edição 34 - jornal cidadão

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Jornal-laboratório produzido pelos alunos de Jornalismo da Universidade Cruzeiro do Sul - Ano X - Número 34 - Agosto de 2009 Arquivo Nacional/Correio da Manhã Brasil sofre reflexos da ditadura Nos 30 anos da Lei de Anistia, marco do pro- cesso de redemocratização do Brasil, em agosto de 1979, o jornal Cidadão reúne histórias de so- breviventes da ditadura militar (1964-1985). Gen- te como o advogado Alcídio Boano, de 81 anos, que vive em São Paulo e se diz o “orgulho” dos filhos e netos. Ou o aposentado Michéas Almeida, o “Zezinho do Araguaia”, de 71 anos, morador de Goiás que roda o país relatando como ele e outras centenas de brasileiros resistiram ao regime. Foram perseguidos, censurados, torturados. Organizações de direitos humanos estimam 426 mortos e desa- parecidos, mas ainda não se sabe o total de vítimas porque os arquivos militares permanecem inacessí- veis. O alijamento político-ideológico inspira esta edição a reportar outras formas de exclusão na so- ciedade contemporânea. Páginas 6 e 7 Teatro desperta o senso crítico Uma obra de arte permite muitas leituras. Estudantes de Jornalismo da Universidade Cruzeiro do Sul assis- tem ao espetáculo teatral “Eldorado” e desenvolvem variados pontos de vistas sobre ele. O trabalho solo con- cebido e interpretado por Eduardo Okamoto narra a travessia de um sertanejo cego em busca de sen- tidos para a vida. A musa que o acompanha na aventura é uma rabeca. A música o levará ao longe em sua jornada inte- rior. Páginas 10 e 11 Alexandre Caetano/Divulgação Aceitar o diferente é uma das principais condições para se vi- ver em comunidade. Conheça histórias de pessoas que são dis- criminadas por causa da opção sexual, por não saber ler ou por saber demais, os “superdota- dos”. A auxiliar bancária Nedi- Habilidosos, analfabetos, transgêneros e excluídos na Silva vive situação semelhan- te. Ela é cega e usuária de um programa público que escreve cartas e recebe ajuda dos volun- tários para estudar exercícios de matemática. “O problema não é não enxergar, mas sim não ver”, diz. Páginas 2, 3 e 4 Índios, caboclos e ribeirinhos fazem parte do povo da Ama- zônia. Apesar de comporem uma população de cerca de 23 milhões, eles vivem à margem em termos de cidadania. Fala-se muito da região brasileira sob a ótica ambiental, mas pouco se faz Povo da floresta fica à margem na Amazônia pelos que a habitam. As pessoas estão sujeitas a duas violências: a humana, dos grileiros e muitos religiosos que manipulam situa- ções a seu favor, e a natural, pois a floresta também lhes é hostil. Há variedade de malárias, jaca- rés e piranhas. Página 12 Joel Hayashi

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Jornal-laboratório produzido pelos alunos de Jornalismo da Universidade Cruzeiro do Sul - Ano X - Número 34 - Agosto de 2009

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hã Brasil sofrereflexos daditadura

Nos 30 anos da Lei de Anistia, marco do pro-cesso de redemocratização do Brasil, em agostode 1979, o jornal Cidadão reúne histórias de so-breviventes da ditadura militar (1964-1985). Gen-te como o advogado Alcídio Boano, de 81 anos,que vive em São Paulo e se diz o “orgulho” dosfilhos e netos. Ou o aposentado Michéas Almeida,o “Zezinho do Araguaia”, de 71 anos, morador deGoiás que roda o país relatando como ele e outrascentenas de brasileiros resistiram ao regime. Foramperseguidos, censurados, torturados. Organizaçõesde direitos humanos estimam 426 mortos e desa-parecidos, mas ainda não se sabe o total de vítimasporque os arquivos militares permanecem inacessí-veis. O alijamento político-ideológico inspira estaedição a reportar outras formas de exclusão na so-ciedade contemporânea. Páginas 6 e 7

Teatro despertao senso crítico

Uma obra de arte permite muitasleituras. Estudantes de Jornalismo daUniversidade Cruzeiro do Sul assis-tem ao espetáculo teatral “Eldorado”e desenvolvem variados pontos devistas sobre ele. O trabalho solo con-cebido e interpretado por EduardoOkamoto narra a travessia de umsertanejo cego em busca de sen-tidos para a vida. A musa queo acompanha na aventuraé uma rabeca. A músicao levará ao longe emsua jornada inte-rior. Páginas10 e 11

Alexandre C

aetano/Divulgação

Aceitar o diferente é uma dasprincipais condições para se vi-ver em comunidade. Conheçahistórias de pessoas que são dis-criminadas por causa da opçãosexual, por não saber ler ou porsaber demais, os “superdota-dos”. A auxiliar bancária Nedi-

Habilidosos, analfabetos,transgêneros e excluídos

na Silva vive situação semelhan-te. Ela é cega e usuária de umprograma público que escrevecartas e recebe ajuda dos volun-tários para estudar exercícios dematemática. “O problema nãoé não enxergar, mas sim nãover”, diz. Páginas 2, 3 e 4

Índios, caboclos e ribeirinhosfazem parte do povo da Ama-zônia. Apesar de comporemuma população de cerca de 23milhões, eles vivem à margem emtermos de cidadania. Fala-semuito da região brasileira sob aótica ambiental, mas pouco se faz

Povo da floresta fica àmargem na Amazônia

pelos que a habitam. As pessoasestão sujeitas a duas violências: ahumana, dos grileiros e muitosreligiosos que manipulam situa-ções a seu favor, e a natural, poisa floresta também lhes é hostil.Há variedade de malárias, jaca-rés e piranhas. Página 12

Joel

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Transgêneros usam talento contra estigma

COMPORTAMENTOPÁGINA 2 - AGOSTO DE 2009

O mercado de trabalho está difícilpara qualquer cidadão. Imagine paraas pessoas “transgênero”. Elas sãotransexuais, drag queens e travestis embusca de uma oportunidade digna nasua área de formação.

Na maioria dos casos o precon-ceito começa na infância quando sãodescobertos os primeiros indícios deque algo diferente acontece. Diferen-te, sim, porém nada a ver com aber-ração ou doença como muitos pen-sam ou dizem.

A drag queen, estilista e maquia-dora Robytt Moon, faculdade incom-pleta de educação física, largou os es-tudos em Presidente Prudente (SP)porque estava descontente. “O pre-conceito está inserido nas pessoas enos próprios gays. Não tenho inte-resse de voltar a estudar. Ganho maiscomo drag queen e pretendo abrir mi-nha loja”, diz. Ela vive afastada dafamília que não aceita seu trabalho eseu estilo de vida.

Em geral, a falta de apoio fami-liar é outro fator decisivo para o aban-dono dos estudos. A travesti TharaWells – entrevistadora e escritora bis-sexta em Sorocaba (SP) – sobreviveda prostituição. Ela tem segundo grau

completo, profissionalizante técnicoem contabilidade, fala três idiomas efez alguns cursos, como edição em ví-deo, técnico em escritório e adminis-tração de empresas. Poderia estar emqualquer universidade e, inclusive, con-seguir bolsa integral.

“Quando estudava eu era muitofeminina, mas ainda não era travestifisicamente. Mesmo assim, o precon-ceito vinha de todos os lados. Tinhatrabalho em gru-po e ninguém mequeria por moti-vos de queimaçãode filme [vergo-nha]. Na hora dointervalo vinhamagressões verbaise morais. O pre-conceito talvezseja um defeito de fábrica do ser hu-mano”, afirma Thara.

“Todos os gays aspiram ao res-peito e à aceitação hetero, mas, se nósmesmos não nos suportamos nosentido de que gay não gosta de tran-sex, que não gosta de sapata [lésbi-ca], que não gosta de drag queen, quenão gosta da pintosa. Como quere-mos que os heteros nos aceitem erespeitem, se internamente não nossuportamos?”, questiona Thara.

Alguns órgãos públicos esclarecemas pessoas “transgêneros”, como a Co-ordenadoria de Assuntos da Diversi-dade Sexual (Cads) e o Centro de Re-ferência da Diversidade (CRD).

A Cads tem o objetivo de pro-mover, estimular e divulgar todaação que combata a homofobia, as-sim como criar um espaço de comu-nicação com a sociedade como umtodo. O CRD oferece oficinas profis-

s i onal iz ante s,atendimento psi-cológico e social,espaço de conve-niência, orienta-ção sobre saúde eaconselhamentojurídico.

Ambos sãoligados à Prefeitu-

ra de São Paulo e estão localizados nazona central da cidade. Apesar de re-cém criados, cumprem um papel im-portante. Entretanto, ao serem ques-tionados sobre dados reais quanto aomercado de trabalho, esquivam-se pormeio de gerúndios com um “estareite enviando ou conversando sobre oassunto após o feriado”. A reporta-gem procurou as duas entidades du-rante duas semanas, mas não obtevemais informações.

A maior parte das transgênerostrabalha como profissionais da noite.De acordo com a Articulação Nacionaldas Travestis e Transexuais (Antra),cerca de 90% delas estão inseridas naprostituição.

A drag queen e maquiadora LladyMetteora, de Tatuí, na região de Soro-caba, nível técnico em nutrição e dieté-tica, trabalhou por algum tempo nes-sa área e não gostou.

“Desde criança eu já era diferen-te dos meus amiguinhos na escola.Era um menino afeminado, mascreio que fui privilegiado aqui nointerior, pois as pessoas são maistolerantes. Atualmente como ma-quiadora tenho mais destaque e é oque amo fazer. No Brasil não existegraduação nessa área, como na Eu-ropa e nos EUA, mas se tivesse queescolher outra área eu faria Letras”,diz Llady.

Entre os brasileiros, as transgê-neros compõem a categoria que maissofre preconceito na própria comu-nidade LGBTT (lésbicas, gays, bisse-xuais, travestis e transgêneros). For-mam-se poucas profissionais nasuniversidades e, mesmo com o di-ploma nas mãos, não conseguematuar no mercado de trabalho para oqual estudaram.

Para elas, nem a universidade é garantia de boa colocação no mercado de trabalho

Acácio Brindo

EDITORIAL

Exclusãopelo avesso

A ditadura militar que calou e san-grou o Brasil entre 1964 e 1985 legouum dos períodos mais tristes da histó-ria de um país que já carrega sequelasdos períodos de colonização e de escravi-dão, para citar duas manchas indelé-veis. Ao retratar aqueles 21 anos deprisão, tortura e censura, aproveitamospara expor outras formas de exclusãonos dias de hoje.

No dicionário, a palavra exclusãoganha definições como: ato de ser incom-patível com, pôr de lado, eliminar, aban-donar. Em uma análise mais apuradaidentificamos uma referência aos seresde uma comunidade, a relação com o ou-tro. Afinal, o incluído é incompatívelcom quem? Eliminado de onde? Quem oabandona? Os excluídos, portanto, sãoparte da sociedade e não um grupo isola-do como imaginamos em um primeiromomento.

Identificar esse fato e como ele se dáé um dos passos para compreender o qua-dro social contemporâneo. Nesta ediçãodo jornal-laboratório Cidadão, umaprodução dos estudantes de Jornalismoda Universidade Cruzeiro do Sul, tra-balharemos o tema da exclusão por ân-gulos em que ela geralmente não é reco-nhecida. Esse olhar passa, por exemplo,pelos marginalizados por meio da pala-vra, os chamados analfabetos ou semia-nalfabetos, ou pelo policial militar quenão pode voltar para a casa fardado.

Poucos fazem questão de abrir osolhos para enxergá-los, mas o fato é queesses brasileiros existem. Grande parteda população não usufrui seus direitosde cidadania e essa problemática se refle-te na sociedade como um todo. É umciclo do qual quem se considera integra-do, hoje, amanhã será parte dos excluí-dos de cabelos brancos.

Nosso objetivo é revelar as outrasfacetas da exclusão. Afinal, reconheceré o primeiro passo para mudar, paratransformar algo. Do contrário, paira ainércia, o comodismo. Com a palavra, aconsciência de cada um.

Jornal-laboratório doCurso de Comunicação Social

(Jornalismo)da Universidade Cruzeiro do Sul

Ano X - Número 34Agosto de 2009

Tiragem: 3 mil exemplaresTelefone para contato:

(11) 2037-5706Impressão:

Jornal Última Hora do ABC(11) 4226-7272

ReitoraSueli Cristina Marquesi

Pró-reitor de GraduaçãoCarlos Augusto Baptista de Andrade

Pró-reitor de Pós-graduação ePesquisa

Luiz Henrique AmaralPró-reitor de Extensão eAssuntos Comunitários

Renato PadoveseCoordenador do Curso de

Comunicação SocialCarlos Barros Monteiro

Professores-orientadoresDirceu Roque de Sousa

e Valmir SantosParticiparam desta edição

André Atti, André Polone,David Santana,

Dayse Estevam, Felipe Gueller eNatalia Bittencourt.

Robytt Moon Thara Wells Llady Metteora

Fotos Divulgação

Muita gente rejeita ser atendidapor uma médica transexual, mas ado-ra ver na madrugada de Carnaval o bai-le Scala Gay, que acontece no Rio deJaneiro. A sociedade costuma rir dadiferença e não a aceita com respeito edignidade. Ao exibir programas des-se tipo, a televisão também colaborapara a situação de exclusão e não deaceitação, como deveria ser.

Não existem documentários oufilmes na programação aberta, e ospoucos, feitos geralmente no exte-rior, como Transamerica (2005) – Glo-bo de Ouro de melhor atriz para Feli-city Huffman – não passam na “TelaQuente” da Rede Globo. Transamericaficou pouquíssimo tempo em cartaznos cinemas de São Paulo.

Recentemente, o filme BrokebackMountain (2005), do diretor Ang Lee,foi outro marco ao conseguir romper

O circo midiático faz a sua parteas barreiras de Hollywood.

Na televisão, desde os anos 70, osprogramas de auditório como Chacri-nha, Silvio Santos ou Bolinha tenta-vam de alguma forma dar visibilidadeao grupo e traziam travestis e transe-xuais em quadros de dublagem.

“A luz no fim do túnel poderiaser as leis mais rígidas de inclusão so-cial, porém vejamos o exemplo dascotas para negros que geram polêmi-cas e controvérsias”, diz Llady Met-teora. “O que concluímos disso é queantes de tudo o nosso pensamentodeve mudar. Devemos parar com aexclusão velada e compreendermosque, independentemente de usarsaias, passar batom ou vestir unifor-me militar, as transgêneros são sereshumanos e têm direitos que não es-tão sendo assegurados pela Consti-tuição”, afirma Thara Wells. (A.B.)

Transgênero – Pessoa cuja expres-são de gênero não corresponde aopapel social atribuído ao gênero denascimento. O termo também temsido utilizado para definir pessoa queestá constantemente em trânsito en-tre um gênero e outro.Transexual – Pessoa que nasce comum sexo, mas tem identificação ex-cessiva com o sexo oposto. Nascehomem, mas tem cabeça de mulhere se sente mulher, e vice-versa. O tran-sexual rejeita o próprio corpo e seusexo biológico. Necessita de uma ci-rurgia de redesignação sexual.Travesti – Pessoa que tem as duasidentidades de gênero: masculina efeminina. Não há desejo de mudan-ça de sexo biológico.Drag queen ou transformista –Pessoa que se apresenta e faz perfor-

mances com fantasias e maquiagensexageradas. Não é assim 24 horas pordia, encarando isso mais como tra-balho ou diversão.Cads – Coordenadoria de Assun-tos da Diversidade Sexual.CRD – Centro de Referência da Di-versidade.LGBTT – Lésbicas, gays, bis-sexuais, travestis e transgêneros.APOGLBT - A Associação da Para-da do Orgulho de Gays, Lésbicas,Bissexuais e Travestis e Transexuaisfoi fundada em 1999, como umaorganização em defesa da diversida-de sexual. Sua missão é lutar poruma sociedade mais justa e inclusi-va, que reconheça direitos iguais paratodos. Para garantir o cumprimentodo estatuto, há um conselho de só-cios fundadores; um conselho de éti-ca norteia as decisões da diretoria eoutro, fiscal, examina suas ações.

“As transgêneros sãoseres humanos e têmdireitos que não estão

sendo asseguradospela Constituição”

Thara Wells

Quem é quem

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AGOSTO DE 2009 - PÁGINA 3VOLUNTARIADO

A cega, a prova de matemática,o gravador e a voz da voluntária

Lidiana Dourado

Você tem uma caneta?INCLUSÃO - Simone auxilia a bancária Nedina, deficiente visual

“Acho que estou no caminho cer-to”, diz Nedina Silva, 45 anos, auxi-liar bancária, ao iniciar seu atendimen-to no posto do Escreve Cartas em Ita-quera, Zona Leste. Ela, deficiente vi-sual, chega com um sorriso no rosto elogo demonstra desenvoltura ao falarcom as voluntárias. Gravador numamão e muitas folhas na outra, explicaque precisa da leitura dos exercícios dematemática para estudar para uma pro-va do curso de qualificação fornecidopor uma universidade parceira do ban-co em que trabalha e que decidirá seufuturo profissional: seu contrato é re-novável de acordo com o desempenhoconquistado no curso e no dia a dia.

Logo, nota-se a mobilização dosvoluntários e do gerente da unidade,Marcelo Ribeiro Pedrosa, em dispo-nibilizar uma sala reservada para omelhor atendimento de Nedina. Asvoluntárias se preocupam em ler asequações e seus enunciados de formaclara para o fácil entendimento da goi-ana simpática que não perde a opor-tunidade de agradecer pelo serviço.

Às 11 horas o expediente das vo-luntárias se encerra e uma nova cola-boradora inicia seu turno. A repórterdivide a tarefa com a voluntária Simo-ne Santiago, que demonstra muita ale-gria em colaborar. Nedina sinaliza seo ritmo de leitura está adequado às

suas necessidades. Manuseia o grava-dor com uma concentração invejável.Ela, que mora em uma casa assisten-cial, conta que já precisou pedir ajudana rua para uma pessoa desconhecidaler seu material de estudo.

Muito ativa e focada em seu de-senvolvimento profissional, a estu-dante conta que após a gravação doconteúdo ainda terá de passar os da-dos para o braile, um sistema de leitu-ra desenvolvido para deficientes vi-suais e cujas letras e números são in-dicados por pontos em relevo identi-ficados por meio do tato. Seus dedossão cortados devido à atividade que éfeita com o uso de reglete, materialespecífico para a escrita braile. É cons-tituído essencialmente de duas placasde metal e plástico, fixas em um ladocom dobradiças, de modo a permitira introdução do papel. Ponto porponto, as pessoas cegas, com punção,formam o braile. “O problema não énão enxergar, mas sim não ver”, diz.

Ao final brinda a repórter e a vo-luntária com um abraço apertado eemociona com sua força de vontadeem superar dificuldades que, para ela,parecem nada. “Coloca aí: obrigadaSimone, agradeço ao programa Escre-ve Cartas e semana que vem eu voltoporque ainda tenho muito trabalhopela frente.” (A.P.M.)

Um senhor se aproxima, pedeuma caneta e senta-se à mesa. Comose esperasse por uma resposta, levan-ta a cabeça e observa o horizonte. Amulher sentada a sua frente ofereceajuda. Ele, sem pestanejar, entrega ca-neta e papel com um sorriso estam-pado no rosto.

Essa tem sido a rotina de algunsvoluntários do projeto Escreve Cartas.O programa foi criado pelo governopaulista em 2001, inspirado em umapersonagem do filme “Central do Bra-sil”. Dora, interpretada por FernandaMontenegro, era uma mulher que es-crevia cartas para analfabetos na Centraldo Brasil, estação ferroviária carioca. Naficção, o serviço era cobrado. Aqui, não,o atendimento é gratuito.

Atualmente 284 voluntários de-dicam duas horas semanais do seutempo para escrever cartas para cida-dãos que têm dificuldades em ler ouescrever. Nunca foi difícil atrair cola-boradores para a proposta de ajudar ooutro. No entanto, o usuário tem pro-curado o serviço mais para preencherformulários justamente do próprio

Poupatempo. A natureza original dotrabalho, explícita no próprio nomedo programa, tem ficado em segun-do plano.

Há algumas décadas ser alfabeti-zado definia que tipo de pessoa vocêera. Para votar era preciso saber ler eescrever. Segundo o jurista e escritorRui Barbosa (nascido em novembrode 1849 – falecido em março de 1923),por exemplo, essa exigência era justa elibertadora. E em seu entendimentoseria coerente excluir os analfabetosuma vez que eles deveriam ser educa-dos para usufruir de seus direitos.

Atualmente, qualquer pessoamaior de 16 anos tem direito ao voto.Porém, em 2007, o Instituto Brasilei-ro de Geografia e Estatística (IBGE)revelou a existência de 14 milhões deanalfabetos no país.

Saber ler e escrever pode não sermais um critério para definir votos,mas ainda é um detalhe relevante. Poisuma pessoa incapaz de escrever umacarta não sofre apenas com a exclusãodo dia a dia, como pegar ônibus, pa-gar contas, ler uma placa. Sofre tam-bém por não poder exercer seus direi-tos como gostaria.

Programa público ajudaanalfabetos a enviar cartas

No serviço do Poupatempo, pedidos vão de juras deamor a palavras esperançosas de participação na TV

Ana Paula Monteiro

Patrícia, Simone, Izabel, Cinthia...Sabe o que essas pessoas têm em co-mum? A vontade de ser útil à socie-dade e a coragem de agir para realizaresse objetivo. Todas elas dedicamduas horas de seu tempo, uma vezpor semana, para ser voluntárias noprojeto Escreve Cartas, voltado aoscidadãos com dificuldades em ler eescrever, em comunicar-se por meiode cartas.

A cada dia uma nova surpresa.Nos postos de atendimento do Pou-patempo, nas Zonas Leste e Sul dacidade, além de Guarulhos e São Ber-nardo do Campo, os voluntários con-vivem com os mais diferentes pedi-dos: correspondências comerciais, re-clamações e pedidos ao presidenteLula, cartas afetivas a parentes distan-tes, filhos presos etc. Mas as campeãssão as missivas destinadas a progra-mas de televisão, como os dos apre-sentadores Gugu Liberato, Netinhode Paula e Silvio Santos.

Uma das voluntárias conta que foiprocurada para escrever uma carta des-

SOLIDARIEDADE - Voluntárias do programa Escreve Cartas na unidade Poupatempo de Itaquera

Ajudar ou ser ajudado? Infor-mar ou ser informado? Será que de-veríamos assumir a responsabilida-de de dar aquilo que todas as pes-soas devem ter, já que, por lei, todocidadão tem direito à educação?

O programa Escreve Cartas dáassistência a pessoas que tenham di-ficuldades para ler ou escrever. Se-tenta e oito voluntários do Poupa-tempo de Itaquera dedicam-se a umpropósito: dar aos cidadãos a opor-tunidade de se expressar.

Porém, o projeto tem perdidosuas características, sendo procura-do na maioria das vezes somente

Paradoxo das boas intençõespara o preenchimento de formulá-rios do próprio Poupatempo. Deacordo com a assessoria do progra-ma, o projeto é divulgado em todosos grandes veículos de comunicaçãoe jornais de bairro da Capital e daGrande São Paulo. No entanto, essadifusão do serviço não tem atingidoo público desejado.

Surge então um questionamento:se o projeto é de fato divulgado eampliado, chegando inclusive a outrasregiões da Grande São Paulo, comoGuarulhos e São Bernardo do Cam-po, por que a procura da populaçãotem sido para outros fins que não o

de escrever cartas?O Cidadão pôde constatar que

o projeto em sua essência é validoe gratificante para aqueles que o fa-zem, mas isso não tem sido o su-ficiente para tornar melhor a vidadaqueles que o recebem. Afinal decontas, como um analfabeto po-deria ler no jornal, revista ou inter-net uma reportagem que oferece as-sistência a pessoas com dificulda-de para redigir? Ou, quantas pes-soas com baixo grau de escolarida-de têm acesso a programas educa-tivos? Que tal inovar e usar umveículo de comunicação simples edireto como o rádio ou estimularo imbatível boca a boca? (L.D.)

tinada a Gugu, na qual uma dona decasa de baixa renda pede uma reformade sua casa devido a problemas demofo que afetam sua saúde. A volun-tária escreve a carta e em seguida lê oteor para que a senhora confirme se oconteúdo está exatamente como soli-citado. Enquanto as palavras são li-das, lágrimas rolam pelo rosto damulher que, pormeio do texto, vêsua situação serretratada comoum filme e se co-move com a pró-pria história.

Muitos enre-dos são contadosa esses voluntá-rios preparados para se manter neu-tros durante a redação da carta e prati-car sigilo absoluto quanto à identida-de dos cidadãos que procuram o ser-viço. Além de redigir e ler, eles tam-bém preenchem formulários e elabo-ram currículos. O trabalho exige boacaligrafia e dedicação. Por isso, recebemtreinamento de oito horas, são orien-tados inclusive a não interferir no re-

gionalismo, acolher expressões como“painho” ou “padinho”, comuns noNordeste. A ideia é profissionalizar ovoluntariado e conscientizá-lo quan-to à importância da atividade para asociedade.

O programa Escreve Cartas foicriado pelo Governo do Estado deSão Paulo em novembro de 2001,

inspi rado emum personagemdo filme “Cen-tral do Brasil”(1998), dirigidopor Walter Salles.

O analfabetis-mo no Brasil atin-ge hoje 7,5% dapopulação, uma

herança do passado de escravidão quemarca a história do país. Quem nãosabe ler, escrever e interpretar as pala-vras e textos faz parte de um grandegrupo de pessoas, as excluídas pela faltade compreensão da palavra. Existemdiferentes iniciativas com o objetivode incluir esse contingente à sociedadee a divulgação desses serviços contri-bui para mantê-lo ativo.

Os voluntários recebemtreinamento específicoe são orientados a nãointerferir no regionalismo

das pessoas.

Lidiana Dourado

Ana Paula M

onteiro

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PÁGINA 4 - AGOSTO DE 2009 SOCIEDADE

Eles são excluídos porque sabem demaisConheça histórias de “superdotados” vítimas de discriminação justamente porque são demasiado habilidosos

Cibele SuganoThiago BatistaVanessa Lira

Ele é formado em administração,fala inglês, alemão e espanhol comfluência. Não teve dificuldades para ar-ranjar empregos, geralmente em em-presas multinacionais. Possui imóvele carro próprio, mas, apesar do currí-culo, M.L.D.L., 34 anos, morador daZona Norte de São Paulo, é hoje umhomem frustrado. “Sinto-me deslo-cado. Parece que não me encontro, quenão sou daqui.”

O que deveria ser um dom torna-se um fardo para muitos alto habili-dosos, popularmente conhecidoscomo “superdotados”. Como elesaprendem muito rápido, as atividadesque não lhes são suficientemente desa-fiadoras tornam-se monótonas. Resul-tado: acabam sendo apáticos a tudo.Ou, ao contrário, muito ativos, ansio-sos e, por vezes, até nervosos com aspessoas com as quais convivem.

A gestora administrativa da As-sociação para Altos Habilidosos eSuperdotadosem São Paulo(Apahsd), Ga-briela Toscanini,28 anos, diz quemuitas escolasainda não sabemlidar com isso.“Os professoresacham que a crian-ça é hiperativa, possui Transtorno deDéficit de Atenção, é rebelde. Muitasinclusive acabam sendo medicadasquando na verdade a causa é outra”,afirma.

Foi o que aconteceu com o estu-

dante Rafael So-linsk, 21 anos,morador de Vali-nhos, no interiorpaulista, que tevediversos proble-mas emocionais.Desde os 5 anosele começou a de-

monstrar altas habilidades em mate-mática, física e química, desenvolven-do-as melhor do que as demais áreas.“Tive vários problemas de caráteremocional e psicológico, mas todosligados à convivência social. Sempre

fui excluído de jogos esportivos, nun-ca fui bom nisso, digamos assim. Jáfui deixado de lado em formaturas econvite de festas só por ser alto habi-lidoso”, afirma.

O estudante, que hoje diz saberlidar melhor consigo mesmo, afirmaque os relacionamentos afetivos o aju-daram de forma significativa. “Minhanamorada, a Caroline, teve um papelinsubstituível. Fez-me enxergar atra-vés dos algoritmos e ver o coração.”

A psicóloga do Programa Objeti-vo de Incentivo ao Talento (Poit),Christianne Vita, diz que o desenvol-vimento racionaldeve vir sempreacompanhado desaúde emocional.Os dois se com-pletam e o alto ha-bilidoso precisaconviver numambiente que es-

DESLOCADO - Mesmo formado em administração e empregado, M.L.D.L. sente-se um adulto frustrado

Cibele Sugano

timule a ambos equilibradamente. OPoit é um curso extracurricular paraalunos com habilidades especiais quebusca vencer a barreira do preconceitocom a sociedade. Para a psicóloga éimportante que não haja a segregaçãodo alto habilidoso. “Já trabalhamoscom aulas separadas das outras turmas,mas não obtivemos sucesso. O alunocom alta habilidade necessita da intera-ção com os demais.” Por esse motivo,o curso não substitui a escola.

Um aspecto essencial é que os paissaibam identificar se o filho é um altohabilidoso. A partir daí, deve-se enca-

minhá-lo a espa-ços que lidarão demaneira corretapara que seu po-tencial seja desen-volvido. Gabrieladiz que muitospais não aguen-tam o filho que

Einstein e Leonardo da Vincitambém foram discriminados

Jorge Gomes

Através dos séculosalgumas pessoas sedestacam por causa desua alta capacidade in-telectual. Esses indiví-duos diferenciados sãodenominados alto ha-bilidosos. A história dahumanidade reserva al-guns bons exemplos aserem citados.

Um deles é Leonardo, nascido em1452 na localidade de Vinci, Itália.Ele foi um dos maiores pintores doRenascimento e possivelmente seumaior gênio, por ser também anato-mista, engenheiro, matemático, mú-sico, naturalista, arquiteto e escultor.Em 1506 trabalhou principalmenteem Florença, onde possivelmente te-nha pintado sua obramais famosa: MonaLisa. Mas, apesar de sergenial em várias áreas,Da Vinci não teve edu-cação formal e nem sa-bia latim, sendo consi-derado por muitos umiletrado e até inculto.Morreu em 1519.

Outra pessoa demúltiplas habilidadesfoi Albert Einstein

(1879-1955). Este ale-mão foi físico e mate-mático e até hoje é co-nhecido por sua ge-nialidade. Desde a in-fância, Einstein mos-trou-se diferenciadoem relação às outrascrianças. Em vez depraticar jogos infantis,preferia construir com-plicadas estruturascom cubos de madei-

ra e grandes castelos com cartas de ba-ralho, alguns de até 14 andares. Aos 7anos ele demonstrou o Teorema dePitágoras, para surpresa de seu tio, quedias antes lhe ensinara os fundamen-tos da geometria.

Porém, Einstein era um fracassopara disciplinas que exigiam capacida-de de memorização, como geografia e

história. Em conse-quência dessas dificul-dades, ele se desinte-ressava por tais aulas– o que provocava rea-ções violentas de seusprofessores. Um deleschegou inclusive a di-zer que Einstein eraum péssimo exemplopara os outros estu-dantes e que nunca se-ria alguém na vida.

InternetInternet

O físico Albert Einstein

O pintor Da Vinci

Núcleos doMEC atuamdesde 2005

Muitos casos de alta habilida-de só são descobertos quando acriança entra na escola. O descom-passo com o resto da turma torna-se latente. O Ministério da Educa-ção (MEC) diz que os alto habili-dosos são um foco específico daSecretaria de Educação Especial quetem realizado cursos para profes-sores e gestores. Além disso, há osNúcleos de Atividades para AltasHabilidades/Superdotação, instala-dos a partir de 2005 em todas ascapitais, segundo a pasta, com ofim de oferecer atividades para oaluno, além de capacitar responsá-veis e professores. Todas essas ini-ciativas visam a educação inclusiva.

Aliás, não se usa mais o termo“superdotado” justamente por car-regar em si essa conotação exclu-dente. Quem é “super” não é nor-mal. Já o “alto habilidoso” sabefazer algo muito bem e não temdemérito algum em ser o que mui-tos gostariam: um talento nato.

fala, entende e questiona demais. Hácasos de crianças que se tornam agres-sivas a ponto de se mutilarem ou atécometerem suicídio.

A adolescente L.B.B., 16 anos,moradora da Zona Oeste, teve umavida estudantil complicada. Foi “con-vidada” a sair da escola por sua extre-ma agitação: aos 6 anos liderou ummovimento na classe; aos 8, negou-sea fazer uma prova, alegando que a pro-fessora sabia que ela já tinha entendi-do tudo. A mãe, Rosemary, trocou amenina de escolas dez vezes. Comoresultado, L.B.B. isolava-se. Foi só pormeio de terapia com profissionais es-pecializados em alta habilidade que suainteligência passou a caminhar ao ladode uma vida emocional equilibrada.

Mitos e verdades na vida do alto habilidoso

intelecto. A psicóloga diz que o adul-to alto habilidoso pode tornar-sefrustrado se não conseguir identifi-car e usar todo o seu potencial.

Existe também o mito de queas pessoas que tem alta habilidadena área intelectual são antissociais.Porém, a gestora da Apahsd, Ga-

Christianne: espaço desafiador

Thiago Dias

Gabriela: “Habilidosos têm direitos”

Cibele S

ugano

Acredita-se que o altohabilidoso seja bom emtudo, o que não é verdade.Ele pode se destacar em al-gumas áreas e ser completa-mente normal ou fracomesmo em outras. É co-mum casos de pessoas quese destacam na intelectuali-dade, mas, enquanto prati-cante de esportes, não acer-tam um movimento. A psi-cóloga Christianne Vita dizque são oito as áreas de ha-bilidade: intelectual; verbalou linguística; lógico-mate-mática e científica; criativida-de; motivacional; liderança;psicomotora e musical. Nocaso de crianças, essas habi-lidades podem ser identificadas comtestes específicos.

Mas a genialidade nem sempreserá identificada e exercida com todovigor. No caso de adultos, não hátestes que identifiquem essas habili-dades, com exceção do de quocientede inteligência (Q.I.) que só atinge o

briela Toscanini, relata que há alu-nos comunicativos e sem diferençasde sociabilidade com outras pes-soas. Mas a maioria dos casos é depessoas que se isolam pelo própriofato de serem consideradas diferen-tes e não, necessariamente, por se-rem introvertidas. (C.S.)

Há casos de criançasque se tornam

agressivas a ponto dese mutilarem ou atécometerem suicídio

“Tive problemas decaráter emocional e

psicológico, mastodos ligados à

convivência social”Rafael Solinsk

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Com apenas 2 anos de idade, afamília de Gabriel Vitoir, 8 anos, úni-co filho, residente em São Paulo, jánotava que havia algo errado com omenino. “Ele não falava e demoroumuito para começar a andar”, declaraDebora Vitoir, mãe de Gabriel.

O grau de autismo de Gabriel éleve. Mesmo assim, sua família enfren-ta o preconceito diariamente. “Muitasvezes, no ônibus, as pessoas olhamestranhamente e perguntam o moti-vo de ele descer pela porta da frente.Ou, quando ele chora e faz algum ba-rulho diferente, as pessoas ficam in-comodadas”, comenta Débora, queconfessa ficar indignada com as pes-soas que não têm respeito pelas crian-ças com necessidades especiais e comos adolescentes que parecem não co-nhecer os princípios da cidadania.

Débora diz que, no início, foimuito difícil para todos aceitarem aideia de que Gabriel precisaria de cui-dados especiais e conviver com o pro-blema. “Primeiramente, rejeitei a ideia,pois é muito difícil saber que um fi-lho está doente. Procurei fazer maisexames, mas tudo levava ao mesmodiagnóstico. Aceitar o problema foi omais difícil, e depois ir atrás de solu-ções. Pesquisei muito sobre o assunto,novidades a respeito de tratamentos,medicações, especialistas”, recorda.

Gabriel é saudável e hoje prati-

Autismo é exercício contínuo de superação

SOLIDARIEDADE - Gabriel, de 8 anos, tem o apoio integral da família

AGOSTO DE 2009 - PÁGINA 5SAÚDE

ca atividades de uma criança normal,frequenta escola, está em tratamentopsicoterápico, faz terapia ocupacionale recebe acompanhamento fonoau-diológico. Todos os tratamentos e aescola são custeados pela família, quetem um gasto mensal de R$ 3.470,00.

Débora lamenta o descaso do go-verno, porque os autistas com trata-mentos especializados podem progre-dir no aprendizado. “Gabriel, porexemplo, cada dia descobre uma novahabilidade, como mascar chiclete, di-zer ‘oi’ e ‘tchau’ aos familiares e pro-fessores e ir ao banheiro sozinho, oque não conseguia antes”, declara suamãe. Apenas por intermédio de uma

política pública de saúde a maioria dosautistas pode receber o tratamentoadequado.

A Prefeitura de São Paulo, por in-termédio da Secretaria Municipal deEducação, afirma que existem institui-ções conveniadas especialmente paracrianças com transtornos globais men-tais, além de serviços com o Centrode Formação e Acompanhamento àInclusão (Cefai), Atuação do Profes-sor e Acompanhamento à Inclusão(Paai), Salas de Apoio à Inclusão (Saai)e Escolas Municipais de EducaçãoEspecial (EMEE).

Outras informações pelo site:www.portalsme.prefeitura.sp.gov.br.

Arquivo Pessoal

Sexualidade, um tema tabu

Família de Gabriel relata dificuldades com o desrespeito diante das necessidades especiais do outro

Mônica Garcia de AlmeidaTalita Dario

Com a dificuldade de estabelecerrelacionamento e até mesmo decifraro desejo por meio de feições e demons-trar afeto, o autista não perde sualibido, precisa aprender a controlarseus instintos e se reeducar para a se-xualidade.

Quando alcançam a puberdade, osjovens devem ser orientados, princi-palmente no que se refere à masturba-ção, pois os adolescentes portadores

Pais devem ajudar no tratamentoGuilhermo Romero

Jansen Asses

O Cidadão entrevistou a sexólo-ga e psicóloga Daniela Formiga deSousa, especialista em terapia ocupa-cional, que esclareceu algumas das dú-vidas mais frequentes sobre o autis-mo. Segue abaixo a entrevista.

Cidadão - O que é o autismo?Daniela - O autismo é um transtornocongênito que compromete o desenvolvimen-to do indivíduo. Afeta suas relações sociaise sua capacidade de comunicação. O autistapossui comportamentos estereotipados e re-petitivos, seu interesse por atividades é res-trito e existe uma tendência ao isolamento.Cidadão - Como o psicólogo podeajudar?Daniela - O psicólogo pode ajudar a mini-mizar os sintomas e fazer com que a criançaconsiga lidar com mais tolerância às ativida-des que antes lhe pareciam confusas.Cidadão - Quais são os métodos uti-lizados no tratamento?Daniela - É preciso um plano terapêuticoindividual, embora o diagnóstico seja o mes-

mo, as dificuldades podem ser diferentes deacordo com o ambiente que a criança convi-ve. É definida uma programação diária paraestimular estas crianças, visando adquirirhabilidades que tenham funções práticas(contato social, verbalizações e autonomia).Cidadão - Os pais normalmente pas-sam pelo tratamento com os filhos?Daniela - Sim, é de fundamental impor-tância a participação dos pais. Eles preci-sam aprender comportamentos mais adapta-tivos para lidarem com os seus filhos e sãoeles que colocam em prática as mudançasnecessárias no ambiente que a criança convi-ve, para atingir os objetivos propostos e dis-cutidos em terapia.Cidadão - Qual o problema mais co-mum que encontramos nas crianças?E nos pais?Daniela - Na psicoterapia a maior difi-culdade que encontramos é em relação à co-municação, visto que nem sempre é possívelcompreender a linguagem utilizada por elas.Com os pais, é preciso antes de qualquer coisatrabalhar a aceitação. Só após eles elabora-rem o luto do filho ideal e perfeito é possívelreconhecer as potencialidades da criança e as-sim serem aliados no tratamento.

Conheça os principais sintomasSegundo a consultora

e psicóloga, especialista emterapia ocupacional, Rena-ta Sara de Oliveira, que pres-ta atendimento em clínicaprivada, em São Paulo, otratamento mais comumempregado para os autis-tas consiste em análisescomportamentais, segui-das de atividades práticasque reforcem as alteraçõespositivas de comporta-mento do paciente, de-monstradas na interaçãocom o terapeuta.

Os sintomas mais re-levantes de autismo sãobaixo contato visual, fixa-ção em objetos, hiperati-vidade ou apatia total,movimentos repetidos, ir-ritabilidade, humor instá-vel e uma frequência expressiva deposturas bizarras, entre outros.

De acordo com Renata, a aceita-ção pelos pais do transtorno do fi-lho é um grande problema para osprofissionais que tratam de autistas.A psicóloga afirma ainda que, inicial-mente, procura munir os pais demuitas informações sobre a doença,para que possam agir com calma etranquilidade diante das ações “dife-

rentes” dos filhos.Os portadores de autismo neces-

sitam de acompanhamento espe-cializado de pediatras, neurologistas,psiquiatras, psicólogos, fonoaudiólo-gos, pedagogos e fisioterapeutas, paraque possam ampliar suas capacidadese habilidades. Com auxílio adequado,é possível a um autista, dependendodo grau da doença, frequentar escolasconvencionais.

AOS PAIS - Renata sugere se informar mais

de autismo geralmente se assustamao se deparar com sensações novas co-mo, por exemplo, a de que seu pêniscairá quando ficar ereto.

Existem algumas organizaçõesnão governamentais (ONGs) querealizam esse papel, mas a família deveconversar sobre o assunto, buscar amelhor forma de ajudar o autista aconviver de modo tranquilo com suasexualidade.

Pessoa com deficiência tem direito à vida sexualHevlyn Celso*

As pessoas com deficiências, as-sim como qualquer cidadão, têm di-reito a exercer sua sexualidade. Noentanto, no cotidiano, esse assunto écercado por preconceitos da sociedadee até das famílias que acreditam queseus filhos não possuem essa necessi-dade humana.

Em março passado, durante osimpósio “Síndrome de Down - In-clusão para a Autonomia”, realizadono Memorial da América Latina, a pes-quisadora Marta Gil, representante doAmankay Instituto de Estudos e Pes-quisas, tratou dessa questão: “Aindapermanecem tabus. Ou é um anjo ino-cente, então você nega todo o desejo,todo o tesão, toda a vontade de teruma escolha amorosa, de viver umaafetividade. Ou você vai para o outrolado da gangorra, fala de erotismo exa-cerbado”, explica.

Segundo ela, a maioria das famíliastenta se esquivar da questão para não“despertá-la” junto aos adolescentes,por exemplo. “Como vai despertar? Asociedade está falando disso o tempotodo; nesse assunto eles já estão liga-dos.” A pesquisadora relata que, na ci-dade, os 24 postos especializados emcontrole de doenças sexualmente trans-missíveis e Aids nunca receberam a vi-sita de uma pessoa com deficiência embusca de informações ou preservativos.

A reportagem conversou com al-gumas pessoas com síndrome deDown para saber o que pensam sobreo assunto. A atriz Beatriz Paiva, 32anos, relações públicas da FederaçãoNacional das Associações de Síndro-me de Down, frequenta a Associação

Carpe Diem e aborda a dificuldade deestar ao lado do namorado. “Olha,tenho e não tenho, porque o encon-tro muito pouco. Ele é um cliente aquido Carpe, o nome dele é Jean, mas,assim, a família não deixa, eu vivo maisna teoria do que na prática”, afirmaBeatriz. Ela diz que só o vê na asso-ciação, nunca saíram juntos. “As famí-lias não dão o suporte necessário paraque o relacionamento aconteça.”

João Alberto Simões, 23 anos, esua namorada Juliana Pontes de Ca-margo Diegues, 29 anos, são colegasde Beatriz no Grupo ADID de Tea-tro. Eles se encontravam durante osensaios e às vezes iam juntos ao cine-ma e ao shopping. O namoro come-çou com um beijo durante uma caro-na para a associação. Agora, enfrentama distância: ela se mudou para Bocai-na, no interior paulista, o que tornaos encontros mais difíceis.

Muitas vezes as fa-mílias temem o mo-mento em que seus fi-lhos com deficiência de-cidem namorar, poisquerem protegê-los depessoas mal intenciona-das e de decepções. Defato, conforme MartaGil, estudos internacio-nais demonstram queos casos de abuso tripli-cam em relação a ho-mens e mulheres comdeficiência intelectual.

A saída não está naproibição, mas no diá-logo e orientação – fun-damentais para que elespróprios tenham auto-

nomia e consciência das responsabili-dades e cuidados ao relacionar-se afe-tivamente. “A pessoa com deficiênciatem o mesmo direito à sexualidade queas pessoas normais, e isso é uma for-ma de exclusão. Se eles podem viver naprática, porque a gente não pode? Épossível, sim, eles terem a sua própriasexualidade”, argumenta Beatriz.

* A estudante elege a história de vida depessoas com síndrome de Down como temado trabalho de conclusão de curso (TCC)no final do ano.

Arquivo Pessoal

Hevlyn Celso

NAMORO - Simões e Juliana, juntos desde 2008

Saiba mais sobre o assunto nossites da Associação para Valoriza-ção e Promoção de Excepcionais(www.avape.org.br), da Associaçãopara o Desenvolvimento Inte-gral do Down (www.adid.org.br)e da Associação Carpe Diem(www.carpediem.org.br).

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PÁGINA 6 - AGOSTO DE 2009

No último dia 25 de abril foi lan-çada a segunda edição do livro “Dos-siê Ditadura: Mortos e DesaparecidosPolíticos no Brasil (1964-1985)”, or-ganizado por Crimeia de Almeida, Ja-naína de Almeida Teles, Suzana K.Lisboa e Maria Amélia Teles. A obraatualiza os números de mortos e de-saparecidos durante esse período.

Estima-se o total de 426 mortos edesaparecidos. O número de vítimasnão é definitivo, pois não foi possívelo acesso aos arquivos militares. Mes-mo assim, as investigações conti-nuam e espera-se em breve ter o nú-mero oficial de pessoas que sofreramas penas do regime militar.

Janaína Teles é filha de César eMaria Amélia, militantes do PartidoComunista do Brasil (PC do B) naditadura militar. Aos 5 anos, ela pre-senciou a bárbara tortura de seus paise hoje, aos 42 anos, é historiadora euma das autoras, ao lado de familia-res, de uma ação na Justiça contra oex-coronel Carlos Alberto BrilhanteUstra, apontado como responsávelpor sequestros, mortes e torturas noDepartamento de Operações de In-formações e Centro de Operações deDefesa Interna, oDOI-Codi de SãoPaulo, entre 1970e 1974, à época oórgão de inteli-gência e repressãodo governo.

Quem tam-bém sofreu sob ogoverno militarfoi Ivo Herzog, filho de Vladimir Her-zog, jornalista da TV Cultura de SãoPaulo que, em 25 de outubro de 1975,apareceu morto nas dependências doDOI-Codi, do 2º Exército de São Pau-lo. Ivo engajou-se na criação do Insti-tuto Vladimir Herzog, lançado emjunho, na Sala Cinemateca (Zona Sul).“Não gosto de saber que tem pessoasque foram criminosas e ainda estão aívivendo em cima da máquina do Es-

tado, usando os impostos que a gen-te pagou”, comenta sobre o ex-coro-nel. “Eu prefiro olhar para frente aolhar para trás”, completa.

Diante de todo esse cenário queenvolveu milhares de pessoas, entremortos, desaparecidos, torturados,perseguidos, presos e seus familiares,o Cidadão entrevistou duas vítimasda ditadura militar. São pessoas quesofreram e sofrem com as tristes mar-cas do regime mi-litar e tentam, ain-da hoje, recons-truir suas vidas,sempre com asombra do passa-do. Um deles é oadvogado AlcídioBoano, hoje com81 anos, que viveem São Paulo e se diz o “orgulho”dos dois filhos e quatro netos. O se-gundo entrevistado é o aposentadoMichéas Almeida, o Zezinho do Ara-guaia, 71 anos. Ele mora atualmenteem Goiás e ministra palestras no Ins-tituto Araguaia.

Em 1974, Alcídio Boano era pre-sidente do Sindicato dos Condutoresde Veículos de São Paulo. Trinta e cin-co anos depois, ele relata as repressõesque sofreu durante aquele momento

histórico tão difí-cil vivido por inú-meros brasileiros.O sindicalista as-sumiu o cargopor meio de ummandado de se-gurança, e lutoupor algum tem-po para que as

empresas de ônibus regularizassem oregistro dos trabalhadores. Por essainiciativa, foi considerado comunistae enviado para o Departamento deOrdem Política e Social (Dops).

Eleito, pela terceira vez, para a di-retoria geral do sindicato, teve suas cre-dencias negadas e ainda foi entreguenovamente ao Dops, que chegou aexigir do sindicalista a Ata do Dissí-dio, porque nela havia o registro dos

Vítimas do regime que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985 narram perseguições, censura e tortura

trabalhadores que se manifestavamcontra a ditadura.

Boano recusou-se a oferecer o do-cumento e, no início de 1975, foi oprimeiro da diretoria a ser preso e tor-turado. Logo depois, outros dez dire-tores foram para a cadeia. “Eles amar-ravam o pé e os braços, e aí era fio naspernas, fio nos braços e no pescoço.Cheguei a ter 32 perfurações dos fiosdescascados. Levei chutes nos testícu-

los. O primeiro eo segundo doíammuito; no tercei-ro, desmaiei”,lembra Boano,que pensou que iamorrer.

O processopara sua libertaçãodurou seis meses.

O DOI-Codi queria que o sindicalistaconfessasse 12 reuniões consideradas“subversivas”. No entanto, para ele,eram “365 reuniões por ano”, relata.O então delegado do Dops, AlcidesSigilus, ameaçou devol-vê-lo ao DOI-Codi por causa dessa recusa, o que nãoaconteceu.

Os breves relatos de Boano dãouma ideia do que significa ter sido umpreso político e encarcerado na dita-dura. Por isso, encaixa-se no perfil deum excluído pelo regime militar. Elediz ter sido vizinho de cela de Vladi-mir Herzog, jornalista que se tornouum mártir. Seu assassinato pelos mi-litares retratou seu compromisso como ideal libertário.

REAÇÃO NO CAMPO

A Guerrilha do Araguaia aconte-ceu no campo, na região do Bico doPapagaio, às margens do rio Araguaia,entre cidades do Pará, Goiás e Tocan-tins. É considerado o mais sério con-fronto armado no campo entre as es-querdas e o regime militar. Começoua se organizar em 1966, tendo à frenteativistas do PC do B que se instalaramna região, mas o embate só iniciou defato em abril de 1972.

O paraense Zezinho do Araguaia

é um dos poucos sobreviventes daguerrilha. Em entrevista, ele conta umpouco de seus difíceis e trágicos diasde militância política.

Zezinho começou a atuar na Ju-ventude Operária Católica. Foi paraGoiânia em 1959 e em 1962 filiou-seao PC do B de Goiás. Ali, começousua trajetória em defesa da condiçãode camponês, visando a sua integra-ção e o reconhecimento da região. “Es-sas iniciativas faziam parte do treina-mento militar e reconhecimento dospossíveis campos de batalhas, comopreparação para uma ofensiva de milí-cia”, afirma.

Sua adesão ao movimento eraclandestina, e em todo o país aconte-ciam movimentos sociais que encabe-çavam a investida na mata, reunindoos militantes mais expressivos, entre

REALIZAÇÃO - Hoje, com 81 anos, Alcídio Boano é advogado atuante

Arquivo Pessoal

POLÍTICA

Antonia RomanoDenisa Silva

Retrato de presos políticos na ditadura militar

OEA julga Brasil porGuerrilha do Araguaia

Wagner Luis Solà

No último dia 9 de abril, a Orga-nização dos Estados Americanos(OEA) abriu ação contra o Brasil nocaso da Guerrilha do Araguaia. Pelaprimeira vez na história, o país irá àcorte para prestar contas da detençãoilegal, tortura e desaparecimento de 70pessoas ligadas à guerrilha e campo-neses daquela região durante a dita-dura militar.

Desde a criação dessas instâncias,o Brasil era o único país da Américado Sul imune a este tipo de ação. Seusvizinhos, Argentina, Uruguai e Chile,já prestaram contas para o mundo dasbarbáries ocorridas no regime militar.Isso está tirando o sono das autori-dades brasileiras, que estão preocupa-

das com a imagem do país no cenáriomundial e com os valores que terãode desembolsar em caso de indeniza-ções. O ministro Paulo Vannuchi (Di-reitos Humanos) propôs aos Minis-térios da Justiça, da Defesa e dos Di-reitos Humanos uma diligência aoAraguaia com a participação da impren-sa e familiares de desaparecidos paralocalizar corpos.

O Grupo Tortura Nunca Mais temcomo objetivo defender os direitoshumanos, por meio da luta contra aviolação a tais direitos e do apoio àcausa, e também mostrar a história doBrasil durante a ditadura.

O site do Grupo, sediado no Riode Janeiro, é www.tortura-nuncamais-rj.org.br. Há filiais nos Estados doParaná, Pernambuco e São Paulo.

eles José Genoíno, hoje deputado fe-deral pelo Partido dos Trabalhadores.

“Tenho 47 anos de militância po-lítica, 33 anos de clandestinidade, maisde 80 nomes usados neste período.De 1975 a 1996 [21 anos], sofri umbloqueio psicológico e esta história fi-cou ausente da minha vida e, hoje,volta e meia, lembro-me de pedaçosdesse passado. Aprendi uma lição: nãome afasto dos meus companheiros desofrimento para não esquecer nuncamais do meu passado”, diz Zezinho.

Ele estima que restaram apenas 12sobreviventes da guerrilha. Atualmen-te, planeja fundar um memorial emhomenagem aos mortos e desapare-cidos do Araguaia, na cidade de Xam-bioá (GO). Em sua opinião, a guerri-lha foi uma investida contra a ditadu-ra, a partir do campo.

Arquivo Pessoal

HISTÓRIA - Durante a ditadura militar, Zezinho do Araguaia foi obrigado a trocar de nome mais de 80 vezes

“Levei chutes nostestículos. O primeiroe o segundo doíammuito; no terceiro,

desmaiei”Alcídio Boano

“Não me afasto dosmeus companheiros

de sofrimento para nãoesquecer nunca mais

do meu passado”Zezinho do Araguaia

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AGOSTO DE 2009 - PÁGINA 7POLÍTICA

A ditadura militar no Brasil(1964-1985) não foi um movi-mento isolado. Foi instituída, as-sim como em outros países daAmérica Latina, para reforçar opapel dos Estados Unidos, paíshegemônico do bloco capitalista,que buscava nesses “mini-impé-rios” da região o apoio para lutarcontra a liderança da então Uniãodas Repúblicas Socialistas Sovié-ticas (URSS, que nos anos 90 setornaria somente União Soviéti-ca) no embate conhecido comoGuerra Fria.

Em outras palavras, muitospaíses vizinhos ao Brasil tambémvivenciaram suas respectivas di-taduras, que, num contexto in-ternacional, objetivavam reforçara prática do capitalismo sob o po-derio dos EUA.

O Brasil não ficou fora disso.Para reagir aos desmandos do re-gime, as manifestações de esquer-da afloraram. Destacam-se aGuerrilha do Araguaia, um mo-vimento que surgiu no campo, naregião do Bico do Papagaio, nonorte do país, sob a coordenaçãode militantes do PC do B; a Tro-picália, que tentou seguir os mol-des da contracultura norte-ame-ricana, além de protestos estu-dantis e a atuação da imprensaalternativa e dos sindicatos.

(D.S. e M.L.R.)

Os 21 anos queabalaram o país e

mudaram a história

Expressão “ditabranda” gera polêmicaAntonia RomanoWagner Luis Solà

Em editorial de 17 de fevereiropassado, o jornal “Folha de S.Paulo”usou a terminologia “ditabranda” aoassociar críticas ao presidente venezue-lano Hugo Chávez a um comentáriosobre o governo militar no Brasil.

Ao analisar os regimes autoritá-rios vividos pelos países da AméricaLatina no século passado, o jornal clas-sificou a experiência brasileira como“ditabranda”, entendendo que, aqui,ela foi menos violenta do que em ou-tros países.

Na Argentina, o regime militardurou de 1976 a 1983 e cerca de 30 milcivis foram mortos, o maior númeroda América Latina. No governo do ge-neral chileno Augusto Pinochet, entre1973 e 1990, estima-se que 3,2 milpessoas morreram. A ditadura uru-guaia começou em 1973 e ocorreu até1985. Lá, os mortos chegaram a 300.

No dia 20 de fevereiro surgiram asprimeiras críticas ao jornal por meiode acadêmicos, entre eles Fábio Kon-der Comparato e Maria Victoria Bene-vides, ambos professores da Univer-sidade de São Paulo (USP). Uma notada redação interpretava a reação dosintelectuais como “cínica e mentiro-sa”, uma vez que são “figuras públi-cas” que até hoje não expressaram re-púdio a ditaduras de esquerda, numareferência clara ao governo Chávez.

Tanto Comparato quanto MariaBenevides já haviam criticado o regi-me cubano, inclusive o primeiro che-gou a fazer ressalvas a Cuba no Painel

do Leitor, espaço reservado às cartas quechegam à redação. A resposta aos inte-lectuais expôs a imagem do jornal. Apartir de 21 de fevereiro circulou naInternet o manifesto Repúdio e solida-riedade, que consistia em abaixo-assi-nado eletrônico que condenava o usodo termo “ditabranda”.

O documento teve ampla reper-cussão na rede mundial de computa-dores, conclamou a uma manifesta-ção do Movimento dos Sem-Mídiaem frente ao prédio do jornal, ocorri-da em 7 de março. Houve participação

de cerca de 500 pessoas, segundo osorganizadores. O protesto ocorreuespontaneamente, contando com oapoio de entidades de direitos huma-nos e de ex-presos políticos, partidospolíticos, jornalistas independentes esites. Já o abaixo-assinado virtual co-lheu mais de 8 mil assinaturas.

No dia seguinte, o diretor de re-dação da “Folha”, Otavio Frias Filho,admitiu que o termo “ditabranda” foiusado erradamente, pois “tem umaconotação leviana que não se presta àgravidade do assunto”, mas classifi-

cou Comparato e Maria Benevidescomo “democratas de fachada”.

Em 14 de março, os dois pro-fessores conseguiram um direito deresposta no jornal, falando que “le-var mais de duas semanas para reco-nhecer um desatino editorial nãoparece um comportamento compa-tível com a ética do jornalismo”. A“Folha” manteve a postura agressi-va: “imaginava-se encerrado o epi-sódio, mas os professores estão em-penhados em extrair dele o máximorendimento possível”.

REPÚDIO - Militantes protestam contra editorial na entrada da “Folha” em 7 de março passado, no centro

Em 1964, exatamente no dia 1ºde abril, o Brasil passou a viver umdos momentos mais tristes de suahistória: a ditadura militar. Durante21 anos, o país sofreu conflitos quegeraram censura, terrorismo, tortura eguerrilha (luta armada realizada pormeio de pequenos grupos constituí-dos irregularmente, sem obediência àsnormas estabelecidas nas convençõesinternacionais), causando a perda de426 brasileiros, segundo estimativaoficial. Compositores, escritores, mi-litares, camponeses e muitos outros

foram exilados, torturados e mortosnuma tentativa de se ocultar fatos eexcluir pessoas que buscavam, pormeio de protestos e manifestações,mudar o curso da história do Brasil.

O governo de Emílio Médici(1969/1974), por volta de 1973, emum dos momentos mais críticos daditadura, subsequente ao AI-5, numatentativa de melhorar a sua imagemjunto ao povo, gastou milhões comcampanha publicitária. E um dos slo-gans dessa propaganda foi Brasil, ame-o ou deixe-o, que sugeria diretamente a

MANIFESTAÇÕES - A ditadura não foi movimento isolado, marcando os governos entre 1964 e 1985

retirada voluntária dos insatisfeitos dopaís, só permanecendo os que eram afavor do regime militar.

Como os direitos fundamentaisdo cidadão estavam suspensos, qual-quer um podia ser preso se fosse de-sejo do governo. Nas escolas, nas fá-bricas, na imprensa, nos teatros, a so-ciedade brasileira sentia a mão de ferroda ditadura. Foram tempos difíceispara os brasileiros que, mesmo com o“milagre econômico”, tiveram suasvidas roubadas e perdidas por duasdécadas. (A.R. e M.L.R.)

Ato Institucional Número 5endurece o regime em 1968

PORTAS FECHADAS - Reunião entre ministros e presidente aprova o AI-5

O Ato Institucional Número 5(AI-5) foi criado em 13 de dezembrode 1968, numa reunião no Palácio La-ranjeiras, composta por membros doalto escalão do governo militar. Foio 5º decreto emitido pelo regime mi-litar, um instrumento que dava aosmilitares poderes absolutos, cujasconsequências foram: decretar o re-cesso do Congresso Nacional; inter-vir nos Estados e municípios; cassarmandatos parlamentares; suspender,por dez anos, os direitos políticos dequalquer cidadão; decretar o confiscode bens considerados ilícitos; e sus-pender a garantia do habeas-corpus,entre outras.

O que provocou a promulgaçãodo AI-5 foi um discurso do depu-tado Márcio Moreira Alves, doMDB, na Câmara, no início de se-tembro, lançando um apelo para queo povo não participasse dos desfilesmilitares do 7 de Setembro. Ao fimdo mês de dezembro, 11 deputadosfederais foram cassados, entre elesMárcio Moreira Alves e HermanoAlves. A lista de cassação aumentouno mês de janeiro do ano seguinte,atingindo não só os parlamentares,mas também ministros do Supre-mo Tribunal Federal.

O ano de 1968 ficou conhecidocomo “o ano que não acabou”, emtodo o país multiplicavam-se os pro-testos e manifestações por parte dosestudantes.

Saiba o que foi a ditadura militar no Brasil

Denisa SilvaMarcos Leandro Redondo

Mem

ória Estudantil/O

Globo

Brasil A

utogestionário/Pablo Sim

psonR

eprodução/Folha Imagem

/11.jul.68

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PÁGINA 8 - AGOSTO DE 2009 SOCIEDADE

Fora do batente, militar sente-se excluído ao ocultar profissão na hora de voltar para casa

Daniele De CurtisIgor Savani

Ser um policial militar requer mui-tas habilidades e competências, por-tanto, não seria justo compararmoscom outras profissões. Mesmo assim,de acordo com as leis trabalhistas, opolicial militar é comparado com ou-tros tipos de trabalho. O fato é que,na prática, sabemos que não é assimque funciona. Muitas vezes, sem horapara dormir, os policiais perdem noi-tes de sono e consequentemente nãodescansam o necessário para aguentaro tranco do trabalho. Além disso, pormedidas de segurança, a maioria dospoliciais militares não usa a farda apóso horário do expediente. Em suas ca-sas, nem mesmo no varal estendem afarda para evitar que os vizinhos sai-bam que são policiais.

O PM F.L.P. revela que “quandotrabalhava todos os dias com a farda,sim. Voltava para casa sem ela, parapoder me proteger e à minha famí-lia”. Inúmeros policiais que voltavampara suas casas fardados já sofreramagressões, enquanto que outros per-deram suas vidas.

A sociedade de um modo geralcostuma dizer que os policiais nãoprestam e que são corruptos. O fato éque, assim como em todas as outrasprofissões, existem aqueles que são eos que não são honestos. No caso dapolícia, existe a corregedoria, órgão res-ponsável por fiscalizar e punir os po-liciais que não agem corretamente. Parao PM, “a sociedade vê a polícia como

Isadora Lins/Centro de Mídia Independente-SP

Policial evita farda por segurançaDiante da globalização, houve

uma evolução na violência urbana. Asorganizações criminosas buscaram nastecnologias de ponta existentes e dis-poníveis os meios de aperfeiçoarem ede perpetuarem seus atos de ilicitu-des. Entretanto, não vemos medidaseficientes que visem a segurança pú-blica sendo colocadas em prática pelogoverno.

O presidente do Sindicato dosDelegados de Polícia Federal (Sinde-pol), Joel Zarpelon Mazo, ironiza: “Aviolência se manifesta quando as ‘ne-cessidades’ do ser humano não satis-fazem, assim este usa da violência parasanar essa lacuna.”

É relevante que o Estado man-tenha os policiais valorizados, istoé, investir em sua capacitação paraque possam executar o seu ofício demaneira satisfatória, o que tambémtrará benefícios na área pessoal e so-cial deles.

Joel Zarpelon Mazo faz uma ana-logia relacionada ao meio social. Elecaracteriza os cidadãos como sendo oscordeiros. Esses são bons, trabalha-dores e não pensam em violência; sãoos vulneráveis. Nesse mesmo meiosocial, existem os que roubam, os quematam; esses são os lobos. E paraproteger os cordeiros dos lobos há oscães pastores, que são os policiais.

Ser um policial militar é uma dasprofissões mais difíceis existentes, tan-to que, de acordo com a Organizaçãodas Nações Unidas (ONU), é consi-derada como a segunda profissão maisinsalubre, perdendo somente para osmineiros das minas de carvão.

Daniele De Curtis

Cordeiros, lobose cães pastores

um mal necessário”.Embora muitos ainda não te-

nham se dado conta, hoje em dia opolicial não possui uma função espe-cífica. Ele é chamado para separar umabriga de casal, realizar um parto etc.Atualmente, o salário mensal de umpolicial militar é R$ 450,00; porém,com as premiações, pode chegar a R$1.500,00. No momento, o PM F.L.P.trabalha na Assessoria Militar do Fó-rum e recebe R$ 2.550,00 por mês.Esse departamento é responsável porcuidar de autoridades ameaçadas.

Após receberem um chamado, di-versos policiais não vão de imediatoatendê-lo, usam como justificativa abaixa remuneração. No entanto, se éuma ocorrência de uma pessoa rica,

logo a situação é resolvida.Fora isso, os criminosos de diver-

sas regiões impõem suas leis nos bair-ros e estão se tornando “heróis” dosmoradores. Esses são um dos moti-vos que causam insegurança na popu-lação com relação aos policiais.

Para um policial honesto sobrevi-ver com dignidade, isto é, ter condi-ções de sustentar sua família, pagarsuas contas, não basta ter apenas umaprofissão, é necessário fazer bico.

Na polícia militar existe desde 2002um programa de assistência social, queé uma ferramenta de reestruturaçãoemocional e psicológica do policial.Durante o processo de recuperação, eleé afastado pelo tempo que for neces-sário. Estatísticas comprovam que no

ano de 2001 ocorreram 250 casos desuicídio de policiais e em 2008 essenúmero caiu para 52.

Quanto à violência, o PM F.L.P.relata a sua indignação: “A injustiça émuito grande, o homem que mataoutra pessoa, não deu a menor chancepara que ela pudesse se defender. Noentanto, quando ele é preso, tem di-reito a muitas coisas. Se o presidiáriovai lá e queima o colchão, outro serácomprado. Ele tem direito a tomarbanho de sol, etc. Se tiver bom com-portamento, logo será solto. Acho queo pior tipo de crime que existe é ohomicídio, ninguém tem o direito detirar a vida do outro, isso inflige osdireitos humanos. Para esse crime de-veria ser dada a prisão perpétua. Claroque o estupro também é muito grave,mas é o que eu disse sobre tirar a vidado outro.”

Para o PM F.L.P., deveria existirsomente um tipo de polícia, a esta-dual, porque há muitos conflitos en-tre policiais civis, militares e federais.A polícia civil cuida da parte judiciá-ria, ou seja, é o lado investigativo. Apolícia militar cuida da parte repreen-siva. Porém, ocorre a intervenção deum no trabalho do outro. Se hou-vesse apenas um tipo de polícia, eleacredita que a criminalidade diminui-ria. É relevante que ocorra uma alte-ração no código penal. Para realmen-te haver uma mudança, tem que co-meçar lá do topo, ou seja, do gover-no. Esse é o ponto chave para a me-lhora da atual situação de violência aqual convivemos diariamente.

PRECAUÇÃO - Para não correr riscos, farda só durante o trabalho

CIDADANIA

Lei federal estipula 10% de assentos nos transportes coletivos para os idosos

Velho é o seu preconceito

Graziele MagatonMilene RolanRenata Cinci

A aposentada Deolinda Alves, 72anos, utiliza o transporte público parair ao médico, visitar parentes, comprarremédios. Ela mora no Tatuapé, ZonaLeste, e já foi destratada no ônibus.“Além de algumas vezes ter que pagara condução, já fui agredida verbalmentepor um jovem que estava sentado nobanco destinado a idosos. Isso é ocúmulo”, afirma.

O Instituto Brasileiro de Geogra-fia e Estatística (IBGE) considera ido-so a pessoa com 60 anos ou mais –mesmo limite de idade definido pelaOrganização Mundial da Saúde (OMS)nos países em desenvolvimento.

Apesar da população de idososrepresentar um contingente de quase15 milhões de pessoas (8,6% dos bra-sileiros), envelhecer no país não é fácil.A cada dia torna-se mais difícil o direi-to de ir e vir nos transportes coletivos.Somam-se os problemas relativos àprópria idade, as solicitações nas para-das que não são atendidas, a recusa dacarteira de identidade como compro-vação da idade – na falta do BilheteÚnico Especial –, e o pouco caso como direito de sentar em bancos espe-ciais – identificados com a cor cinzano metrô e amarela nos ônibus –, de

acordo com a lei 10.012, de 13 de de-zembro de 1985.

Gestantes, deficientes e crianças decolo também deixam de ser respeita-dos. Devido a estas questões, algu-mas denúncias foram registradas noConselho dos Direitos do Idoso deSão Paulo. De acordo com a lei 11.487,de 11 de março de 1994, as empresasde ônibus cujos motoristas desrespei-tarem os direitos dos idosos estãosujeitas à aplicação de multas.

Segundo a Secretaria Municipal deTransportes de São Paulo, é crime im-pedir maiores de 65 anos de utilizargratuitamente os transportes públicos

coletivos. “Não é justo pagarum valor que eu não tenhoobrigação. Tenho os meus di-reitos”, diz a aposentadaDeolinda.

Alguns motoristas têm serecusado a transportar usuá-rios idosos que não possuema carteira de identidade com oregistro: “maior de 65 anos”.Em contrapartida, o motoris-ta de ônibus José Lima – li-nha Guarulhos (Jardim Pal-mira/Parque Continental),com final no metrô Tucuruvi,Zona Norte – diz que aceitaqualquer tipo de documento,desde que possua foto. Na lei11.381, de 17 de junho de

1993, fica instituída a isenção do paga-mento de tarifa de ônibus às mulhe-res maiores de 60 anos e aos homensmaiores de 65 anos.Com a implantação dabilhetagem eletrônicaem 2003, os idosos nãotêm de apresentar docu-mento e passam pelacatraca como os demaisusuários. Contudo, al-guns motoristas conti-nuam a exigir o docu-mento.

A falta de respeitopara com o idoso, em

grande parte, é dos jovens que nãocedem seus lugares. Não se levantam,discutem e alguns até se exaltam aponto de partir para a agressão.

O estudante de direito RodrigoSchezzari, 24 anos, que prefere nãoidentificar sua faculdade, diz que nãoé confortável atender ao pedido de umidoso sempre que ele quer. “Eu seique um dia ficarei assim, mas às vezesestou cansado e quero dormir. Inde-pendente da idade, se o banco não fordestinado para eles, tenho o mesmodireito de ficar sentado”, diz.

“Acho que eles poderiam evitar ohorário de pico, pois mesmo sem que-rer, eles atrapalham, ocupando luga-res que poderiam ser usados por aque-les que trabalharam o dia inteiro”, afir-ma Schezzari. Nos veículos de trans-porte coletivo é obrigatória a reservade 10% dos assentos para os idosos,

conforme aviso legível.O envelhecimento

da população brasilei-ra é reflexo do aumen-to da expectativa devida, devido ao avançono campo da saúde e aredução da taxa de na-talidade. Estima-seque em 2020 a popula-ção com mais de 60anos deva chegar a 30milhões de pessoas,

O Estatuto do Idoso foi apro-vado em setembro de 2003 e san-cionado em outubro, ampliandoos direitos dos cidadãos com ida-de acima de 60 anos. Mais abran-gente que a Política Nacional doIdoso, lei de 1994 que dava garan-tias à terceira idade, o estatuto ins-titui penas severas para quem des-respeitar ou abandonar cidadãos daterceira idade.

Seis anos depois

cerca de 13% do total.O aposentado Joaquim Prizon, 78

anos, utiliza mais o metrô. Diz prefe-rir assim porque a aerodinâmica dosônibus não condiz com seu tipo físi-co. “Fica muito difícil de subir e desceras escadas dos ônibus”. Em relaçãoaos bancos, o metrô ganha em suacomparação: “Os assentos estão qua-se sempre cheios, mas são idosos, ce-gos ou gestantes que se acomodam”,afirma Prizon. “Acho que deveriamexistir mais bancos destinados ao usopreferencial.”

Um funcionário do IBGE, uni-dade do Itaim Bibi, que prefere não seidentificar, afirma que “nunca foi feitauma pesquisa sobre os maus tratos aidosos em transportes coletivos pú-blicos; quem sabe futuramente elesvenham a fazer.”

Desde 2002, o dia 15 de junho éconsiderado o Dia Mundial de Cons-cientização da Violência à Pessoa Ido-sa. Não é a toa que a data é poucoconhecida entre os brasileiros.

O idoso tem direito:

À vida;Ao respeito;Ao atendimento de

suas necessidadesbásicas;

À saúde;À educação;À moradia;À justiça;Ao transporte.

RESPEITO - Deolinda: “Tenho meus direitos”

Graziele Magaton

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TRABALHO

Profissão recém reconhecida pelo governo traz benefícios, mas ainda reflete preconceito e isolamento

Mulher vê destino no ofício de domésticaAGOSTO DE 2009 - PÁGINA 9

Elas lavam, passam, cozinham efazem até parte da família. Hoje, serempregada doméstica é uma profis-são como outra qualquer, mas aindahá preconceito. O trabalho domésticotorna a prestadora de serviço e osempregadores muito próximos e fre-quentemente cria um vínculo afetivoque tem seus pontos positivos, maspodem trazer problemas e servir deempecilhos a direitos trabalhistas.

Ter aquele quarto na área de servi-ço destinado somente a ela atualmen-te não é algo que possa privilegiar, massim algo como uma exclusão social.O preconceito é gerado pela falta deestudos destas trabalhadoras e a so-ciedade infelizmente acaba gerandouma exclusão desta classe.

Outro problema pouco divulga-do é a saúde mental destes profissio-nais, pois ao se envolver emocional-mente com seus patrões, sofrem comos problemas deles, comemoram comsuas conquistas, mas quando encarama realidade de que não fazem parte da-quela família acabam sofrendo dema-siadamente.

“Mesmo não podendo, eu sem-pre acabo comprando o que quero,ainda mais porque eu pago do jeitoque posso”, afirma, com um grandesorriso, Iraildes de Jesus, 39 anos. Emseguida, exibe um novo carnê de pres-tações que vai começar a pagar.

Ligia Cuesta

Ana Luiza B

utinhão

Natamy InokuchiRaquel Ramos

Ofensas de colegas afetam adolescentesPais e professores preocupam-se com violências verbais e físicas do chamado bullying nas escolas

Eduardo StartariThiago Fonseca

COMPORTAMENTO

João Pedro, de 9 anos, já se acos-tumou com o fato de não poder jogarbola com os colegas. Diz ele que seupeso o deixaria lento e ele não conse-guiria acompanhar o ritmo do jogo.Para quem vê a foto ao lado, a afirma-ção é absurda para uma criança que apa-rentemente não sofre com a balança.Porém, há de se levar em consideraçãoque na escola onde estuda são seuspróprios colegas que não o deixamjogar, menosprezando-o e criticandoa sua aparência.

Uma prática bem comum nas salasde aula é o ato de um colega provocar ooutro. Mesmo que a vítima não aceite abrincadeira, o agressor continua humi-lhando sem se importar com seus sen-timentos. Essa ação está ligada aobullying, palavra inglesa que não tem tra-dução para o português, mas significauma forma de violência não explícitarealizada pela intimidação.

O ambiente escolar, na teoria, erapara ser um lugar de aprendizado e declima amistoso. Essa situação, no en-tanto, acaba não acontecendo. Para al-guns jovens, o local se transforma emuma verdadeira competição pela so-brevivência de seu lado emocional.

Um grupo de amigos pode se reu-nir, marcar eventos e se divertir. Po-rém, com um olhar mais atento, exis-te a possibilidade de achar um deles

que não está tão feliz. Naverdade, pode até mesmoestar triste e magoado.Nesses casos, é bem pro-vável que o indivíduo es-teja sendo vítima debullying.

Para entender essecomportamento, primei-ro é preciso aceitar queocorre em qualquer tipode instituição educacional.Todo dia, crianças e ado-lescentes são sujeitos aapelidos de mau gosto,discriminação por moti-vos fúteis, podendo va-riar desde a cor do cabelo,a altura e peso da pessoaaté seu nome. Persegui-ção essa que pode chegarao extremo com ferimen-tos na pele causada por agressão física.

Formado no ensino médio peloColégio Alicerce, na Zona Sul de SãoPaulo, o estudante Pedro Santana, 22anos, conta que já sofreu por causa deataques relacionados ao bullying. “Euprocuro ignorar, mas mesmo assimvocê está do lado ouvindo e é bemchato”. No mesmo colégio, a estudan-te Juliana Gomes, 23 anos, concordaque já foi atingida e testemunhou ca-sos parecidos. “Quase todo dia temum que mexe com o outro para pro-vocar. A pessoa não fez nada mas estálevando desaforo. Um dia, me ‘zoa-

ram’ e eu voltei para casa bem chatea-da, nem tive vontade de comer”, diz.

O site www.bullying.com.br defi-ne esse comportamento como sendo“todas as formas de atitudes agressi-vas, intencionais e repetidas, que ocor-rem sem motivação evidente, adota-das por um ou mais estudantes con-tra outro(s), causando dor e angústia,e executadas dentro de uma relação de-sigual de poder”.

São três tipos de pessoas que es-tão reunidas nesse cenário: os agres-sores, as vítimas e as testemunhas. Astestemunhas silenciosas têm medo de

intervir nesses casos, pois acreditamque é arriscado defender alguém queestá sofrendo, pois podem se tornaras próximas vítimas. As pessoas quesofrem com esse processo podem setornar adultos com problemas de re-lacionamento e até mesmo, em casosextremos, tentar o suicídio. Além dis-so, podem adotar algum tipo de com-portamento agressivo. Já os autoresdo bullying podem ficar agressivos noambiente familiar, praticando a vio-lência doméstica e até cometer atos dedelinquência e de criminalidade.

A psicóloga Juliana de Mesquita,35 anos, que possui um consultóriona Zona Leste, diz que apesar do tra-tamento com médicos especialistas, éindispensável que haja o acompanha-mento dos pais. Eles precisam mos-trar aos filhos que vão ajudá-los a en-contrar uma solução. A própria psicó-

loga teve um caso similar em casa. Seufilho, o João Pedro do começo da re-portagem, era constantemente ofen-dido na escola pelo fato de ser obeso.Juliana explica que o primeiro passo éidentificar o tipo de bullying, depoistomar providências junto à adminis-tração. O terceiro passo, no caso doJoão Pedro, é fazer com que ele enten-da que isso é somente uma fase, e ex-plicar a importância de fazer uma die-ta para emagrecer.

A prática do bullying atrai cada vezmais atenção. A novela “Caminho dasÍndias”, exibida atualmente pela RedeGlobo, também aborda o assunto. Atrama retrata um grupo de amigos,liderados pelo personagem de DudaNagle, que agride e zomba dos cole-gas na escola, além de provocar a pro-fessora e não mostrar nenhum res-peito pelos outros.

Agressões cotidianasEm 2002, um estudo levantado

pela Associação Brasileira Multipro-fissional de Proteção à Infancia e àAdolescência (Abrapia), entrevistou5.875 alunos de 5ª a 8ª séries de 11escolas localizadas no Rio de Janeiro.O resultado revelou que 40,5% dosestudantes estiveram envolvidos como bullying, sendo 16,9% alvos, 10,9%alvos/autores e 12,7% autores.

Na Grã Bretanha, foi realizadauma pesquisa sobre bullying que re-gistrou que é de 47% a quantidadede alunos que admitem ter sofridobullying, ao menos uma vez por se-mana. A frequência é muito maiorcom os meninos, tanto como auto-res quanto como alvos. Entre as me-ninas, embora com frequência me-nor, o bullying também ocorre e temcomo característica a prática de exclu-são ou difamação.

Luciano Oliveira

O dia 27 de abril foi escolhidocomo o das Empregadas Domés-ticas por ser a data que celebra San-ta Zita. A santa nasceu na Itália em1218 e, aos 12 anos, começou a tra-balhar como empregada domésti-ca, tendo exercido a função por vá-rias décadas. Generosa e humilde,costumava dividir sua comida esuas roupas com os pobres. Mor-reu em 27 de abril de 1278, foi ca-nonizada em 1696 e proclamadapadroeira das empregadas domés-ticas pelo Papa Pio XII.

Padroeira doméstica

O governo federal prepara umaProposta de Emenda Constitucional(PEC) para acabar com a discriminaçãoque consta na Constituição contra ostrabalhadores domésticos. A propostapermitirá a equiparação dos direitosdos empregados domésticos com osdos demais trabalhadores. Cinco mi-nistérios – Trabalho, Previdência So-cial, Casa Civil, Fazenda e Planejamen-to – trabalham no projeto que devechegar ao Congresso até o final do ano.Se for aprovado, o doméstico terá di-reito a jornada de trabalho estabelecidaem lei, hora extra, adicional noturno,salário-família e Fundo de Garantia,que passará a ser obrigatório.

Maria José, 26 anos, nascida em Ro-sário no Maranhão, veio para São Pau-lo com 14 anos e começou a trabalharaos 17 como telefonista. Logo ingres-sou como doméstica e foi contratadapara cuidar da casa e da empresa de umafamília. Certa vez, seus patrões forampara Fortaleza a passeio e gostaram tan-to que acabaram se mudando para lá.Maria foi junto. Para ela, não foi difícilaceitar o convite para se mudar, já queeles eram “como da família.”

Porém, diz que não foi fácil morarno local de trabalho, pois, após termi-nar seus deveres, não tinha com quemconversar e sentia-se sozinha. Devido

Julio Escudero

A diarista pernambucana veio paraSão Paulo com o intuito de conseguirum emprego e uma vida melhor, masacabou se relacionando com um ami-go da família e engravidou em pou-cos meses, deixando de lado estudose o trabalho em uma fábrica de canos.

Iraildes optou pela profissão deempregada doméstica. Era o que sa-bia fazer e que não exigia diploma.Desde então, já passou por nove ca-sas, e há dois anos e meio sustentapraticamente sozinha sua família comum salário de R$ 435,00. Ela relata quegostaria de terminar seus estudos eser registrada em carteira. Em seus diasde folga, costuma sair para dançar efazer compras.

à mudança repentina, parou os estu-dos e foi perdendo a esperança de teruma vida melhor. Por isso, decidiuvoltar para São Paulo após 10 anosmorando no Ceará.

Quando criança, Maria espelhava-se em sua irmã mais velha. Ela voltoua estudar, mora no Sacomã, Zona Sulde São Paulo, e trabalha em uma em-presa de produtos alimentícios comoauxiliar de limpeza. Animada, diz quepretende se casar, ter filhos e dar umbom ensino a eles. “Estudar é bom, étudo na vida; sem estudo é muito maisdifícil conseguir as coisas”, declara Ne-quinha, apelido dado por sua mãe ecomo é chamada até hoje.

Emenda deve garantir melhorias

LIDA - Maria concilia estudo e filhosARRIMO - Iraildes diz sustentar a família praticamente sozinha

ALVO - João Pedro já sofreu com “brincadeiras”

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CULTURAPÁGINA 10 - AGOSTO DE 2009Alexandre Caetano/Divulgação

Acácio Brindo

Um jogo de luzes e gelo seco, opalco transforma-se em uma florestasombria. Um nevoeiro. A cortina abre-se e o cenário é nulo. Uma clareira. Atrilha sonora é delicada e conduz o es-pectador a uma paz, a um vácuo ou auma mera fuga da realidade. Ficamosincógnitos por instantes mágicos.

Os gestos do rabequeiro solitárioe cego são eufemismos humanos. Avoz grave misturada aos sons gutu-rais adentra nossos ouvidos calados enão entendemos direito o que estáacontecendo. Os sons são incômodose por vezes transformam-se em mú-sica, sem percebermos.

O ator se contorce dentro do úte-ro-palco e seus olhos brancos reme-tem-nos aos personagens de “Ensaiosobre a Cegueira”, romance do escri-tor português José Saramago. A in-fância do personagem aflora aos olhosdo sertão, olhos floreados e em todauma ótica da poética pueril.

Pergunta-nos: “Quem sabe olharum cego? Quem é deficiente?”. Asperguntas martelam nossa cabeça àprocura de respostas coerentes. Nãoas achamos.

O irritante farejar do personagemnos faz esquecer o quão difícil é ter osolhos substituídos por narizes. Elecheira o clima, sente o clima nas nari-nas e rodopia em busca de luz. Sãoseus refúgios e sem subterfúgios.

Somos abduzidos ao mundo ne-gro e juntos procuramos o eldorado.Há gritos desnecessários, embora ocego possa ser louco, ou a cegueira“beira” a loucura. “Abismos rasos?Comer ouro em pó? O ouro e a areiatêm gostos iguais para um cego”, la-menta-se o personagem.

Ele dança abraçado a rabeca e de-clara-se à mulher/instrumento/fanta-sia. Corpo de mulher são sinais demudanças. Ele vai além e perpassanosso peito ao dizer: “Solidão não éboa para devaneios” ou “Sou cegopara amar”. As frases-lanças trazemnossas lágrimas discretas.

Nem chuva, nem mulher, nemsono. Ele sentencia no silêncio insus-tentável de conversas truncadas. Des-pe a viola e vira mulher. O clímax.

Cego enxerga nos sonhos? Cegossão morcegos recém nascidos? A ami-zade entre um cego e um surdo e suacaça ao porco. Muitas questões nos sãocolocadas e não sabemos o que é ver-

dade, o que é sonhoou o que é texto dapeça. Abstraímospor instantes incoer-cíveis. O êxtase.

Falsos paraísos são avisos irre-freáveis. Não podemos deixar o pas-sado, pois ele está sempre em frente.Outro sinal da volta ao sertão.

O cego convida-nos a esta via-gem saudosista e implacável de re-torno ao sertão. Apagam-se os ca-minhos novos. Os caminhos são osde sempre e a “nossa cegueira” éúnica novidade.

Não sabemos se somos especta-dores ou personagens e este mimetis-mo traz cansaço. São terríveis as cenasrepetidas nas quais ele toca ou faz ocanto da chuva.

Contudo, novas flechas-verbaisnos atingem: “A vida é ruim. Falsaspromessas. Autopiedade é uma espé-cie de revolta contra uma amiga silen-ciosa”. Nossas feridas são abertas brus-camente.

O eldorado jamais será en-contrado? A destruição, amúsica, aproximam ator/ra-beca/espectadores... O eldo-rado deve estar perto ou éaqui mesmo...

“Eldorado”suscita

modos dever e sentirEstudantes de Jornalismoexercitam o senso crítico

diante do espetáculoconcebido e interpretado

por Eduardo Okamoto

Quando a música guia ossentidos do viver

Thiago Batista

A peça “Eldorado”, apresentadapor Eduardo Okamoto no TeatroImprensa, é um monologo dramáti-co de um sertanejo cego, que, cansadode viver na miséria do sertão, procurauma nova vida em busca do “Eldora-do”, uma possível referência à regiãodo Eldorado dos Carajás (PA).

O espetáculo começa mostrando adificuldade que o cego leva com a vidasolitária, o que o faz ter uma relação deafeto com um violino/rabeca semmesmo saber que o próprio é na reali-dade um instrumento musical.

O cego segue o seu êxodo rumoao desconhecido sem ninguém. En-frentando dificuldades, mas sem per-der a esperança. No trajeto do “im-possível Eldorado” o sertanejo encon-tra muitas decepções. Sempre de pro-sa com “a menina” que na verdade é oinstrumento, ele desabafa todos os

seus anseios e decepções e toda a suaesperança em uma vida melhor.

Vida essa que não tinha sentido. Ocego alimentava muito otimismo e boavontade em relação às dificuldades e vi-nha de uma criação bem humilde e seminstrução. Ele não se importava com osproblemas que viam e buscava sempreforça de vontade em enfrentá-los. Atéque quando se vê decepcionado com avida descobre o sentido de seguir emfrente dentro de “sua menina”.

Quando o cego abre a mochilacom o violino, finalmente percebe quese trata de um instrumento. É ai queo sertanejo encontra a música escon-dida dentro de si e começa a desenvol-ver a habilidade artística (para não re-petir música) que o faz seguir com ale-gria rumo ao “Eldorado”.

Será que ele vai encontrá-lo? Issonão sabemos, mas o sentido de viveratravés da musica, isso já vive dentrodesse sertanejo.

Momentos irritantes de ummonólogo desconexo

Alexandre Gomes

Uma mistura de som, luz e né-voa. É assim que começa uma daspeças mais estranhas a que pude con-ferir: “Eldorado”, monólogo comEduardo Okamoto que fez tempora-da recentemente na cidade.

Demora-se um pouco para que oespectador possa entrar no clima eentender o que o ator solitário tentapassar à plateia.

Com uma voz distorcida, grave eporque não fantasmagórica, o perso-nagem tenta prender a atenção dequem assiste.

Contorções dentro de umútero, olhos apagados, opacos,nos mostram a cegueira da so-ciedade (?). Seria uma forma

de chamar a atenção para aspessoas “comuns”? Colocando

em xeque quem é o deficiente e quemé perfeito? Tudo sem resposta.

Claro que na falta de um dos sen-tidos, a natureza, sábia, utiliza-se deoutro. No caso do personagem, o ol-fato. Ele cheira tudo para poder sentiro ambiente.

Escuridão! É para lá que somosconduzidos. São momentos irritan-tes, que provocam uma vontade qua-se que incontrolável de sair do teatro.É assim que me senti. Veio-me à men-te uma outra peça de igual irritabilida-de: “O Baile” [dirigida há cerca de doisanos por José Possi Neto, obra quetambém deu origem ao filme de mes-mo nome do italiano Ettore Scola].

Com gritos esporádicos, sem con-textos, desnecessários, o personagemtenta mostrar a loucura da negritudeabsoluta. Monólogo desconexo, trun-cado, como se tudo não passasse de

improviso – mal improviso. São fra-ses com intenções de provocar um efei-to, tenta pelo menos.

Várias questões são colocadas etudo, parece-me, perguntas retóricas.O cego nos convida a uma viagem sau-dosista ao sertão. Falsos paraísos sãoavisos de uma viagem sem volta. Ahumanidade busca conhecer o passa-do para não errar no futuro. Mas,muitas vezes a roda da vida nos trazde volta situações do passado esque-cido. Seria outra volta ao sertão?

Em certos momentos, nos con-fundimos entre espectador ou per-sonagem, algo que provoca exaus-tão. Cansa ao extremo essa troca depapéis.

O que se conclui é que o “Eldora-do” é onde nos sentimos bem, ondenos realizamos, onde estão as melho-res memórias.

Jussara Pim

entel

Cena de “Eldorado”, montagem inspirada no universo de rabequeiros

O ator Okamoto seapresentou em SãoPaulo no TeatroImprensa

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CULTURA AGOSTO DE 2009 - PÁGINA 11

O personagem, um cego com suasaventuras e desventuras, configura omodo de ser do nordestino. A faltade chuva na história lembra a realida-de da seca do sertão; as cantigas recor-dam as cantorias da região. Ele cantapara aplacar a sua dor, num momen-to de frenesi místico. Uma das músi-cas é cantada em louvação a uma san-ta. Ele representa o nordestino solitá-rio que muitas vezes precisa “dar vida”a um ser – no caso, a rabeca – para teruma companhia. São as primeirasimpressões do espetáculo “Eldorado”,interpretado por Eduardo Okamotoe apresentado até maio no Teatro Im-prensa, na Bela Vista, região central.

No monólogo escrito pelo argenti-no Santiago Serrado e dirigido por Mar-celo Lazzarato, o personagem deixatransparecer em suas falas e gestos ohorror à solidão. Expressa a falta de umamulher ao perguntar: “Alguém queramar a um cego?”. Vive peregrinandoem uma terra sem chuva e sem perspec-tivas de melhora. Sai, então, em buscado sonho do Eldorado, que, de acordocom a história e a geografia do Brasil,pode se referir a Eldorado do Carajás.

O lugar compõe boa parte das ter-ras do Estado do Pará. No auge dabusca do ouro, muitos garimpeirosmigraram do Nordeste para essas ter-ras em busca de um sonho a ser con-quistado. Somente uns poucos tive-ram a sorte de enriquecer, graças ao

Jornada interior de umsertanejo e sua rabeca

Denisa Silva esforço e boa sorte. A maioria sofreua exploração de sua força de trabalho ehumilhações. Outros morreram porterem arriscado tanto a vida na aven-tura da busca do ouro. Voltando àpeça, desde o início, ele, com a sua ce-gueira e por meio do olfato aguçado,busca os sinais da chuva. Como noNordeste é raro chover, o nordestinomigra de um lugar para outro no an-seio de encontrar uma terra melhor(Eldorado).

Mas o Eldorado também poderepresentar o desejo dele de atingir afelicidade pessoal, as prosperidadesmaterial e espiritual, o encontro comuma companheira, enfim, o entendi-mento do significado da vida.

Ele conversava com a rabeca e achamava de “menina”. É como se ti-vesse “dado a vida” a ela, a ponto de“ouvir” os conselhos da mesma e atéinsinuar um jogo sexual com ela. Pormeio dos carinhos e carícias, ou me-lhor, por meio do toque, descobre avibração do som vinda do instrumen-to. E finalmente descobre a música,que também pode representar o El-dorado. Depois da descoberta damúsica, demonstra ter encontrado asua felicidade, o seu Eldorado.

Há várias interpretações e mensa-gens na peça. Eu consegui entenderque o ser humano, não importa sedesacompanhado ou não, pode en-contrar o seu Eldorado, por meio delongas “viagens”, principalmente aque-las direcionadas ao seu interior.

O espetáculo teatral “Eldorado” constrói paralelos com o migrantenordestino e permite entrever entendimentos do significado da vida

Conheça oenredo da peça

Leia abaixo a íntegra da sinopsedo espetáculo que a produção de “El-dorado” distribuiu à imprensa. Amontagem de Campinas fez tempo-rada em São Paulo entre março e maiodeste ano, no Teatro Imprensa, e cir-cula atualmente por outros Estados.Os estudantes de Jornalismo da Uni-versidade Cruzeiro do Sul estavam naplateia para exercitar o olhar críticodiante de uma manifestação artística.

Acompanhado por uma menina,um cego busca encontrar o que ne-nhum homem pôde jamais: Eldora-do. Toda estória se resume nisto: erauma vez um homem que procura.Nos tempos e lugares da viagem, hajaespaço para humanidades – travessia.

“Eldorado” encena a história queusualmente se desconta: descartada àprimeira vista. O espetáculo nasce daobservação da realidade, da interaçãocom construtores e tocadores de rabe-ca, instrumento de arco e cordas, pare-cido com o violino, presente em mui-tas manifestações da cultura populardo Brasil. Desta maneira, procurou-se exercitar o olhar, encontrando nocotidiano os pequenos acontecimen-tos poéticos. Entre as margens da es-tória e da história, “Eldorado” procu-ra recriar realidades. Assim, possamosrecriar a nós mesmos.

Em pesquisas de campo nas cida-des de Iguape e Cananeia (litoral sul deSão Paulo), o ator Eduardo Okamotovisitou rabequeiros, recolhendo causos,músicas, ações, gestos, vozes. Assim,codificou um repertório “atoral” queserviu de base à criação dramatúrgica.O premiado dramaturgo argentinoSantiago Serrano partiu destes mate-riais primeiros para criar um texto iné-dito. No fim da jornada, o diretor Mar-celo Lazzaratto (da Companhia Eleva-dor de Teatro Panorâmico) orquestrouestas criações de ator e autor.

“Eldorado” fala destes territóriosde viagem. Ali, onde o viajante é atra-vessado enquanto atravessa geogra-fias. Ali, onde todo homem é único eigual a todos os demais.

Fotos Alexandre C

aetano/Divulgação

Em cena, Okamoto concilia o verbo e a ação física

O ator Eduardo Okamoto em “Eldorado”, peça do argentino Santiago Serrano que estreou em 2008

Trajetória do atorO paulistano Eduardo Okamo-

to, 29 anos, é ator formado em ArtesCênicas pela Unicamp, na qual concluiumestrado e atualmente desenvolvedoutorado. Foi um dos fundadoresdo Grupo Matula Teatro, também emCampinas, onde atuou por cinco anos.Desde 2000, pesquisa o trabalho deator junto a outro coletivo local, oLUME - Núcleo Interdisciplinar dePesquisas Teatrais da Unicamp. Atuouem vários projetos sociais com crian-ças, adolescentes, grupos de terceiraidade, líderes comunitários do orça-mento participativo de Campinas epopulação de rua.

No solo anterior, “Agora e na Horade Nossa Hora” (2006), Okamoto in-terpretou Pedrinha, um sobreviventeda chacina da Candelária: escondidosobre a banca de jornal, ele assistiu aoassassinato de oito meninos de rua.Com dramaturgia própria e direção deVerônica Fabrini, a peça colocou emcena a “cidade invisível”. Passamos porela todos os dias, mas não a percebe-mos. Nessa cidade, vivem meninosde rua e também mal os notamos.

Leia mais sobre o artista e assista atrechos de suas peças em: http://www.eduardookamoto.com

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BRASIL

Cibele Sugano

Os excluídosda Amazônia

PÁGINA 12 - AGOSTO DE 2009

Há uma sociedade na RegiãoAmazônica. Ela é pouco falada e nun-ca consta no topo dos índices de qua-lidade de vida. Há índices de violên-cia, pobreza, analfabetismo. Estes,sim, a identificam no alto. É uma so-ciedade de crenças variadas. Da mito-logia do boto à procissão do Círio deNazaré. De uma relação ambígua coma natureza: fazem-lhe versos de amorao mesmo tempo em que vivem daderrubada de madeiras e da caça pre-datória. De festas: Parintins é umadelas, com o desfile folclórico de seusbois bumbás, mas o que falar dosvários festivais? Do açaí, do carangue-jo, do camarão, do tacacá, um dos cal-

O povo da Amazônia está àsmargens, literalmente, do Brasil.Não se admira a riqueza das cerâmi-cas tapajônica e marajoara e conside-ra a cultura indígena em seu contex-to histórico. Simplesmente conside-ra-se o índio como aquele que viveno mato e, se lá vive, é atrasado. Nãose entende o sistema de exploraçãodo caboclo que vive à mercê de Ja-ders, influente líder político do Pará,que sonha em ser Joelmas e Chim-binhas, cantores de uma famosabanda de brega, e, se pensam dife-rente, terão o fim de Chico – o Men-des, assassinado em 1988. E, muitomenos compreendido ainda é o ri-beirinho, pois este, na maioria dasvezes, é esquecido...

Muito se fala em Amazônia. Maspouco se fala e se faz para as pessoasque lá estão. A temática é destruiçãoemergente, aumento de latifúndios,zoneamento, MPs, patriotismo, ban-cada ruralista, e por aí vai... Cada gru-po tem os seus interesses naquela re-gião. Mas, quem se importa com asociedade que lá se encontra e não épequena? São 23 milhões de pessoasque compõem uma sociedade que é,ou deveria ser, o mais importante.

São muitas as tribos que estão naAmazônia. Várias delas carecem deterras demarcadas. O professor e ar-queólogo Eduardo Neves, da Univer-sidade de São Paulo (USP), diz que hádescobertas recentes de fossos ao re-dor de grupos indígenas, cavados hádezenas, talvez centenas de anos, pro-

dos mais populares... E o jeito comofalam? O “será se...” em vez de “seráque...”. É o mesmo Brasil, mas umavariedade de cultura, clima, gostos efé no norte do país.

Há vários povos que habitam aregião da Amazônia. Tanto as cida-des quantos as matas. Povos que so-frem exclusão, como o indígena. Opróprio caboclo não quer ser chama-do de índio. Alega que o paulista achaque ali só tem índio, desses que an-dam pelados. Discurso esse imbuí-do de exclusão. O índio que andapelado não é menos do que o queanda vestido. Além disso, é só olharpara o povo e ver que os traços indí-genas estão por toda parte. Mas opróprio mestiço nega isso.

vavelmente para proteger seu grupoda invasão do homem branco. Essabatalha é histórica: até hoje eles lutampor um espaço de terra na floresta queparece cada vez menor. Ela pertenceao pecuarista, ao extrativista e à elite.Mas quem tem direito por estar lá pri-meiro encontra-se com sua área cada

vez mais escassa, se-gundo o professor degeografia da USP, Ario-valdo Umbelino, estu-dioso das questões hu-manas na Amazônia.Os índios lutaram,mas foram dizimadose estão perdendo terri-tório. Conforme elediz, o maior número deassassinatos no Brasilestá na Amazônia.

Na mesma regiãohá também os cabo-clos. Eles ficam o diainteiro nos “retiros” defazer farinha. Colhem amandioca, descascam,ralam, espremem osumo, secam a massa,torram em fornos delenha sobre uma chapade metal movendo a,agora farinha, com pásimensas. Trabalho dedias para depois vender

a R$ 1,00 o quilo.Sim, são eles que serebelam contra quemse opõe à retirada demadeiras ilegal da re-gião. É de lá que vemo seu sustento. In-dignamo-nos como trabalho escravodo Pará, mas, seisso acontece é porcausa de todo umsistema que favore-ce e até faz dissouma necessidade.

Há ainda um ter-ceiro componenteque povoa a floresta:o ribeirinho. Ele nãoé indígena e, portan-to, nem direito à ter-ra demarcada tem. Se-gundo o professorUmbelino, vivemem invasões. São emmaior número que os índios e estãoesquecidos dentro da mata em condi-ções de vida sem a mínima estrutura,diz o general do Exército, Villas Bôas,que foi chefe do Comando Militar daAmazônia. Esses homens e mulhe-res estão sujeitos a duas violências: ahumana, dos grileiros e muitos reli-giosos que manipulam situações a seufavor, e a natural, pois a floresta tam-

Preservarpara aspessoas

Caboclo colhe açai no Pará

Ribeirinha no retiro de farinha

Casa chamada de “trapiche” no ParáMenina da tribo Baniwa, rio Içana (afluente do rio Negro)

Joel Hayashi

Cibele Sugano

Cibele Sugano

Anna Carolina Russo

Índios, caboclos e ribeirinhosestão entre os 23 milhões de

habitantes à míngua na floresta

Povos lutam pela sua terra/casa

bém lhes é hostil. Há variedade demalárias, jacarés e piranhas. O atendi-mento médico é remoto. Vivem emseus trapiches, que são casas sobre péspara evitar a época da cheia, e do co-mércio de farinha e pequenos apetre-chos que vendem aos turistas, quan-do alcançam os barcos motorizadosem seus “casquinhos”, nos quais so-bem e vendem o que conseguem.

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