, puede culminar en el instante de la muerte, instante de total negación y momento atroz de redención irónica. EI epígrafe en Fara­beuf tomado deI Breviario de podredumbre de E. M. Cioran hace referencia a esta posible práctica antinostálgica dei síndrome sádico: "La vida no tiene contenido sino en la violación deI tiempo ... la imposi­bilidad dei instante es la nostalgia misma" (8). Pero paralizar eI instante en la práctica extática es entrar fuera dei tiempo, morir en lo sagrado. E1izondo parece querer volver a la mística negativa de Bataille, en la que la extrema intensificación de la voluntad de poder desemboca en una práctica de muerte alegre en la afirmación de la vida: "Sólo es feliz eI que, habiendo experimentado el vértigo hasta el temblor de sus hue­sos, hasta ser incapaz de medir la extensión de su caída, halla de repen­te la fuerza inesperada para transmutar su agonía en una alegría capaz de helar y transfigurar a quienes la encuentran" (Bataille 236).

La ekfrasis es en esta novela una ekfrasis icónica, porque con­voca la presencia de un signo inestable, cuya más peculiar característi­ca es su tendencia a desaparecer como signo, a borrarse a sí mismo como signo, y a darse en la plenitud abismal de su materialidad o lite­ralidadjeroglífica. Abora bien, la autotachadura tendencial deI signo en eI icono ekfrástico parece reproducir la primera condición retórica de la ekfrasis, cuya característica formal es presentar la ausencia, y por lo tanto testimoniar textualmente una pérdida de objeto. ~ Cuál es, en todo caso, eI objeto perdido en esta escritura ekfrástica que remite aI poder de un signo sagrado, que pretende Iiteralizarlo?

Cuando Moisés le pide a Dios un signo de su existencia Dios se manifiesta como llama en el zarzal. Es decir, el signo que Dios da de sí mismo es un signo de autoconsumación, de autoconflagración. EI dios terrible dei Antiguo Testamento es eI dios de máxima irrepresentabi­lidad porque en su existencia signo e imposibilidad de signo coinciden puntualmente. Dios permanece hoy como hipótesis de un signo terríble, cuya fuerza consistiría en ser a la vez signo de la totalidad y totalidad rnisma. La ekfrasis encuentra su fuerza más radical cuando es ekfrasis dei signo terrible, que es eI signo divino de la autoconflagración, de la autodisolución como signo: "Soy el que soy." En la representación ekfrás­tica de la ausencia de la presencia plena se da en Farabeuf el Hombre Desollado como signo dei signo terrible, y como entidadjeroglífica de la püdida en cuya absorción, se piensa o se desea, quizá alguna ganancia máxima es toda\ ía posible.

Si Farabez~f se subtitula Crónica de un instante, es porque la escritura sádica persigue siempre la posibilidad de que advenga un ins­tante en el que la configuración dei deseo se realice. Dentro dei sistema de Farabeuf tal instante estaría enunciado. anunciado y no cumplido,

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en las últimas páginas de la novela, en las que el narrador quiere que su amante llegue a vivir la muerte en la experimentación de las técnicas quirúrgicas dei maestro Farabeuf, semejantes a las técnicas de los ver­dugos deI Leng-T' ché: "Recuerda que só lo se trata de un instante y que la clave de tu vida se encuentra encerrada en esa fracción de segundo" (175). Ese instante, la entrada en el cual preludia el fin de la novela, es el instante supremo, que el sadismo no puede sino ritualizar en la repe­tición, de recuperación de la experiencia deI sentido: '" ~ Quién soy?,' dirás, pero en ti misma descubrirás aI fin el significado de esas sílabas que siempre habías creído sin sentido" (179).

Abora bien, es claro que si la novela de EIizondo debe ser inter­pretada en la clave proporcionada por la vinculación de escritura sádica y perspectiva neoplatónica, entonces la novela se reduce a reproducir la inversión deI platonismo intentada por eI marqués de Sade en la inter­pretación lacaniana. Esa seria la interpretación sarduyana. Pero la ekfra­sis secreta de la novela, descubierta en la invocación de EI desolla­miento de Marsias, permite avanzar otra posibilidad de entendimiento, que a su vez depende de la reinterpretación de El desollamiento de Marsias propuesta recientemente por David Richards en Masks of D~fference (y siguiendo posibilidades ya indicadas por Augusto Genti­li). Tal posibilidad otra no excluye, sino que incluye la anterior: la novela es una y la otra, también en la medida en que ambas son recíprocamen­te dependientes; en la medida en que en su dependencia recíproca se ofrece la novela como indagación límite de los límites deI sentido.

Para Richards el proyecto mismo dei cuadro tizianesco debe ser entendido dentro deI entramado de problemas aI que remite la repre­sentación ekfrástica:

El cuadro es paradigmático de una 'crisis' recurrente de la representación que yace en lo profundo de la tradición platónica deI arte y de la interpretación europea. El arte occidental se construye sobre este problema de represen­tar aquello que no puede ser representado. mientras que a la vez olvida eficazmente el cuerpo en sí como un medio de escasa consecuencia para el fin de una representación imposible ... La pintura de Tiziano está indudablemente sumergida en el lenguaje visual de la interpretación neo­platónica, pero de ese vocabulario emergen otras presen­cias significativas que demandan la atención deI especta­dor hacia lo que el cuadro realmente muestra -el cuerpo­y no simplemente la espiritualización de sus valores. (J 3)

Richards encuentra en ellienzo un dialogismo radical en el que la ascendencia apolínea queda "subvertida (literalmente invertida) por su

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otro, un descenso insistente hacia el dolor dei suelo de la ejecución silvestre"(14). Las estrategias compositivas de Tiziano, y su juego de insistencias rítmicas, encierran la revelación de que la estructura as­cendente enfatizada en el entendimiento canónico "no puede existir sin la desestructuración de Marsias"(l8). Por lo tanto, e!cuadro, en su máxima tensión productiva, insiste en la otfa cara dei triunfo apolíneo, la "domesticación en la subyugación de lo salvaje"( 18). Midasffiziano "no juega papel alguno en el triunfo apolíneo, su arte no viene ... de la cele­bración dei triunfo apolíneo sino dei registro de la estructura que tal triunfo articula" (19).

Entender esa posición metaestructural de Midasffiziano, que en Farabeuf está ocupada por la presencia de El desollamiento de Mar­sias como ekfrasis secreta, genera a su vez una lectura modificada de la foto dei suplicio. EI poder de fascinación que guarda la tremenda fotografia dei Leng-T'ché, y que alcanza a toda la novela, puede tam­bién ser leído desde su dimensión estructurante o metarreflexiva. Así, depende dei estatuto de la víctima como pharmakos, esto es, como chivo expiatorio y víctima propiciatoria dei resentimiento social. Leída desde El desollamiento de Marsias, Farabeuf no es simplemente es­critura sádica (tal sería la lectura "canónica," equivalente a la lectura que propone Neumann dei cuadro de Tiziano en línea cristiano-platóni­ca); también es constancia de la línea descendente que demanda aten­ción ai predicamento desestructurador dei cuerpo en la escritura sádi­ca, a su papel domesticado r de! afuera y sojuzgador de todo posible goce salvaje.

La víctima, que es víctima por haber sido magnicida, ha amena­zado el orden social. EI ritual de la tortura reproduce en el cuerpo el dano que el magnicida pudo haber causado en el tejido social: el des­membramiento. EI poder de fascinación que guarda la fotografia dei Leng-T' ché, y que organiza el tejido textual de Farabeuf no sólo como compulsión obsesiva de interpretación, sino también como recuento y teatralización de un gesto fundamental de repetición o puesta en prácti­ca dei rito dei suplicio, tiene sin duda una dimensión sádica: el narrador de Farabeuf busca la repetición dei gesto imperial en el cuerpo de su amante, y esta búsqueda está orientada a la producción última de senti­do. EI sentido está así entendido como apertura de la escritura a la inscripción dei poder. Por otra parte, sólo e! asesinato ritual dei phar­makos lo com ierte en pharmakos, es decir, en figura capaz de dotar de sentido el espacio social precisamente porque en el ases inato ritual se crea la distrnción fundamentadora de un afuera y un adentro bajo el signo propiciatono de lo sagrado. La instancia extática en Farabe1~f no es por lo tanto simplernente una producción sádica. Antes ai contrario, el éxtasis productor de sentido está entendido desde el punto de ,ista de la producción simbólica de la no\ela. La producción propiamente sádi-

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ca, como violencia sagrada, viene deI espacio extratextual, y es sólo acogida, pero también contestada, intratextualmente.

Del jeroglífico trazado en el cristal de la ventana desde la cualla amante del narrador y el narrador mismo ven aI doctor Farabeuf acer­carse a la casa con su instrumental quirúrgico se dice que interpretarlo daria sentido: constituye la respuesta a una pregunta olvidada. El jero­glífico es el carácter chino liú, que representa un hombre en la estaca, un hombre desoUado: el pharmakos. En el pensarniento deI pharmakos se cifra la intervención de Farabeuf a propósito de la constitución de la escritura contemporánea de la siguiente manera:

Las tres representaciones ekfrásticas en Farabeuf tienen que ver con la representación deI pharmakos, el Hombre Desollado. Las tres son figuras, no de lo real, sino deI artista. Las tres, en tanto repre­sentaciones ekfrásticas, son representaciones deI objeto perdido en tanto que fetiche extático. La desollación, el suplicio, es el momento en que el objeto perdido puede retomar como signo terrible. El sadismo está aquí entendido como sometimiento siempre de antemano, siempre eterna­mente recurrente, aI imperio paterno-teológico, pues este es en última instancia el que organiza la inalcanzabilidad deI objeto. La desestabili­zación de la ontoteología, deI régimen paterno kantiano-Iacaniano, aca­ba pues revelándose simulatoria en el acto sádico.

Contra ella y en ella, en su otro lado que es también el mismo lado, el acto de escritura encuentra un pliegue ekfrástico en el que se juega su relativa potencia de desalienación dentro de la misma aliena­ción que simultáneamente se crea: allí donde la repetición no es simple­mente reproductora, sino que es productora, y lo que produce es un doblamiento reflexivo en el interior de la máquina metafisica; cuando el Hombre Desollado (o la Mujer Desollada, pues así acaba Elizondo por interpretar la figura humana deI Leng-T'ché) no es ya la referencia última deI terror/goce textual, sino que se dobla o especula en aquel que contempla tal terror/goce, y asi innumerablemente. La escritura de la literalidad sádica, a la que Sarduy atribuía una potencia de desestabili­zación revolucionaria, queda a la vez afirmada y desmentida en la nove­la de Elizondo: afirmada porque tal parece ser la organización textual de la novela en su estructura superficial; pera desmentida porque en ella aparece secretamente, y por lo tanto quizá también últimamente, en la medida en que el secreto fuerza la desestabilización radical de la es­tructura novelística aparente, una sumaria identificación autográfica deI artista con el Midas de las orejas de asno que lleva la interpretación sarduyana a su abismo 1 .

Si bien todavía es cierto que Farabeuf llega tardiamente a la aventura de desalienación que simultáneamente propone, puesto que su inversión libidinal depende siempre de antemano de la alienación inau­gurante, puede constatarse en su lugar secreto una pulsión o intento de

, En su interpretación de la figura de Midas/Ti­ziano en el cuadro de Kromeriz afinna Genti­li: "L'identificazione ico­nografica Mida-Tiziano dice con assoluta chia­rezza che il giudizio deI dionisiaco re frigio é in realtá il giudizio stesso dell' artista. Stolto aI punto da meritare le orecchie asinine, non per aver dubitato della supe­rio-ritá apollinea, ma piut­tosto ... per aver creduto all'illusione deI tocco d'oro. La sua malinconia saturnina ... proviene da quell' illusione: la lunga illusione deI 'toccod'oro' deI grande pittore, spen­ta neUa malinconia daUa coscienza finale dell' assoluta irrelevanza dell' operazione artisti­ca di. fronte alia disgra­zia della storia" (157-58).

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des-inversión que, sin embargo, no alcanzará a confundirse con el aho­rro. Sin tomaria en cuenta, ninguna reconstrucción crítica dei aparato ideológico dei boom es posible.

Obras citadas

Bataille, "The Practice of Joy Before Death." En Visions Excess. Selected Writings, 1927-1939. Allan Stoekl ed. Minneapolis: Uno ofMinnesota P, 1985.

Berman, Russell. "Written Right Across Their Faces: Ernst Jünger's Fascist Modernism," Andreas Huyssen y David Bathrick eds. Modernity in the Text: Revisions ofGerman Modernism. Nueva York: Columbia UP, 1989.

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