edição 35 (completa)

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Com conteúdo + MEDIA FAZENDO R$ 5 edição nº 35 janeiro/ fevereiro 2015 Na(s) barbárie(s) do capitalismo, somos solidári@s a todas as vítimas NENHUMA VIDA VALE MAIS DO QUE OUTRA EDIÇÃO DIGITAL

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Edição 35 (janeiro/fevereiro 2015) da Revista Vírus Planetário completa

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Page 1: Edição 35 (Completa)

Com conteúdo

+MEDIAFAZEN

DO

R$5edição nº 35

janeiro/fevereiro

2015

Na(s) barbárie(s) do capitalismo, somos solidári@s a todas as vítimas

NENHUMA VIDA VALE MAIS DO QUE OUTRA

EDIÇÃO DIGITAL

Page 2: Edição 35 (Completa)

EXPEDIENTE:Rio de Janeiro: Alexandre Kubrusly, Ana Chagas, André Camilo, Artur Romeu, Bruna Barlach, Bruno Costa, Caio Amorim, Camille Perrisé, Catherine Lira, Chico Motta, Débora Nunes, Didi Helene, Daniela Fi Diego Novaes, Eduardo Sá, Fernanda Alves, Joyce Abbade, Julia Campos, Leandro Santos, Mariana Adão, Mariana Moraes, Regina Gomes, Thais Linhares | São Paulo: Ana Carolina Gomes, Duna Rodríguez, Gustavo Morais, Hamilton Octávio de Souza, Jamille Nunes, Jéssica Ipólito, Luka Franca, Marcelo Araújo | Brasília: Alina Freitas, Diogo Cardeal, Edemilson Paraná, João Apolinário Passos, Maiara Zaupa e Thiago Vilela | Minas Gerais: Ana Malaco e Laura Ralola | Ceará: Caio Erick, Joana Vidal, Livino Neto e Lucas Moreira | Piauí: André Café, Diego Barbosa, Mariana Duarte, Nadja Carvalho e Sarah Fontenelle | Bahia: Mariana Ferreira | Paraíba: Iarlyson Santana e Mariana Sales | Paraná: Elisa Riemer e Tiago Silva | Mato Grosso do Sul: Bárbara de Almeida, Eva Cruz, Fernanda Palheta, Jones Mário, Marina Duarte, Rafael de Abreu e Tainá Jara | Rio Grande

do Sul: João Victor Moura, Maiara Marinho e Rafael Balbueno Diagramação: Caio Amorim

Conselho Editorial: Adriana Facina, Amanda Gurgel, Ana Enne, André Guimarães, Claudia Santiago, Dênis de Moraes, Eduardo Sá, Gizele Martins, Gustavo Barreto, Henrique Carneiro, João Roberto Pinto, João Tancredo, Larissa Dahmer, Leon Diniz, MC Leonardo, Marcelo Yuka, Marcos Alvito, Mauro Iasi, Michael Löwy, Miguel Baldez, Orlando Zaccone, Oswaldo Munteal, Paulo Passarinho, Repper Fiell, Sandra Quintela, Tarcisio Carvalho, Virginia Fontes, Vito

Gianotti e Diretoria de Imprensa do Sindicato Estadual dos Profissionais de Edução do Rio de Janeiro (SEPE-RJ)

#Impressão: Ramandula

A Revista Vírus Planetário - ISSN 2236-7969 é uma publicação da Malungo Comunicação, Editora e Comércio de Revistascom sede no Rio de Janeiro. Telefone: 21 3502-7877

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Anônimo: Olá pessoal! Gostava da maioria das postagens de vocês! Agora com o modismo do Charlie da França notei que vocês estão fazendo piadas sobre crenças também. Não acho inteligente cutucar ninho de marimbondo, os idiotas franceses cutucaram os idiotas fanáticos e pagaram o preço. Agora vocês querem chamar a atenção dos fanáticos também??? Achei que fosse uma revista inteligente, com vocês eu não “colo”. Estou descurtindo a página com muito prazer! E por favor não chamem a atenção dos homens-bomba para o Brasil, por favor!

Nossa Resposta: As charges em questão NÃO pretendem representar o pensamento d@s muçulman@s e/ou atacar os seguidores do Islã. A intenção é denunciar uma visão completamente deturpada e ensandecida de extremistas que fazem atrocidades em nome de Alá e de Maomé, sendo que a religião islâmica prega exatamente o contrário.

Rafael Marcon: Chegaram as revistas. Elas são lindas, já dei uma lida nelas, bem massa o trampo de vocês, mano. Parabéns.

Tiko Arawak compartilhando a imagem à esquerda (ilustração de Thais Linhares postada em nosso facebook no dia do natal:

“O dia de hoje é uma data muito especial para os cristãos e até por isso cabe-nos lembrar o principal ensinamento expresso por Jesus: Amai vos uns aos outros! E saúda os cristãos que compreendem que esse amor é incondicional e que respeita e protege a diversidade sexual.”

Wow, CLAP CLAP CLAP! Parabéns à família Vírus Planetário!

Capa: Ilustração de Tiago SilvaEdição 35 da Revista Vírus PlanetárioJaneiro/Fevereiro 2015

Page 3: Edição 35 (Completa)

Editorial sumário

Um novo ano chegou e trouxe com ele acontecimentos impactantes logo na primeira quinzena. Com todos no Brasil ainda em clima de férias, foi com grande choque que recebemos as notícias vindas da França, de que jornalistas haviam sido mortos pelo exercício de sua função. Nessa edi-

ção, falaremos sobre o acontecimento e sobre ser ou não ser Charlie Hebdo. No entanto, neste editorial, vamos chamar atenção para tantas mortes que não são noticiadas. Desde as mortes de grupos de muçulmanos opositores ao Estado Islâmico (ISIS) e Boko Haram (na Nigéria) até as mortes de pessoas que vivem a poucos metros de nós, nas favelas do Rio de Janeiro, como o garoto de 11 anos executado pela polícia carioca com um fuzil.

De fato, as motivações das mortes podem ser diferentes: se o ISIS luta pela instauração de um Califado (um estado onde a lei islâmica seja a lei corrente, sob suas regras de conduta), a polícia, como um braço do estado brasileiro aqui luta contra o povo negro e pobre das favelas, como se eles fossem o inimigo. Nenhuma dessas mortes é justificável. É fato que vivemos em tem-pos difíceis.

Difícil, também, segue sendo nossa luta para continuar construindo a Vírus como uma revista sempre à esquerda e de resistência contra o ca-pitalismo e seu modo de funcionamento. Entramos o ano com as contas no vermelho e por isso, pedimos sua compreensão em relação ao não lançamento da edição de dezembro. Nessa edição, falamos de liberdade de expressão e liberdade de imprensa, então não podemos nos esquecer que vivemos num dos países com as leis de imprensa menos democráticas. E menor democracia quer dizer maior dificuldade de financiamento, mais dificuldade de distribuição e por aí vai.

Chegou 2015 e nós da Vírus seguimos na luta para transformar essa realidade (e para transformar toda a sociedade). E, como sempre, conta-mos com vocês para virem junto conosco. Construamos juntos um ano de vitórias para a esquerda e para Vírus. Bora fazer acontecer!

4 Hamilton Octávio de Souza_

Dilma 2 consagra estelionato eleitoral

6 Internacional_”Vivos os levaram,

vivos os queremos”

10 Entrevista Inclusive_Alexandre

Costa

14 Meio Ambiente_Crise hídrica é

política

18 CAPA_Ser ou não ser Charlie, eis a

questão

22 Fazendo Media_Nigéria=França?

23 Bula Cultural_Indicações e

Contraindicações

24 Bula Cultural_Bienal Internacional de

Guarulhos

26 Bula Cultural_Movimento Punk de

Teresina_Resistência e Cultura na selva de

pedras

28 Sórdidos Detalhes

Afin

al, o

que

é a

Víru

s Pl

anet

ário

? Muitos não entendem o que é a Vírus Planetário, principalmente o nome. Então,

fazemos essa explicação maçante, mas necessária para os virgens de Vírus Planetário:

Jornalismo pela diferença, não pela desigualdade. Esse é nosso lema. Em nosso primeiro editorial, anunciamos nosso estilo;

usar primeira pessoa do singular, assumir nossa parcialidade, afinal “Neutro nem sabonete, nem

a Suíça.” Somos, sim, parciais, com orgulho de darmos visibilidade a pessoas excluídas, de

batalharmos contra as mais diversas formas de opressão. Rimos de nossa própria desgraça

e sempre que possível gozamos com a cara de alguns algozes do povo. O bom humor é

necessário para enfrentarmos com alegria as mais árduas batalhas do cotidiano.

O homem é o vírus do homem e do planeta. Daí, vem o nome da revista, que faz a provocação de que mesmo a humanidade

destruindo a Terra e sua própria espécie, acreditamos que com mobilização social, uma sociedade em que haja felicidade para todos e

todas é possível.

Recentemente, unificamos os esforços com o jornal alternativo Fazendo Media e Revista

o Viés de Santa Maria (RS) nos tornamos um único coletivo e uma única publicação

impressa. Seguimos, assim, mais fortes na luta pela democratização da comunicação para a

construção de um jornalismo pela diferença, contra a desigualdade.

Acredite num jornalismo pela diferença,

contra a desigualdade

Page 4: Edição 35 (Completa)

HAMILTON OCTAVIO DE SOUZA

DILMA 2 CONSAGRA

ESTELIONATO ELEITORAL

Hamilton é jornalista, professor na Pontifícia Univerdade

Católica de São Paulo (PUC-SP) e membro da equipe da Revista

Vírus Planetário

Desde o final do ano passado, muitos brasileiros que se empenharam em barrar o avanço da direi-ta nas redes sociais, nas ruas e nas urnas, com o voto em Dilma Rousseff, estão agora desarvo-

rados com os rumos adotados pelo novo governo. Primei-ro ficaram estupefatos com os aumentos dos juros e dos combustíveis; depois foram surpreendidos com a esdrúxula composição do ministério, não apenas pela total rendição da economia à ortodoxia neoliberal, que era a plataforma do candidato da direita, mas, sobretudo pelo catado geral de mediocridades na nova equipe ministerial, alguns notó-rios espécimes do mais bizarro conservadorismo.

Quem acompanhou o noticiário do dia 5 de janeiro, por exemplo, ficou sabendo que tomaram posse em seus res-pectivos cargos os novos ministros da Fazenda, da Agri-cultura, dos Transportes e das Cidades. E quem são eles? Antigos e respeitados militantes petistas? Reconhecidos es-pecialistas do campo progressista e da esquerda? Brilhantes acadêmicos? Nada disso, muito longe disso. Nesses cargos, assim como em mais da metade do ministério, o novo go-verno conta com a fina flor do que existe de mais grotesco na política brasileira – desde gente sem qualquer escrúpulo com a coisa pública até devotados vassalos do mercado e do sistema dominante.

O da Fazenda, Joaquim Levy, veio direto da colaboração com o programa do candidato Aécio Neves, derrotado nas urnas, com o aval dos bancos, já com passagem nas ges-tões anteriores e com currículo semelhante aos de ilustres servidores das elites e com diplomas nas mais reacionárias escolas do país e do exterior. O seu leque de medidas joga na lata do lixo todo o discurso que o publicitário João San-tana idealizou para a candidata Dilma ganhar as eleições. As contradições começam com cortes no orçamento – in-clusive das áreas sociais – e seguem na sequência da crise que se abateu sobre a Europa após 2008. Podem-se prever também reajustes nas tarifas públicas, mais impostos, ar-rocho salarial, desemprego e, como consequência, greves e protestos de trabalhadores. O operariado tende a romper as amarras do peleguismo e ir pras ruas. Ou seja, Levy vai fazer acontecer com Dilma tudo aquilo que o PT dizia que aconteceria com Aécio Neves.

A da Agricultura, Kátia Abreu, é impensável até mesmo num governo liberal democrático, tendo em vista a sua fo-lha corrida de serviços prestados ao setor mais arcaico do País, o ruralismo da devastação ambiental, da grilagem, dos jagunços, das mamatas no Banco do Brasil, do escravismo e da perseguição visceral aos movimentos sociais e aos direitos dos trabalhadores. Até pouco tempo atrás, a diri-gente rural de Gurupi era a cópia tosca do Ronaldo Caiado, conhecida como a Rainha da Motosserra e inimiga número 1 do MST, da CPT, do Cimi, da Funai e de tudo o mais que

O novo governo contraria o discurso da campanha de 2014, promove a direita e prepara a

estocada derradeira naquele PT nascido em 1980 como a grande

esperança política de amplos setores da esquerda.

Vírus Planetário - janeiro/fevereiro 20154

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a tais cidadãos espera mesmo um desempenho de bom nível e a reali-zação de obras do interesse popular? Tais ministérios estão nas mãos de pessoas com formação democrática e compromisso de fazer diálogo ci-vilizado com todos os movimentos sociais urbanos que atuam nessas áreas? Mais uma vez, com certeza, vai sobrar desgaste para o PT, que abriu mão de cargos tão relevantes.

Tal análise pode ser estendida para várias outras pastas, tanto da infraestrutura, da economia ou da área social. Vale para a Educação, In-dústria e Comércio, Minas e Energia, Integração Nacional, Trabalho, Pre-vidência, Esportes e Turismo, entre

outros. Isso sem contar aqueles ministérios que estão nas mãos de filiados do próprio PT, mas os quais não têm maiores compromissos com os avanços sociais e com a democratização da sociedade. Enfim, o quadro geral do governo Dilma-2 é o pior possível, um rebai-xamento do que aconteceu no Dilma-1. Só que agora, depois de muitos malabarismos, a crise do capitalismo tende a corroer mais profundamente aquilo que estava sendo anunciado como as virtudes do lulismo, como o aumento real do salário mínimo, o baixo desemprego e os programas de inclusão social.

A cada dia que passa, a percepção do estelionato eleitoral tende a elevar o nível de crítica e de insatis-fação popular. Teremos um ano de muitos protestos e de recrudescimento da repressão política e social. O PT de 1980 não existe mais. Agora, a atuação articula-da e a organização das esquerdas são fundamentais para propor outro rumo ao Brasil.

tinha a ver com a reforma agrária, a luta dos trabalhadores, a defesa dos povos indígenas, a preservação das florestas e a construção de um mo-delo agrícola mais justo e equilibrado.

Em seu alpinismo governista, a então convicta militante do DEM procurou abrigo na variante direitista criada pelo ex-prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, o PSD, e logo de-pois se aboletou no saco de gatos do PMDB – o principal aliado do PT no governo. Essa operação de “lim-peza” curricular e “apagamento” do passado pregresso, foi uma verda-deira metamorfose para conquistar o Palácio do Planalto. A questão é saber por que diante das inúmeras opções para essa pasta (empresários bem sucedidos e modernos, dirigentes de entidades de classe, especialis-tas, estudiosos, professores respeitados etc), a escolha recaiu exatamente na pessoa que mais tem atritos acu-mulados com segmentos sociais que compõe importan-te base política do PT. Queiram ou não, o desgaste da Rainha da Motosserra vai mesmo sobrar para o partido do Lula.

Nos outros dois ministérios citados, as importantes pastas dos Transportes e das Cidades, a presidente nomeou dois políticos de São Paulo, respectivamente Antonio Carlos Rodrigues, do PR, e Gilberto Kassab, do PSD – ambos com militância na direita, ambos com his-tórias políticas medíocres, ambos com vasta folha corri-da de desmandos e irregularidades. No caso de Kassab, continua umbilicalmente vinculado a políticos do PSDB, PRB, PTB e DEM. De novo, a pergunta que não pode calar: um governo que entrega importantes ministérios

Ilustração: Tiago Silva

“ Teremos um ano de muitos

protestos e de recrudescimento

da repressão política e social”

Vírus Planetário - janeiro/fevereiro 2015 5

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Os estudantes, com forte apoio popular, es-tão protagonizando um dos maiores pro-cessos de mobilização dos últimos anos no México. O estopim se iniciou após o ata-

que realizado pela polícia local de Iguala, com a ajuda dos narcotraficantes do grupo Guerreiros Unidos, que controlam a região, ao ônibus dos estudantes de ma-gistério, conhecidos como normalistas, no estado de Guerreiro. A ofensiva do governo deixou 3 estudantes mortos, aproximadamente 17 gravemente feridos e 43 desaparecidos.

Após o termino das aulas, no dia 26 de setembro, os estudantes que vivem em regime de internato na Escola Rural Raúl Isidro Burgos, localizada no município de Ayotzinapa, foram para Iguala, que fica a 123 km de distância, arrecadar fundos para a escola. Os norma-listas mantêm uma velha disputa com o prefeito, José Luis Abarca Velázquez.

O prefeito de Iguala e sua esposa, María de los Ánge-les Pineda Villa, são acusados de ter ligação com o gru-po Guerreiros Unidos, que controla economicamente e politicamente a cidade de 130 mil habitantes e mantém uma grande produção de papoula (precursor de goma de ópio), que recentemente teve o preço aumentado.

Esta razão fez com que o cartel local tomasse o con-trole da área, incluindo o governo local.

José Luis Abarca Velázquez, além de fazer parte do narcotráfico, é acusado de participar da eliminação físi-ca de três líderes de partidos opositores em 2013 e en-volvimento na tortura e assassinato do líder camponês, Arturo Hernández Cardona, em junho do mesmo ano. Não é a primeira vez que a polícia ataca os normalistas: em dezembro de 2011, dois estudantes foram assassi-nados na estrada do Sol. O caso nunca foi esclarecido, mas as denúncias apontam para a polícia local.

Quando chegaram em Iguala, os narcotraficantes que controlam a cidade avisaram a Polícia Municipal, que conta com no mínimo 30 policiais pertencentes ao gru-po Guerreiros Unidos. No mesmo dia, havia um evento organizado por María de los Ánfeles Pineda, esposa do prefeito de Iguala, e as suspeitas eram de que os es-tudantes o interromperiam. Assim que o prefeito José Luis Abarca Velázquez ficou sabendo que os estudantes estavam na cidade, deu ordem ao chefe de polícia Fran-cisco Salgado Valladares para combatê-los a todo custo.

A polícia local, com reforços dos traficantes, foi ao combate dos estudantes como se estivessem enfren-tando um cartel inimigo. Eles mataram a tiro três estu-

“Vivos os levaram,VIVOS OS QUEREMOS!”

Já se passaram quatro meses após o ataque e desaparecimento dos 43 estudantes mexicanos de Ayotzinapa e o governo ainda não apresentou nenhuma prova concreta

sobre o caso. Em reposta os jovens mexicanos continuam mobilizados em busca de informações sobre o paradeiro dos estudantes desparecidos.

internacional

Por Rafael de Abreu

Vírus Planetário - janeiro/fevereiro 20156

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dantes e um deles teve o rosto esfolado e os olhos arrancados, ação clássica entre os traficantes. Por volta das nove horas da noi-te no México (onze horas horário de Brasília), os estudantes seguiram até a empresa de ônibus e pegaram três veículos. Esta relação que os normalistas estabelecem com os ôni-bus é uma prática comum, pois, devido a má condição financeira, os motoristas os levam de volta para Ayotzinapa ao final do expe-diente. A empresa de transporte, com receio de maiores prejuízos, aceita esta prática.

Os policiais tentaram parar o ônibus por meio de um bloqueio, que foi furado pelos normalistas. Após o furo do bloqueio, na Av. Periférica Norte, houve uma ofensiva contra os ônibus dos estudantes. O resultado foi: 2 estudantes mortos, aproximadamente 17 gravemente feridos e 43 desaparecidos. Na manhã do dia 27 de setembro, outro corpo foi encontrado na mesma situação em que os outros que haviam morrido anteriormente ao ataque dos ônibus, com o rosto esfolado e sem os olhos.

Este episódio de barbárie ocorreu num momento em que o México estava em vi-sibilidade internacional, após o assassinato de 22 pessoas, supostamente narcotrafican-tes, em Tlatlaya, área próxima ao estado de Guerrero. Este caso aconteceu no dia 30 de junho, sendo que oito militares foram presos por pressão da ONU após um pai denun-ciar que sua filha de 15 anos estava entre os mortos. A grande maioria dos assassinatos aconteceu a sangue frio.

Outra questão que deve ser levada em consideração é que, na semana seguinte ao ataque, aconteceria um ato na Cidade do México em memória ao massacre estudantil de Tlatelolco, que aconteceu em 1968. Não se sabe até hoje o número de estudantes que morreram naquele episódio sangrento na história do país, mas esse pode ter che-gado a mil. Os três ônibus tomados pelos normalistas na noite do dia 26 serviriam para levá-los até este ato. Infelizmente, a resposta do governo foi brutal, derramando mais uma mancha de sangue.

O estado de Guerrero é conhecido pela miséria e violência, lidera o ranking de assas-sinatos, tem seu PIB per capita paralisado em 3.650 reais por ano, que é o mais baixo do país. O poder é exercido descaradamente pelo narcotráfico, que, além de financiar as campanhas dos políticos, passou a fazer par-te do governo.

“ Há décadas as escolas rurais vêm sofrendo vários ataques, pois

representam um poder autônomo ao narcotráfico e ao governo

Projeto “Ayotzinapa Somos Todos” em solidariedade às vítimas busca reunir ações de apoio na internet, o cartaz identifica alguns dos estudantes desaparecidos

Vírus Planetário - janeiro/fevereiro 2015 7

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Este cenário coloca o governador de Guerrero, Ángel Aguirre, como um dos políticos mais odiados pelos nor-malistas, fazendo com que suas mo-bilizações avancem para cima do go-verno. Nas primeiras semanas após o desaparecimento dos 43 estudan-tes, o governador teve sua casa ata-cada por coquetéis molotov. Depois, foi a vez do Palácio do Governo de Chilpancingo, capital de Guerrero, ser incendiado pelos manifestantes.

Há décadas as escolas rurais vêm sofrendo vários ataques, pois repre-sentam um poder autônomo ao nar-cotráfico e ao governo, que se mos-tram nestes momentos face de uma

mesma moeda. Nascidas nos nervos aflorados da Revolução Mexicana de 1910, com ideologia socialista, essas escolas seguem a linha do marxismo revolucionário. Tais estabelecimen-tos de ensino formam professores rurais, são públicas, gratuitas e só selecionam filhos de famílias pobres, sobrevivendo nas áreas mais miserá-veis do México. Os alunos do magis-tério têm sido os principais quadros das guerrilhas do sul: das salas de aulas já saíram os guerrilheiros Lucio Cabañas e Genaro Vázques Rojas.

Devido à pressão interna e à re-percussão do caso, quem está res-ponsável pela investigação é a Pro-

curadoria Geral da União, subordina-da à Presidência. Em um primeiro momento, havia a hipótese de que os estudantes estavam escondidos nas matas próximas a Iguala com medo da repressão. Ao longo das buscas, foram encontradas seis va-las clandestinas com 28 corpos inci-nerados. Depois de algumas sema-nas, várias outras novas valas foram encontradas nas proximidades. Em seguida, saiu o resultado pericial de que nenhum desses corpos era dos 43 estudantes desaparecidos.

Sem respostas e evidências con-cretas, a pressão interna aumenta e o movimento começa a se radica-lizar cada vez mais. Os estudantes entram em greve, queimam as sedes dos governos, fazem barricadas e atos massivos de rua. O Procurador Estadual Iñaky Blanco tentou indiciar o prefeito de Iguala, mas José Luis Abarca Velázquez contava com foro privilegiado que impossibilitava a procuradoria de processá-lo criminal-mente. O prefeito, sua esposa, tam-bém acusada pelo crime, e o chefe de segurança fogem e se tornam foragidos da justiça.

No dia 7 de novembro, em entre-vista à imprensa, o procurador-geral Jesús Murillo Karam informou que os estudantes foram capturados pela Polícia Municipal de Iguala e en-tregues ao grupo Guerreiros Unidos. Os estudantes foram colocados em um caminhão e uma camionete e levados até o lixão de uma cidade vizinha, Cocula. Um número signifi-cativo destes estudantes morreu no percurso devido aos espancamen-tos e por asfixiamento, pois foram amontoados nos veículos.

Quando chegaram ao local, os estudantes foram interrogados pelo grupo narcotraficante, que queria saber por que eles foram até Iguala para enfrentar o prefeito e sua espo-sa. Depois, todos foram brutalmente assassinados e seus corpos quei-maram em uma fogueira montada com madeiras e pneus. A fogueira teria queimado durante 15 horas, se estendendo até as 3 da tarde do ou-tro dia. Ao final, os corpos foram

internacional

Quadrinho feito em homenagem aos estudantes de Ayotzinapa. Fala no último quadro: “Quiseram nos enterrar, mas não sabiam que éramos semente”

Vírus Planetário - janeiro/fevereiro 20158

Page 9: Edição 35 (Completa)

quebrados e colocados em sacos de lixo e jogados no rio Cocula.

Segundo o procurador, dois destes sacos foram en-contrados e os restos estão sendo analisados. Ainda não foi possível efetuar os exames de DNA, o que faz com que o caso não esteja encerrado. O governo mexicano encaminhará o material para especialistas de outros luga-res do mundo para poder assim encerrar a investigação.

O movimento que insurgiu no México após este ato de tamanha barbárie contesta as informações, pois, ape-sar das imagens e das declarações dos criminosos, não há nenhuma evidência concreta ou prova de confirma-ção.

A defesa dos manifestantes é que, como os atos têm se radicalizado cada vez mais, isso foi uma manobra para abafar o movimento. Além disso, o governo joga a res-ponsabilidade para os Guerreiros Unidos, mas o que estes meses de buscas mostraram ao mundo foi um México cheio de valas clandestinas, com quase 22 mil pessoas desaparecidas e um governo estritamente alinhado com o narcotráfico.

Em reposta às declarações do procurador-geral, os es-tudantes atearam fogo em carros de polícia em várias partes do país, quebraram novamente os vidros da sede do governo de Guereno, na cidade de Chilpancingo, e foram até o palácio nacional na Cidade do México, em que tentaram derrubar a porta com pedaços de ferros e atear fogo. Agora, o foco também é o presidente Enrique Peña Nieto, acusado de assassino. O muro do palácio foi pixado com a frase “nós os queremos vivos”, em referên-cia aos 43 estudantes.

A credibilidade do governo de Peña Nieto está muito abalada, seu mandato inaugura um novo ciclo no México, onde o narcotráfico que anteriormente exercia o poder econômico por meio de de financiamentos de campa-nhas de políticos, passou a fazer parte do governo de forma direita. Hoje existe um narcogoverno, que trás mui-ta instabilidade política e uma série de escândalos de corrupção, desaparecimentos e assassinatos. Em 2006, um ano após a eleição do atual presidente, iniciou-se uma guerra ao narcotráfico que até o presente momen-to contabilizou aproximadamente 20 mil desaparecidas e 100 mil mortos.

“Companheiros estudantes de Ayotzinapa, seu lugar os espera. Arte de Gran Om

Após o desaparecimento dos normalistas, uma série de manifestações de solidariedade aconteceram em vá-rias partes do mundo. A instabilidade política e a falta de informação sobre os estudantes ainda continua, os estu-dantes mexicanos e os pais dos desaparecidos continu-am a encabeçar uma série de manifestações em várias partes do México.

Novas denúncias ainda não confirmadas oficialmente, trazidas pela imprensa mexicana, apontam também o envolvimento da Polícia Federal e do Exército no desa-parecimento dos normalistas. Estas informações estão baseadas em troca de relatórios pelas autoridades me-xicanas e vídeos gravados nos celulares dos estudantes que sobreviveram ao ataque da noite do dia 26.

No último dia 6 de dezembro, peritos forenses argen-tinos confirmaram a morte de Alexander Mora Venan-cio, um dos 43 estudantes desaparecidos, após exames feitos em fragmentos de ossos encontrados. O governo mexicano sustenta a versão de que os restos mortais de Alexander foi encontrado nos sacos de lixos que foram apresentados pela promotoria no início de novembro. Os pais dos normalistas desaparecidos e os estudantes me-xicanos contestam também esta versão, pois não há ne-nhuma prova concreta de onde foi encontrada os restos mortais de Alexander.

Em meio as incertezas e falta de provas, os estudan-tes mexicanos continuam a encabeçar atos massivos e radicalizados por várias regiões do México.

“ Hoje existe um narcogoverno, que trás muita instabilidade política e

uma série de escândalos de corrupção, desaparecimentos e assassinatos.

Vírus Planetário - janeiro/fevereiro 2015 9

Page 10: Edição 35 (Completa)

“Em tempo de climas extremos, nenhum cenário é tão horripilante

quanto a realidade”

ENTREVISTA INCLUSIVA_ALEXANDRE COSTA

Para o físico Alexandre Costa, a atual crise climática está

diretamente atrelada ao atual modelo de desenvolvimento

Ilustração: Mario Sánchez Nevado

Vírus Planetário - janeiro/fevereiro 201510

Page 11: Edição 35 (Completa)

que seria um limite de perigo. Depois disso vem os limites de catástrofe, que são de 500 a 600 partes por milhão. No ritmo em que estamos, chegaremos a 600 facilmente no começo da segunda metade deste século, o que resulta-ria no derretimento do gelo da Antártida, ocasionando um aumento do nível dos oceanos em 64 metros. Este cenário representaria o fim de todas as grandes cidades do litoral brasileiro, a Bacia Amazônica viraria uma gigantesca baía, nos Estados Unidos se daria adeus a Nova York e a todo o estado da Florida, além de inúmeros outros impactos como secas mais severas e furacões mais intensos. Seria literalmente outro planeta.

Podemos então entender o número de 450 partes por milhão como uma espécie de “linha de morte”?

Imagine se colocarmos um objeto na beira de um morro e uma pequena perturbação é capaz de derrubá-lo ladei-ra abaixo, sem qualquer empurrão nosso. Isso seria mais ou menos o que representa 450 partes por milhão de con-centração de CO2. 450 partes por milhão implicam em um aquecimento, a médio e longo prazo, de 2 graus, o que se vislumbra representar dois terços de chance de chegarmos a uma situação irreversível. Eu jamais apostaria minha vida tendo apenas dois terços de chance de mantê-la, e o pior é que a humanidade, objetivamente, nem sequer está mirando para isso. Pelo contrário, se você pegar as emis-sões de CO2 recentes e comparar com os cenários previs-tos pelo IPCC, estamos acima do pior cenário previsto, ou seja, nem o mais pessimista dos grupos de pesquisa que contribuíram com o IPCC, no seu quinto relatório, foi capaz de reproduzir um cenário tão horripilante como a realida-de.

Então, no quadro atual, apesar de necessário e ur-gente, imaginar a redução de CO2 seria praticamente um sonho...

Não reduzir seria um pesadelo. Quem precisa parar de sonhar são aqueles que acham que não haverá consequ-ências, é preciso acabar com essa ilusão. Eu sei que é di-fícil, especialmente por que há um forte interesse econô-mico em jogo, estamos falando do lobby da indústria pe-troquímica. A Chevron movimenta meio trilhão de dólares por ano, o que representa um PIB da ordem do da Noruega; a Exxon movimenta outros US$430 bilhões, o que repre-sentaria quase o PIB da Argentina. Da lista de empresas de combustíveis fósseis e das empresas automobilísticas – que não estão interessadas em reduzir a emissão de CO2 –, basta 13 delas para ultrapassar o PIB alemão. Trata-se de muito poder concentrado em pouquíssimas mãos.

Essas empresas também estão intrinsecamente ligadas aos interesses dos bancos; existem representantes dos conselhos deliberativos de bancos nas petroquímicas e vice-versa, às vezes participando em empresas suposta-mente concorrentes. Se o capital financeiro é a máqui-

Professor titular da Universidade Estadual do Ceará (UECE), Phd em Ciências Atmosféricas, o físico Alexandre Costa é daqueles militan-tes, tal qual Dom Quixote de La Mancha, que

enfrentam gigantes em suas batalhas. No entanto, aqui, os gigantes não são projeções de moinhos de vento, mas monstros imensos como as indústrias petroquímicas e o agronegócio. Consciente de que não há sustentabilidade no capitalismo, Alexandre denuncia a crise climática e afirma a urgência de uma mudança radical no modelo de produção, como única garantia de permanência da vida no planeta. Confira mais na entrevista a seguir.

Agora em novembro tivemos, paralelamente à COP20, em Lima, a Realização da Cúpula dos Povos por Mu-danças Climáticas, com ações no mundo todo. Qual a importância de se estabelecer uma agenda pública de base popular para debater as mudanças climáticas?

O contexto da organização popular no sentido de pres-sionar os governos por acordos climáticos me parece mui-to claro, necessário e urgente. Do ponto de vista científico, se trata de uma questão plenamente resolvida: em 1988 a ONU organizou um painel de especialistas, o IPCC (Pai-nel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), que reuniu especialistas de todo o mundo, elencando uma vasta literatura científica e fomentando pesquisas. Estes dados foram analisados conjuntamente e subsidiaram a elaboração de relatórios com o objetivo, desde o início, de responder às questões lançadas pela ONU nos anos 80: “A humanidade está afetando o clima? Em que sentido? Isto é perigoso?”.

As respostas hoje são absolutamente claras. Desde o terceiro relatório, de 2001, a conclusão inequívoca é que a humanidade é responsável por mudanças no clima, sendo o maior contribuinte para estas mudanças, em especial através da queima de combustíveis fósseis. A percepção que temos é de aquecimento global, ou seja, o planeta está se aquecendo em taxas inéditas, o que acarreta grandes riscos.

De que riscos estamos falando?Chegou-se à conclusão que o valor 350 partes por milhão

de CO2 na atmosfera acarretaria, em médio e longo prazo, o valor de aquecimento global de 1 grau Celsius, que é tido como o limiar seguro para os ecossistemas sem disparar processos acelerados de degradação de biomas e mudan-ças cada vez mais rápidas e catastróficas. Esse limite foi ultrapassado em 1988. Desde o ano de 2014, estamos fler-tando com 400 partes por milhão e daqui a um ano ou dois a média anual deve ultrapassar 400 partes por milhão. Se continuarmos mantendo a taxa de emissão de CO2 como está, rapidamente chegaremos a 450 partes por milhão,

Por Livino Neto

ENTREVISTA INCLUSIVA_ALEXANDRE COSTA

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ENTREVISTA INCLUSIVA_ALEXANDRE COSTA

na para concentrar e distribuir dinheiro para fazerem seus “investimentos”, as empresas petroquímicas e as minera-doras de carvão são o coração energético do capitalismo.

A humanidade tem apenas duas opções: ou para essa loucura, esse desvario, por bem, de forma pensada e con-trolada, ou vai parar por mal, que no limite seria a extin-ção da espécie humana. Nós temos, sim, o poder de trans-formar a Terra em um planeta inabitável, mas antes disso ela ficará inóspita; secas como as que estão acontecendo, ao mesmo tempo, no Sudeste e Nordeste do Brasil, na Chi-na, na Califórnia, na Austrália, são apenas o começo.

Qual o papel que o Brasil ocupa neste quadro e como o modelo de desenvolvimento econômico proposto para o país se relaciona com estes eventos?

O Brasil, historicamente, sempre foi um grande emissor do efeito estufa graças a uma peculiaridade: sua grande extensão e o avanço da fronteira agrícola. Os desmata-mentos, em todas as suas formas, colocaram o Brasil entre os principais emissores de CO2. Há 20 anos, três quartos das emissões estavam relacionados a isso, e o outro um quarto estava relacionado às fontes de emissões mais típicas de países mais desenvolvidos, como queima de combustível por transporte rodoviário, a geração de ener-gia por termoelétricas a carvão ou gás natural – o Brasil, até pouco tempo atrás, não tinha termoelétricas em sua matriz; a produção era através de hidroelétricas – e outros fatores como a produção de cimento.

Acontece que o Brasil, especialmente na última década e meia, mudou esta relação. A contribuição à emissão de gás por desmatamento é menos da metade. É ponto pací-fico que o desmatamento caiu, basicamente pela restrição de crédito, e isto fez com que o Brasil até aparecesse “bem na fita” no plano internacional. No que diz respeito às ne-gociações sobre as mudanças climáticas, o Lula disse “nós temos um plano de mudanças climáticas, “vamos reduzir as emissões de gazes do efeito estufa em 37%”. Mas ele foi esperto aí, pois já estavam previstas as medidas de conten-ção de crédito para os desmatadores e, de fato, as emissões caíram em algo muito próximo do que o Lula anunciou. Só que essa redução voluntária escondeu a crueldade de vá-rios processos: as emissões associadas à agricultura, como o crescimento do rebanho bovino, que fez com que a emis-são de metano pelo Brasil crescesse; as emissões de óxido nitroso, que se devem essencialmente à decomposição de fertilizantes nitrogenados – utilizados pela produção em massa do agronegócio – também cresceram. O agronegó-cio foi uma das fontes de emissão que avançaram.

Outra fonte foi a indústria automobilística, que dupli-ca a cada dez anos, exercendo uma pressão muito grande sobre as emissões brasileiras. Por último, mas não menos importante, a matriz energética; a composição da matriz energética brasileira tem mudado de forma muito clara: durante o governo FHC, quando aconteceu o episódio do apagão, uma das políticas adotadas foi um programa de incentivo às termoelétricas.

“As mudanças climáticas já estão trazendo

secas mais severas”

foto: Lua Alencar

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Este programa foi colocado em prática com financiamentos do BNDS, com subsídios, com garan-tia de pagamento da energia gera-da – as térmicas são muito caras, é um mito dizer que termoelétri-ca gera uma energia barata –, isso tudo feito sem computar os danos climáticos e ambientais. Na hora em que se coloca isso, em que se aplica as externalidades – para uma usar uma palavra palatável até aos ecocapitalistas – como me-canismos de mercado, as energias fósseis se tornam impossíveis de se-rem bancadas.

Com isso, o Brasil cresceu justa-mente naquelas emissões que são mais difíceis de se reduzir. Chega-mos até onde poderíamos cortar de emissões via desmatamento, até por-que, com a pressão do agronegócio, dos ruralistas, o código florestal foi desmontado e devemos fechar 2014 como o segundo ano consecutivo de retomada do crescimento do desma-tamento. As outras emissões devem crescer de forma ainda mais clara, o que tem relação com o modelo de desenvolvimento, no país como um todo. Isso o leitor da Vírus Planetário vai poder verificar em cada Estado.

No que o Brasil passou a apostar?Primeiro em produtos agrícolas

para exportação. Eu, sinceramente, sinto vergonha cada vez que a Dilma vai a público se orgulhar dos recor-des de exportação de soja e de carne bovina. É absurdo: além do desmata-mento, da emissão de gases do efeito estufa, o agronegócio consome 70 % da água doce disponível, sendo com-pletamente diferente das culturas tradicionais da agricultura familiar.

Outro ponto é que as termoelétri-cas continuam aí. O Brasil está apos-tando em exportação e produção de alumínio e aço, que demandam uma quantidade absurda de ener-gia e água; o paradigma do modelo energético brasileiro é aumentar bru-talmente a oferta para atender essa nova demanda. Essa catástrofe se articula com outras, por exemplo, a termoelétrica do complexo industrial do Pecém, no Ceará, foi construída em função da montagem de outras empresas do complexo, incluindo a siderúrgica. A termoelétrica terá que

funcionar a todo vapor para atender à demanda energética. Com isso ela deve consumir 993 litros de água a cada segundo; essa concessão foi dada a vários anos, mas, além dessa benesse, foi concedido há três anos, o desconto do preço da água bruta. Em vez dessa água ir para as tor-neiras de milhares de cearenses, ela vai alimentar uma grande empresa. Para se ter uma ideia, 993 litros de água a cada segundo significam 5 caminhões-pipa por minuto; só essa termoelétrica consome 70% do Açu-de Gavião em um ano. Mas, como o objetivo principal da termo é gerar energia para a siderúrgica, podemos somar os monstros: a siderúrgica, para cada tonelada de aço, vai reque-rer que se gaste 280 mil litros de água e se emita uma tonelada de CO2, que vai se somar à quantidade brutal de CO2 emitido pela termoelétrica. Isto significa uma política completamen-te fora da realidade, onde se rouba duplamente a água! Afinal, as mu-danças climáticas já estão trazendo secas mais severas.

De que forma a emissão de CO2 impacta nas secas que temos vi-venciados no Nordeste, São Paulo e Minas Gerais?

Uma atmosfera mais quente é ca-paz de conter mais vapor d´agua; sendo um reservatório maior, o que a atmosfera faz? Ela é uma espécie de reservatório que faz com que a água se recicle. A água evapora, vai para a atmosfera em forma de vapor, o va-por se condensa formando nuvens e as nuvens produzem chuva. Imagine que a atmosfera é um reservatório, um balde, que guarda a água que se evapora; quando você aquece a água, é como se trocasse um balde

pequeno por um grande. Com o balde pequeno, a água que evapora enche o balde logo; no período de seca, o tempo necessário para fazer a água evaporar é maior. Se o balde é grande a catástrofe é du-pla, primeiro porque você vai precisar de um período maior para encher o balde, ou seja, mais tempo de seca; segundo porque, tendo um reservatório de água maior, quando a chu-va vem, ela vem de uma vez. O

que estamos assistindo no Nordeste, que vai muito provavelmente para o seu quarto ano consecutivo de seca, não vai ser exceção, vai ser regra. O que se está vendo no Sudeste, em Minas Gerais, secando a nascente do São Francisco, não vai ser exceção, vai ser regra. A Amazônia tem alternado entre secas recordes e enchentes re-cordes, nunca mais esteve no normal. É sempre o clima dos extremos.

Qual a alternativa para reverter o atual quadro no país?

Nós precisamos ter uma política hídrica de acordo com o futuro que nos espera, além de precisarmos di-minuir as emissões para que o pro-blema não se agrave muito mais do que está hoje. Nós vamos precisar ter um uso correto da água: não dá para colocar entre 60 e 70% da água no agronegócio, 20 a 30% na indús-tria pesada e apenas 10% ser para o consumo humano; esses setores econômicos não podem continuar com esse uso perdulário da água doce.

Não há água para todos, precisa-mos garantir a água para quem real-mente precisa dela, não para quem transforma a água em mecanismo de lucro. Para termos água em nos-sas torneiras precisamos fechar a torneira desse pessoal; afinal, esta-mos enfrentando um duplo roubo de água: roubam água ao longo pra-zo e em grande escala ao emitir CO2, e roubam água ao usá-la diretamen-te nos processos industriais de ge-ração de energia. Precisamos atacar nas duas frentes e reverter comple-tamente o modelo de desenvolvi-mento que o Brasil, e praticamente a maioria dos países do mundo, têm optado por seguir.

“ Sinto vergonha cada vez que a Dilma vai a

público se orgulhar dos recordes de exportação

de soja e de carne bovina”

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meio ambiente

Enquanto o povo sofre com o racionamento velado,

megaempresas continuam lucrando e desperdiçando

água à vontade.

O fervor da última campanha eleitoral coincidiu com um dos períodos de seca mais intensos no Brasil. Enquanto a crise hídrica que vivemos é discutida e refletida, na maioria das vezes, apenas pela questão

da falta de chuva, a Vírus Planetário buscou olhar de forma me-nos superficial para o assunto.

Enquanto a sociedade civil abre as torneiras em vão, grandes empresas mineradoras têm preferência na utilização da água. Em São Paulo a falta de responsabilidade com a gestão da água é apontada por especialistas. Se os debates no contexto eleitoral e a crise hídrica têm algo em comum, certamente a semelhança se encontra no fato de os problemas não serem discutidos efetivamente em suas raízes.

Não adianta culpar São Pedro ou a população,

CRISE HÍDRICAÉ POLÍTICA!

Por Laura Ralola e Lu Sudré

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Represa Jaguari-Jacarei, que compõe o sistema Cantareira em julho/2014. À direita, as bombas que captam o volume morto

Foto: Vagner Campos/ A2 FOTOGRAFIA

Em meados de setembro, com a seca do Sistema Cantareira se pro-longando, os paulistanos das regiões periféricas da cidade de São Paulo se depararam com a falta de água na torneira. Ao mesmo tempo, em plena campanha para governo do Estado, o próprio governador Geral-do Alckmin (PSDB) negou a possibi-lidade de um futuro racionamento. Contraditoriamente, enquanto as torneiras secam, o fim do abasteci-mento para a região metropolitana da cidade é datado pelos jornais.

Ao contrário do imaginário cons-truído e divulgado pela mídia, cul-pabilizar a crise hídrica pela falta de chuva é reduzir e superficializar um problema estrutural relacionado a gestão do sistema de abaste-cimento de água pelo go-verno e pela Sabesp no

“ O governo é responsável pelo desperdício de

quase metade da água dos reservatórios”

estado de São Paulo. Segundo da-dos fornecidos pela Sabesp, no final de outubro o Sistema Cantareira operava com apenas 7,7% de sua capacidade. A primeira reserva téc-nica, o proclamado volume morto, já está sendo usado desde maio. O conjunto de reservatórios do Can-tareira fornece água para parte do interior do estado, além de oito mi-lhões de casas, ou seja, um terço da população da Grande São Paulo (6,5 milhões de pessoas). A total au-sência de investimentos em novos mananciais acentua a crise.

O racionamento apresenta-se como a solução técnica e emergen-cial mais adequada mas é inegável que há um recorte de classe na

distribuição de água ou na falta dela. A elite paulista não pas-

sa por nenhum raciona-mento velado. De acordo com Décio Semensatto, eco-

logista e professor de Ciências Am-bientais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), desde seu iní-cio a gerência da crise pelo governo tem sido predominantemente polí-tica, com a finalidade de controlar os impactos da crise no resultado das últimas eleições para Governo do Estado. “O governo não faz sua parte ao não investir no sistema de distribuição de água tratada. Cerca de 40% da água captada nos reser-vatórios é perdida até chegar à tor-neira do usuário. Significa, portanto, que o governo é responsável direto pelo desperdício de quase metade da água que estava nos reservató-rios”, aponta Semensatto.

Para o ecologista, o governo erra ao divulgar na mídia que a popula-ção é responsável por parte do des-perdício, jogando a responsabilidade para a falta de conscientização, além de culpabilizar São Pedro pela falta de chuva.

SÃO PAULO CULPA SÃO PEDRO

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Dessa forma as soluções técnicas em andamento como o uso do volume morto e o racionamento não assumido abordam apenas metade do problema, enquanto a responsabilidade dos gestores públicos é neglicenciada e obras “invisíveis” para a população não são realizadas. Semensatto refor-ça que a crise tem sido tratada apenas como um problema de abastecimento, quando também é um problema ecológico. A perda da cobertura florestal da bacia hidrográfica do Cantareira, por exemplo, é um fator que interfere na seca. Os reser-vatórios são ecossistemas aquáticos e a seca associada à superexploração da água gera impactos por todos os ecossistemas conectados ao reservatório, que por sua vez reverberam em muitos outros elementos, incluindo riscos à saúde pública. “Tudo está conectado em uma teia de interações e o impacto em um nó dessa teia propaga para todos os outros conectados. É exatamente essa a visão que os gestores deveriam assumir para lidar com a crise satisfatoriamente”.

Com a justificativa de arrecadar dinheiro para inves-tir nos sistemas de captação, tratamento de esgotos e abastecimento, a Sabesp abriu seu capital ao mercado, tornando-se uma empresa de capital misto, o que na prática a fez perder seu caráter público. Para quem vai e onde são aplicados o lucro da instituição? Ao atrelar-se a interesses privados nacionais e a acionistas estran-geiros, a água é esquecida enquanto bem comum e se estabelece como mercadoria. A crise não é só devido a estiagem e ao desperdício. Seus fatores só não são debatidos publicamente por responsabilizar aqueles que devem ser responsabilizados e envolver interesses eco-nômicos e políticos.

Carlos Drummond de Andrade eternizou em seus poemas a dor diante à mineração de ferro em sua terra natal, Itabira – MG. “Esta manhã acordo e não a encontro. Britada em bilhões de lascas des-lizando em correia transportadora, entupindo 150 vagões no trem-monstro de cinco locomotivas – o trem maior do mundo, tomem

nota – foge mina serra vai, deixando no meu corpo e na paisagem mísero pó de ferro, e este não passa” (a mon-tanha pulverizada).

O poeta viu a casa onde passou parte da infância alagada por uma barragem construída para lavar o mi-nério e as serras que rodeavam a região sumirem grada-tivamente. Hoje Itabira se encontra tomada de minas a céu aberto. Realidade também em outras tantas cidades mineiras. De acordo com o recolhimento da Compen-sação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais, Minas Gerais no ano de 2012 foi responsável por 53,2% da produção nacional de minério de ferro. Segundo Gustavo Gazzinelli, jornalista, ambientalista e conselheiro do Con-selho Estadual de Recursos Hídricos (MG), a mineração de ferro é a principal atividade mineradora do Brasil.

De acordo com Gazzinelli, a jazida de minério de ferro é uma área de grande acumulação de água em vista da condição fraturada e porosa do corpo mineral e as águas que nascem nessas jazidas são normalmente de alto grau de pureza e transparência. “A permanência de água no in-terior das jazidas de minério de ferro é condicionada pelos interstícios delas, isto é, pelo próprio minério, que após milhões de anos de lixiviação, contêm pouco sedimentos ou materiais misturados ao minério” explica Gazzinelli.

meio ambiente

“ O impacto da mineração está

deixando córregos inutilizáveis”

Protesto pela falta de água em frente a sede da Sabesp em Novembro/2014. Cerca de 400 pessoas participaram do ato em frente a sede da Sabesp, na rua do Sumidouro, no bairro de Pinheiros, zona oeste de São Paulo. | Foto: Oswaldo Corneti/ Fotos Públicas

O MAIOR MINERODUTO DO MUNDO LEVA NOSSA TERRA E NOSSA ÁGUA

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As águas no interior das jazidas são bombeadas no processo da mineração: “produz-se assim o re-baixamento do lençol superior (fre-ático) do arquífero, isto é, do nível de água do arquífero. As nascentes próximas (que se alimentam destas águas subterraneas) e situadas aci-ma do nível rebaixado do arquífero, consequentemente secarão” conta Gustavo Gazzinelli. Ainda de acordo com o ambientalista, para alcançar a jazida de minério de ferro, tudo o que estiver entre ela e a superfície do solo será implodido.

‘O trem maior do mundo’ de Drummond trafega pela Estrada de Ferro Minas - Vitória (ES), onde a serra britada chega ao porto e é lan-çada no mundo. “O maior trem do mundo/ Leva a minha terra/ Para a Alemanha/ Leva a minha terra/ Para o Canadá/ Leva minha terra/ Para o Japão” (O maior trem do mundo – Drummond publicado em 1984 no jornal “O cometa itabirano”). O Brasil é hoje o segundo maior exportador de minério de ferro do mundo e, de acordo com Gazzinelli, 80% da pro-dução brasileira se destina a outros países.

Dos tempos de Drummond para os dias de hoje montanhas, nascen-tes, rios e a vida de muita gente foram violados e afetados pela ati-vidade mineradora. Ampliaram as empresas assim como suas tecno-logias de extração e transporte do minério de ferro. ‘O maior trem do mundo’ não é, agora, o único respon-sável pelo transporte do minério até os portos. Os minerodutos são uma outra saída desenvolvida: através da pressão exercida pela gravidade e por quantidade abundante de água o minério de ferro viaja por tubos e canos até o porto. Para Gazzinelli “o maior impacto do mineroduto é a retirada da água do lugar de origem. É normalmente água de alta quali-dade que deixará de poder ser usu-fruída pelo lugar e pelas perspectivas do lugar para receber outros tipos de empreendimentos econômicos. E é um absurdo do ponto de vista da

época que atravessamos, de falta de água e crise climática.” O minerodu-to implica num investimento inicial menor do que o capital inicial em-pregado numa ferrovia.

Atualmente a Samarco Mine-ração opera minerodutos com 398 quilômetros de extensão, ligando a histórica Mariana – MG a Anchieta, no Espírito Santo. A Vale/SA opera com três dutos de pequeno porte, um deles, de 13 quilômetros, tam-bém em Mariana- MG. Na cidade de Mariana é recorrente o problema de falta d’água, segundo relatos de estudantes da Universidade Fede-ral de Ouro Preto (UFOP) é comum faltar água nas torneiras das casas. Luiz Paulo Guimarães, militante do Movimento dos Atingidos Frente a Mineração e pesquisador na Univer-sidade Federal de Viçosa, conta que além dos minerodutos já construí-dos existem mais quatro em trami-tação: dois da Ferrous ligando Con-gonhas- MG ao Espírito Santo, um da SAM ligando Grão Mogol (MG) a Ilhéus (BA) e um da Manabi ligando Morro do Pilar (MG) ao estado do Espírito Santo. A Manabi conseguiu, no dia 06 de novembro, a licença prévia para operar a mina do Morro do Pillar. De acordo com Luiz Paulo Guimarães “a reunião que concedeu a licença prévia à Manabi foi marca-da por conflitos e até agressão física a uma pesquisadora.”

Se ‘o maior trem do mundo’ per-tence a Vale/SA, o maior minerodu-to do mundo - e aqui não é poe-sia - pertence a multinacional Anglo American e está pronto para iniciar suas atividades. O projeto Minas-Rio consiste em 525 quilômetros de mineroduto ligando Conceição do Mato Dentro – MG a São João da Barra – RJ no Complexo Portuário do Açu. Gustavo Gazzinelli conta que “o mineroduto da Anglo American leva água suficiente para abastecer uma cidade de 250 mil habitantes” e “na região de Conceição do Mato Den-tro está faltando água nos municí-pios e o impacto da mineração está deixando alguns córregos, tradicio-

nalmente utilizados pela população, inutilizáveis”. A licença para operação da mina em Conceição do Mato Dentro foi concedida no último dia 29 de setembro, momento em que o país enfrenta uma das maiores secas já vistas. De acordo com Luiz Paulo Guimarães o mineroduto Mi-nas-Rio gastará 2,5 milhões de litros de água por hora

Na construção do maior minero-duto do mundo foram 36 cidades afetadas e 950 mil pessoas atingi-das segundo reportagem especial do jornal mineiro O Tempo. Segun-do a nota das Brigadas Populares “em tempos de crise das águas é criminosa a aprovação de mais mi-neração e mais mineroduto”. Ainda de acordo com a nota da organiza-ção, em Minas a bacia do rio São Francisco tem a menor vazão dos últimos 83 anos e no vale do Rio Doce ocorre a pior seca dos últimos 70 anos. Enquanto a população está sem água nas pias assistimos a uma grande campanha para que a sociedade civil economize o precio-so líquido. Para o pesquisador Luiz Paulo Guimarães “a situação de fal-ta d’água em Minas Gerais está ca-lamitosa. De acordo com a Defesa Civil do Estado mais de 160 municí-pios estão em estado de emergên-cia devido ao desabastecimento”.

A Copasa (Companhia de Sa-neamento de MG) está com uma propaganda na TV incentivando o racionamento. Esta empresa é sem-pre chamada a dar pareceres sobre os impactos dos minerodutos ou atividades de mineração sobre áre-as relevantes para o abastecimento público, e diz que não tem proble-ma. Enquanto isso, as mineradoras não economizam energia para bom-bear água do subsolo e gastá-la a bel-prazer. Para Gazzinelli “Minas Gerais está deixando de ser caixa d’água do Leste do Brasil devido à gestão irresponsável de governos, que licenciam mais do que pode-mos comportar e dão outorgas a rodo para empreendimentos que levam nossas águas”.

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A partir de uma conjuntura

política complexa e multifacetada,

tragédias se sobrepõe e colocam a discussão do humor e do terror

na pauta do dia da sociedade

Sete de janeiro de 2015. Acordo e entro nas redes sociais e, por todas as partes, se fala do assassinato de integrantes do jornal francês Charlie Hebdo. Ainda era início do meu expediente na redação da Vírus Planetário. Poucas notícias em português. Muitos comentários

no twitter, a rede social que sempre está à frente de qualquer imprensa. Era um momento de choque, onde os fatos falavam mais alto que qualquer proble-matização. Eles eram jornalistas, chargistas, humoristas. Faziam humor político, como nós, da Vírus. E estavam mortos, assassinados por pessoas que defendem e querem impor aos outros uma determinada forma de ver o mundo. Sem mui-tas dúvidas e tomada pelo calor dos fatos, eu também fui Charlie. E passei o dia pensando como seria se o mesmo estivesse acontecido aqui, na nossa redação.

Passados alguns dias do fato, muitas coisas ocorreram. Entre elas, a execução sumária das pessoas identificadas como autoras do crime pela polícia francesa, sem direito a julgamento. Sem direito a direitos. E outra coisa foi o crescimento de uma disputa ideológica complexa entre quem defende e quem não defende o trabalho do Charlie Hebdo, tanto à esquerda quanto à direita do espectro político.

internacional

eis a questão.Por Bruna Barlach

SER OU NÃO SER CHARLIE,

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“Charlie Hebdo nunca teria exis-tido no Brasil” – afirma a cartunis-ta Laerte em entrevista ao blog de Morris Kachani. Pensar no jornal a partir desta perspectiva é muito im-portante, pois ele é fruto de uma sociedade que é, em muitos aspec-tos, diferente da nossa.

Sua origem intelectual vem de um grupo de militantes de esquer-da, chargistas, que participaram dos protestos catárticos de maio de 68 na França. Além de serem parte e fruto de um momento histórico muito específico, o fato do Charlie ter nascido na França não é ocasio-nal: este jornal satírico é fruto de uma cultura crítica e com histórico de questionamento social.

Os desenhos são de traços qua-se infantis e as piadas que flutuam entre o riso fácil e o mau gosto completo - algumas inclusive re-produzindo, inconscientemente, o machismo e homofobia que estão introjetados em qualquer homem hétero (por exemplo: para, louvavel-mente criticarem líderes de direita e afins, os chargistas os desenhavam de quatro com o ânus aparecendo. Essa posição não deveria ser sinôni-mo de ridículo, uma vez que é como fonte de prazer para milhões de pessoas, e não há nada de conde-nável nisso). Ao olharmos para esse humor ilustrado, estamos olhando para a história da charge como arte e como forma de comunicação na França (‘charge’ em francês significa carga, ganhou esse nome justamen-te pelo fato de os desenhos serem carregados de crítica e de exagero ao retratar questões sócio-políti-cas), que vem desde a Idade Média, apesar de o nome “charge” ter sido usado pela primeira vez apenas no século XIX.

Desde seu surgimento, além de misturar crítica ao Estado e a reali-dade política com jornalismo inves-tigativo e de opinião, o Charlie sem-pre teve uma militância engajada anticlerical. Como ateus militantes, piadas com padres, freiras, bispos,

papas, rabinos e também, mais re-centemente, imãs e mulás (clérigos do islamismo). As críticas a estas figuras religiosas sempre buscaram expôr as contradições das religiões entre o que elas pregam e o que elas praticam, além de trazê-las como uma das fontes de alienação, o que seria absolutamente espera-do de uma publicação que mistura marxistas, anarquistas e outros se-tores da esquerda. Afinal, é célebre a formulação de Marx na “Crítica da filosofia do direito de Hegel”: “A religião é o suspiro da criatura opri-mida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. A religião é o ópio do povo.” (1843)

Leigh Phillips em artigo escrito para o site canadense Ricochet, explica bem a particularidade do humor francês: “(...)o estilo de hu-mor gouaille – um humor corrosi-vo picante, impertinente, insolente e, muitas vezes, obsceno – é par-te de uma tradição parisiense que encontra suas origens na época da Revolução Francesa e que Arthur

Goldhammer explica bem: ‘É uma forma populista e anárquica de obs-cenidade que visa atacar qualquer coisa que possa erguer-se como ve-nerável, sagrada ou poderosa’”.

Entender o quadro política da França e da Europa como um todo é fundamental para que possamos fazer uma leitura dos acontecimen-tos, seus predecessores e os desdo-bramentos possíveis.

Gregorio Duvivier, em sua coluna, aponta um dos centros deste de-bate, onde “muitos condenaram as charges como sendo islamofóbicas e lembraram que os imigrantes islâ-micos já sofrem preconceito demais na França.” No entanto, ele aponta para um ponto importante sobre o humor construído pelos membros do Charlie, no qual “[os] imigrantes não eram os alvos, definitivamente, do humor de cartunistas assassina-dos. O embate não era entre fran-ceses e não franceses, mas entre humor e fanatismo.”

AFINAL, QUEM É CHARLIE HEBDO?

FASCISMO E XENOFOBIA

Capa de 9 de novembro de 2011 edição após o ataque à redação do Charlie Hebdo que incendiou todo o local. Em francês, lê-se na manchete acima do beijo entre um cartunista do

Charlie e um muçulmano: “O amor é mais forte do que o ódio”

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Quando olhamos para o quadro do avanço da direita e extrema-direita na França, de partidos e organizações de aspiração nazista e outras aberrações políticas, o que mais se aproxima com esse furor de direita? As charges e o humor do jornal francês ou a ação do grupo que promoveu o assassinato dos chargistas?

Em diferentes níveis de compreensão, a violência de grupos extremistas - que não é religiosa, mas usa a re-ligião como discursos de sustentação - é uma violência alinhada com a mais extrema direita. Ainda mais quando analisamos as características da Al Qaeda (do Iêmen), organização que reivindicou a autoria do atentado.

É claro que a realidade é mais complexa do que um simples jogo de bandidos e mocinhos e há diversas ca-madas de compreensão da realidade política, social e econômica do mundo para se entender de fato o que tem fortalecido a direita, seja a direita econômica ou a religiosa. Como coloca a cartunista Laerte, “houve um ataque à liberdade de expressão, mas não é este o objetivo estratégico. Por que não atacam a direita anti-islâmica? Porque não interessa. Querem criar uma

confusão que visa comprometer todo o sistema.” Para Laerte, “o que

os terroristas querem é mo-

vimentar a opinião massiva. Eles sabem que o senti-mento xenófobo vai se exacerbar, e isso pode gerar políticas militaristas de intervenção no Oriente Médio – isso tudo interessa ao Estado Islâmico, um grupo que não está ligado à ideia de construir um Estado, está ligado em construir guerra.”

Ainda assim, é importante atentarmos para o fato de que o maior alvo político do Charlie Hebdo não eram os muçulmanos e nem o islamismo e sim a extrema-direita, alinhada à figura de Marnie le Pen e seu partido, a Frente Nacional (partido islamofóbico e xenofóbico de-claradamente contra os imigrantes). Ou seja, Charlie e os muçulmanos tinham um inimigo em comum.

Da mesma forma, charges que têm sido usadas por certos setores desavisados para apontar o racismo da publicação foram desenhadas exatamente com a moti-vação oposta: são ridicularizações do racismo da direita local.

A discussão sobre os limites do humor não é nova. De fato, o desafio de entender o humor, como ele fun-ciona e a que ele serve tem prendido a atenção de teóricos de diversas áreas, principalmente da filosofia

internacional

“ Rir de quem está por baixo é covarde, rir

de quem está por cima é corajoso. Deve-se rir do opressor, e não do oprimido” aponta o humorista Gregorio Duvivier

hipocrisia_líderes mundias que notadamente reprimem jornalistas e atacam a liberdade de expressão (isso pra não falar de massacres de povos outros países, como israel e eua) marcham em “defesa da liberdade de expressão”.

Saiba mais aqui - www.tinyurl.com/hipocrisiacharlie

“ Houve um ataque à liberdade de

expressão, mas não é este o objetivo

estratégico. Por que não atacam a direita

anti-islâmica? Porque não interessa.” Afirma

a cartunista Laerte Coutinho

HUMOR PRA QUÊ?

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Page 21: Edição 35 (Completa)

da arte. Historicamente, o humor foi usado para, através do riso, sub-verter a ordem e questionar figuras de poder. Se hoje, no Brasil, vemos a grande maioria dos humoristas, como Danilo Gentili e afins, não fa-zendo nada além de rir de quem já está por baixo no sistema de opres-são e exploração, é porque a classe dominante e sua ideologia tomaram para si o humor.

O que não quer dizer que não exista resistência. Como bem co-loca em sua reflexão o humorista Gregorio Duvivier, “A questão por trás disso tudo é a mesma de sem-pre: existe limite para o humor? A questão é complexa, mas a melhor resposta parece ser a seguinte: o li-mite está no objeto do riso. Rir de quem está por baixo é covarde, rir de quem está por cima é corajoso. Deve-se rir do opressor, e não do oprimido.”

Um debate muito importante tem sido travado desde a tragédia do jornal francês: contra quem de-vemos fazer humor, ou seja, quem deve ser “atacado” pelo humor polí-tico de esquerda.

O que parece ser um debate de respostas simples, facilmente mostra sua complexidade quando entramos em ramos da sociedade que estão de certa forma protegi-dos por uma série de convenções como a religião.

Devemos, a todo custo, de-fender a liberdade. A liberdade de expressão, a liberdade de culto e todas as liberdades individuais e coletivas para a construção de uma socieda-de mais democrática. Nós, que defendemos o socialismo liber-tário, temos a liberdade maior como nossa bandeira. Mas não devemos deixar de criticar o que é dito, feito, acreditado e professado só por crer na li-berdade. Tudo que permeia a sociedade é passível de crítica e deve ser criticado. Não se constrói liberdade e igualdade com menos crítica e sim com mais crítica e mais qualidade nas críticas.

Todas as instituições são passíveis de críticas, e as re-ligiões, como instituições de normatização da vida humana também estão nesse barco. Criticar as religiões, seus cre-dos, suas estruturas de poder não quer dizer criticar os seus fiéis. O humor – e a crítica – de qualidade questiona poderes. Quem critica e satiriza pessoas são os humoristas, publicações e o pensamento de direita, que busca manter as coisas como estão rebaixando quem já está embaixo e desempoderando as pessoas individualmente e co-letivamente.

Leia, na página a seguir, na seção “fazendo media”, o artigo

sobre a diferença de tratamento entre mortos brancos e europeus

e negros e africanos

A professora de teatro, Sarah Ghuraba foi vítima de ódio islamofóbico em São Paulo no dia 14 de janeiro. Conforme conta

em seu relato, quando passava por um terreno baldio, um homem gritou “MUÇULMANA MALDITA” e atirou com força a pedra (foto)

que acabou atingindo a perna de Sarah.

ilustração: Rafael Balbueno

ilustração: Tiago Silva Vírus Planetário - janeiro/fevereiro 2015 21

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Janeiro de 2015 | Ano 12 | Número 118 | www.fazendomedia.com | [email protected]

MEDIAFAZEN

DO

a média que a mídia faz

A mídia soube ignorar bem um recente ataque aéreo feito covardemente pelos Estados Uni-dos, mesmo país que convocou para o dia 18 de fevereiro de 2015 uma reunião internacional

para combater o terrorismo. Segundo a página The Anti Media, na madrugada do dia 28 de dezembro de 2014, os americanos bombardearam a Síria assassinando cerca de 50 civis. O ataque sequer consta no diário oficial da Casa Branca. Quais interesses estão por trás da não divulga-ção dessa informação?

A Nigéria sofre atualmente o maior atentado à vida de toda a sua história, em que foram assassinadas mais de 2000 pessoas em apenas cinco dias. Vilas inteiras foram dizimadas e as piores atrocidades foram cometidas pelo grupo extremista Boko Haram, que significa “educação ocidental é um pecado”. Apenas no dia 9 de janeiro que

a mídia se manifestou sobre o assunto, dois dias após o atentado contra o jornal Charlie Hebdo. Será que o assunto só começou a escalar internacionalmente por conta do atendado de Paris? A vida de africanos vale menos que a de europeus?

Talvez tenhamos feito a pergunta errada. Será que a vida de negros vale menos do que a de brancos? Aqui no Brasil parece que sim. Uma pesquisa publicada em dezembro pela Anistia Internacional denuncia um dado alarmante. Apenas em 2012, 30 mil pessoas foram as-sassinadas no país. Deste montante, 77% eram negros. Resumindo, a cada hora um negro perde a vida no Brasil. Outros pesquisadores acreditam que o número de as-sassinatos possa ser o dobro: 60 mil anuais. Ou seja, o genocídio brasileiro supera em muito as principais zonas de guerra correntes no planeta. Raça e condição social

NIGÉRIA = FRANÇA?

Por que para a mídia hegemônica mortes de pessoas brancasvalem mais do que de pessoas negras?

Por André Camilo

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são levadas em conta antes de matar, mas a grande mídia parece dar mais importância a outros assuntos.

Vários líderes mundiais que marcharam junto a um milhão de pessoas pelas ruas de Paris em defesa da liberdade de ex-pressão não a defendem com o mesmo fervor em seus paí-ses. Dentre os casos absurdos, um deles foi o do embaixador da Arábia Saudita, que dois dias antes da marcha teve em seu país a condenação do bloguei-ro Raif Badawi. A pena: cumprir dez anos de prisão e receber mil chibatadas em praça pú-blica por insultar o islã. Outro importante representante da censura na marcha foi o pri-meiro ministro britânico, David Cameron, já que o Reino Unido ordenou a destruição de docu-mentos de relevância pública vazados por Edward Snowden e ainda ameaçou processar o jornal The Guardian caso não cumprisse a determinação.

Qual o real objetivo de lí-deres globais caminharem juntos em uma marcha pela liberdade de expressão, levan-do em consideração que eles são representantes de esta-dos claramente autoritários, responsáveis por censurar e reprimir com violência mani-festações pacíficas por temas legítimos? Quais são os inte-resses desses homens de ne-gócio que assassinam milhões com uma caneta que assina? Essa é a pulga que tem que ficar atrás da sua orelha. Acre-dite, houve um legado positi-vo deixado após o atentado ao jornal Charlie Hebdo: a luta contra o simbolismo hipócrita que segrega.

IndicaçõesEl Efecto - A Cantiga é uma arma

A banda El Efecto acaba de lançar novo

álbum “A cantiga é uma arma”, só com versões

acústicas. Cheio de influências, o El Efecto mos-

tra que absorveu elementos da música euro-

peia na versão para a balada portuguesa “Trova

do Vento que Passa” onde o flamenco aparece

em evidência. “Ciranda” tem participação da

cantora Daíra Sabóia em uma versão arrepian-

te. “Os Assaltimbancos” ganha uma versão que

lembra ainda mais o musical italiano adapta-

do por Chico Buarque. Ainda estão no trabalho

“Pedras e Sonhos”, “Santos Dumont” e a inédita

“Retrato Fadado”.

Diário em Progresso - Alex Frechette

Alex Frechette constrói uma narrativa política-pessoal através

da sua vivência nos movimentos que se ergueram desde as

jornadas de junho de 2013 até meados de 2014. Assim como

os movimentos não se findaram, a narrativa está aberta para

a continuidade e para novas leituras e por isso seu nome,

“Diário em Progresso”.

Recomendado para quem viveu e para quem não viveu este

momento político ímpar no Rio de Janeiro e no Brasil.

ingerir em caso de marasmo

ingerir em caso de repetição cultural

ingerir em caso de alienação

POSOLOGIA

manter fora do alcance das crianças

nocivo, ingerir apenas com acompanhamento médico

extremamente nocivo, não ingerir nem com prescrição médica

ContraindicaçõesQuando você acha que colunistas de direita não podem piorar...

No mês de janeiro fomos brindados com uma coluna absurda, ab-surda até mesmo para os padrões do site do jornal O Globo, onde foi publicada. Silvia Pilz transbordou qualquer limite do bom senso ao escrever um texto tripudiando em cima das doenças e hábitos das pessoas pobres. A repercussão foi tanta que ela se “retratou” di-zendo que era piada... Hildegard Angel quando defendeu cobrança nas praias cariocas (ou diminuição do fluxo de ônibus) também não aguentou o tranco que sua opinião absurda, classista e racista cau-sou e deletou seu texto. Pra fechar as indicações de distância, Emir Sader (este, supostamente de esquerda) soltou no twitter uma pérola machista da pior qualidade. Na dúvida, é colunista, é jornalista, é “formador de opinião” e é de direita, não leia.

Bula cultural algumas recomendações médico-artísticas

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Bula cultural algumas recomendações médico-artísticas

Confira entrevista com Alexandre Vilas Boas e André Okuma, dois dos organizadores do evento:

Como surgiu a ideia de fazer uma bienal indepen-dente?

André: No ano de 2012, de acordo com o calendário cul-tural da cidade de Guarulhos, deveria ter sido publicado o edital de inscrição de artistas e obras para o “Salão Na-cional de Artes Visuais de Guarulhos - Arte Moderna e Contemporânea”, que teria naquele ano a sua 12ª edição. Depois de muitos questionamentos por parte dos artis-tas visuais locais, a Secretaria Municipal de Cultura de Guarulhos publicou uma pequena nota oficializando o cancelamento do Salão sem muitas explicações. Como resposta, no dia 8 de dezembro daquele ano, foi realizado

em um pequeno bar localizado próximo a região central da cidade a 1ª Bienal Internacional de Guarulhos do pe-queno formato, abreviada como “BIG”. A ironia contida no nome não é um detalhe ao acaso. É proposital. Somos grandes, internacionais e estamos quase completamente à deriva. Sem condições materiais e estrutura de apoio.

Normalmente, em bienais e outras mostras de arte, os trabalhos são escolhidos por uma equipe de curado-res. Vocês, por outro lado, aceitam todos os trabalhos que são enviados. Qual o propósito desta postura? É uma postura política?

Em dezembro de 2014, aconteceu em Guarulhos a segunda edição da Bienal Internacional do Pequeno Formato, a BIG. Indomáveis, seus idealizadores buscam sempre novas formas de fazer e

viver arte, mantendo-se livres das amarras do capital e preservando, assim, a autenticidade de seu projeto e a extraordinária força que une ideais de artistas oriundos de diferentes lugares do mundo. Dessa vez, o objetivo foi agregar todas as linguagens da arte - teatro, performance, música, dança,

vídeo, poesia etc., além de oficinas, debates, articulando espaços e artistas locais e de fora.

bienal internacional de guarulhos

Por Ana Carolina Gomes

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Alexandre: Aceitamos porque a ideia de Bienal é uma grande boba-gem. Não temos a pretensão de ser uma estrutura agigantada e acéfa-la. O nome nasce de uma ironia. A “BIG” é grande porque nossa cidade é grande, mas vive com um pensa-mento de cultura provinciano. Pre-fere dar voz e vez a quem vem de fora. Fizemos a BIG como uma alter-nativa. Para mostrar que é possível fazer algo sem a grana absurda que é usada em eventos questionáveis como os que a cultura oficial local faz. Populismo, artistas globais, jun-ta muita gente e angariam votos. Não somos políticos neste sentido. Mas, se entendermos o político como o fato de resistir a uma ótica capita-lista, neoliberal, sim, somos. Nossos projetos são colaborativos: ativismo sem estetização. Juntando pessoas, promovendo interações, construin-do e ressignificando; promovendo trocas, inclusive de contatos inter-nacionais com Guarulhos. Por isto não temos curador. Os Neoliberais ressignificaram o sentido da palavra e a usam para dar crédito e criar gri-fes dentro da arte. Existe, é verdade, alguns muito sérios. Mas não aqui,

nesta cidade. O nosso evento é livre desta besteira, no mais puro exercí-cio libertário, que guiou os artistas conceituais dos anos 70, os artistas de arte postal. Enfim, somos a antí-tese da cultura oficial!

Como vocês enxergam a influên-cia do mercado na arte e o quanto o mercado prejudica a produção ar-tística contemporânea? Pra vocês é importante discutir o capitalismo e a sua relação com a arte?

André: O mercado exerce uma profunda influência na arte. É o que denominamos como sistema de ar-tes, um sistema em que o mercado se rege pela relação entre curadores, galeristas, gestores de instituições de arte, críticos de arte e colecionado-res, em que o artista é só uma peça deste sistema e a relevância de suas obras depende mais da articulação dos atores deste sistema do que o talento do artista. O mercado finan-ceiro têm participado e interferido nisso ativamente, pois a rarificação e consequente valorização da obra de arte torna-se um ótimo mecanismo para acu-mulação de capital sob

o viés de um “produto” de luxo. E é claro que isso inevitavelmente pre-judica uma produção e circulação de arte mais heterogênea e democráti-ca, neste contexto, e a produção de artistas iniciantes e localizados em regiões periféricas ao eixo do siste-ma de artes (que consiste ao centro expandido da capital paulista, como a região da [Avenida] Paulista e a Vila Madalena) dificilmente conse-gue produzir, quanto mais difundir seu trabalho, tornando a produção artística contemporânea dentro das instituições de arte, tanto públicas quanto privadas, um espaço exclu-dente e elitista sob o discurso da arte para todos. É fundamental que a arte contemporânea - a que se propõe a discutir a sociedade e não ser refém deste sistema - debata a questão do capitalismo, tanto em seu discurso quanto em sua produção estética, pois a arte é antes de tudo feita para questionar e provocar o status quo, inclusive de sua própria condição, e não para enfeitar paredes de casas luxuosas.

À esquerda, Karina Manfredi, do coletivo Coisarada realiza performance “Ofélia: mulher, histérica e suicida”, um experimento cênico sobre a condição da mulher na contemporaneidade.

Banda “Gregos e Baianos” se apresenta na Casa Clam

“ somos a antítese da cultura oficial!”

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Bula cultural algumas recomendações médico-artísticas

Já passa das seis da tar-de. Entre tantos e outros naquele espaço, sem ter o que comer, mas com a

fome desperta, a saída é se organi-zar. “Ei Cibelle, vamos manguear pra descolar esse rango?” Dhiel arrisca a chamada. “Vambora”, Cibelle se coloca e lá vão elxs manguear pela comida da noite. Enquanto isso, as outras figuras guarnecem o prédio que agora é referência para o movi-mento punk e libertário da cidade.’

RESISTÊNCIA E CULTURA NA SELVA DE PEDRAS

Firmeza nos princípios e flexibilidade nas táticas

vivenciadas em ocupação urbana em Teresina

Com a intenção de buscar um lugar para desenvolver atividades e expressar a cultura libertária, desde o final de agosto de 2014, mulhe-res e homens do movimento punk ocupam um espaço na zona leste de Teresina (PI). O prédio ocupado é sede da Fundação Nacional de Hu-mor do Piauí e está localizado na praça Ocílio Lago, numa região ‘no-bre’ da cidade.

Antes da ocupação se encontra-vam na praça do Fripisa, centro da

cidade, pra planejar ações, distribuir zines, debater sobre as ideologias, etc. Um espaço de referência era uma necessidade. Entre algumas andanças e outrxs, eles ocupavam construções abandonadas, mas não se fixavam muito tempo no lu-gar, seja por conta da própria von-tade delxs, como por algum fator externo.

“A gente antes vez ou outra ocu-pava um prédio abandonado aqui perto, mas depois que aconteceu um assassinato de uma moradora de rua, achamos por bem sair de lá. A gente pode não ter nada a ver com a coisa, mas na hora que as pessoas olham pra gente, já vão cri-minalizando, por conta das roupas, do jeito de ser e de falar.” É o que conta um dos punks, Apolinário Va-reta.

Ele foi um dxs que começou a sondar a sede do prédio da Funda-ção Nacional de Humor, que passou

movimento punk de teresina:

Por André Café

Capa de Zine punk de Teresina (PI)

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meses abandonada. Quando estavam começando a se organizar, uma nova gestão assumiu a Fundação, com o intento de revitalizar o pré-dio e movimentar a cena cultural de Teresina. Pode-ria ter sido um golpe duro para fraquejar as intenções dxs punks, mas elxs se or-ganizaram e apresentaram o projeto de uma biblioteca popular.

“A ideia era essa. Havia a vontade de colar lá no prédio e aí a gente ficou sabendo do lance da fundação voltar a funcionar. A gente então apresentou um projeto de construir e manter uma bi-blioteca, que era um lance que a gente queria faz tem-po. Fomos lá, apresentamos e deu certo a parceria.” diz Vareta, sobre a sala conquistada no prédio.

Os próximos passos definiram a ocupação do lugar. Punks de todos os lados de Teresina compareceram neste momento para ajudar a limpar o espaço. Havia muita sujeira, material velho, expositores enferrujados, muita poeira, instalação elétrica comprometida, racha-duras e infiltrações nas paredes. Pouco a pouco, xs punks começaram a arrumar o lugar.

Com a aparente retomada das atividades da Fun-dação, o primeiro espectro, fora os envolvidos na re-construção da sede, foi o Estado. A Prefeitura da cidade informava, ali pelo começo de setembro que iria retirar todxs que lá estavam para dar outros usos para o pré-dio. Foi a partir desse momento que o movimento punk percebeu que a hora era de confronto e resistência. Cibelle nos fala que a partir daí o alerta de conflito foi ligado. “A ocupação começou a gerar com o pensamento de guardar o prédio durante a noite por causa dos devidos roubos, mas aí depois com es-sas histórias de que iriam tomar a coisa da gente, todo mundo teve em mente a ideia de ficar aqui e resistir.”

Foi chamada uma audiência que envol-via somente a fundação nacional do hu-mor e a prefeitura de Teresina. Mas o mo-vimento punk ocupou a sala da audiência, para participar das tomadas de decisões. Decisões essas que se saíram favoráveis à fundação. Não depois desta audiência, mas de uma série de conversas entre as partes foi feito um acordo no qual fo-ram traçados alguns caminhos de como aconteceriam as reformas.

Mesmo sem as reformas principais, o projeto que an-tes era só de boca em boca, começou a gerar e daí nas-ceu a Biblioteca Libertária. Os objetivos principais, se-gundo xs punks, seriam a motivação para ler e conhe-cer sobre textos libertários, num sistema coletivo de doação de livros, panfletos e zines. Da mesma forma se daria o acesso livre e gratuito ao acervo. Além da bibliote-ca em si, foram previstas a organização de mostras ar-

tísticas da cultura punk, como shows de bandas, feiras de produtos e oficinas. Atualmente, o projeto em fun-cionamento semanal são as Rodas de Diálogo, espaço de exibição de vídeos e debate construído junto com o Grupo de Estudos Anarquistas do Piauí.

Cibelle nos fala que mesmo com a aparente calmaria na possibilidade de perderem o prédio para o Estado, elxs se mantém dia e noite ocupando o espaço, mas com necessidades básicas em falta. “A galera que fica na ocupação necessita muito de comida; no começo foi muito farto, mas agora existe uma grande escassez. Enfrentamos alguns problemas de aceitação dos mora-dores, até porque é um dos bairros mais nobres, então, conservadores de Teresina.”

“ com essas histórias de que iriam tomar a coisa

da gente, todo mundo teve em mente a ideia de ficar

aqui e resistir

Prédio da Fundação Nacional do Humor onde funciona a Libertária | foto: repredução facebook

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No dia 18 de janeiro, foi morto pelo governo da In-donésia por acusação de tráfico de drogas o brasileiro Marco Archer. Houve comoção nacional e do governo brasileiro contra o ato, já que no âmbito legal o Brasil é contra a pena de morte. No entanto sob ordens do go-verno a polícia extermina, sem julgamento, milhares de pessoas por ano. Nem pena de morte, nem execução: direitos humanos para todos!

Em 12 de janeiro, completou-se quatro anos da tra-gédia climática que abalou a região serrana do Rio de Janeiro. Fortes chuvas ocasionaram o deslizamento de encostas de morros, matando mais de 900 pessoas, dei-xando outros milhares desabrigados além de centenas de desaparecidos.

Após quatro anos desta tragédia a situação dos mo-radores da região serrana não é nada boa. Teresópolis, Nova Friburgo e Petrópolis seguem aguardando pro-vidências do Estado para a reconstrução das cidades, construção de moradias para os desabrigados e paga-mento de aluguel social.

Cerca de 200 milhões de reais foram destinados ape-nas pelo Governo Federal para a reconstrução das cida-des, mas segundo o Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ), apenas 77 milhões foram gastos. Há denúncias de desvio de verbas, inclusive para a Funda-ção Roberto Marinho.

Região Serrana: após 4 anos da tragédia a situação permanece precária

sórdidos detalhes

A verdade varrida pra debaixo do tapete...

No âmbito federal, os sórdidos detalhes fica-ram por conta dos ministérios escolhidos pela presidenta Dilma. Algumas das nomeações mais polêmicas ficaram por conta do Ministério da Agricultura, com Katia Abreu, ruralista apelidada de Kátia Motosserra. O Ministério da Educação com o governador do Ceará, Cid Gomes, conhe-cido pela máxima de que professor tem que tra-balhar por amor. Joaquim Levy, diretor-superin-tendente do banco Bradesco, mais uma vez privi-legiando os banqueiros. E por fim, Aldo Rebelo, o negacionista do aquecimento global que ganhou o ministério da Ciência e Tecnologia.

DILMA E OS MINISTÉRIOS “CORAÇÃO VALENTE”

A INDONÉSIA É AQUI

Ilustração: Tiago Silva

Montagem da página facebook.com/Anarcomiguxos III

Por Leandro Santos

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A estudante Haíssa, covardemente assassinada pela

PM do Rio. | foto: reprodução facebook

A virada do ano começou com o au-mento das passagens em algumas capi-tais do país. No Rio de Janeiro a tarifa que era no valor de R$ 3,00 passou para R$ 3,40. Já em São Paulo o aumento foi de R$ 3,00 para R$ 3,50.

Imediatamente foram organizados atos pelo Movimento Passe Livre (MPL). Em São Paulo o primeiro ato, em 09/01, contou com aproximadamente 15 mil pessoas e foi marcado por extrema vio-lência policial. Um número sem medida de bombas e balas de borracha foi usado contra a multidão. 51 pessoas foram de-tidas e, segundo relatos, sofreram tortura física e psicológica no caminho para a DP.

No mesmo dia, o segundo ato do Rio contou com cerca de 3 mil pessoas. No fim do ato, Thamires Fortu-nato, estudante de filosofia da UFF, mulher e negra, foi arrastada pelo asfalto por policiais da Tropa de Cho-que antes de ser algemada e detida (foto à direita). A estudante relatou que sofreu mais agressões no cami-nho para a delegacia.

Ex-tenente coronel do Bope, Fábio de Sou-za, exonerado em 2013 após serem encontradas conversas em grupos do Whatsapp nas quais Fá-bio incentivava agir com violência contra mani-festantes e fazia discursos nazistas, está de volta e dessa vez promovido a coronel do Bope.

Nesta primeira semana de 2015, foi divulgado um vídeo datado de 2 de agosto de 2014 onde dois po-liciais militares são filmados pela câmera da viatura

durante uma abordagem poli-cial em Nilópolis, Rio de Janeiro. A dupla procurava um veículo suspeito. No vídeo, é nítido o estereótipo utilizado contra as vítimas. Um dos policiais fala ao rádio que viu passar um carro com uns “garotos suspeitos que estavam de boné e tudo”.

A vida de ativistas do Rio de Janeiro não tem sido nada fácil. Após os atos da Copa da FIFA em 2014, 23 ativistas tiveram suas vidas arruinadas pela injustiça do Rio de Janeiro. Mandados de busca e apreensão se tornam recorrentes na vida destes ati-vistas, além das constantes prisões e ameaças.

No final de 2014, a injustiça do Rio de Janeiro, por meio do juiz Flavio Itabaina (guarde este nome), decretou a prisão preventiva de Elisa Quadros (Si-ninho), Igor Mendes e Karlayne Moraes (Moa). Igor foi preso e já enfrenta mais de 40 dias de encarce-ramento. Sininho e Moa seguem foragidas. Além de Igor Mendes, também estão presos Fábio Raposo, Caio Silva e Rafael Braga Vieira.

P a r a estes ativistas, o ano de 2015 começou marcado por uma série de audiências no Tribunal de Injustiça do Rio de Ja-neiro. Na audiência do dia 12 de janeiro ocorreu uma cena no mínimo curiosa: cinco dos processados gritaram a frase “Não Passarão!”, expressão comumente utilizada pela esquerda anti-fascista. O juiz Flavio Itabaina (guardaram o nome?) disse que vai representar contra os cinco por desacato (oi?)

O processo contra os 23 ativistas segue na jus-tiça, além das prisões de Caio Silva, Fábio Raposo, Igor Mendes e Rafael Braga Vieira. Aguardamos os novos desdobramentos do caso.

23 ATIVISTAS PERSEGUIDOS NO RIO

ACHOU QUE ESTAVA RUIM? PREPARE-SE, POIS AINDA VAI PIORAR...

E A PM SEGUE BARBARIZANDO

Mas a barbárie da PM não para por aí...

Em seguida os policiais abrem perseguição contra outro veículo. É quando a abordagem padrão é coloca-da em prática: primeiro atiram para depois perguntar. Sete tiros de fuzil foram disparados contra o carro atingindo a jovem Ha-íssa Vargas Motta, de 22 anos, que faleceu no caminho para o hospital. O assassinato foi filmado pelas câmeras da viatura e os dois policiais estão presos no Batalhão Especial Prisional, mas o inquérito ainda não foi concluído. Chama atenção o comando da PM dizer que foi um acidente e que essa não é a prática da PM, quando sabemos ser extamente assim. Quantas Cláudias, Ama-rildos, DGs e Haíssa vamos ter para desmilitarizar polícia?

Primeiro ato contra a tarifa em São Paulo, no

dia 9 de janeiro, foi barbaramente reprimido

pela PM. Foto: Mídia Ninja

PM realiza disparos de fuzil de sua viatura.

reprodução facebook

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