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JANEIRO JUNHO 2012 ISSN 1519-4906

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JANEIROJUNHO

2012ISSN 1519-4906

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Copyright © 2009/2011 dos Autores para efeito desta edição e posteriores. Direitos cedidos com exclusividade para publicação em

língua portuguesa para o Projeto História das Ideias Linguísticas e Editora RG.

Todos os direitos reservados.O uso, reprodução, apropriação ou estoque em sistema de banco de dados,

ou processo similar, mesmo a partir do site www.revistalinguas.com, seja por meio eletrônico, fotocópia, gravação de qualquer natureza está condicionado

à expressa permissão do Projeto História das Ideias Linguísticas.

Coordenação Editorial: Editora RGEditoração Eletrônica e Diagramação: Marcelo DobelinCapa: Marcelo Dobelin sobre projeto gráfico original de Claudio Roberto MartiniRevisão: Equipe de revisores sob supersivão do Projeto História das Ideias Linguísticas

Editora RGRua Benedito Alves Aranha, 58 – Kit Galeria – Sala 3 Barão Geraldo – Campinas – SP13084-090 Fone: 19 3289.1864Fax: 19 [email protected]

Edição eletrônica: www.revistalinguas.com

2011Impresso no BrasIl

Línguas e instrumentos linguisticos 23/24 / Campinas: Capes-Procad -Universidade Estadual de Campinas; Editora RG, 2011 :

Unicamp, 1997-2009 Semestral. ISSN 1519-4906 1. Línguística - Periódicos 2. Análise do discurso - Periódicos 3. Semântica - Periódicos 4. História - Periódicos I. Universidade Estadual de Campinas CDD - 410.05 - 412.05 - 900

2012

Línguas e instrumentos linguisticos 29 / Campinas: CNPq -Universidade Estadual de Campinas; Editora RG, 2012 :

Unicamp, 1997-2012

Copyright 2012

Editora RGFone: 19 [email protected]

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LÍNGUAS E INSTRUMENTOS LINGÜÍSTICOS

Edição: Projeto História das Idéias Lingüísticas no Brasil Editora RG

Diretores/Editores: Eduardo Guimarães e Eni P. Orlandi

Comitê Editorial: Bethania Sampaio Mariani (UFF),Carolina Zucolillo Rodriguez (Unicamp), Claudia Pfeiffer (Unicamp), Carlos Luis (Argentina), Charlote Galves (Unicamp), Diana Luz Pessoa de Barros (USP), Eduardo Guimarães (Unicamp) Elvira Narvaja de Arnoux (Argentina) Eni P. Orlandi (Unicamp), Francine Mazière (França), Francis Henry Aubert (USP), Freda Indursky (UFRGS), Jean-Claude Zancarini (França), José Horta Nunes (Unesp), José Luiz Fiorin (USP), Lauro Baldini (Univás), Luiz Francisco Dias (UFMG), Maria Filomena Gonçalves (Portugal), Mónica Zoppi-Fontana (Unicamp), Norman Fairclough (Inglaterra), Rainer Henrique Ramel (México), Rosa Attié Figueira (Unicamp), Sheila Elias de Oliveira (Unicentro), Silvana Serrani-Infante (Unicamp), Simone Delesalle (França), Suzy Lagazzi (Unicamp), Sylvain Auroux (França)

Comitê de Redação: Carolina Zucolillo Rodriguez, Claudia Pfeiffer, José Horta Nunes, Lauro Baldini, Mónica Zoppi-Fontana, Sheila Elias de Oliveira, Suzy Lagazzi

Secretaria de Redação: Sheila Elias de Oliveira, Lauro Baldini e Vinícius Massad Castro

Revisão dos artigos: Todos os artigos são revisados por pares observando-se os seguintes parâmetros: nível de contribuição para a comunidade científica, qualidade da escrita do texto, relevância da bibliografia.

Mês e ano dos fascículos: junho e dezembro

Periodicidade de circulação: semestral

ISSN: 1519-4906

Número seqüencial de páginas: a numeração inicia sua contagem na página de olho da revista, figurando – em algarismos arábicos – a partir da página número cinco até o final.

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SUMÁRIO

Apresentação

Uma prática de ensino transversalEni Puccinelli Orlandi

Gramatização das línguas e instrumentos linguísticos: a especificidade do dicionário regionalistaVerli Petri

A política da diversidade na sala de aula Ana Cláudia Fernandes Ferreira e Débora Massmann

El primer diccionario integral del español de la argentina: reflexiones acerca del alcance de “integral”Daniela Lauria

A língua brasileira em sua memória discursiva poética: espaço de desdobramentosLigia Caldonazo Cardoso

Atuação inquisitorial no Brasil: contribuição nos processos de identificação de um sujeito brasileiroGileade Godoi

Estudo do campo de conhecimento fonoaudiológico e a clarificação do seu objeto científicoRenata Chrystina Bianchi de Barros

CRÔNICAS E CONTROVÉRSIASPeirce e Lacan: as sobras deixadas pelo simbólicoMírian dos Santos*

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RESENHAAUROUX, SYLVAIN. Matematização da linguística e naturezada linguagem. São Paulo: Hucitec, 2012. Danilo Ricardo de Oliveira

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APRESENTAÇÃO

O número 29 de Línguas e Instrumentos Linguísticos traz um conjun-to de textos que tomam como objeto de reflexão a construção de saberes e de políticas de Estado sustentadas em saberes.

Eni Orlandi, em Uma prática de ensino transversal, analisa a obra de J. Peytard e E. Genouvrier Linguistique et enseignement du français (1970). A partir do que chama de transversalidade, a autora busca, “no processo de constituição do saber, relações nem diretas, nem lineares, nem exatas entre disciplinas, produzindo um atravessamento”. A leitu-ra transversal permite observar o modo como, na relação entre língua e literatura enquanto objetos de conhecimento, Peytard e Genouvrier dialogam com as disciplinas Linguística e Literatura sem toma-las como campos prontos, e nesse gesto constroem a possiblidade de uma prática de formação e ensino que inscreve o professor de língua na produção do conhecimento, e não apenas na aplicação de modelos pré-estabelecidos e compreendidos como acabados.

Em Gramatização das línguas e instrumentos linguísticos: a especifici-dade do dicionário regionalista,

Verli Petri, ao refletir discursivamente sobre a especificidade dos dicionários regionalistas, traz uma questão importante para a História das Ideias Linguísticas: é possível desvincular o processo de dicionari-zação do processo de gramatização da língua? Questão que podemos desdobrar em outras, tais como: se assumirmos que um dicionário re-gionalista gramatiza, que língua é esta que ele gramatiza? Que relação se põe entre língua regional e língua oficial ou nacional neste instrumento? Que sentidos pode ter descrever e instrumentar uma língua, tal como preconiza o conceito de gramatização proposto por Sylvain Auroux em A revolução tecnológica da gramatização (1992)? Ou ainda, o que pode significar gramatizar para além de descrever e instrumentar? O artigo de Petri nos convoca, assim, a rediscutir o conceito de gramatização.

É também de dicionarização que trata o quarto artigo deste número, de Daniela Lauria: El primer diccionario integral del español de la ar-gentina: reflexiones acerca del alcance de “integral”. Neste caso, o gesto de instrumentação busca dar conta do geral da língua de um país. No entanto, a história de colonização da Argentina faz com que sua língua

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oficial seja atravessada pelo sentido de regional em relação à metrópole. Situando-se na perspectiva da análise glotopolítica, e dialogando com a História das Ideias Linguísticas, a autora questiona o termo “integral” no título do dicionário. Colocando em relação as questões postas por Petri e Lauria, podemos perguntar discursivamente sobre a contradição entre o integral e o regional da descrição das línguas, relativamente ao efeito de completude produzido nesta relação, se tomada empíricamen-te como relação parte-todo.

A política da diversidade na sala de aula, de Ana Cláudia Fernandes Ferreira e Débora Massmann, interroga a relação entre diversidade e unidade, completude e parcialidade por outra via – a da legislação sobre o ensino no que diz respeito às políticas de inclusão de sujeitos com defi-ciências. Tomando como corpus a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1961 e outros textos jurídicos, como a Constituição Federal de 1988, a LDB de 1996, e o Decreto de 2011 que institui o Plano Nacional da Pessoa com Deficiência, as autoras realizam um percurso enunciativo pelos modos de designar o sujeito tomado como “diferente”, dando visibilidade à heterogeneidade na nomeação deste sujeito e refle-tindo sobre o modo como os nomes se inscrevem no desenvolvimento das políticas educativas ao longo do tempo.

Em A língua brasileira em sua memória discursiva poética: espaço de desdobramentos, Ligia Caldonazo Cardoso toma como objeto de es-tudo a língua brasileira em versos de José Anchieta e de Tomás Antônio Gonzaga, analisando o processo discursivo dos versos a partir da leitura de anagramas. A identidade da língua é interrogada a partir da relação entre literatura e história. Nas palavras da autora, a análise abre a interpretação “para além da estrutura da língua e do conhecimento linguístico estável, redesenhando outra forma de perceber o discurso, cujas malhas, na po-ética, não se dá somente na representação do que é versificado, mas na própria poesia de que toda a língua é capaz”.

Gileade Godoi, em Atuação inquisitorial no Brasil: contribuição nos processos de identificação de um sujeito brasileiro, aborda outro aspecto do Brasil colonial – a presença da Igreja Católica e do Tribunal da Santa Inquisição. Tomando como corpus o Livro das Confissões e Denúncias da última visitação feita pelo Santo Ofício ao estado do Grão-Pará e Ma-ranhão, 59 anos antes da Independência do país, a autora reflete sobre o modo como as visitações do Santo Ofício ao Brasil-Colônia, com suas prescrições e proscrições, mobilizaram os processos de identificação de um sujeito brasileiro; e, nesse jogo, como memórias intercontinentais constituíram parte desse sujeito.

Em Estudo do campo de conhecimento fonoaudiológico e a clarificação do seu objeto científico, Renata Chrystina Bianchi de Barros examina a

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clínica fonoaudiológica enquanto prática que tem sido exercida sem a definição de seu objeto científico. Perscrutando os descritores utilizados para indexação de trabalhos científicos da área, a autora aponta sentidos latentes a serem mobilizados na discussão dos conhecimentos que sus-tentam a prática clínica, de modo que este campo possa compreender seu percurso histórico e as posições teóricas que têm fundamentado sua práxis.

A Seção Crônicas e Controvérsias deste número traz uma reflexão sobre as relações entre o semioticista americano Charles Sanders Peirce e o psicanalista francês Jacques Lacan. Em Peirce e Lacan: as sobras dei-xadas pelo simbólico, Mírian dos Santos sustenta que o que une diferen-tes conceitos dos dois autores é a incompletude – do ser humano ou da linguagem, do simbólico e das pulsões.

A resenha deste número, feita por Danilo Ricardo de Oliveira, é de Matematização da linguística e natureza da linguagem, do filósofo e historiador das ideias linguísticas Sylvain Auroux. Nesta obra, publica-da no Brasil pela Hucitec, Auroux analisa a relação entre as ciências da linguagem e a matemática, abordando as aproximações e os distancia-mentos entre lógicos, linguistas e matemáticos e apresentando os im-passes da constituição de uma linguística matemática. Este movimento importante na história das ideias linguísticas é pensado nas relações que o constituíram, nas contradições que se estabeleceram e nas consequ-ências para as ciências envolvidas, em particular para a Linguística, em relação à qual uma questão crucial é relançada: o objeto da Linguística é matematizável?

Nos textos do número 29 de Línguas e Instrumentos Linguísticos, podemos identificar dois eixos temáticos: a construção de campos de conhecimento que tomam direta ou indiretamente a linguagem como objeto de conhecimento; e as políticas de Estado, também divididas em dois grupos: aquelas que, como a gramatização, incidem diretamente sobre as línguas, ou as que trabalham mais diretamente sobre a identi-dade dos sujeitos que falam as línguas de Estado. O conjunto dos textos nos permite pensar na relação entre língua, linguagem e subjetividade a partir do modo como o conhecimento e as políticas que dele se servem mobilizam esta relação produzindo sentidos e constituindo práticas so-ciais.

Os Editores

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UMA PRÁTICA DE ENSINO TRANSVERSAL1

Eni Puccinelli OrlandiUnicamp/Univás

RESUMO: Articulando a História das Ideias Linguísticas e a Análise de Discurso, este texto reflete sobre a formação de professores que fazem par-te da implantação do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp e analisa o sentido e importância de uma obra que propunha a articulação entre linguística e ensino (J. Peytard e E. Genouvrier, 1970). A autora ex-põe algumas consequências de levar em conta, no ensino de língua, não só a língua, mas o sujeito e a ideologia, mostrando a importância das teorias sobre língua e subjetividade no ensino da língua institucionalizada.

ABSTRACT: Articulating the History of Linguistic Ideas and Discourse Analysis, this text reflects on the training of teachers who are part of the deployment of the Institute of Language Studies at Unicamp and analyzes the meaning and importance of a work which proposed a link between linguistics and education (J. Peytard and E. Genouvrier, 1970). The author outlines some consequences of taking into account, in language teaching, not only language, but subject and ideology, showing the importance of theories about language and subjectivity in institutionalized language te-aching.

IntroduçãoA questão do que estou chamando de transversalidade tem-se colo-

cado para vários especialistas de diferentes áreas que tocam os estudos da linguagem. Esta é uma forma de levar-se em conta a produção dis-cursiva do conhecimento em diferentes domínios do saber de forma não disciplinar. Procura-se, antes, desfazer-se dos estereótipos produ-zidos, ao longo de toda uma tradição do pensamento, das configura-ções estabelecidas e cristalizadas sobre as disciplinas, das quais se ig-nora o papel constitutivo da linguagem. Em uma posição transversal, ao contrário, busca-se, no processo de constituição do saber, relações nem diretas, nem lineares, nem exatas entre disciplinas, produzindo um

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atravessamento. Um lugar de trocas, de relações livres das disciplinas. Este uso da palavra “transversalidade” apresenta-se quase como um mé-todo de reflexão praticado na Filologia Política, por um autor como R. Descendre (2011), em suas pesquisas sobre a linguagem dos pensadores do século XVI. Saberes que, mais tarde tomarão o nome de geografia política, história política, de sociologia, filosofia política e até mesmo economia política, não respondem automaticamente a estas etiquetas, em seu trabalho de pesquisa, de leitura lenta e atenta.

Penso que, em meus trabalhos sobre o século XVI a XIX, no Bra-sil, analisando os relatos de missionários (E. Orlandi, 1990), encontrava esta mesma transversalidade nas formas de conhecimento que se diziam através do que, em francês, se chama “rapport” ou “relation”2. Ciência ou literatura? Era indiferente a estes títulos o que ali se podia compreender. Mais um dos indícios, talvez, do que M. Pêcheux vai falar (1994) sobre a divisão social do trabalho da leitura, o trabalho de arquivo. Diríamos que é, na maior parte das vezes, por retroação, que fixamos sentidos e formas para o conhecimento. Efeitos de leituras e de institucionalização dos gestos de interpretação.

Penso que, quando interrogamos o ensino de língua, a prática da transversalidade mostra-se como um instrumento (cf. P. Henry, 1990) extremamente fecundo e mobilizador. O que estou querendo propor é, pois, que a prática transversal seja uma perspectiva para uma boa práxis para o ensino, sobretudo de língua.

Uma história das ideias e da instituição: um trecho

Vou tratar esta questão praticando o método que põe em relação à análise de discurso e a história das ideias linguísticas.

Para isso, vou considerar o autor J. Peytard em seus trabalhos de formação de professores e em seu trabalho de autor de obras sobre linguagem. Se o faço é porque reconheço neste autor o que chamo de transversalidade. E, em seu caso, tanto as disciplinas, como a questão da linguagem, eram trabalhadas de forma transversal. Em seus cursos, trabalhava a linguagem tomando em conta a relação entre a língua e a literatura, a linguística e a teoria literária. Essa sua qualidade, entre outras, o colocou como mestre privilegiado na construção de um pro-jeto desenvolvido pela Unicamp, ou melhor, que formou pesquisado-res que estão no início da constituição do departamento de linguística da Unicamp, inicialmente sediado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, vindo, só mais tarde, dar lugar ao Instituto de Estudos da Linguagem.

Não se desconhece (E. Orlandi, in V. Dahlet, 2011) que a área de estudos da linguagem, no Brasil, tem sua história muito ligada aos de-

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senvolvimentos dos estudos de linguagem na França. Sobretudo com os estudos de ensino de língua. Professores de francês e de linguística, franceses, fazem parte de modo consistente do que se produziu nestas áreas de estudo em São Paulo, no Rio Grande do Sul e em muitas regi-ões do Brasil. Relação mutuamente produtiva, brasileiros e franceses se aplicavam (e se aplicam) ao conhecimento da língua (linguística) como parte do ensino da língua.

Pensando a história das ideias linguísticas, não é por acaso que o prof. J. Peytard está presente tanto na proposta de introduzir-se a linguística no ensino de língua quanto na formação destes docentes que virão a fazer parte da primeira geração de mestres da linguística da Unicamp.

Esta história tem um de seus pontos altos no reconhecimento de que as ciências humanas e sociais não podiam ignorar a linguística. Essa era uma ideia já bastante arraigada: a linguística como ciência piloto das ciências humanas. Mas a proposta do prof. Fausto Castilho, que havia sido leitor em Besançon, avançava nessa práxis: constituir as bases do IFCH/Unicamp na Linguística. E, assim, os primeiros bolsistas, futuros professores de filosofia, antropologia, sociologia, economia do IFCH (observem que ainda não estou falando dos professores de linguística, especificamente) aportaram em Besançon, no curso de Linguística.

Este gesto transformador da prática dos especialistas em ciências hu-manas e sociais, a meu ver, tinha, nesses especialistas, o sentido da rela-ção com a linguística, enquanto ciência piloto, discurso dominante da época, como dissemos. Mas, como sabemos, a linguística, tal como es-tava tradicionalmente constituída, não acolheu as questões postas pelas ciências humanas e sociais, sobretudo as que incluíam o sujeito e a situ-ação, uma vez que, para se constituir como tal, ela os excluía. Daí, a meu ver, fazer alianças3 e manter-se à mesma distância das ciências humanas e sociais. Daí, também, ter mantido para fora o sujeito e a situação, ob-jetivando manter-se em sua cientificidade. No entanto, são os próprios linguistas, ou alguns deles, que já se mostravam sensíveis a uma mu-dança de território em que se perguntasse pelo sujeito e pela situação, nos estudos da linguagem. Nesse sentido é que vejo a importância de J. Peytard, nessa conjuntura que se criara: ele era um mestre sensível à li-teratura e à linguística. Exercia aí uma prática transversal. Nesta medida mesma, sensível a questões que eu chamaria de discursivas sem que este “discursivas” ainda significasse o que passaria a significar mais tarde. Estou falando do final dos anos 60 e início dos anos 70 do século XX.

Esta posição que chamo de transversal de J. Peytard permitiu que ele atendesse aos dois lados desta mesma questão – lugar do equívoco – que refiro acima: formou o mestre L. B. L. Orlandi – com sua dissertação, em 1970: “Analyse critique de deux modèles d´approche du discours litté-

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raire – La Poétique de Todorov” – sendo Orlandi da área de filosofia4. E formou três outros mestres, estes, todos, da área da linguística: R. Ilari (1971) “Une introduction sémantique à la théorie du discours”; C. Vogt (1971) “Une introduction au problème de la sémantique dans la gram-maire générative”; e H. Osakabe, com seu mestrado em 1971 “Recherches en analyse du discours”, e seu doutorado, igualmente com ele, em 1975, “O componente subjetivo no discurso político”5.

Desse modo, eu diria que J. Peytard estabeleceu o lugar intelectual que tornou possível a realização do equívoco: os cientistas sociais e filósofos fazem seus cursos e mestrado, olhando para a linguística (atravessados pelo conhecimento transversal da linguística com a literatura que Peytard praticava) e os linguistas fazem seus mestrados realizando a possibilidade de olhar para além da linguística, sem deixar de lado a importância da lín-gua como ela é. De certo modo, uma piscadela para o círculo de Praga em que o estudo da linguagem trazia a relação da linguística com a literatura. Nem todos sustentaram essa posição. Mas a experimentaram.

Quando falo em equívoco, estou pensando o que é equívoco do pon-to de vista da análise de discurso. Não um engano, mas lugar da falha e do possível. E o resultado foi que se produziu certamente uma ruptura no desenho tanto da produção desses especialistas, como do próprio desenho de suas áreas, afetados pela noção de língua e de linguagem que são concebidas desta perspectiva, no contato com J. Peytard.

As ideias linguísticas e seus caminhos transversosTomemos para observação a obra de J. Peytard que foi referência

forte em seu tempo para os que praticavam o ensino de língua, já ex-perientes nos estudos linguísticos. Trata-se da obra que ele produziu com E. Genouvrier, Linguistique et enseignement du français, traduzida e adaptada ao português por R. Ilari6, por indicação de Peytard, foi pu-blicada em Portugal, em Coimbra, pela Livraria Almedina, em 1974, com o título: Linguística e ensino do português. A questão “linguística e ensino” atravessa transversalmente o Atlântico.

Já aí se veem os meandros da história de um trabalho, da sua posição de autoria, de pesquisa e de ensino, se mostrando em seu trajeto: França, Portugal, Brasil. Os três conjugados na produção e circulação de ideias gramaticais que passam de um campo formal de conhecimento, a lin-guística, olhando transversalmente, como tenho dito, para o ensino de língua. Atravessam-se em uma produção, a publicação em Coimbra, de um texto sobre o ensino do francês e a linguística, traduzido e adaptado por um brasileiro, que foi aluno de Peytard, em Besançon. Esta é a his-toricidade que produz sentidos no texto deste livro. Vejamos que outros sentidos podemos encontrar no que esta obra nos traz.

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Essa obra de Peytard se inscreve no que hoje dizemos ser o funcio-nalismo. Há, entretanto, outros aspectos igualmente importantes nesse processo de autoria desencadeado por este autor.

Tomemos a relação que ele estabelece entre sincronia e diacronia com escrito e oral. Em seguida, a relação que ele estabelece entre estes e a pedagogia de línguas e, sobretudo, ao valor dado à “apropriação da língua pela escrita” (p.20).

Referindo-se à fala do escrito ele dirá que: “Assim, a situação linguís-tica do aluno é a de quem usa duas línguas de expressão oral: a que lhe pertence por aprendizado “natural” e a que ele confecciona para conhe-cer o escrito e a partir do escrito. Experiência capital tanto para o aluno quanto para o mestre” (p.21). E o que é esta fala do escrito? É a leitura. A leitura, em seu caráter mediador, permite aos autores (Peytard e Genou-vrier) significarem de maneira muito particular este sujeito do ensino de língua: ele não é mais a fonte da mesma, ele descobre a fala e a ouve, ele fala a partir de um texto. Pela leitura. O oral é fundamental para que a grafia se mostre a este aprendiz. O que leva a concluir que é porque é pela leitura como mediadora que se fala, que o aluno fica com a im-pressão de que só se fala bem a língua a partir do escrito. Esta afirmação interessa porque não é feita, como comumente vemos, a partir da ideia da imposição de uma norma da escrita, mas da observação do próprio funcionamento da língua em sua relação com o sujeito, em particular, neste caso, referida à leitura.

Outro ponto a se ressaltar é a distinção que eles propõem, para o ensino da língua, entre sincronia e diacronia e língua e discurso. Esta distinção traz a palavra discurso, mas esta não deve ser confundida com o que é definido como discurso, por exemplo, por M.Pêcheux (1969), mas como correlato de fala (em Saussure). Para Pêcheux (1975), como sabemos, língua e discurso não se opõem. E a língua, para a análise de discurso é relativamente autônoma e sujeita a falhas. Não é a língua do linguista. A fala, para Saussure, se opõe à língua, sendo esta um siste-ma autônomo, “où tout se tient”. Esta é uma diferença intransponível teoricamente entre o que se chama Análise Linguística do Discurso (J. Peytard) e a Análise de Discurso (M. Pêcheux).

É nesse ponto, também, que Peytard e Genouvrier indicam a ne-cessidade da linguística para o conhecimento da língua e seu ensino. Argumentam, com razão, que os alunos esperam que o professor lhes ensine “inicialmente a língua que eles têm que falar e compreender, ler e escrever, ou seja, o português contemporâneo”.

A ideia é que se parta da fala para a língua, tendo como mediação as disciplinas teóricas e descritivas da linguagem. Desse modo é que intro-duzem as distinções sincronia e diacronia e língua e discurso (fala). Para

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estes autores, distinguir sincronia e diacronia permite que o aluno não confunda os dois planos como fazem muitas gramáticas (citando exem-plos do século XVIII, e elidindo torneios contemporâneos fecundos). Por outro lado, distinguir língua e discurso (fala) é “passar de uma rea-lidade concreta mas desordenada para uma entidade (a língua) virtual mas organizada”. Para os autores, sem a linguística, reina aí o atomismo e a desordem porque fica no primeiro estágio (realidade concreta).

É também neste ponto que uma posição teórica discursiva que tenha se constituído por uma mudança de terreno como a proposta por M. Pêcheux, faz falta. Seria necessário, a meu ver, justamente nesse ponto, a elaboração, a mudança de terreno teórica, feita por um autor como M. Pêcheux, pela qual, saindo da oposição língua e fala e indo para a relação língua/discurso, e considerando a relação da linguagem com sua exterioridade, torna-se possível trabalhar o funcionamento do discurso, encontrando, portanto, no discurso, uma certa ordem, a sua analisibili-dade. A partir da qual se articula descrição e interpretação, na compre-ensão da relação entre estrutura e acontecimento (M. Pêcheux, 1990) e se considera a língua enquanto condição de base para o funcionamento do discurso. Considerações que, transferidas para o terreno do materia-lismo, vão permitir falar que a materialidade específica da ideologia é o discurso e a do discurso é a língua.

Como esta mudança de terreno não é feita, os autores resolvem a falta pelo acréscimo: colocam mais uma parte (a V) sobre problemas do estilo. Tem sido esta a solução tradicional: os autores servem-se da ques-tão do estilo para tratar o que não deveu caber na gramática.

No entanto, não é sem interesse observar, antes de considerarmos a parte sobre estilo, o que os autores dizem sempre, no final das diferen-tes partes de seu livro, relativamente ao ensino e ao conhecimento lin-guístico. Este último sempre aparece para mostrar que “verdades” que tomamos como certas não o são, se tomarmos a perspectiva dos estudos linguísticos. Além disso, do ponto de vista pedagógico, somos adverti-dos que a linguística só pode propor hoje (naquela época, anos 70) pers-pectivas de pesquisa e não aplicações. Esta advertência, digamos, é algo que distingue estes autores. O que temos, na relação com a linguística, desde o início, na escola, é a imprudência de aplicações sem mediação da pesquisa, pelos próprios professores da graduação e do curso básico em geral, treinados7 por professores da universidade. Procedimento que tem levado a uma má compreensão da linguística e torna os professores, sobretudo no Brasil, impermeáveis a esta. Considero assim este um dos pontos fortes do trabalho e da proposta de Peytard e que, penso, foi um princípio em sua prática pedagógica. Nesse sentido, exemplar. Como é posto, não se trata de “teorizar” através de discursos magistrais sobre

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linguística, mas de estimular a intuição do aluno e explorar esta intuição para levar o aluno a compreendê-la e situá-la, linguisticamente.

Não falta a referência aos “níveis de língua”. Mas também aqui, mais do que dar uma regra, os autores falam na delicadeza desta definição argumentando que isto é assim porque, nos níveis, juntam-se gramática e léxico, normas sociais e intuições pessoais. E após dizer que envolve o estilo, mas não só, eles comentam as várias distinções de níveis esta-belecidas por diferentes linguistas: entre língua falada e língua escrita; uma língua comum de nível médio (padrão) e um nível, acima, mais elevado e, abaixo, mais familiar. Se tomarmos como parâmetro a língua comum, os outros níveis seriam desvios. Há também a distinção entre terminologia técnica e metalinguagem. Citando Marouzeau, é lembrada a distinção do homem do norte ou do sul, do camponês e do citadino e os diferentes agrupamentos possíveis: por profissão, classe social, famí-lia, partidos etc. Como se vê, a classe social não aparece nesta reflexão como referência básica como tem sido a preocupação de gramáticos que pensam a norma culta e o falar popular, considerado desleixado e de classe baixa, como se passou a fazer, nos estudos gramaticais-padrão.

Linguística e estilo no ensino da língua Face ao ensino da língua, os autores não se colocam na posição de

que a linguística deva receitar modelos ou métodos, mas tornar mais claros os pressupostos da pedagogia de língua. Assim, diante de algu-mas propostas pedagógicas, que tiveram grande aceitação, os autores propõem que se descubram as concepções de estilo que elas subenten-dem.

Esta análise das concepções tem como fim a questão da escrita e do seu ensino, ou seja, a redação. Objetivo que, como sabemos, é o alvo, sempre fugidio, de todo professor de língua, sobretudo se esta língua é a sua própria, que, no nosso caso, é a portuguesa, inscrita em um processo de colonização em que a relação entre escrita e oral tem suas complexi-dades, que não cabe explorar aqui. Vamos ao ensino da redação.

Os autores detectam o ponto do equívoco: os professores, quanto a esta questão da metodologia da redação, chamam a atenção para fato-res secundários: a necessidade de motivar psicologicamente o aluno. Aí entram os elementos mais variados. O gosto do professor pelo lite-rário, a espontaneidade e liberdade que resultariam em uma expressão autêntica na expressão da escrita: escolher um tema do gosto do aluno, por exemplo. Que implica em que o critério não seja da preferência individual do professor, mas que atenda o desenvolvimento mental e emocional do jovem e de seus interesses atuais; além disso, para par-tir do desejo do aluno, que o verá assim como escolha própria, deve-

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-se criar, no aluno, um centro de interesse (motivação) por todos os meios audiovisuais. Lembremos que estamos falando de uma obra es-crita nos anos 70; hoje, temos as tecnologias de linguagem e as mídias sociais que, segundo alguns professores, bastam para se alcançar o objetivo. Sem esquecer a natureza criativa da redação. Daí aproximar--se da literatura. Ler bons autores, e pronto. Certamente a relação da escrita com a leitura de autores interessantes é desejável e necessária, mas, dizem os autores, com razão, não é suficiente. E propõem que se desloque a questão para seu verdadeiro terreno: o da linguagem, ou melhor, o da linguística.

Tudo isso que é dito sobre as circunstâncias da escrita, alocadas no psicológico, eles chamam de condicionamento (o que lembra o “eterno” behaviorismo que ronda o ensino). E, segundo os autores, o condiciona-mento pode desencadear o ato da escrita, mas não fornece nem orienta-ção nem matéria, pois, escrever significa defrontar-se com a linguagem em sua materialidade8. A escrita, dizem eles, “dá corpo às palavras, ela materializa a língua”. A resistência, ou seja, a dificuldade apresentada pelos alunos não é mais da ordem psicológica mas linguística. Damos assim, penso, um grande passo na pedagogia de línguas com estes auto-res que aliam ensino de língua e linguística, sem receitas mas como pes-quisa, conhecimento, compreensão do funcionamento da linguagem. Há, pois, restrições léxicas, semânticas que é preciso reconhecer para dominar, segundo eles. Não adianta burlar (com criatividade?). Como o aluno prova sua “liberdade” onde a língua, por ser escrita, é mais densa, tem uma espessura mais complexa do que o oral?

E temos então uma argumentação que se mostra de muita impor-tância, ainda hoje, frente os métodos de ensino de língua em geral, mas, sobretudo, do ensino de redação. Dizem os autores que a posição dos professores é de que a língua é comunicação sentida como natural e pró-pria do indivíduo. Então, a posição que daí resulta é: deixem que ele se expresse que ele se expressará bem, deixem-no escrever o que lhe agrada escrever que a escrita será boa... No entanto, dizem os autores, os alunos sentirão que o instrumento que utilizam tem sua própria inércia e não se presta tão facilmente aos caprichos de sua fantasia solta. Pois o proble-ma do estilo, dizem os autores, continua sendo o de saber como ensinar o aluno a orientar-se, mais livremente, no interior do código da língua a escrever. E para isto não basta a espontaneidade.

Sem dúvida, nos anos 70 do século XX, esta posição, buscando colo-car no terreno da linguística o que se colocava no da espontaneidade e do psicológico, torna a pedagogia de língua sujeita a pesquisa e reflexão e não um receituário feito na base das intuições pedagógicas, muitas vezes até sustentadas em teorias educacionais, mas que não sabiam nada

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sobre a língua. O que fazem estes autores é colocar a questão da língua para os que trabalham com a pedagogia de língua.

E continuam sua tarefa mostrando que não há uma relação natural entre língua/pensamento/realidade. Destroem assim “a crença ingênua e simplista na adequação da linguagem à “realidade”; a crença de que a cada palavra corresponde uma coisa”. Tampouco se pode pensar um aluno que “possa neutralizar suas reações subjetivas ao exercício da fala”. Estas ideias, repetidas por nossos teóricos, dizem Genouvrier e Peytard, permanecem alheias ao que faz o corpo e alma de toda expressão: a própria língua.

Desse modo, podemos dizer, a ideia de real, de materialidade da língua, de sua ordem própria já aparecem. Envolvidas, é certo, em uma sustentação teórica que mobiliza a ideia de comunicação e expressão, de língua como instrumento de comunicação. Mas sem dúvida produzem uma ruptura com o espontaneísmo pedagógico sobre o ensino de língua e colocam a questão da definição da própria língua como objeto de ensino. Pela linguís-tica, desnaturalizam a relação com a língua, seja oral, seja escrita.

E vão mais longe, pois, mesmo que inscritos no funcionalismo, mostram a importância da teoria, no ensino. E transcrevo o que dizem, como forma de mostrar como introduzem além das noções que citei mais acima, também a de função e funcionamento da linguagem, ainda presas à linha funcionalista, apontando para a necessidade da teoria:

O que é preciso, para o mestre, é ter refletido, através de análises tão científicas quanto possível, sobre a realidade da língua, na ordem do oral e do escritural; é poder descobrir metodologica-mente os meios de ensinar a expressão, de alcançar o domínio do estilo, não pelo simples uso da imitação ou da impregnação empírica, mas aprofundando o conhecimento das funções e do funcionamento da língua9 (...) todo trabalho sobre a linguagem fundamenta-se na teoria da linguagem (p.387). [grifos meus].

Eles passam em revista, em seguida, alguns manuais de redação, sem-pre com o mesmo objetivo: observar que pressupostos sobre a língua e a linguagem aí estão funcionando. Buscam “levar o leitor a refletir sobre os pressupostos que fundamentam a “arte” da redação e da explicação de textos” (p.410). Para isso, refletem sobre problemas do estilo. Dividem a questão em duas: a do estudo estilístico e a da redação.

Face à questão do estudo do estilo, concluem que o apelo a uma esti-lística do desvio pode até ser satisfatória quando se trata da ordem oral ou dos textos não literários. Mas quando se trata dos textos literários, é claramente insuficiente, pois é preciso pensar o texto como uma totalida-

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de e é então que uma análise estrutural dá sua contribuição, sem a qual o estudo é insuficiente.

Finalmente, para tratar da questão do estilo face á redação, o que dizem os autores refere à relação linguagem/pensamento. A estilística dos desvios se apoia na distância entre pensamento e linguagem que leva a uma “arte de escrever” que se resume na prática da ornamentação, dizem eles. Como resultado, cria-se a ideia de que o aluno não se compromete – eu diria, dire-tamente, não pensa – com a escrita e as ideias só valem pela cobertura das palavras. Não há uma relação constitutiva entre pensamento e linguagem. No entanto, afirmam os autores, “escrever não é aplicar palavras sobre ideias pré-existentes” (p.411). E retomam então a ideia de totalidade, de relações que os alunos devem aprender a explorar e atualizar.

Sem dúvida, com estas posições tomadas pelos autores podemos ver claramente em J. Peytard, um precursor da análise linguística do texto. Mes-mo o que hoje se chama análise linguística do discurso. A que não muda de terreno, permanece na linguística, e acrescenta aquilo que se apresenta na “realização do discurso”. Sem esquecer que a noção de discurso aí está fortemente ligada à fala. Estudo da língua acrescida do “estilo”. Mas vejo também que em Peytard, em sua forma de praticar a pedagogia de língua, aflora, sem que, no entanto, seja desenvolvida, a compreensão de uma outra noção de discurso, que é a que exige uma mudança de terreno face à linguística, aquela que, segundo J.J. Courtine (1999), demanda que seja-mos linguistas mas que esqueçamos que o somos. Muitos não esquecem. E continuam a fazer linguística + discurso. Não mudam de terreno, não se expõem ao equívoco, ao real da história, à ideologia.

Penso que na forma de pensar a relação escrito/ oral, fala, e leitura (duas línguas de expressão oral), em sua posição que não desdenhava o que fazia a literatura, J. Peytard pré-sentiu esta mudança de terreno. E sua crítica à noção de desvio (écart) é, para mim, o sintoma, o pressen-timento da necessidade dessa mudança. Mudança que leva à análise de discurso sem o adjetivo “linguística”, mas que dá à língua, como queria Peytard, um largo espaço teórico, mudança que M. Pêcheux realizou com todas as letras. Mas esta já é outra história, que mostra outros tra-jetos entre França e Brasil10, face à língua e à linguagem.

Nesta análise de discurso, que praticamos, que muda de terreno e que não tem a língua mas o discurso como seu objeto, interessa-nos compreender como o sujeito, afetado pela linguagem e interpelado pela ideologia, se individua pela articulação simbólica e política produzida pelo Estado com suas instituições e discursos. Entre as instituições está a escola e, nela, pratica-se a língua institucionalizada, a legítima.

Esta legitimidade, a não transparência da língua, o seu modo de fun-cionamento, sua materialidade, assim como a relação entre oralidade e

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escrita, já não são apenas objeto de uma reflexão que se dá buscando mos-trar os pressupostos linguísticos que subentendem o ensino da língua. Isto já não basta, pois, ao introduzir-se o sujeito, por uma teoria não subjetiva do sujeito, entram de imediato as condições de produção, o imaginário, o interdiscurso e a ideologia na produção dos processos de significação. Aí mudamos de terreno e nos instalamos na teoria e análise de discurso. E aí o saber inclui um saber que não se aprende mas que funciona em nós produzindo seus efeitos. A ideologia. Relação transversal entre o linguista e o analista de discurso na prática do ensino.

Como resultado desta reflexão, gostaríamos de dizer que, nesta po-sição do analista de discurso, é preciso lembrar, e isto Peytard (e Ge-nouvrier, id.) sabia, que não se trata de aplicação, nem tampouco de dar aulas magistrais sobre esta teoria. E acrescentar que, pensando discursi-vamente, trata-se, na relação com o educador, com o professor de língua, de dar-lhe condições de reflexão e pesquisa, de criar um espaço pedagó-gico politicamente significado, que lhe permita compreender que teoria da linguagem, que instrumentos de conhecimento estão implicados nas práticas de ensino que lhe são propostas. Desse modo ele deixa de ser uma peça mediadora de um discurso pedagógico que lhe vem pronto, de fora, e pode ter uma parte na produção do conhecimento da língua.

Notas1 Este artigo é uma versão desenvolvida do texto, em francês, apresentado no Encontro em Homenagem a J. Peytard, em Mariana (MG). 2 No século XVI e XVII, “rapport” e “relation” significam dubiamente relato ou relatório. Depois vão-se distinguir, no final do século XVIII, início do XIX.3 Ler, a esse respeito, M. Pêcheux e F. Gadet “Há uma saída para a Linguística fora do formalismo e do Logicismo” (1981) ou M. Pêcheux “A (des-)construção da teoria lin-guística” (1981a).4 Vale observar que o sociólogo do grupo (A.Villalobos) e o antropólogo (A.A. Arantes) fizeram seus mestrados, respectivamente com Poulantzas (em Paris) e com Leech (na Inglaterra), mas frequentaram o curso de linguística da Universidade de Besançon.5 Informações obtidas junto ao trabalho de iniciação científica de Ana Cláudia Fer-nandes (2002), orientada por E. Guimarães.6 Um dos mestrandos em Besançon, como vimos, e professor do departamento de lin-guística da Unicamp.7 Hoje a palavra é capacitados, que não significa de forma alguma que foram formados em algo, no sentido de poderem dispor desse conhecimento segundo suas necessidades e objetivos, mas em um modo de aplicação que não passa pela formação de conheci-mento, só a repetição de estratégias.8 Não se trata da materialidade como tratada na análise de discurso da filiação a M.Pêcheux. Aqui se trata da materialidade da língua, não com o sentido em que mate-rialidade se inscreve no território do materialismo, mas naquele da linguística que, ao falar em ordem da língua, já desde Saussure, que a vê como um sistema, reconhece sua

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materialidade e a regularidade de seu funcionamento (a língua é forma e não substân-cia). O passo dado por M. Pêcheux (1969) foi estabelecer as bases da teoria que dava visibilidade ao funcionamento do discurso e elaborar um método para poder mostrar esse funcionamento em sua materialidade linguístico-histórica, ou seja, discursiva, o que já é outra coisa, e se inscreve no materialismo histórico. Com Pêcheux, temos a materialidade do discurso que tem, em seu funcionamento, como condição material de base, a língua, ou seja, a materialidade linguística.9 Observe-se que eles não falam apenas em função, mas, em funcionamento.10 Cf Meu livro Discurso em Análise: Sujeito, Sentido, ideologia, Pontes: Campinas, 2012.

Referências bibliográficasIlari, R. (1971) Une introduction sémantique à la théorie du discours

(mémoire).DESCENDRE, R. Dossier. Lyon, 2011.COURTINE, J-J. (1999) “O chapéu de Clémentis”. Trad. Marne Ro-

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Palavras-chave: ensino, teorias da linguagem, discursoKey-words: teaching, language theories, discourse

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GRAMATIZAÇÃO DAS LÍNGUASE INSTRUMENTOS LINGUÍSTICOS:

A ESPECIFICIDADE DO DICIONÁRIO REGIONALISTA1

Verli PetriUFSM – Laboratório Corpus

RESUMO: Este artigo aborda as noções de gramatização e de instrumen-tos linguísticos em perspectiva discursiva, estabelecendo relações com os pressupostos da História das Ideias Linguísticas. Apresenta algumas refle-xões acerca da constituição e do funcionamento do dicionário regionalista gaúcho neste início do século XXI, revelando especificidades e questionan-do o estatuto atribuído a determinados instrumentos linguísticos.

ABSTRACT: This article approaches the notions of grammatisation and lan-guage tools in a discursive perspective related with the assumptions of the History of Linguistic Ideas. It presents some reflections on the formation and operation of the gaúcho regionalist dictionary in the beginning of this century, revealing its peculiarities and questioning the status given to certain language tools.

“Sorriso, diz-me aqui o dicionário, é o acto de sorrir. E sorrir é rir sem fazer ruído e exe-cutando contracção muscular da boca e dos olhos”. O sorriso, meus amigos, é muito mais do que estas pobres definições, e eu pasmo ao imaginar o autor do dicionário no acto de escrever o seu verbete, assim a frio, como se nunca tivesse sorrido na vida. Por aqui se vê até que ponto o que as pessoas fazem pode diferir do que dizem.

José Saramago

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Para introduzir as questõesDentre as questões de pesquisa que hoje me habitam, elencarei, neste

artigo, pelo menos duas delas com o propósito de desconstruir evidên-cias já postas bem como explicitar os processos de produção de sentidos que as naturalizam para o sujeito. A primeira questão diz respeito às relações entre as noções de gramatização e de instrumentos linguísticos, normalmente tomadas como decorrentes uma da outra; e a segunda questão, ligada à primeira, diz respeito ao funcionamento do dicionário como instrumento linguístico colado à gramática, também instrumento linguístico, ambos considerados essenciais ao processo de gramatização de uma língua (Auroux, 1992).

Para falar de gramatização e de instrumentos linguísticos, tomamos como ponto de partida os trabalhos de Sylvain Auroux. Entretanto, quando se trata das análises por nós empreendidas em relação ao nosso objeto, qual seja, a especificidade do discurso dicionarístico regionalista no contexto brasileiro, apontamos algumas particularidades na consti-tuição do processo da gramatização, processo este que pode apresentar diferentes faces em línguas diversas, sob diferentes condições de produ-ção, promovendo também um outro tipo de relação entre a gramática e o dicionário no interior do processo de gramatização linguística.

Minha proposta, então, é a de refletir sobre a noção de gramatização e sobre a constituição dos instrumentos linguísticos, a fim de abordar a constituição do dicionário regionalista enquanto objeto discursivo. Bus-co, com minha reflexão, tomar uma posição de pesquisadora que estuda a Análise de Discurso prioritariamente e que percebe a relevância de sa-ber mais da História das Ideias Linguísticas para melhor compreender o discurso e seu funcionamento, tomando “o objeto da análise de discurso como um só. Nem novo nem velho” (Orlandi, 2011, p.54).

Penso que refletir sobre a noção de gramatização e, consequente-mente, sobre as noções que dela advêm promove o estabelecimento de relações entre a filosofia, a linguística e a história, bem como estreita as relações entre a Análise de Discurso e a História das Ideias Linguísticas na produção do conhecimento. Este é o caminho que encontro para dar andamento às minhas reflexões, pois concordo com Horta Nunes (2008, p.110) quando ele afirma que “a AD se constitui como um modo de leitura, sustentado por um dispositivo teórico e analítico, que considera a historicidade dos sujeitos e dos sentidos, ela traz uma contribuição considerável para o estudo da história das ideias linguísticas”.

A discussão que propomos tangencia, sobretudo, o estabelecimento de relações entre a Análise de Discurso e a História das Ideias Linguís-ticas, porque me situo neste entremeio para começar a pensar na noção que nos move aqui: a de gramatização. Afinal, o que é e o que não é

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gramatização de uma língua? A produção de instrumentos linguísticos (dicionários e gramáticas) trabalha para que o processo de gramatização se efetive, mas será que isso ocorre sempre e sob quaisquer condições de produção?

Em meu entendimento questionar, ir e vir sobre a teoria e sobre o objeto de análise tem muito a ver com os princípios que regem a Análise de Discurso pechetiana e, por isso, proponho questões sobre o funcio-namento da noção de gramatização e sua relação com a produção dicio-narística mais específica, no caso deste trabalho: a regionalista gaúcha. Trata-se de investigar também como se dá a tomada de posição do su-jeito que produz um dicionário regional com o objetivo de instrumen-talizar a leitura de textos literários regionalmente produzidos. É esta tomada de posição, e não outra, que faz uma escolha em detrimento de tantas outras possíveis, já que o político está funcionando no discurso, o que significa dizer que “os sentidos e os sujeitos são divididos e têm uma direção” (Orlandi, 2011, p.53). A significação do político não pode ser negada, pois nos leva a entender cada vez mais os modos como o sujeito se relaciona com a ideologia.

Estamos falando de dicionário, sem dúvida; estamos falando de ins-trumento linguístico; mas será que estamos sempre, necessariamente, falando de gramatização? Esta é a minha questão. Refletir sobre isso significa propor um deslocamento sobre a questão teórica mesmo, que aponta dicionários e gramáticas como responsáveis pela gramatização das línguas em geral. Significa também mostrar que, no Brasil, naquilo que quero refletir temos peculiaridades linguísticas que extrapolam o espaço delimitado da gramatização, o que pode dar um outro estatuto ao dicionário, podendo ainda alterar a direção das leituras que temos desenvolvido sobre as relações entre dicionário e gramática de uma mesma língua.

É preciso salientar, aqui, que estou propondo algo a mais, sem negar o que já foi dito antes. Estou especificamente ligada à produção dicio-narística regionalista gaúcha no Rio Grande do Sul, interior do Brasil, acreditando, como salienta Auroux (2008, p.51), que os colegas cientis-tas constroem “representações teóricas suscetíveis de serem corrobo-radas/invalidadas por dados empíricos. Algumas são melhores do que outras; todas são necessariamente parciais2”.

A gramatização e a produção de instrumentos linguísticosQuando pensamos em um fio do discurso ou mesmo em interdis-

curso, já não podemos aceitar a existência de um “precursor genial qual-quer” que estaria na fundação de uma ciência (ou de um processo de gramatização de uma língua, por exemplo). Essa fundação (se for toma-

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da como científica ou não) advém de um trabalho muito maior que um só sujeito. Um homem (empiricamente falando), ainda que dedicasse toda sua vida ao estudo de um objeto dado, não conseguiria... É tudo o que vem antes que trabalha para que a produção do conhecimento se efetive; é todo o tipo de interlocução que ressoa no discurso como uma memória que não cessa de se reorganizar; e mais, é tudo o que vem de-pois e passa a reconfigurar os já-ditos, deslocando sentidos já postos e agregando a eles outros sentidos ainda na ordem do devir. De fato, isso tudo incide no modo como pensamos o processo de gramatização de uma língua, bem como incide nos modos de produção da ciência, tal como a concebemos hoje, seja em Linguística, em Análise de Discurso ou em História das Ideias Linguísticas.

Seguindo a esteira de Auroux, temos que a gramatização das línguas tem efeito semelhante à Revolução Industrial para o mundo ocidental, sobretudo no tocante à tecnologização. Ambas têm o seu estatuto garan-tido. Aliás, depois da invenção da escrita, tal como a concebemos ainda hoje, a gramatização das línguas foi o grande acontecimento. É impos-sível falar de gramatização a partir de Auroux sem mencionar a sua de-finição, qual seja: “por gramatização deve-se entender o processo que conduz a descrever e a instrumentar3 uma língua na base de duas tecno-logias, que são ainda hoje os pilares de nosso saber metalinguístico: a gramática e o dicionário” (1992, p.65). Trazer esta definição é tributar a Auroux o mérito de nos possibilitar pensar no processo de gramatização de uma língua, mas é também começar a estabelecer as relações deste processo com as línguas minoritárias, bem como com as manifestações linguístico-culturais regionalistas. No âmbito destas manifestações nos deparamos com a dita língua falada no sul do Brasil que optamos por tratar como linguagem gauchesca levando em conta estudos realizados anteriormente4, conforme segue: o Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul (1984) traz entre seus verbetes “linguagem gauches-ca” e “poesia gauchesca”,

nos quais é possível observar o funcionamento da noção de lín-gua em suas relações com as formas de identificação do sujei-to gaúcho com a língua que acredita ser “sua” e o território que acredita ser “seu”. Tais verbetes nos conduzem a refletir também sobre as relações entre língua e literatura; tendo em vista que o dicionário revela o movimento de idas e vindas entre uma e ou-tra, apoiando-se essencialmente na produção literária, seja para tentar conter os processos de produção de sentidos, seja para ins-trumentalizar um leitor ainda jovem ou que desconheça a língua (gem) regionalista (PETRI, 2010, p.30).

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Eis o recorte dos verbetes que constam do referido dicionário:

LINGUAGEM GAUCHESCA, s. Português falado pelos gaúchos da zona pastoril do Rio Grande do Sul, ao qual se agregaram elemen-tos uruguaios, argentinos, paraguaios, guaranis, tupis, quíchuas, araucanos, áfricos e de várias procedências. (V. Poesia Gauchesca) (Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul, p.266).

POESIA GAUCHESCA, s. Modo de expressão literária pe-culiar aos poetas nativistas do Rio Grande do Sul. Esta de-nominação abrange todas as formas de poesia, as quais, no entanto, no trato de temas rio-grandenses, adquirem carac-terísticas especiais. É, também, chamada “poesia gaúcha”, “poesia nativista do Rio Grande do Sul” e “poesia crioula”. (Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul, p.381)

Antes de adentrar na discussão específica dos objetos discursivos que estudo, quero refletir mais sobre a noção de gramatização e seu funcionamento. O descrever e instrumentar uma língua me parece ser um processo contínuo que certamente teve um início, um lugar de fun-dação, mas que dificilmente terá um final, um término, pois estamos sempre nos deparando com novos fatos de língua a descrever e novas tecnologias que podem instrumentar esta língua. No entanto, quando pensamos em termos de normatização, deparamo-nos com o efeito de completude que estas duas tecnologias - a gramática e o dicionário – produzem, um efeito necessário para a constituição identitária de uma nação, muito embora já dessacralizado pelos diferentes modos de fun-cionamento que assumem no interior de diferentes grupos sociais.

Na verdade, estou pensando que existe um lugar, inegável, institu-ído para o funcionamento da gramática e do dicionário: é na escola e em tudo o que dela decorre, afinal, é desse lugar que aprendemos “o bom uso da língua”, a importância da gramática e o papel do dicionário em nossas vidas. Aprendemos a respeitar o funcionamento regulador da gramática e o funcionamento compilador do dicionário, mas desde muito cedo nos deparamos com a impossibilidade de conhecer a gramá-tica em sua totalidade e de conter os sentidos sobre as palavras que uti-lizamos. Trata-se de um efeito de sentido já estabilizado e dele decorre a ilusão de unidade de língua e de nação.

A epígrafe deste artigo traz o exemplo da definição de sorriso, uma definição que não pode ser contida no espaço do dicionário, porque dele escapa, porque ela é mais, ela está viva. Aí, instala-se a crise, a pro-fanação dos referidos instrumentos linguísticos, pois se antes, na escola,

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tínhamos nestes instrumentos uma aura divina, agora temos a tentação de cometer pequenos delitos, de transgredir a norma, de admitir senti-dos outros, de explicitar a possibilidade de resistência do sujeito, pois a língua que falamos já não cabe ali, o que se fala escapa, flui e nos afasta do ideal de língua preconizado pela gramática e pelo dicionário. Parece--me que aí se instala também a questão do preconceito linguístico, re-sultante de uma série de fatores, mas também resultante deste distancia-mento entre o que está na gramática e no dicionário e o falar cotidiano. Conforme salienta Mariani (2008, p. 34), “essa língua nacional, ensina-da na escola, preconizada como correta, pouco ou quase nada tem a ver com o modo como muitos e muitos brasileiros falam a língua”.

É nesse espaço que se instala a problemática das minorias linguís-ticas e onde incluímos a dos falares regionais: é a mesma língua, mas é diferente. De onde é este sujeito? Por que fala assim... tão diferente? A gramática é a mesma? E as palavras? E os sentidos? A gramática é a da língua portuguesa, é ainda a da língua portuguesa do Brasil, mas é pos-sível que as palavras não sejam sempre as mesmas, que os sentidos se-jam outros, pois os sujeitos são outros, têm uma história e se relacionam de modo particular com a ideologia. Então, é possível produzir dicio-nários diferentes dos que representam uma unidade de língua? Como fica a questão da associação da gramática e do dicionário aos processos de gramatização das línguas... ou mesmo a associação de um dicionário regionalista a uma gramática?

Esta é uma inquietude minha: se o dicionário é um dos pilares da gramatização de uma língua, como poderemos tomar os dicionários re-gionalistas? Temos dicionários regionalistas do e no Rio Grande do Sul, no entanto eles se relacionam com uma gramática da língua portuguesa do Brasil que é oficial, nacional. Não se trata de gramatização? Como poderíamos tratar este processo que não cessa de se transformar? Estas são questões que movem um pouco, hoje, minhas pesquisas.

Para além da gramatização, a dicionarização Importa lembrar ainda que, para Auroux (1992), a gramatização das

línguas também cumpre um papel de manutenção e preservação, tendo em vista que as línguas orais acabam se perdendo na ausência de ins-trumentos linguísticos que assegurariam sua patrimonialização. Para o autor, “a gramatização modificou profundamente a ecologia da comuni-cação e o estado do patrimônio linguístico da humanidade”, e, com isso, “as línguas, pouco ou menos ‘não-instrumentalizadas’, foram por isso mesmo mais expostas ao que convém chamar lingüicídio5, quer seja ele voluntário ou não” (p.70). Talvez, aqui haja um nicho para refletirmos como se dá esse processo para além da gramatização, pensando no pro-

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cesso de dicionarização de uma linguagem regional que revela nuances importantes da língua falada no Brasil, mas que não é uma outra língua a ser gramatizada com base nos instrumentos linguísticos, tal como nos propõe Auroux.

Na verdade, penso na possibilidade de se desvincular um pouco o processo de dicionarização do processo de gramatização da lín-gua (como vem sendo tratado), talvez assim possamos compreender também outras formas de instrumentação da língua que não surgem prioritariamente com o objetivo de gramatizar. Na verdade, gramá-tica e dicionário são historicamente reconhecíveis como fundadores do processo de instrumentação das línguas, mas como nos determos apenas neles com tantas tecnologias ao nosso dispor? Penso que tra-tar de instrumentos linguísticos, hoje, é trazer à baila uma série de objetos que funcionam no interior do processo de instrumentação da língua, tais como: livros didáticos, dicionários de especialidades e ou de regionalismos, sites da internet, Museu da Língua Portuguesa, dife-rentes materiais publicitários, etc. Penso, ainda, que, a partir gramati-zação de uma língua, promove-se a instrumentalização desta língua e ela tem papel fundamental na constituição identitária e linguística de uma nação, tornando possível, por exemplo, o ensino e o aprendiza-do desta língua. Nesta esteira, podemos pensar que instrumentalizar uma língua, atualmente, é bem mais do que pensar em dicionários e gramáticas, temos uma série de outras materialidades que cumprem este papel. E é desta perspectiva que falo de um dicionário regionalista gaúcho em suas diferenças com os dicionários nacionais e em suas relações associativas (e constitutivas) com a gramática da língua por-tuguesa, da língua portuguesa do Brasil.

Tomar o dicionário regionalista para análise é dar a ele o estatuo de objeto discursivo, e isso implica, conforme Nunes (2006, p.43), “em concebê-lo como uma alteridade para o sujeito falante, alteri-dade que se torna uma injunção no processo de identificação nacio-nal, de educação e de divulgação de conhecimentos linguísticos”. O dicionário acaba estabelecendo relações entre os sujeitos e o saber, via a discursividade que lhe é constitutiva. E esta relação é observá-vel também no tocante ao dicionário de regionalismos que estamos estudando. Certamente, faz-se necessário levar em conta o funciona-mento do dicionário, pois através dele é possível compreender “um pouco como a linguagem funciona em nós e como são praticadas as políticas da língua. Os sentidos nunca estão soltos, desligados e circulando livremente. Eles se produzem em certas condições, têm relação com a memória discursiva, relacionam-se com outros” (Or-landi, 2009, p.109).

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O dicionário regionalista: algumas implicaçõesO instrumento linguístico ao qual fazemos referência é o Dicioná-

rio de Regionalismos do Rio Grande do Sul, de Rui Cardoso Nunes e Zeno Cardoso Nunes, dois irmãos que pesquisavam elementos lin-guístico-culturais fundantes do espaço de tradições gaúchas por pelo menos duas décadas e que publicaram seu trabalho nos anos 80 do sé-culo XX. Já produzimos algumas análises sobre a obra, tanto sobre o prefácio quanto sobre os verbetes (cf. Petri, 2011; 2010; 2009; 2008). A designação gaúcho, por exemplo, interessa-nos em especial porque é, historicamente, marcada por uma atmosfera de contradição bastante interessante e capaz de produzir diferentes efeitos de sentido, tanto no discurso mitológico, quanto no discurso histórico, bem como no dis-curso literário, o que aparece explicitamente no dicionário regionalista. A oscilação principia mitológica e historicamente entre o mau gaúcho e o bom gaúcho; o gaúcho platino e o gaúcho brasileiro; o gaúcho do campo e o gaúcho da cidade; passando a designação a ser incorporada pelo discurso literário que chega às denominações de: “o gaúcho de a cavalo”, associado à imagem do centauro; e o “gaúcho de a pé”, associado ao sem-terra da segunda metade do século XX, no Rio Grande do Sul. A oscilação ocorre, portanto, entre a concepção favorável e a concep-ção pejorativa, faces reveladoras das contradições, das semelhanças e das dessemelhanças presentes em diferentes discursos que constituem o discurso “sobre” o gaúcho (Petri, 2004).

O que quero salientar aqui é que, no caso específico de um dicio-nário de regionalismos, encontramos o “levantamento” do que é pró-prio do popular, do domínio de um falante do “interior” de um estado brasileiro. Trata-se de um lugar onde estão formalizados os sentidos correntes mobilizados pelos falantes daquela região, remetendo-nos a uma outra época, ao “imaginário de passado glorioso”, silenciando (na maioria das vezes) os efeitos de sentidos pejorativos que a designação possa vir a produzir. Esse tipo de objeto discursivo também carrega as representações próprias das relações sociais que se efetivam num espaço bem determinado: o campo (a campanha) gaúcho.

É enquanto “um conjunto de modos de dizer de uma sociedade” (Nunes, 2001, p.101) – a qual podemos qualificar como “bastante fe-chada” -, que o dicionário de termos regionalistas funciona como um lugar de referência e de preservação do passado de glórias. Ali não estão “guardadas” apenas as palavras e as expressões da língua, ali são guarda-dos os sentidos que “devem” permanecer. É um instrumento linguístico que trabalha para delimitar as possíveis fronteiras de uma formação dis-cursiva bem específica, determinando o que deve e pode ser dito. Nesse sentido, estamos tratando de um discurso que, supostamente, teria sido

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fundado no espaço campesino e rural do Rio Grande do Sul na época da monarquia portuguesa no Brasil e da colonização, o que aparece re-presentado no discurso histórico oficial (que conhecemos atualmente) e que é parte constitutiva do imaginário social produzido (re-produzi-do) e instituído pela literatura regionalista que analisamos em tese de doutoramento (Petri, 2004), levando-se em conta que o literário é um espaço discursivo que revela um ponto de vista imaginário, urbano e civilizado “sobre” o gaúcho.

Ao compreendermos um pouco deste processo de dicionarização da linguagem regionalista em questão, vamos nos questionando cada vez mais acerca do funcionamento da noção de gramatização, proposta por Auroux, pois parece se tratar de um outro funcionamento do instru-mento linguístico em questão. Não resta dúvida alguma de que estamos tratando de um dicionário, portanto, um instrumento linguístico da maior importância. O que estamos questionando é o seu funcionamen-to, já que ele parece surgir à revelia do processo de gramatização da lín-gua, não apresentando como objetivo principal constituir-se como um “pilar do saber metalinguístico”, pelo menos não no sentido entendido por nós a partir de Auroux (1992). Há uma preocupação bem específica na produção deste dicionário que movimenta seu funcionamento para os sentidos de um instrumento linguístico que seria capaz de “garantir”, de algum modo, um vocabulário “facilitador” de leituras das obras lite-rárias, mitológicas e folclóricas que remetem ao passado de um grupo social também bem específico; e isso vem junto, mas parece ser posto de modo independente ao processo de gramatização da língua portuguesa do Brasil. Trata-se de um outro processo de produção dicionarística, pois muito embora ele faça parte da gramatização da língua portuguesa, ele tem um outro ritmo para acontecer, é um movimento a parte, com objetivos bem restritivos, com um compromisso que se estabelece com a linguagem da região, podendo inclusive ferir princípios gramaticais e normativos, sem culpa, em nome da fidelidade ao falar regional.

Este dicionário tem como base/suporte linguístico a língua portuguesa do Brasil, relacionando-se com os outros dicionários e com a gramática que lhe são próprios, mas ele também carrega em seu bojo as fortes in-fluências da língua castelhana da região platina, por exemplo, bem como revela relações singulares com a literatura regional, o que lhe confere par-ticularidades. Tais constatações nos levam a pensar na gramatização da língua portuguesa acontecendo de modo independente, com ou sem esse instrumento linguístico tão específico. No entanto, não podemos deixar de considerar sua importância, primeiro, para a região e, depois, para o país. Isso nos leva a constatar que todo o dicionário é instrumento lin-guístico; mas, ao mesmo tempo nos perguntamos: é possível que nem

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todos os dicionários funcionem prioritariamente no processo de grama-tização de uma dada língua? Trata-se de um dicionário regionalista da língua portuguesa, um instrumento linguístico disponível que existe pela língua portuguesa gramatizada, relacionando-se de modo muito parti-cular com dicionários monolíngues e gramáticas, ao longo dos últimos séculos. Esta relação diferenciada deve-se também a um funcionamen-to especial da noção de fronteira no interior do referido dicionário, pois nele encontramos deslocamentos das fronteiras físicas que delimitam o território brasileiro e o território argentino, por exemplo; já que definir gaúcho neste instrumento linguístico é levar em conta um imaginário so-cial que o considera como habitante da região do Prata, independente do país ou da nacionalidade deste sujeito. As fronteiras referenciais já não são mais físicas, são da ordem do simbólico, por isso mesmo vamos encontrar exemplos em língua espanhola falada na América Latina.

Outro elemento interessante de se observar neste dicionário de re-gionalismos é o espaço de prefaciamento. Há, na obra, uma breve e geral apresentação dos autores, além de uma apresentação (de um dito po-eta regionalista) realizada por um terceiro, que destaca características dos dedicados autores, os quais, em “momento algum”, são designados como lexicógrafos, e sim reveladores de uma face da tradição gaúcha na e pela língua. Destaca-se aqui, então, outro objetivo que extrapola o de desejo de certitude, próprio ao dicionário, bem como o de controle dos sentidos sobre as palavras ou expressões, pois, nesse caso, o dicionário é elaborado como um lugar de preservação de “patrimônio linguístico--cultural”, capaz de instrumentar leitores. Trata-se de um instrumen-to linguístico, um objeto de consulta, sem dúvida, mas que funciona como referencial de um tradicionalismo bem específico, revelador de regionalismos, por isso mesmo não podendo ser tomado como lugar de acúmulo de saber atualizado, ou como instrumento de consulta para o falante da língua portuguesa, em sua generalidade. Ao mesmo tempo, corresponde a ele uma outra tecnologia, a gramática, que é, sim, a da língua portuguesa, ou seja, a estrutura da língua que garante o seu fun-cionamento é comum ou idêntica a que garante o funcionamento de ou-tros dicionários nacionais (ou ainda outros dicionários regionais, como o de nordestinês ou de amazonês, para mencionar outros exemplos6).

Estamos tratando de um instrumento linguístico marcado pela es-pecificidade de um grupo social, pela crença de que haveria uma nação imaginária (no interior de outra nação), por um imaginário coletivo que supervaloriza os costumes de outrora. A língua, nesse caso, fun-ciona como expressão maior de um grupo social tão específico, que se identifica como diferente no interior do mesmo, dando ao dicionário um estatuto diferenciado de conservador do passado mitológico, his-

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tórico e linguístico-cultural. Ao meu ver, temos ainda um instrumento linguístico que cumpre seu papel de resultado da revolução tecnológica, trabalhando a serviço da preservação e em detrimento da atualização da língua, própria dos dicionários nacionais. No entanto, não podemos tomá-lo como pilar do saber metalinguístico da língua portuguesa, de modo que é preciso dar a ele um outro estatuto. Na verdade, não iden-tificamos a tomada de posição de um sujeito lexicógrafo produzindo o efeito de autoria, assim como não temos um falante ideal de língua portuguesa como modelo para o dicionário regionalista, mas temos as tomadas de posição do sujeito falante diante da língua que é portugue-sa-brasileira-gaúcha.

Ao recorrermos aos verbetes distribuídos no dicionário de regiona-lismos, descobrimos que ele recupera, constantemente, traços de uma memória heroica e mitológica, que é histórica e que é literária, preser-vando essa memória via exemplos de textos literários regionalistas, se-jam eles produzidos no Brasil ou nos outros países da região do Prata. De fato, estamos diante de dicionaristas, mas dicionaristas que assumem diferentes posições-sujeito diante da língua e de seu funcionamento. No caso do regionalismo, deparamo-nos com escritores regionalistas que também são críticos literários e que selecionam os autores gauchescos que “merecem” destaque no interior do dicionário, explicitando, assim, o funcionamento da ideologia. Trata-se de dicionaristas que tiveram como profissão a carreira poética, jurídica e jornalística, o que nos leva a reconhecer a tomada de posição pela via da interpelação. Segundo Or-landi (2002, p.105), é possível “compreender o funcionamento da ide-ologia, pois ao tomar o dicionário como discurso, podemos ver como se projeta nele uma representação concreta da língua”, possibilitando a identificação de “indícios do modo como os sujeitos – como seres histó-rico-sociais, afetados pelo simbólico e pelo político sob o modo do fun-cionamento da ideologia – produzem linguagem”. Os sujeitos, além de produzirem um dicionário regionalista (tomando a posição de escritor/dicionarista), são, ainda, interpelados pela especificidade regional que os constitui e ao mesmo tempo os interroga, num empreendimento que poderíamos definir como o desejo do sujeito de controlar os sentidos que lhe escapam. Isso se daria, então, pela dicionarização, via manuten-ção, revelando a posição-sujeito do “guardião da língua”, desta língua imaginária, fundadora de uma nação imaginária, que pretensamente separaria “gaúchos” de “não-gaúchos” no interior do grupo social de “brasileiros”. É como se este dicionário pudesse “apreender” a lingua-gem regionalista que flui como o Rio Uruguai7, buscando a completude e a totalidade própria à ilusão de se ter uma língua imaginária, quando de fato ela é fluida (Orlandi, 2009).

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Na verdade, o dicionário regionalista nos oportuniza a observação da constituição da linguagem regionalista do sul do Brasil compilada na forma da instrumentação, ou seja, ela também passa pelo processo de tecnologização, através do qual são produzidos instrumentos linguísti-cos especialmente concebidos como espaço de manutenção, colocando em funcionamento um imaginário de “língua regional”. Talvez mais do que isso, pois nos dá a conhecer uma forma de memória oral e popular por um trabalho de escritura, o que contribui para a historicização das ideias do sul do país, por exemplo. É por um processo, posterior ao de “gramatização” (Auroux, 1992) - propriamente dito - da língua portu-guesa, por meio do qual pode-se constituir sentidos sobre os verbetes, as definições e os exemplos propostos no dicionário de regionalismos.

É por esta dicionarização que as gerações futuras, advindas des-se grupo social e de outras culturas, têm acesso aos traços específicos da região sul da América Latina, fundada nos tempos da colonização e mesmo antes dela, período em que se instituíram diferentes imagens de gaúcho. Isso revela também as formas de percepção da vida em so-ciedade que se tinha em outros momentos históricos, em contraponto à “evolução das formas contemporâneas de percepção [que] resulta da aceleração, da velocidade, da tecnologia, consolidando a contingência, a instabilidade, a incerteza” (Haroche, 2011, p.13). Trata-se da manuten-ção de saberes, da manutenção de uma história (na qual ficção e reali-dade se misturam, pelo trabalho da invenção), da manutenção de uma identidade dita como “gaúcha”, via a especificidade linguística, cultural e literária.

Últimas consideraçõesCom esta reflexão, chegamos às noções de imaginário e imagens de

sujeito e, sobretudo, de língua imaginária, pois é dessa ordem a ideia de que o dicionário, produzido em pleno século XX (embora resgate tex-tos do século XIX), possa dar conta de toda uma língua e uma cultura. Da mesma forma que neste imaginário seria possível revelar a imagem de um sujeito herói, bem como seria possível “conter” os processos de produção de sentidos que se movimentam incessantemente com e sem o dicionário. Esse processo de produção dicionarística é também da or-dem da invenção, da necessidade de continuidade, de estar na língua como diferente. É instigante refletir acerca do funcionamento desta ilu-são constitutiva, da ilusão de que este livro – o dicionário – seja um depositário da linguagem e da cultura gaúcha, por extensão da língua e da cultura brasileira, ilusão esta que remete o leitor à possibilidade de completude da língua e da possibilidade de domínio do sujeito sobre ela e sobre os sentidos que pode/deve produzir.

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É esta ideia de dicionário como depositário de uma linguagem regio-nal, como espaço materialmente constituído, capaz de alcançar ideais de manutenção de imagens de um sujeito, bem como da língua\cultura\tradição de um grupo social que nos permite pensá-lo e defini-lo como “tesouro de um falar”, ainda que represente a tecnologização da língua e que funcione como instrumento linguístico, não é pilar de saber meta-linguístico da língua portuguesa como um todo, ele é parcial.

Então, se ele compila elementos do falar de um grupo social, a sua constituição não nos remete, necessariamente, às relações entre língua e nação. Por isso mesmo é que podemos dispor de tantos dicionários específicos: eles não funcionam no mesmo âmbito nem da mesma ma-neira que os dicionários bilíngues e monolíngües; eles são regionalistas e não obedecem a uma terminologia específica da lexicologia e, por isso mesmo, perdem um pouco do rigor lexicográfico, próprio aos outros dicionários já mencionados. Assim sendo, os verbetes que estão no di-cionário regionalista podem ser ou não contemplados pelo dicionário nacional, já que a língua é portuguesa no e do Brasil, plena em especifi-cidades de várias ordens, dentre as quais estão os regionalismos.

É fato, também, que é pela instrumentalização dessa linguagem re-gionalista que se torna viável, em muitos casos, a leitura de textos artís-ticos-literários produzidos sob o rótulo de “gauchescos”, pois é pelo fun-cionamento desta tecnologia que se dá o efeito ilusório de contensão do processo de produção de sentidos, a partir do qual o sujeito acredita estar compreendendo o que lê. Em épocas remotas (e até hoje em algumas cul-turas), os povos herdavam traços da língua e da cultura pela oralidade, no entanto, hoje, como se daria a conhecer esta “língua/linguagem”, esta cultura regional e as imagens deste gaúcho que também é brasileiro? Te-mos as canções, os causos, os mitos, as histórias, que, via literatura e via dicionário, apresentam uma parcela desta história que faz do Rio Grande do Sul parte do Brasil que se conhece (desconhece e reconhece) hoje.

Enfim, no dicionário de regionalismos é possível observar o funcio-namento da noção de língua em suas relações com as formas de iden-tificação do sujeito gaúcho com a língua que acredita ser “sua” e com o território que acredita ser “seu”. Consequentemente, com um dicionário bem específico. Se por um lado temos todo o processo de gramatização das línguas vinculado às tecnologias que instrumentam cada língua e possibilitam que cada uma delas seja ensinada e aprendida; por outro, temos a constituição de inúmeros instrumentos linguísticos que reve-lam outros funcionamentos. E isso nos instiga a continuar pesquisando e refletindo sobre os diferentes modos que os instrumentos linguísticos podem funcionar para contribuir em nossa compreensão dos processos de constituição de língua, sujeito e história.

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Notas1 Uma primeira versão deste texto foi apresentada em conferência proferida para alunos e professores de graduação e de pós-graduação da UNIVAS (Pouso Alegre-MG), em 29 de abril de 2011.2 Grifo nosso.3 Grifos do autor.4 Cf. Análise em http://www.revistalinguas.com/edicao23_24/revista_linguas_23%20e%2024.pdf. “Reflexões acerca do funcionamento das noções de língua e de sujeito no dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul”, de Verli Petri. Acesso em 06.03.2012.5 Grifo do autor.6 FONSECA,2005; FREIRE, 2011.7 Aqui estamos fazendo alusão à metáfora do Rio Xingu, proposta em Orlandi (2009, p.18), promovendo o deslocamento geográfico para a região sul do Brasil.

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nordestino: nordestinês. São Paulo: Factash.FREIRE, Sérgio. (2011) Amazonês. Expressões e termos usados no

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Palavras-chave: dicionários regionalistas, discurso, história das ideiasKey-words: regionalista dictionaries, discourse, history of ideas

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A POLÍTICA DA DIVERSIDADE NA SALA DE AULA

Ana Cláudia Fernandes FerreiraDébora Massmann

Univás

RESUMO: Em um mundo em que globalização, diversidade, tolerância e inclusão têm se tornado palavras de ordem, pensar a política da diver-sidade na sala de aula implica refletir sobre o modo como a diferença é designada, dita e (re)significada na e pela sociedade. Nesta direção, fun-damentadas nos pressupostos teóricos da Semântica do Acontecimento (Guimarães, 2002), as autoras analisam um conjunto de textos jurídico--governamentais que têm como tema a regulamentação das práticas edu-cativas para sujeitos com necessidades especiais.

ABSTRACT: In a world where globalization, diversity, tolerance and inclusion have become buzzwords, thinking about the politics of diversity in the classroom involves reflecting on how difference is designated, said and (re) signified in and by society. In this direction, based on the conceptual framework of the Semantics of the Utterance Event (Semântica do Acontecimento, Guimarães, 2002), the authors analyze a set of juridical-governmental texts that have as their theme the legal regulation of educational practices for individuals with special needs.

“Não é a deficiência que me impede de exercer minha cidadania, mas sim a dificuldade que a sociedade tem de eliminar barreiras, respeitar a diferença e aceitar a diversidade”.

Gabriel, 14 anos, deficiente visual, aluno de escola regular

Considerações iniciaisA reflexão que propomos busca pensar sobre o funcionamento de

sentido do que é diferente, ou seja, busca compreender o modo como

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a sociedade faz significar a diferença em determinados sujeitos. Nosso interesse está particularmente no modo como a diferença é designada, dita e (re)significada em um conjunto de textos jurídicos que regula-mentam as práticas de ensino do Brasil. Trata-se pois de observar como a questão da diferença, do “ser diferente” em uma sociedade como a nossa, se constitui e se produz enunciativamente nestes textos em rela-ção às necessidades especiais de sujeitos ora significados como excep-cionais, ora como deficientes e ainda como portadores de necessidades especiais, entre outros. Sem dúvida, o assunto é espinhoso, pois toca em questões complexas que envolvem preconceito, cidadania, direitos humanos, ensino e, principalmente, sujeitos que são significados, apon-tados e ressignificados pela sua diferença.

Assim, neste trabalho, embasado na Semântica do Acontecimento, tal como proposta por Guimarães (2002), tomamos como ponto de par-tida a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), publicada em 1961. A LDB tem a função de definir e regulamentar o sistema educativo bra-sileiro fundamentando-se nos postulados da Constituição Federal. Ci-tada inicialmente na Constituição de 1934, a primeira LDB, lei 4.024, é publicada efetivamente em só no ano de 1961.

Passados mais de 50 anos de sua aparição e diante das reformula-ções realizadas nas versões subsequentes, a referência nacional que re-gulamenta a educação no Brasil definitivamente não caminha a passos largos. No entanto, entre a resistência aos deslocamentos de práticas de ensino quase imóveis, que certamente não se alteram por decreto, e as modificações realizadas no texto da lei, chamamos a atenção aqui para a questão da inclusão na sala de aula e para o modo como ela vem sendo designada e (re)significada em diferentes textos oficiais. Conforme já foi dito, tomaremos a lei 4.024/61 como ponto de partida e, a partir dela, vamos percorrer outros textos, como a Constituição Federal de 1988, a LDB 9.394/96 e o Decreto n. 7.612/2011. Em conformidade com o qua-dro teórico ao qual nos filiamos, consideraremos, portanto, cada uma dessas leis como um acontecimento enunciativo que se produz pelo fun-cionamento da língua. Em cada lei, há, pois, um dizer específico sobre a diferença e sobre o modo como o sistema educativo vai lidar com essa questão.

O percurso da diversidade nos textos oficiaisA efervescência dos debates sobre inclusão e diversidade na sala aula

permitiu avanços importantes em relação ao modo de designar os sujei-tos que potencialmente inscrevem-se como público alvo dessas políticas inclusivas. De acordo com Gil1 (2011), a busca por outras formas de nomear estudantes marcados pelos aspectos da diferença, o ser diferente,

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“expressa uma disputa profunda e fundamental acerca das concepções que devem vigorar no atendimento a essas pessoas”. No caso, as diver-sas formas de nomear a diferença observadas no corpus deste estudo fornecem pistas sobre quem são esses sujeitos, quais tratamentos edu-cacionais merecem ter, e principalmente, como eles são significados na e pela sociedade.

Nota-se assim que paralelamente ao advento de novas formas de dizer a diferença na educação, busca-se deslocar esse “poder da Norma” através do qual as instituições de poder, como a escola e o governo, por exemplo, tentam estabelecer o normal como coerção social (Foucault, 1987).

Os projetos que têm sido colocados em práticas para deslocar e ressignificar esses modos de dizer a diferença não resultam apenas de um esforço brasileiro, mas sim de um movimento político-educacional maior que se sustenta em acordos internacionais, tais como a Declara-ção dos Direitos Humanos de Viena (Unesco, 1993) que constitui um texto fundamental para essa questão à medida que discute o princípio da diversidade, colocando o direito à igualdade em patamar semelhante ao direito à diferença:

22. Haverá que prestar atenção especial para garantir a não discri-minação e o gozo, em termos de igualdade, de todos os Direitos Humanos e liberdades fundamentais por parte de pessoas com deficiência, incluindo a sua participação ativa em todos os aspec-tos da vida em sociedade (Unesco, 1993, p.6).

Ao reconhecer a pluralidade de sujeitos portadores de direitos e de seus direitos específicos, o texto inscreve-os como parte integrante e in-divisível da plataforma universal dos Direitos Humanos. Desse modo, a Declaração de Viena pode ser considerada um divisor de águas para a inclusão educacional, pois trouxe consigo a questão da Ética da Di-versidade na implantação de políticas inclusivas. É fundamentada neste documento de Viena, que surge, em 1994, a Declaração de Salamanca (1994) em que se discorre justamente “Sobre Princípios, Políticas e Prá-ticas na Área das Necessidades Educativas Especiais”.

Estes dois documentos constituem uma amostra das discussões in-ternacionais sobre o assunto e da rede de sentidos que foi se constituin-do em torno do tema educação inclusiva. O movimento internacional e a rede de sentido que ele suscitou produziram ecos e afetaram signifi-cativamente as políticas públicas, promovidas pelo Ministério da Edu-cação do Brasil, no que concerne à inclusão de crianças e adolescentes com necessidades educativas diferenciadas na rede regular de ensino. Para ilustrar este movimento que tem sido designado como “políticas

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inclusivas”, trazemos o seguinte gráfico apresentado pelo MEC2 no iní-cio de 2011:

O gráfico ilustra em números aquilo que, nos últimos anos, tem-se tentado instituir através de leis e de decretos. Ou seja, há um movimento cada vez maior para integrar os sujeitos, significados socialmente pela diferença, no sistema de ensino regular. É interessante observar já aqui neste gráfico o modo como essas relações estão sendo significadas.

A fim de observar como os sentidos se constroem e se constituem pelas relações de determinação3 entre as palavras no acontecimento da enunciação, utilizamo-nos do conceito de Domínio Semântico de De-terminação (DSD), proposto por Guimarães (2007). Definido como um mecanismo de descrição e de interpretação, o DSD ampara-se nas rela-ções de determinação semântica que as palavras estabelecem no funcio-namento da língua. Tem-se assim que a história do sentido de uma pa-lavra é produzida pela “ação que as palavras exercem, à distância, umas sobre as outras. Uma palavra é levada a restringir cada vez mais sua significação, pelo fato de existir uma companheira que estende a sua” (Bréal, 2008, p.182). Para se constituir, um DSD levam-se em conta dois procedimentos fundamentais na constituição de sentidos: a articulação e a reescrituração. Enquanto a reescrituração diz respeito ao processo de construção de sentidos na unidade do texto, a articulação remete à análise das relações de sentido no interior do próprio enunciado.

A partir das informações apresentadas pelo gráfico, podemos estabe-lecer o Domínio Semântico de Determinação abaixo. No gráfico acima,

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“Evolução da política inclusiva nas classes comuns do ensino regular se mostra consistente ao longo dos anos” é reescriturado enumerativa-mente por: “Matrículas em escolas especializadas e classes especiais”; “Matrículas em escolas regulares/classes comuns”. Esta enumeração, sob a aparência da homogeneidade do dado, coordena uma oposição, uma antonímia. Ao mesmo tempo, cada um dos elementos da enumeração articula no seu interior as relações “escolas especializadas” e “classe es-peciais” de um lado e “escolas regulares” e “classes comuns” de outro. O que nos leva ao seguinte DSD1:

DSD1

Aqui, é possível verificar, a partir das relações de determinação e de antonímia, a rede de significação que vai se produzindo em torno do que se está chamando de educação inclusiva ou políticas inclusivas. Ou seja, o sentido do que é educação inclusiva vai se constituindo no dizer do próprio Ministério da Educação pela tensão entre o igual e o diferen-te, o normal e não-normal. Em outras palavras, entre o que está incluído e o que está excluído.

Essa primeira manobra de análise semântica assinala para o processo de produção de sentidos que nos conduz a pensar o político na linguagem. Ou seja, é preciso considerar que uma palavra, no âmbito do enunciado ou do texto, pode ter outros sentidos, sentidos que se aproximam, que de-rivam e se complementam, funcionando numa mesma direção, e sentidos que se dividem, se afastam, se confrontam assumindo funcionamentos diversos. Pensar o político na linguagem significa, pois compreender que, como nos diz Orlandi (2009, p.83), “o sentido pode sempre ser outro”. Já para Guimarães (2002, p.16), pensar o político na linguagem significa pois pensar a questão da contradição que, de acordo com o autor, “instala o conflito no centro do dizer”. Ou seja, “o político está assim sempre divi-dido pela desmontagem da contradição que o constitui”

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No DSD1 apresentado acima, nota-se como a contradição, o polí-tico, enfim, se instalam no dizer: a relação entre escola regular/escola especial, classe regular/especial, sujeito normal/sujeito diferente (não normal), aparece em uma relação de antonímia ao mesmo tempo em que essa relação é determinada pela própria noção de inclusão, edu-cação inclusiva. Ou seja, o sentido de educação inclusiva traz já em si uma contradição que lhe é constitutiva. É pois tomando como funda-mentação essa concepção do político que avançamos nesta reflexão em direção à análise de textos jurídicos oficiais.

Outras manobras analíticasComo dissemos anteriormente, cada lei analisada é tomada aqui

como um acontecimento enunciativo que, por se dar nos espaços de enunciação, é por essência um acontecimento político, visto que a cons-tituição da temporalidade do acontecimento se produz na relação entre línguas e falantes que “é regulada por uma deontologia global do dizer em uma certa língua” (Guimarães, 2002, p.18).

Nossa entrada para a análise do modo como a diferença é significada nos textos jurídicos se dá a partir da lei 4.024/61. Como primeiro recorte, tomamos o Título X “Da educação de excepcionais” que especifica uma categoria de ensino a ser discutida nos artigos subsequentes. Apesar de ser o primeiro enunciado, no texto da lei, que coloca em funcionamento um dizer específico sobre a educação de sujeitos com necessidade educativas diferenciadas, é preciso observar que, ao mesmo tempo que este enun-ciado aparece em paralelismo sintático com outros tipos de educação (de grau primário, de grau médio, superior), o funcionamento semântico é outro, como se pode observar pelas paráfrases abaixo:

Recorte 1TÍTULO VI: Da Educação de Grau Primário.TÍTULO VI: Sobre a educação de grau primário.TÍTULO VI: A educação é de grau primário.

Recorte 2TÍTULO VII: Da Educação de Grau Médio.TÍTULO VII: Sobre a Educação de Grau Médio.TÍTULO VII: A Educação é de Grau Médio. Recorte 3TÍTULO IX: Da Educação de Grau Superior.TÍTULO IX: Sobre a Educação de Grau Superior.TÍTULO IX: A Educação é de Grau Superior.

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Recorte 4TÍTULO X: Da Educação de Excepcionais.TÍTULO X: Sobre a Educação de Excepcionais.TÍTULO X: A Educação é de Excepcionais.

Enquanto nos recortes 1, 2 e 3, “Educação” é especificada por uma expressão que significa o grau de escolaridade, no recorte 4, a especifi-cação coloca uma característica do sujeito, o “excepcional”. Mas afinal quem é e o que é o excepcional? Vejamos o funcionamento semântico destes recortes a partir do DSD de número 2:

DSD2

EDUCAÇÃO

grau primário

grau médio

grau superior

excepcionais (sujeitos)

Mas adiante, no artigo 88 “Da Educação de Excepcionais”, não há uma definição de quem são os excepcionais, mas o texto apresentado nos permite perceber que a educação de excepcionais deve, se possível, enquadrá-los no sistema geral da educação com o objetivo de integrá--los à comunidade como mostra o recorte 5.

Recorte 5:Art. 88. A educação de excepcionais deve, no que for possível, enqua-drar-se no sistema geral de educação, a fim de integrá-los na comunida-de (Lei 4.024/61)

Isso nos leva a compreender que este sujeito, designado como excep-cional, marcado, portanto pela diferença, tal como já pudemos mostrar no DSD1, está fora do sistema geral de educação e, consequentemente fora da sociedade. Em outras palavras, ele é um sujeito excluído. Pode-mos representar estes aspectos no DSD3:

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DSD3EDUCAÇÃO

Sujeito Excepcional

Exclusão

Sujeito normal Inclusão Sistema geral de educação

Sociedade

Em relação à Constituição Federal de 1988, a análise mostrou que no

texto da lei há categorizações muito próximas àquelas observadas na lei 4.024/61, representadas no DSD anterior. Já no recorte 6, apresentado a seguir, nota-se que a “educação dos excepcionais” foi reescrita, na Cons-tituição de 1988, através da especificação “atendimento educacional es-pecializado”. Outro movimento de sentido interessante de ser observado diz respeito ao modo como o sujeito excepcional é reescrito e ressignifi-cado, por expansão, através da designação “portadores de deficiência”. A relação exclusão/inclusão continua aqui produzindo efeitos de sentidos como mostra o seguinte recorte:

Recorte 6:O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a ga-rantia 1. de educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos

17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos;

2. atendimento educacional especializado aos portadores de defi-ciência, preferencialmente na rede regular de ensino; (Consti-tuição Federal de 1988)

Ou seja, a educação é garantida para todos, mas uma parcela des-te todos, aqueles que são significados social e politicamente pela sua diferença, é colocada como sendo um “a parte”, isto é, eles estão fora da rede regular de ensino e são, portanto, atendidos pela educação es-pecializada. O texto da Constituição parece colocar em funcionamen-to uma espécie de Partilha do sensível (Rancière, 2009) à medida que mostra a existência de um comum partilhado pelo todos, que compre-ende a maior parte da população, e coloca também a possibilidade de existência de recortes, parcelas, partes exclusivas e excluídas: as pessoas ditas portadoras de algum tipo de necessidade especiais. Nas palavras de Rancière (2009, p.16), “a partilha do sensível [...] define o fato de ser

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ou não visível num espaço comum”. Assim, questionamo-nos: qual é a visibilidade de sujeitos marcados pela sua diferença no texto da lei e na própria sociedade? Na busca por respostas e levando em conta: o recor-te 6 acima; a projeção da antonímia que indicamos no DSD1; e conside-rando que a expressão “educação básica” funciona no texto da legislação como elemento de uma enumeração que inclui algo como educação in-fantil, educação superior, educação especial, chegamos ao DSD abaixo:

DSD4

EDUCAÇÃO todos

infantil

básica

superior

especial

sujeito normal

___________________

sujeito portador de deficiência Exclusão

Já no texto da LDB de 1996, lei 9.394/96, logo nas primeiras páginas do texto, observa-se a seguinte reescrituração:

Recorte 7:TÍTULO III: Do Direito à Educação e do Dever de EducarIII - atendimento educacional especializado gratuito aos educan-dos com necessidades especiais, preferencialmente na rede regu-lar de ensino; (Lei 9.394/96)

Aqui, observa-se outro modo de (re)significar o sujeito e suas dife-renças. Se na constituição era o “atendimento educacional especializado” que se destinava a sujeitos portadores de deficiência, aqui, há um desloca-mento de sentido que se sustenta na reescrituração por expansão, através da expressão “educandos com necessidades especiais”. Essa forma de de-signar é mantida, mais adiante, no artigo 58 da mesma lei, em que se es-pecífica e se define a educação especial, como mostra o recorte 8 a seguir:

Recorte 8: CAPÍTULO V: DA EDUCAÇÃO ESPECIALArt. 58. Entende-se por educação especial, para os efeitos desta Lei, a modalidade de educação escolar, oferecida preferencial-mente na rede regular de ensino, para educandos portadores de necessidades especiais; (Lei 9.394/96)

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A relação exclusão/inclusão continua funcionando semanticamente, nos dois recortes apresentados, principalmente pelo modo como as re-lações de contiguidade se estabelecem no interior do próprio enuncia-do, como, por exemplo, no caso de “preferencialmente na rede regular de ensino” que nos leva a compreender que o todos ainda está partilhado e que nem todos estão de fato incluídos nesta rede regular de ensino.

Já no Decreto n. 7.612/2011, da Presidência da República, em que se institui o Plano Nacional da Pessoa com Deficiência, a finalidade é “de promover, por meio da integração e articulação de políticas, programas e ações, o exercício pleno e equitativo dos direitos das pessoas com defi-ciência” (Art. 1°, Decreto n. 7.612/2011). Neste documento, destacamos o Artigo 2° em que se define quem são as pessoas com deficiência:

Recorte 9: Art.. 2o São consideradas pessoas com deficiência aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, in-telectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barrei-ras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas. (Decreto n. 7.612/2011)

De todos os textos jurídicos percorridos até aqui, este é o primeiro que traz uma definição específica de quem são os sujeitos significados pela diferença. Trata-se pois de um dizer sobre a diferença que vai es-pecificá-la, torná-la visível, dita, audível e reconhecível. Assim, a partir deste recorte que dá nome à diferença, apresentamos outro DSD que vai tornar mais visível a rede de sentidos que está funcionando neste artigo 22.

DSD5 Exclusão Inclusão

Impedimentos físicos

Impedimentos mentais

Impedimentos intelectuais

Impedimentos sensoriais

DEFICIENTE políticas inclusivas

Educação

Sociedade

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Considerações finaisTodos estes movimentos de análises que se configuraram sob a for-

ma de diferentes Domínios Semânticos de Determinação, conduzem, enfim, a representação dos modos de dizer a diferença na educação inclusiva. Em outras palavras, as descrições e análises realizadas nesta reflexão nos permitiram perceber que, nos textos analisados, o sentido da diferença, do sujeito que é diferente, foi sendo construído, inicial-mente, pela designação de “excepcional”, em seguida pela de “portador de deficiência”, mais adiante por “portador de necessidade especial”, também por “educando portador de necessidade especial” e, por fim, em uma lei muito específica, por “deficiente”. Todas as formas de signifi-car são determinadas pelos “impedimentos físicos, mentais, intelectuais e sensoriais” que determinam, por sua vez, e especificam a diferença destes sujeitos. A relação de inclusão/exclusão, sustentada pela própria diferença, colocou em funcionamento a memória do preconceito e da própria cidadania. Assim, à medida que a lei tentou produzir efeitos de inclusão acabou por confirmar a existência de sujeitos excluídos em função de suas diferenças, como é possível verificar neste último DSD que traz a tessitura dos sentidos sobre a diferença nos textos jurídicos.

DSD6

Impedimentos físicos , mentais,

intelectuais, sensoriais

Excepcional

DIFERENÇA

Portador de deficiência

Políticas inclusivas

Portador de necessidade

especial

Educação regular

Educando portador de necessidade

especial

Deficiente

Inclusão Exclusão

A partir destas análises, constata-se que os modos de dizer e de (re)significar a diferença contribuem (e apontam) para um avanço do pen-samento político e social em torno da educação inclusiva. Avanço que certamente, por um lado, re-significa as políticas educacionais, mas, por outro lado, traz à escola a difícil tarefa de romper com paradigmas tra-

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dicionais e propor ações mais amplas que estejam de acordo com as necessidades histórico-culturais dos sujeitos (alunos, professores, pais, etc.) implicados nestas práticas.

Enfim, a tentativa de dizer a diferença nomeando-a diferentemente se dá porque, ao renomear, pretende-se produzir outros sentidos para a diferença, seja especificando-o, tornando-a mais visível, seja apagando--a, tornando-a invisível.

Notas1 Publicado em Gestão Escolar, Edição 016, Out./Nov., 2011. Todos significa todos. <http://revistaescola.abril.com.br/politicas-publicas/50-anos-lei-diretrizes-bases-edu-cacao-brasil-ldb-647284.shtml>2 Fonte: http://www.fnde.gov.br/. Para mais informações sobre os indicadores da política inclusiva, confira: http://revistaeducacao.uol.com.br/textos/177/o-impasse-da-inclusaomudanca-na-meta-4-do-plano-nacional-243674-1.asp3 A determinação é descrita por Guimarães (2007, p.79) como “uma relação fundamen-tal para o sentido das expressões linguísticas”. O autor esclarece ainda que “semantica-mente, é possível dizer que toda relação de predicação é, em certa medida, pelo menos, uma relação de determinação e vice-versa” (Guimarães, 2007, p.78).

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GUIMARÃES, E. (2007). “Domínio Semântico de Determinação”. In: GUIMARÃES, E. & MOLLICA, M. C. (Orgs.) A Palavra: Forma e Sentido. Campinas: Pontes, p.77-96.

_____. (2002). Semântica do Acontecimento. Campinas: Pontes. 2002.ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU), (1994). Declaração

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ORLANDI, E. P. Análise do discurso: princípios e procedimentos. 8. ed., Campinas: Pontes, 2009.

RANCIÈRE, J. (2009). A partilha do sensível. Estética e política. 2.ed., Rio de Janeiro: Editora 34.

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______. (1988) Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em 12 nov. 2010.

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Palavras-chave: diversidade, ensino, sujeitos com necessidades especiaisKey-words: diversity, teaching, special-needs subjects

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EL PRIMER DICCIONARIO INTEGRALDEL ESPAÑOL DE LA ARGENTINA:

REFLEXIONES ACERCA DEL ALCANCE DE “INTEGRAL”

Daniela LauriaInstituto de Lingüística, FFyL, UBA / Conicet

RESUMEN: El presente artículo analiza la publicación en el año 2008 del primer diccionario monolingüe general del español de la Argentina: el Diccionario integral del español de la Argentina. Si bien este instrumento lingüístico inaugura una nueva manera de concebir la labor lexicográfica en la Argentina en la medida en que produce una ruptura respecto de la tradición de los diccionarios complementarios y contrastivos, los diccio-narios de argentinismos, la autora cuestionará, a partir del examen de los criterios de definición de la norma, el alcance del término “integral” que se imprime en el título.

RESUMO: Este artigo discute a publicação, em 2008, do primeiro dicio-nário monolíngue geral do espanhol da Argentina: Diccionario integral del español de la Argentina. Embora essa ferramenta linguística inaugu-re uma nova forma de conceber o trabalho lexicográfico na Argentina, na medida em que produz uma ruptura com a tradição de dicionários complementares e contrastivos, os dicionários de argentinismos, a autora questionará, a partir de uma análise dos critérios de definição da norma, o alcance do termo “integral” presente no título.

ABSTRACT: This article discusses the publishing in 2008 of the first ge-neral monolingual dictionary of Argentinian Spanish: the Diccionario in-tegral del español de la Argentina. Even if this linguistic tool introduces a new way of conceiving the lexicographical work in Argentina, since it breaks a tradition of complementary and contrastive dictionaries -dictio-naries of Argentinisms-, the author will question, by analyzing the criteria of definition of the norm, the reach of the term “integral” (“comprehensi-ve”) expressed in the title.

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IntroducciónEste trabajo forma parte de una investigación mayor que parte de

dos ejes de análisis1. En primer lugar, el hecho de que los diccionarios enlazan en su elaboración un entramado de distintas temporalidades: la larga duración puesto que los instrumentos lingüísticos presentan una notable estabilidad genérica (partes en que se dividen u organizan, cate-gorías que utilizan, construcción de la secuencia, etc.). Es decir, se ins-criben en una determinada memoria de género, que permanece estable a lo largo del tiempo. Asimismo, se relacionan con tramos históricos de duración media vinculados con procesos específicos de amplio alcance como, por ejemplo, la formación de los Estados nacionales y su gestión de la lengua común, o el proceso de globalización y su gestión de la lengua internacional o global. Finalmente, articulan con las coyunturas concretas en las que se producen. Esto último se evidencia en el com-ponente programático y en el cuerpo de la obra (macro y microestruc-tura) ya que es en esos espacios donde se pueden detectar las huellas discursivas que remiten a sus condiciones de producción, así como lo-calizar los puntos de incidencia de la(s) memoria(s) discursiva(s). Y, en segundo lugar, el hecho de que la elaboración de un diccionario es el resultado transitorio de tensiones entre los requerimientos sociales, po-líticos y económicos; los avances en las Ciencias del Lenguaje (con sus consecuentes opciones teóricas y discursivas en la definición de lengua y de norma lingüística); las consideraciones pedagógicas vigentes; las transformaciones de las tecnologías de la palabra, entre otros factores.

El dilema de la lengua es un problema crucial de la cultura nacional en países como la Argentina que han sufrido un proceso de colonizaci-ón y que la lengua del colonizador se impuso. La lengua –la definición de la lengua nacional– fue (y es) uno de los temas más sensibles que formó (y forma) parte del repertorio problemático de configuración de la identidad nacional a lo largo de los doscientos años de historia de la Argentina independiente. El interés por comprender y explicar las tensiones históricas –pasadas, recientes y actuales– producidas en torno de la configuración de la identidad lingüística de los argentinos2, ex-presadas en algunos hitos de la producción lexicográfica monolingüe y considerando a ésta no como una tradición homogénea, sino como un espacio de conflictos y de contradicciones, fue lo que guió la investigaci-ón. Lograr ese fin, implicó analizar no sólo las posiciones sobre la relaci-ón entre la lengua (el léxico) y la nación, examinando la incidencia que los procesos socio-históricos tienen sobre la conformación idiomática y explorando también cómo el diccionario acompaña (o no) las transfor-maciones socio-históricas; sino también, y en gran medida, en el marco de la estandarización lingüística, la cuestión de la selección y de la fija-

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ción de la norma3. Ambas problemáticas, inherentes y constitutivas del desarrollo de la práctica diccionarística, se articulan de diferente modo en diversos períodos.

Nuestra investigación se inscribe en el marco teórico-metodológico de la Glotopolítica, disciplina que ha experimentado un importante auge en los últimos tiempos; prueba de ello es la cantidad de publica-ciones de artículos en revistas especializadas, la redacción de tesis de maestría y de doctorado, y las presentaciones en encuentros científicos que se llevan a cabo desde este enfoque.

En la tradición argentina, Arnoux (2000 y 2008) define la Glotopo-lítica como el estudio que aborda las prácticas, las ideas, las ideologías, las posiciones y las intervenciones en el espacio público del lenguaje, atendiendo a la relación que éstas entablan con transformaciones y re-querimientos socio-históricos más generales:

[la Glotopolítica] (…) estudia, entonces, las ideologías lingüísti-cas y las intervenciones en el espacio público del lenguaje asoci-ándolas con posiciones sociales y espacios institucionales e inda-gando en los modos en que aquellas participan en la instauración, reproducción o transformación de entidades políticas, relaciones sociales y estructuras de poder tanto en el ámbito local o nacional como regional o planetario. (Arnoux, 2008, p.18)4.

Se interesa por diversos tipos de acciones sobre el lenguaje llevados a cabo ya sea desde el Estado, ya sea desde ciertos sectores o institu-ciones de la sociedad civil (Kremnitz, 2001). Estudia, en consecuencia, la incidencia de los procesos políticos, económicos, sociales, culturales, demográficos (migratorios) y tecnológicos en el ámbito del lenguaje y los gestos de regulación e intervención a los que dan lugar, así como también el papel de las lenguas en la construcción de identidades e imaginarios colectivos como, por ejemplo, los nacionales o regionales (tanto transnacionales como locales). Asimismo, este enfoque tiende a reconocer las representaciones sociolingüísticas subyacentes en los tex-tos (Boyer, 1991 y Arnoux y Bein, 1999 y 2010) y a definir las ideologías lingüísticas dominantes5 (Del Valle y Gabriel-Stheeman, 2004, Del Val-le, 2007, y Arnoux y Del Valle, 2010).

Los trabajos realizados desde la perspectiva glotopolítica tienen una impronta histórica fuerte puesto que en sus análisis se atiende, como ya indicamos, a procesos políticos, económicos, sociales, culturales, edu-cativos, demográficos y tecnológicos. Además, estos trabajos acentúan el carácter interpretativo de las investigaciones. De ahí que el enfoque glotopolítico, tal como lo plantea Arnoux (2000 y 2008), se articule con

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la metodología del Análisis del Discurso (Arnoux, 2006) como herra-mienta que provee la construcción de un dispositivo de análisis acorde a los materiales y a los objetivos planteados. La autora sostiene que se enfocan los textos no sólo como documentos, siguiendo el camino ha-bitual (instrumental) del estudio histórico de las políticas lingüísticas, sino que principalmente se los aborda como discursos, lo que conduce a una actividad interpretativa que buscar conjugar lenguaje e historia a partir de múltiples remisiones a las condiciones de producción a través del reconocimiento y de la descripción, en la materialidad significante, de determinados rasgos lingüístico-discursivos, que configuran proce-sos de sentidos, a partir de regularidades, vacilaciones o desplazamien-tos, que se interpretan como huellas de esos procesos históricos ya que están cargados de ideología. En suma, los discursos producen sentidos, que varían conforme los distintos momentos en los que fueron formu-lados y los lugares institucionales en los que surgen.

a) La historia de la lexicografía de un país, indagada desde la perspectiva glotopolítica, es también el recorrido de construcción de su identidad lingüística. La gran problemática implicada en la definición misma de una lexicografía argentina es (el alcance y el tratamiento de) su objeto de descripción: el léxico nacional y las inferencias glotopolíticas que esto conlleva. De todo lo anterior se infiere que concebimos la elaboración de un diccionario como un acto de intervención glotopolítica. Por un lado, porque implica reflexionar sobre el lenguaje, la lengua, la variedad local, el habla, la comunicación, y esto lleva a tomar decisiones en torno a una serie de cuestiones tales como la unidad o la fragmentación de la lengua, la variación, la norma, el uso, la prescripción, la descrip-ción, el cambio lingüístico, el purismo, la corrupción idiomáti-ca, el contacto de lenguas, los indigenismos, los préstamos, los neologismos, los arcaísmos, los tecnicismos, los extranjerismos, los calcos, los barbarismos, la lengua culta o literaria y la lengua popular. Y, por otro, porque no sólo revela continuidades con fe-nómenos que pertenecen a los ámbitos político, económico, so-cial, cultural, demográfico y tecnológico de la coyuntura histórica en la que se inserta, sino porque también activa determinadas memorias. En síntesis, los diccionarios constituyen, pese al hecho de que, en la larga duración, presentan una notable homogenei-dad genérica, discursos donde se asoman y se esconden sistemas lingüístico-político-histórico-ideológicos, que participan desde la reflexión sobre el lenguaje en la constitución de imaginarios sociales.

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No obstante nuestra inscripción teórico-metodológica, la investi-gación se ha nutrido de otros enfoques que dan cuenta del entramado de causas, íntimamente vinculadas con los avatares históricos y polí-ticos, que provocó el surgimiento y el rápido (y extendido) desarrollo del diccionario monolingüe, así como sus principales rasgos y sus fi-nalidades específicas en relación con otras obras metalingüísticas. En primer lugar, la Historia de las Ideas Lingüísticas, tal como fue con-cebida en Francia por Sylvain Auroux (1992a y b, 1998, 2007 y 2009), aborda el saber lingüístico (meta y epilingüístico) y el discurso sobre la lengua en sus diversas formas de manifestación desde la Antigüedad hasta nuestros días. Acerca de la constitución del saber metalingüístico en especial, el autor afirma que no es, de ninguna manera, ajena a las condiciones histórico-sociales en las que se produce, sino que, por el contrario, resulta de una interacción de las tradiciones y del contexto, y que, justamente, por ese motivo, representa un lugar privilegiado para los estudios de los procesos histórico-ideológicos a través de los cua-les las sociedades se constituyen y se reconstituyen permanentemente. Por la razón antes indicada, uno de sus principales ejes de interés es el estudio de los instrumentos lingüísticos (gramáticas y diccionarios) en tanto objetos socio-históricamente determinados, que son el resultado del proceso de gramatización:

[Por gramatización, se entiende el] proceso que conduce a descri-bir y a instrumentar una lengua sobre la base de dos tecnologías que son todavía hoy los pilares de nuestro saber metalingüístico: la gramática y el diccionario. (Auroux, 1992a, p.65)6.

Los diccionarios son, desde este cuadro teórico-metodológico, dis-cursos que exponen conocimiento metalingüístico (en oposición a un conocimiento epilingüístico, intuitivo, espontáneo). Esto significa que constituyen una forma de saber reflexionado, representado, construido y manipulado con la ayuda de un metalenguaje. En este marco, con-siderar el diccionario como un instrumento lingüístico implica conce-birlo como una exterioridad para el sujeto hablante que interfiere en la relación que éste mantiene con la lengua (en términos del proceso de identificación nacional, de las prácticas educativas y de divulgación del conocimiento lingüístico) en determinadas coyunturas. Es, justamente, en este sentido, que los artefactos lingüísticos son considerados menos como objetos naturales (que representan una lengua preexistente) que como artefactos tecnológicos (que fijan, diseñan, definen, estabilizan, en definitiva, construyen la lengua, la denominada lengua estándar). A propósito, Auroux (1992a: 69) señala:

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La gramática no es una simple descripción del lenguaje natural, es preciso concebirla también como un instrumento lingüístico: del mismo modo que un martillo prolonga el gesto de la mano, transformándolo, una gramática prolonga el habla natural y da acceso a un cuerpo de reglas y de formas que no figuran juntos en la competencia de un mismo locutor. Esto es incluso más ver-dadero acerca de los diccionarios: cualquiera que sea mi com-petencia lingüística, no domino ciertamente la gran cantidad de palabras que figura en los grandes diccionarios monolingües que serán producidos a partir del final del Renacimiento (…). Esto significa que la aparición de los instrumentos lingüísticos no deja intactas las prácticas lingüísticas humanas.

De acuerdo con el autor, las causas que generaron el saber lingüís-tico y que originaron la aparición de instrumentos lingüísticos fueron complejas y diversas. El diccionario de lengua materna o diccionario monolingüe, cuya principal característica es que está destinado a locu-tores nativos, que necesitan hallar en él formas, usos, normas, es relati-vamente tardío en relación con otras manifestaciones metalingüísticas (proto)lexicográficas en la historia de las Ciencias del Lenguaje7. Tuvo lugar a partir del Renacimiento (especialmente en el lapso que se ex-tendió entre los siglos xvi a xviii), siguiendo una tradición lingüística determinada (la greco-latina) que sirviera de referencia (y de transfe-rencia de categorías, paradigmas y modelos) a la hora de representar el saber lingüístico. Este proceso se llevó a cabo, entre otras razones, tanto por la formación de los Estados europeos como por el proceso de colonización. Auroux (1992a, p.29) sugiere entre los principales moti-vos: “(…) el aparato del Estado y la administración, la expansión de una religión, la emergencia de una conciencia nacional (…), la dispersión de un pueblo, etc.”8. El Estado fue, en definitiva, la fuente principal de construcción de las lenguas modernas occidentales9. Auroux, además, insiste en que la atribución de una identidad nacional (una nación, una lengua) constituyó también un factor motivador de la producción de diccionarios ya que en él aparecían términos vinculados con la raza, con los grupos sociales y con diversos elementos culturales. Aparte de plantear el hecho de que para que haya un diccionario monolingüe tiene que haber necesariamente obras literarias en circulación que funcionan, en la mayoría de los casos, como materia prima para la selección de las voces consignadas y definidas en él10.

La propuesta de la Historia de las Ideas Lingüísticas es retomada por una serie de investigadores franceses, incluimos, entre los más rele-vantes, a Collinot, Mazière, Guilhaumou, Branca-Rosoff y Rey, quienes

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estudian particularmente el objeto diccionario monolingüe del fran-cés. Dichos autores agregan, a la perspectiva formulada por Auroux, una mirada discursiva e ideológica sobre el diccionario. Los trabajos de Collinot (1985), Mazière (1986, 1989 y 1995) y Collinot y Mazière (1994 y 1997) inauguran el abordaje del diccionario como discurso, de-sarrollando procedimientos metodológicos novedosos para el estudio del discurso lexicográfico, comprometidos con las pautas provistas por el Análisis del Discurso11. Dichos autores realizan una lectura del dic-cionario orientada por dos ejes: la historicidad y la sistematicidad. En cuanto al primer eje, estudian el diccionario como institución, como acontecimientos lingüístico y discursivo12 y como objeto histórico cuyas formas de enunciados están insertas en redes discursivas. En lo que concierne al segundo eje, describen y analizan la sistematicidad de una escritura regida por restricciones lingüísticas actualizadas en forma de enunciados (principalmente en la parte de la estructura lexicográfica correspondiente a los enunciados definidores). Ciertamente, muestran que la variación formal (sintáctico-enunciativa) de las definiciones pro-duce sentido en tanto constituye una huella de diferencia significativa en el discurso lexicográfico. Ilustran su propuesta estudiando la aparición del diccionario monolingüe, la fabricación de la lengua, en Francia, las transformaciones que este hecho produce, las concepciones lingüísticas presupuestas, y la historicidad de las técnicas y de los procedimientos empleados. Conciben un modo de hacer historia que tiene en cuenta sus condiciones de producción. Asimismo, leen e interpretan el diccio-nario como un instrumento que establece relaciones de dominación y que, por tal motivo, instaura y condiciona el orden social externo.

Los trabajos de Branca-Rosoff (1986, 1995 y 1997) y de Guilhau-mou, Collinot, Mazière y Branca-Rosoff (1995) abordan, desde una perspectiva histórica, ideológica y discursiva, la construcción de una determinada norma lexicográfica en coyunturas específicas: analizan artículos diccionarísticos vinculados a distintos campos temáticos (re-ligión, política, relación medio urbano / medio rural, etc.). Su finali-dad es observar el carácter histórico de los sentidos de determinados lexemas. Finalmente, las contribuciones de Rey (1987 y 1995) ofrecen un análisis exhaustivo y detallado de los distintos tipos y de las diver-sas funciones que pueden asumir los ejemplos y las citas que compor-tan los diccionarios monolingües en tanto objetos culturales: analiza su procedencia, esto es, si son construidos ad hoc (inventados, artifici-ales) por el lexicógrafo y, de este modo, se distancia de las autoridades o si son ejemplos documentados provenientes ya sea de fuentes orales ya sea de fuentes literarias, científicas o periodísticas, muestras de uso lingüístico tomadas de corpus electrónicos, de qué época, cuál es su

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modo de funcionamiento, cuál es su tratamiento tipográfico y cómo se presentan en el asiento lexicográfico.

En segundo lugar, en el marco del proyecto “Historia de las Ideas Lin-güísticas en Brasil” desarrollado principalmente en la Universidad Es-tadual de Campinas (UNICAMP), Guimarães y Orlandi (1996); Nunes (2001, 2002, 2003a y b, 2004, 2006a, b y c, 2007, 2008a y b y 2010); Nu-nes y Petter (2002); Orlandi (1998, 2001, 2002, 2007 y 2009) y Orlandi y Guimarães (2002), entre otros investigadores, continúan con la tradición iniciada por Collinot y Mazière de analizar discursivamente el diccionario monolingüe. Estos autores articulan la propuesta discursiva (y materia-lista) del Análisis del Discurso (en particular, los artículos de Pêcheux13) y los trabajos de Auroux sobre la Historia de las Ideas Lingüísticas en discursos epi y metalingüísticos. Esta línea de investigación tiene como uno de sus propósitos analizar la cuestión de la lengua en países que se desprenden del peso de un pasado colonial y en los que, en consecuencia, se trasplantó la lengua de sus ex metrópolis, atendiendo esencialmente a su propia historicidad14. Con estos objetivos, se abordan, entre otros materiales de archivo, instrumentos lingüísticos. Para ellos, las gramáti-cas y los diccionarios no sólo tienen una función normativizadora, sino que su finalidad es principalmente simbólica. De ahí que los proyectos sobre la lengua sean correlativos con los proyectos de nación. Nociones desarrolladas desde esta tradición tales como gramatización (de lenguas impuestas), diccionarización, heterogeneidad lingüística, lengua imagina-ria, lengua fluida, hiperlengua, acontecimiento discursivo, acontecimiento lingüístico, colonización lingüística, descolonización lingüística, entre otras, permiten explicar la relación lengua / historia social en el marco del estu-dio del proceso de instrumentalización de una lengua y de la constitución de una identidad nacional en países de colonización.

En lo que concierne específicamente al instrumento lingüístico dic-cionario monolingüe, Nunes (2006a, p.11) plantea:

El diccionario es visto generalmente como un objeto de consulta, que presenta los significados de las palabras con la certeza de sa-ber de un especialista y eventualmente con la legitimidad de au-tores reconocidos que abonan las definiciones. Se muestra, de ese modo, como una obra de referencia, a disposición de los lectores en los momentos de duda y de deseo de saber. Se trata de uno de los lugares que sustentan las evidencias de los sentidos, funcio-nando como un instrumento de estabilización de los discursos.

En términos similares, la también especialista brasileña Pessoa de Barros (2000, p.76) señaló unos años antes:

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El diccionario produce, en nuestra sociedad, ciertos efectos de sentido bien conocidos: de lista, inventario o registro del saber lingüístico de una sociedad, de discurso competente sobre la lengua, de discurso anónimo de la colectividad; de neutralidad e imparcialidad propias de la «objetividad» del saber, esto es, de que está fuera del alcance de las determinaciones socio-históri-cas e ideológicas; de tener el papel normativo de legitimizar o de refrendar los usos lingüísticos aceptados y prestigiados en una sociedad y de reglamentar el mantenimiento y el cambio lingüís-ticos.

Estas consideraciones, según la última autora citada, se aplican sobre todo al diccionario monolingüe, que se pretende cimentar sobre una visión de completud y de transparencia de la lengua como lo intenta hacer también la gramática. Se proyecta la idea de que la lengua es pa-sible de ser totalmente dominada por los instrumentos lingüísticos. En el caso del diccionario, los sentidos (las definiciones de las voces) se presentan como incuestionables, estabilizados, evidentes, ahistóricos y verdaderos. Se producen, así, efectos de naturalización, de cristalizaci-ón, de neutralización y de cientificidad del discurso lexicográfico, que opera por inclusiones plenas o estigmatizadas (con marcas) o por ex-clusiones. Son considerados, por antonomasia, como los instrumentos legitimadores del componente léxico de la norma estándar. Desde una perspectiva analítica, en cambio, los investigadores brasileños conciben el diccionario como un instrumento discursivo, construido socio-histó-ricamente y que refleja las relaciones de poder y las luchas ideológicas de cada época. En ese sentido, seguimos a Orlandi (2002, p.103) quien define lo que es la lexicografía discursiva en los siguientes términos: “La lexicografía discursiva ve, en los diccionarios, discursos. De ese modo, […] podemos leer los diccionarios como textos producidos en ciertas condiciones. Así, su proceso de producción se vincula con una determi-nada red de memoria (…)”.

El discurso lexicográfico parece natural, neutro, transparente, evi-dente. Pero, ciertamente, no lo es: no remite de manera directa a reali-dades unívocas e incontrovertibles, sino que comporta una dimensión ideológica vinculada con las condiciones de producción en las cuales fue formulado. Se adopta, entonces, para el análisis de los diccionarios monolingües una mirada más amplia que la propuesta por los estudios lexicográficos tradicionales (muchos de ellos enmarcados en la histo-riografía lingüística). El texto diccionarístico es una construcción, una representación que rescata momentos históricos, políticos, sociales de la comunidad en la cual se forja y para la que está dirigida. De ahí que

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sea considerado más que un instrumento de descripción y/o de pres-cripción lingüística, de decodificación del léxico y de corrección orto-gráfica. La propuesta brasileña concibe, por eso, el diccionario como un objeto histórico e ideológico. Histórico, porque el diccionario no debe ser tomado independientemente de las condiciones socio-históricas de producción en las que se genera. En efecto, los diccionarios de distin-tas coyunturas traen referencias sobre la sociedad y el modo de vida de la época15. Son la resultante de relaciones socio-históricas, muchas veces, complejas y contradictorias. Ideológico, porque el diccionario como discurso proyecta una representación concreta de la lengua, en la que se pueden encontrar indicios del modo cómo los sujetos –como seres histórico-sociales afectados por lo simbólico y por lo político bajo el modo del funcionamiento de la ideología– producen lenguaje. Están abiertos a las “batallas ideológicas” en tanto instrumentos lingüísticos y en tanto artefactos discursivos (Orlandi, 2002, p.203).

En esta línea, los trabajos de Nunes representan un antecedente fun-damental para nuestra investigación. En varios trabajos, el autor (V. su-pra), desde la perspectiva teórica de la Historia de las Ideas Lingüísticas en articulación con el Análisis del Discurso, se concentra en la historia de la constitución del diccionario monolingüe en Brasil: presenta los momentos del proceso de diccionarización16 en un arco temporal que va del siglo xvi al xx (relatos de cronistas, diccionarios bilingües, dicciona-rios monolingües, diccionarios complementarios, diccionarios de tér-minos técnicos, diccionarios de brasileirismos, diccionarios generales, entre otros) y analiza las condiciones de producción, teniendo en cuen-ta los siguientes factores: territorialidad, administración del territorio, urbanización, institucionalización, contactos lingüísticos, identidad na-cional, influencia de teorías filosóficas y lingüísticas y la aparición de las nuevas tecnologías. De esta manera, lee el diccionario con el objeto de observar y comprender el modo cómo se producen sentidos en ciertas coyunturas, teniendo en cuenta su materialidad discursiva (por ejem-plo, contrasta las obras producidas en el período colonial y las del perí-odo imperial). Es decir, analiza no sólo la función del diccionario sino también su funcionamiento. Con ese fin, examina las relaciones entre los artículos lexicográficos (definiciones, marcas, citas y ejemplos), los prólogos y la conformación de las macroestructuras, confrontando lo que es dicho en uno y en otro y describiendo e interpretando las dife-rencias, las repeticiones y las reformulaciones conforme van cambiando las condiciones de producción.

Finalmente, el lingüista y lexicógrafo mexicano Luis Fernando Lara (1997), desde una vertiente teórica que combina información estricta-mente lingüística y datos históricos, estudia la construcción simbólica

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del diccionario monolingüe desde sus orígenes en la Europa occidental en el siglo xvi en términos tanto político-ideológicos como técnico--lexicográficos. En esencia, en el pensamiento lexicográfico de Lara se relacionan tres componentes que funcionan como hilos conductores de su obra: 1) el concepto del diccionario monolingüe vertebrado en torno al carácter social del discurso que contiene; 2) la deconstrucción de la historia de la lexicografía española y de los fundamentos ideológicos y políticos que han dominado la cultura de la lengua en las comunidades hispánicas. De modo que sus trabajos giran en torno a las diferencias entre diccionarios normativos y descriptivos, integrales y diferenciales, generales y de regionalismos, lingüísticos y sociales. Es decir, qué con-cepciones teóricas y epistemológicas subyacen y dominan en las obras lexicográficas, prestando especial atención a la lexicografía hispánica y 3) los resultados de las investigaciones derivadas de la elaboración del Diccionario del Español de México (V. infra), durante la cual han aflo-rado, entre otras cuestiones, distintos conflictos en torno a la norma lingüística (española en general y mexicana en particular) y, asimismo, se ha puesto de relieve que los procedimientos estadísticos, surgidos de corpus lingüísticos, representan en la práctica lexicográfica una opción de método que, sin estar libre de problemas, es indispensable en la ac-tualidad para acercarse empíricamente a la realidad del uso lingüístico de forma imparcial17.

El autor explica que la necesidad de los diccionarios monolingües se venía preparando desde mucho tiempo antes de su consolidación, pero que recibió su impulso definitivo a partir del siglo xvii. En ese si-glo, sigue el autor, la formación de las grandes patrias y de los imperios modernos sirvió para definir un nuevo tipo de diccionario, ya no sólo ni tanto en términos de la utilidad informativa-instrumental que había dado origen a los diccionarios bilingües y plurilingües, sino en un sen-tido ante todo simbólico, afín a los intereses y a las necesidades políticas de los Estados. Ilustra su investigación exhaustivamente con los prime-ros diccionarios monolingües del español, del francés, del italiano, del alemán y del inglés tanto británico como norteamericano. Se detiene en la explicación de las transformaciones en torno a la idea de lengua que guió el trabajo lexicográfico, conforme los cambios históricos que se fueron produciendo hasta la actualidad.

Lara, en varios trabajos, asegura que el diccionario representa la me-moria colectiva de la sociedad y es una de sus más importantes ins-tituciones simbólicas. Por eso, la función del diccionario es informar, registrar los usos lingüísticos que la sociedad efectivamente emplea y no imponer normas a la sociedad. Si bien es cierto que las ideas lexi-cográficas de Lara no responden tajantemente a un enfoque de índole

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discursiva, resulta fundamental por la caracterización que ofrece del diccionario, en especial en lo que se refiere a los distintos dominios o características conformadoras del objeto diccionario (sistemas prologa-les, macroestructura y microestructura) y a la tipología de diccionarios que establece, sobre todo aquella que contrapone los diccionarios com-plementarios, contrastivos y diferenciales (sociolectales, jergales, regio-nales, técnicos) con los diccionarios integrales. En síntesis, Lara concibe al diccionario monolingüe como un objeto simbólico que los analistas podemos abordar como expresión de la historia y de los rasgos identi-tarios y culturales de una nación. Efectivamente, lo considera un objeto cultural, siguiendo a Rey (1987), y una construcción histórica, fruto de la reflexión sobre la lengua y orientado a la conservación de la memo-ria de experiencias de sentido valiosas para la comunidad. La teoría del diccionario monolingüe (que tiene, de acuerdo con la perspectiva del autor, una pretensión de universalidad) se propone, entonces, diluci-dar las complejidades semánticas, semióticas, discursivas y normativas que constituyen lo que denomina el “hecho diccionario” a través del análisis de sus componentes fundamentales en diccionarios de distintas lenguas nacionales occidentales. No obstante, cabe señalar que no es una propuesta de carácter metalexicográfico en la medida en que no tiene por objetivo ofrecer y hacer explícitos mejores recursos y métodos de elaboración de diccionarios monolingües, aunque pueda, sin duda alguna, contribuir a optimizar esa práctica. Finalmente, con respecto al abordaje del objeto diccionario monolingüe propiamente dicho, Lara (2004, p.44) concluye:

Se trata también de enriquecer la investigación histórica de la lengua española con datos e ideas que no provienen del estrecho ámbito documental de la lengua, sino del más amplio del estudio de las ideas, de los fenómenos culturales y de los acontecimientos políticos y económicos.

La producción lexicográfica actual del español de la ArgentinaLa historia de los diccionarios monolingües de la lengua española

ha estado determinada, hasta ahora, por la labor lexicográfica de la Real Academia Española (RAE). Debido a la manera en que la Academia ad-quirió, legitimó y mantuvo su papel de principal agencia normativa en el mundo hispánico (Lauria y López García, 2009), la casi totalidad de los diccionarios que se han escrito hasta épocas recientes, han deriva-do, de un modo u otro, su validez de los diccionarios académicos. Se puede analizar esa validez conforme tres aspectos: primero, el origen y el manejo de los documentos que permiten seleccionar y establecer las

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nomenclaturas; segundo, la manera en que se hace el análisis semántico de los vocablos consignados, se formulan sus definiciones y se ordenan sus acepciones; y, tercero, el carácter (más o menos) normativo con que se componen y se añaden las marcas o descriptores de uso, las etiquetas y los comentarios u observaciones de corrección. En la actualidad, sin embargo, existen otros varios agentes estandarizadores en el mundo de habla española, capaces de que los instrumentos lingüísticos por ellos elaborados puedan competir con la normatividad académica. Nos refe-rimos, por ejemplo, a las tareas que vienen desarrollando ciertas empre-sas propietarias de medios masivos comunicación, centros de investiga-ción en lingüística aplicada y universidades.

En la medida en que el diccionario monolingüe es expresión de un proceso de tensiones y de contradicciones que se resuelven en cada coyuntura histórica, la producción lexicográfica argentina, en la actua-lidad, adquiere matices específicos y toma cuerpo en antiguas y nuevas formas lexicográficas. En el momento actual, coexisten dos modalida-des diccionarísticas altamente diferentes que registran y describen la va-riedad argentina del español. Ambas modalidades responden, a nuestro entender, a comunidades discursivas distintas, activan distintos lugares de la memoria discursiva y conllevan distintas ideologías lingüísticas. Expresan, por consiguiente, miradas divergentes sobre la identidad lin-güística y se asocian con distintas representaciones de nación.

La diferencia entre elaborar diccionarios generales o integrales y dic-cionarios complementarios y contrastivos es una muestra cabal de los di-símiles modos de concebir la política lingüística en países en los cuales se transplantó la lengua de sus ex metrópolis y deben desprenderse del peso de un pasado colonial. Los diccionarios monolingües del español de la Ar-gentina publicados en los últimos años, que se adaptan, en gran medida, a requerimientos y a dinámicas institucionales diferentes son el Diccionario del habla de los argentinos (DiHA), publicado en el año 2003 por la Acade-mia Argentina de Letras (AAL), que es continuador de aquella tradición lexicográfica iniciada a mediados del siglo xix que concebía su práctica como una tarea de identificación de las particularidades lingüísticas (léxi-cas) nacionales, especialmente provenientes de la lengua popular (Lauria, 2011); y el Diccionario integral del español de la Argentina (DIEA) de la editorial Tinta Fresca del Grupo Clarín que se presenta como una obra que busca dislocar la concepción complementarista que prevaleció en la historia de la producción lexicográfica monolingüe nacional.

El diccionario integral del español de la ArgentinaTradicionalmente, como ya señalamos, los países hispanoamerica-

nos, entre ellos, por supuesto la Argentina, han producido diccionarios

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monolingües de carácter regional (complementarios, diferenciales y contrastivos de los confeccionados en la Península Ibérica, especialmen-te del Diccionario de la Real Academia Española, DRAE). Estas recopi-laciones no dan cuenta, de ninguna manera, de la realidad léxica plena de la comunidad, sino que registran las voces consideradas peculiares. Atienden al uso de todas aquellas unidades y variantes significativas que no estén consignadas en los diccionarios denominados generales de la lengua.

En las últimas décadas, la lexicografía regional del español de / en América se orienta –muy paulatinamente– hacia lo que se ha dado en llamar la lexicografía integral. El diccionario integral, de esta manera, estudia tanto el uso de las unidades léxicas de la lengua general o re-gional como el uso de las voces y expresiones privativas de la variedad correspondiente. Compilan el léxico efectivamente en uso en cada país, considerando las especificidades socio-históricas y culturales y recono-ciendo, así, una norma lexicográfica nacional, independiente de la gene-ral / peninsular. Desde el punto de vista teórico, son obras, en general, elaboradas por un equipo interdisciplinario de lingüistas, lexicógrafos, correctores, editores, informáticos y especialistas en ciencias y técnicas, que se nutren de las nuevas tecnologías de la palabra, primordialmente de los corpus electrónicos de uso para diseñar la macro y la microes-tructura de la planta del diccionario.

Visto desde esta perspectiva y teniendo en cuenta la historia de la producción lexicográfica de los países americanos en general, los dic-cionarios integrales pueden verse como un gesto de afirmación de la identidad lingüística nacional, que prosiguen también objetivos simbó-licos de carácter extralexicográfico y extralingüístico. Otra caracterís-tica importante de estas obras es que, al ganar autonomía normativa con respecto al DRAE, están destinados a la enseñanza de la variedad lingüística nacional, aunque se presenten como obras descriptivas y no prescriptivas.

Resumidamente, son diccionarios que no comparan las palabras uni-dad a unidad con una referencia externa, sino que se limitan a registrar, siguiendo el criterio de frecuencia de uso, un conjunto de usos léxicos na-cionales, que incluye tanto los denominados americanismos, localismos, extranjerismos, neologismos, como voces de uso más extendido. Por eso, el resultado de la compilación del léxico que hace este tipo de diccionarios es poco diferenciado cuantitativamente respecto al español, ya sea general o de España, puesto que la base léxica no marcada presenta un altísimo índice de coincidencia entre diversas variedades del español.

Esta orientación metodológica en la selección del léxico con el fin de elaborar diccionarios integrales tuvo sus primeros emprendimientos en

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el prestigioso Colegio de México, bajo la dirección del ya mencionado lexicógrafo Luis Fernando Lara, desde los años setenta, en el marco del proyecto denominado Diccionario del español de México, que se basa en el Corpus del español mexicano contemporáneo, elaborado a partir de una selección de textos de parte del pasado siglo (1921-1974) y compuesto por mil textos de dos mil palabras gráficas cada uno, representantes de todas las zonas, hablantes y géneros de México. Los primeros productos fueron: el Diccionario fundamental del español de México (1982) (DFE-Mex), que se limitaba a ofrecer un vocabulario mínimo necesario para comprender un texto de carácter general o escolar; el Diccionario básico del español de México (1986) (DBEMex), con el que el anterior se am-pliaba hacia el vocabulario de la lengua culta, con una consideración particular del vocabulario de libros de texto y el Diccionario del español usual en México (1996) (DEUMex) que se limitaba a recoger un número escaso de entradas (unas catorce mil) que se seleccionaron tras el estu-dio cuantitativo de la documentación en la que se basaba. En el 2010 se publicó finalmente el Diccionario del español de México (DEM), primer diccionario integral del español hablado en ese país. El proyecto, suma-mente innovador y bisagra en la historia de la lexicografía del español, presupone una concepción integral del diccionario, contraria a la idea tradicional de que en América de habla española sólo se escriben dic-cionarios de regionalismos o parciales. La lengua española se concibe como lengua nacional de los mexicanos, sin contrastarla con otros usos hispánicos, aunque sin negar, naturalmente, el gran patrimonio lingüís-tico común de las regiones hispanohablantes.

Siguiendo el camino teórico-metodológico del proyecto del DEM, se publicó en la Argentina en el año 2008 el DIEA. A diferencia de la obra mexicana que fue financiada por el Estado y se realizó en una institu-ción pública de educación y de investigación, el diccionario argentino fue diseñado por un grupo de investigadores universitarios, pero fue costeado por la marca Voz Activa de la editorial Tinta Fresca18 pertene-ciente al grupo Clarín19. Asimismo, otra diferencia es que el DIEA fue elaborado en tiempo récord (menos de cuatro años) con respecto a los más de treinta años que llevó el proyecto mexicano.

La publicación de este repertorio lexicográfico constituye un acon-tecimiento glotopolítico en la historia de la lengua española de la Ar-gentina por las características novedosas que presenta en el plano de la lengua, por un lado, y por las inferencias glotopolíticas que de él pueden derivarse, por otro. El DIEA es una obra en un solo tomo voluminoso y consta de cuatro partes. Abre con un prólogo escrito por el Dr. José Luis Moure, profesor de la Universidad de Buenos Aires (UBA), investigador del Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CO-

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NICET) y miembro de la AAL. La segunda parte es la presentación y justificación teórico-metodológica del diccionario a cargo de una de las integrantes de la asesoría técnica que diseñó el corpus, redactó la plan-ta (conjunto de disposiciones sobre el contenido y sus componentes) y conformó el lemario, la Dra. Andreína Adelstein, investigadora del CO-NICET y de la Universidad Nacional de General Sarmiento (UNGS). La tercera parte es el diccionario propiamente dicho. El volumen cierra con una sección de apéndices.

El título expone la importancia asignada al punto de partida inno-vador del DIEA, con respecto a la tradición lexicográfica nacional, que es tomar como lengua de referencia el español estándar de la Argentina, con sus valores propios de prestigio y corrección (Milroy, 2011), y ela-borar un diccionario “integral” de dicha variedad. Con ese objetivo, se procuró, entonces, según consta en la “Presentación”, describir el léxico fundamental que circula en la actualidad en el país, sin limitarse a repre-sentar solamente las singularidades léxicas.

El “Prólogo” comienza con un panorama de la historia del español de / en América y del proceso de codificación de la lengua españo-la. Luego, da cuenta de los rasgos lingüísticos propios del español americano en general y del español de la Argentina en particular con el fin de considerar la legitimidad de las variedades lingüísticas nacionales y de abandonar la idea de que Madrid es el único centro irradiador de la norma correcta y legítima. A continuación, se ca-racteriza el diccionario monolingüe y se apuntan, sin desmerecerlo, las insuficiencias que presenta el DRAE con respecto al léxico de las variedades americanas, debido a la centralidad otorgada a la modali-dad peninsular. Por último, se resaltan las características principales del DIEA, entre ellas, la conformación de un corpus textual, el di-seño de un esquema de trabajo (planta) original y la confección de un lemario integral (V. infra).

En la “Presentación”, se exponen las bases teórico metodológicas de la propuesta lexicográfica. En lo que concierne a los principios teóricos, subyacen esencialmente dos. Por un lado, la idea de que la lengua habla-da en la Argentina no es un desvío de una lengua central, sino que cons-tituye una variedad singular, que comparte elementos con el español de todas o de algunas regiones hispanohablantes, pero que también posee rasgos específicos, producto del desarrollo lingüístico y de la experien-cia histórica propia de la comunidad. Por otro lado, la idea de que la enseñanza de la lengua materna requiere instrumentos lingüísticos de referencia (gramáticas y diccionarios) que la describan tanto en lo gene-ral (lo que comparte con otras variedades) como en lo específico. De ahí que se espera una circulación más amplia, en el sistema educativo, que

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para las obras complementarias, asociadas en general con la lectura (y la traducción) de textos principalmente literarios.

En su componente programático, el DIEA declara las siguientes ca-racterísticas según el recorte de la lengua que hace y de las finalidades que persigue, muy influido por los avances de las Ciencias del Lenguaje y de las nuevas tecnologías de la palabra:

• Es un diccionario de lengua puesto que sólo explica el significado de las palabras y su uso. No brinda información sobre las entidades a las que estas palabras refieren.• Es un diccionario integral puesto que incluye las voces que se usan en la variedad argentina del español, las que se comparten con otras regio-nes hispanas, las que se emplean en América pero no en España y las que constituyen singularidades léxicas de la Argentina20.• Es un diccionario sincrónico puesto que los vocablos descritos están documentados en una cierta cantidad de ocurrencias (apariciones, fre-cuencia de uso) en textos producidos con posterioridad a 1980.• Es un diccionario de uso puesto que en los artículos se brinda infor-mación acerca del comportamiento de las palabras (ámbitos de uso, dis-tintas acepciones, restricciones sintácticas y valores estilísticos y prag-máticos). Además, se incorporan locuciones y se ilustra el empleo de las palabras con ejemplos.• Es un diccionario orientado a la producción verbal y no sólo a la com-prensión puesto que cuenta con indicaciones de utilidad para la expre-sión escrita, como por ejemplo, relaciones de sinonimia y antonimia, conjugaciones verbales y complementos preposicionales.• Es un diccionario descriptivo puesto que refleja el uso documentado de las unidades léxicas de la variedad argentina del español sin conside-rar, para su inclusión, la valoración que se pueda hacer desde un punto de vista normativo. No obstante, los artículos presentan un sistema de notas y marcas que indican la adecuación o la falta de adecuación a los registros típicamente asociados con situaciones comunicativas conside-radas relevantes:

El Diccionario integral del español de la Argentina de Voz activa (DIEA) es el primer diccionario integral, confeccionado entera-mente en nuestro país, con nuevas tecnologías y a partir de una metodología de lingüística aplicada y de pautas lexicográficas di-señadas específicamente para su elaboración:

La relevancia de esta propuesta lexicográfica reside en que refleja la toma de conciencia de que la lengua hablada en la Argentina

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no es un desvío de una lengua central, sino que es una variante de ella y que, como tal, comparte elementos con el español habla-do en todas o algunas de las distintas regiones hispanohablantes, pero que tiene rasgos específicos, propios, fruto del desarrollo lingüístico de esta comunidad en particular. En segundo lugar, en que asume que la enseñanza de la lengua materna requiere de obras de referencia que la describan tanto en lo general que comparte con otras variedades del español como en lo que tiene de específico (DIEA, p.9).

En cuanto al aspecto metodológico, se formularon determinados cri-terios y se elaboraron herramientas de acuerdo con las actuales pautas de la práctica lexicográfica. En este sentido, se destaca la conformación de un corpus textual, el diseño de una planta y la construcción del le-mario. Con respecto al corpus, en el tramo programático se declara que se diseñó el Corpus inicial del español argentino (CIEA) con el fin de identificar la variedad del español estándar empleado en la Argentina y simultáneamente relevar las unidades léxicas con más frecuencia de uso para conformar el lemario. Asimismo, se explica que dicho banco de datos sirvió para extraer información vinculada con el comportamiento lingüístico de cada unidad. El corpus – se declara – garantiza repre-sentatividad y confiabilidad en la medida en que incluye textos tenien-do en cuenta distintos criterios: geográfico: incorpora fragmentos de textos producidos por argentinos; cronológico: incorpora fragmentos de textos publicados a partir de 1981; de medio: incorpora fragmentos de textos escritos (90%) y de textos orales (10%); temático: incorpora fragmentos de textos producidos en una amplia gama de situaciones comunicativas y referidas a una gran variedad de temas.

El lemario, por su parte, está constituido por alrededor de 40000 le-mas (entradas) y 80000 acepciones. Para su conformación, se conside-raron datos procedentes de distintas fuentes: estadísticas, en términos de frecuencia de uso, provenientes de la consulta en el CIEA; consultas hechas al subconjunto Argentina en el Corpus de Referenciad el Español Actual de la RAE (CREA)21; consultas de obras lexicográficas que des-criben distintos estados de lengua tanto de la variedad argentina como del español general; consultas de glosarios técnicos y especializados, que se usaron como documentación tendiente a incorporar unidades léxicas temáticamente marcadas o pertenecientes a terminologías técnicas, que resultan difícilmente accesibles en un corpus, dada su baja frecuencia de uso en situaciones comunicativas no específicas.

Por último, se expone que se diseñó especialmente una planta que fijó y sistematizó los criterios para organizar la compilación de los artí-

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culos (forma de lematización y recorte de las unidades léxicas, orden de las acepciones, vocabulario de definición, colocación de marcas, inclu-sión de ejemplos, etc.). Esta sección se clausura con una guía de uso que detalla los distintos tipos de información que brinda el diccionario en el interior de los artículos lexicográficos y con una tabla de las abreviaturas empleadas para las categorías gramaticales.

La tercera parte constituye el cuerpo principal de la obra dado que es el diccionario propiamente dicho. La estructura mínima del artículo es la presentación del lema en negrita, al que le sigue el número de acepción, la categoría gramatical, el enunciado definidor y el ejemplo ilustrativo de uso. Según las unidades léxicas que se describen, aumenta la información adicional que se proporciona. Ésta puede ser de distinto tipo: ortográfica: se brinda sólo en los casos en que las palabras presentan variantes gráfi-cas; fonética: se representa sólo en los casos de préstamos en los que la grafía no se adaptó al español y su pronunciación responde a una lengua extranjera; morfológica: referida a variantes morfológicas vinculadas, por un lado, con cuestiones de género y número y, por otro, con la formaci-ón de palabras por derivación o por composición; sintáctica: se indica el contorno sintáctico y el régimen preposicional obligatorio para las di-ferentes clases de palabras; semántica: relativa al alcance de una acepci-ón “aplicado a una persona…” o acerca de la transición semántica de las palabras (significado literal o figurado); pragmática: referida a distintas actividades, a variación de registro (formal, coloquial, grosero e infantil) y de actitud del hablante, especialmente se señalan los valores ofensivos de una determinada palabra. Cabe destacar que entre los artículos lexico-gráficos se intercalan materiales extra (cuadros, por ejemplo) que tienen como propósito ampliar la información de uso del término en cuestión.

Finalmente, la cuarta parte incluye una serie de apéndices que desar-rollan distintos temas de gramática y de uso, operativos para examinar en tareas de producción de textos. Son siete apartados que versan sobre los siguientes contenidos:

1. Conjugación verbal: incluye tanto la formación de los tiempos como la exposición de modelos de conjugación de verbos irregu-lares agrupados de acuerdos con ocho criterios22.2. Pronombres personales: presenta las clases de pronombres en general para luego detenerse en ciertos usos y funciones no con-vencionales de los pronombres personales.3. Numerales: ofrece los listados de los cardinales, ordinales, mul-tiplicativos y partitivos, y específicas indicaciones sobre su uso.4. Marcadores del discurso: ofrece un repertorio exhaustivo de marcadores y organizadores del discurso y de conectores.

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5. Formación de palabras: brinda información sobre los diversos procedimientos de composición y de derivación de palabras.6. Ortografía: presenta una tabla con las letras del alfabeto y los fonemas que representan en la variedad argentina del español; las principales regularidades de uso de las letras; las reglas generales de acentuación; las reglas generales de uso de las mayúsculas y las normas de uso de los signos de puntuación.7. Dudas gramaticales frecuentes: proporciona información so-bre el complemento régimen verbal, la correlación temporal en oraciones compuestas condicionales, el fenómeno del dequeís-mo, la concordancia entre sustantivos y adjetivos, los cambios en los tiempos verbales y en otros aspectos gramaticales en el discur-so referido, entre otros.

El planteo programático que sustenta la elaboración del primer dic-cionario integral del español de la Argentina, expresado en el “Prólogo”, como así también las vacilaciones y las polémicas que genera, muestra más allá de las fundamentaciones lingüísticas y técnico-científicas pro-pias de la práctica lexicográfica un universo ideológico que interroga las concepciones políticas acerca de la nación. A lo largo de la obra, se pos-tula la imperiosa necesidad de definir y legitimar la identidad lingüística nacional y de que esto se lleve a cabo, al menos en el plano lexicográfico, científicamente. En los primeros pasajes del texto, se expone sucinta-mente la historia del español en América:

Se han cumplido holgadamente los quinientos años de la con-quista española de América. Más allá de toda razonable consi-deración histórica, económica, antropológica o social, ese hecho determinó otro que tiene la contundencia de lo evidente: con las carabelas llegó a la tierra nueva un idioma, que se expandió por ella en boca de los recién llegados y de quienes los sucederían en las siguientes oleadas inmigrantes. Provenían de variadas regio-nes españolas; los había marineros, soldados, clérigos, profesio-nales, comerciantes y aventureros de toda condición, y aunque poseían las pronunciaciones, los acentos y los vocablos propios de sus lugares de origen, no tenían otro referente lingüístico com-partido sino el que alguna vez había sido la lengua de la primitiva Castilla, forzosamente adaptada a las realidades de la geografía ganada en la empresa de la Reconquista a lo largo de siglos, al contacto con dialectos diferentes y a las inevitables interferencias y nivelaciones lingüísticas que conlleva todo proceso de esa ín-dole. Por encima de esa diversidad y poniéndole límites, al me-

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nos formales, estaba la norma prestigiosa que emanaba de Toledo (más tarde sería Madrid), y a la que se sometían la gramática, la ortografía y el deseable decir de todos, conformando lo que hoy suele denominarse lengua estándar, es decir la variedad general, prestigiosa y aceptada, la que Nebrija fijó en una gramática, la que se enseñaba e imponía en las escuelas, aquella en la que se escribía y se expresaba la administración, la ciencia y la litera-tura. Dos largos siglos después, ya bien asentados la ocupación y el dominio político sobre los extensos territorios americanos, la fundación de la Real Academia de la Lengua (1713) vendría a consolidar la codificación lingüística y el imperio de esa norma única. (DIEA, p.5).

A continuación, se alternan párrafos destinados a la evolución pura-mente lingüística (debida a fenómenos como la variación, el cambio y el contacto entre lenguas), por un lado, y a los procesos socio-históricos que tuvieron lugar en América como consecuencia del movimiento in-dependentista y el lugar que ocuparon las reflexiones lingüísticas en ese contexto, por otro:

Pero la historia de toda lengua no es sino el conflicto, laten-te o desembozado, entre lo que las instituciones establecen y lo que los hablantes terminan haciendo de ella. En verdad, la lengua puede concebirse como un mecanismo en equilibrio inestable, que se va configurando distintamente a lo largo del tiempo y de la geografía. La evidencia histórica enseña tam-bién que de manera inexorable cada lengua varía en el tiem-po y en el espacio, y que la variación se manifiesta también en un mismo tiempo y lugar diferenciándose al menos según la edad y el estrato social de los hablantes, pero también según el sexo, la profesión u oficio, la situación comunicativa, etc. El español, extendido por el inmenso continente nuevo, no pudo impedir el cumplimiento de esos condicionamientos incesantes, y circunstancias de muy diverso carácter (distintas geografías, mayor o menor distancia y comunicación con los centros virrei-nales, donde los usos lingüísticos querían y podían ser más celosa-mente controlados, diferente grado de contacto y convivencia con las numerosas lenguas indígenas, diversidad de conformación del entramado social, etc.) incrementaron en el idioma aquella hete-rogeneidad ya propiamente americana, a la que el siglo XIX vino a sumar las irreversibles consecuencias de las luchas independen-tistas y el nacimiento de una pluralidad de nuevas naciones.

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Sin embargo, y salvo en las concepciones teóricas más radicales de algunos miembros de la generación argentina de 1837, el espí-ritu revolucionario que impregnó los movimientos americanistas no abogó por la autonomía lingüística, acaso porque la sensatez permitió advertir lo que el filólogo Andrés Bello caracterizó como “las inapreciables ventajas de un lenguaje común”. Pese a ello, la independencia política de las naciones dejó abiertas las puertas para una lenta pero creciente toma de conciencia y aceptación de las propias identidades lingüísticas. (DIEA, p.6).

Como vemos, la orientación argumentativa del texto tiene una doble dirección: exponer el desarrollo del español en América y mostrar las diferentes posiciones glotopolíticas que se desplegaron en relación con la lengua y la nación, y el sentido y alcance de las intervenciones en el espacio del lenguaje. Las últimas líneas del párrafo referido, apuntan a famosas polémicas decimonónicas, que suscitaron varias cuestiones en torno a la posibilidad de postular la existencia de una lengua nacional; la relación lingüístico-institucional con España; la necesidad o no de fundar una academia de la lengua correspondiente a la de Madrid; la unidad o la disgregación lingüística; la norma idiomática, entre otras (Glozman y Lauria, 2012). La inclusión de la cita de Bello, voz de auto-ridad en la materia, y figura recurrentemente aludida en los prólogos de diccionarios, arroja luz sobre la ubicación del DIEA en el universo de los diccionarios monolingües del español como un gesto concreto de la mirada pluricéntrica sobre la lengua.

El eje del recorrido de la argumentación reside en señalar que los modelos normativos vigentes no se adecuan a la realidad lingüística ac-tual. El texto se mueve sutilmente entre delgadas líneas que van de la atención a la evolución propia de la lengua, distanciándose, así, de la concepción de desvío en relación con una norma centralista y unitaria, pero sin caer en un nacionalismo lingüístico de ruptura; a la defensa de la lengua común. En otras palabras, se esboza la transición efecti-va de una concepción monocentrista a una pluricentrista, es decir, a la existencia de distintos centros irradiadores, ajenos al foco tradicional o hegemónico, de una única norma legítima:

Los dos siglos de vida independiente de los países americanos de lengua española y su desarrollo cultural hicieron inevitable no sólo admitir en plenitud la existencia de sus variedades lingüís-ticas sino integrarlas a normas diferentes de la que había regido durante el período colonial, es decir la que tenía su centro en la Península. No implicó esto la renuncia a la lengua común, sino la

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necesaria admisión de que en esa lengua pueden y deben convi-vir otros modelos normativos establecidos por el uso y la franca aceptación de los hablantes de otros lugares de América. Se trata-ba simplemente de reconocer la legitimidad de rasgos lingüísticos bien asentados en diferentes comunidades, que no podían seguir ateniéndose a principios de corrección, algunos de ellos deveni-dos claramente minoritarios, que ya no eran los suyos: habían nacido otros estándares fijados por el largo uso de las mayorías. (DIEA, p.6).

En la segunda parte del texto, el eje se concentra en fundamentar la importancia del instrumento lingüístico diccionario monolingüe en la historia de la lengua de un país. A su vez, esta parte se puede dividir en dos momentos. El primero se concentra en el DRAE. El otro, por su parte, en el diccionario nacional. Ambos movimientos discursivos coa-dyuvan a la justificación del segundo, objeto del prólogo. Con respecto al DRAE, cuya mención parece ser obligatoria en todos los componen-tes programáticos de los repertorios léxicos de la lengua española, se declara:

El diccionario es el instrumento por excelencia de que dispone una lengua estandarizada para codificar las palabras que emplea. De él se espera que las defina adecuadamente, es decir que fije su significado con claridad, exactitud y precisión, condiciones que distan de ser de cumplimiento sencillo. (…) El Diccionario de la Lengua Española elaborado por la Real Academia Española (nos referiremos a él con el tradicional acrónimo DRAE), que a través de sus veintidós ediciones y sus doscientos ochenta años de exis-tencia (su primera publicación data de 1726) ha sobrellevado la admirable e ímproba tarea de definir el vocabulario de nuestro idioma, no podría sin violencia ser infiel a su origen y dejar de responder privilegiadamente a la curiosidad lexicográfica de los peninsulares y al particular conocimiento del mundo que funda-menta la estructuración de su vocabulario, atendible razón por la cual, en el caso de falda, dispone la acepción de prenda femenina en el primer lugar y la alusiva al corte vacuno en el séptimo. Y si buscamos nuestro vocablo pollera, encontraremos primero su sig-nificado de vendedora de pollos, muy ajeno a nuestro uso, y sólo en el noveno puesto la referencia a la prenda. (…) Como argenti-nos no podemos sino suscribir lo que con sencilla elocuencia ex-presó el lingüista mexicano Luis Fernando Lara cuando se refirió a “la sensación que tienen muchos mexicanos cuando consultan

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diccionarios elaborados con los puntos de vista y la experiencia de la lengua de la Península, de que hay distinciones nuestras que no se toman en cuenta, y de que hay sentidos y palabras que no corresponden a nuestro propio uso de la lengua”. (Diccionario del español usual en México, 1996). Las consideraciones previas en absoluto pretenden impugnar el Diccionario de la Lengua Es-pañola, repertorio noble en el más entrañable sentido del adjeti-vo, y que seguramente todos los usuarios del español seguiremos consultando, sino ilustrar las insuficiencias que su propia historia y naturaleza le han impuesto, abrumándolo con la responsabili-dad no sólo de evaluar y seleccionar las formas léxicas empleadas por cuatrocientos millones de hablantes, e indicar su distribución espacial, temporal, social, etc. (dependiendo de una información imperfecta, no siempre suministrada por las instituciones ameri-canas de manera regular), sino de responder a esas desmesuradas exigencias desde una perspectiva peninsular que, habiendo sido alguna vez central, hoy es por fuerza regional (DIEA, p.7).

No obstante, el prólogo del primer diccionario integral agrega dos elementos novedosos: la explicación de la diferencia (¿superación?) con respecto a los diccionarios complementarios contrastivos y diferencia-les, y el carácter científico que adquiere la obra puesto que se realiza teniendo en cuenta los avances de la práctica lexicográfica (manejo y desarrollo de recursos tecnológicos y aplicación de metodologías ade-cuadas). Acerca del primer punto:

No se trata de un repertorio de argentinismos (nuestra tradici-ón lexicográfica cuenta con varios y la Academia Argentina de Letras continúa ampliando uno que ya ha alcanzado dos edi-ciones [DiHA, 2003 y 2008]), aunque incluya los más difundi-dos. [Este diccionario] fue concebido con la pretensión de dar cuenta del vocabulario de la lengua común, la que compartimos con el resto de América hispana y con España, la misma de que se ocupa el DRAE, pero tal como lo ha conformado la variedad argentina culta o estándar, seleccionando los elementos que son funcionales a ella y redefiniéndolos con las formas propias de esa variedad. Para decirlo de otra manera: el equipo de lexicografía de Tinta Fresca no revisó, recortó y adaptó el DRAE ni otro dic-cionario previo de acuerdo con nuestras necesidades (lo que ha-bría sido una determinación frecuente y legítima), sino que optó por hacer un diccionario ab initio, enteramente nuevo en todos sus componentes, atendiendo –tanto en lo que hace a la inclusión

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de las palabras como en lo que hace a la información que se da sobre ellas–, a las realidades lingüísticas de nuestra comunidad, independientemente de que algunos de sus aspectos sean comu-nes con otras variedades y otros nos sean enteramente propios (DIEA, p.7).

Una de las diferencias más importantes, entonces, entre el DiHA y el DIEA radica en la configuración de la norma. Mientras que el pri-mero incorpora solamente términos propios del folklore nacional o de los niveles coloquial o popular; el segundo, al no tomar como criterio la contrastividad, registra y define, además de lo incluido en el DiHA, el vocabulario culto urbano estándar y algunas palabras de uso (o de conocimiento pasivo) internacional.

Con respecto al segundo punto, a las cuestiones técnicas de índole lexicográfica y lexicológica, el primer diccionario integral del español de la Argentina se inscribe en una tradición, inédita para la producción lexicográfica de nuestro país, moderna que implica, entre otras cosas, el trabajo en equipo (interdisciplinario), la conformación de una base de datos textual para analizar la frecuencia de usos de los lexemas y a partir de eso seleccionar las voces (fiabilidad de la norma), y el diseño de una planta, es decir, del conjunto de disposiciones sobre el contenido del diccionario y de sus componentes (la macro y la microestructura):

Pero queremos apuntar al menos dos, que no son sino respues-tas a desafíos lexicográficos de envergadura: [a] – la selección y conformación del corpus textual (es decir la materia prima verbal de la cual se extraen las voces que deben incluirse), que atendió a lograr una muestra equilibrada del español usado en nuestro país, y que se integró con textos de circulación social, literarios y no literarios de distinta naturaleza y soporte, –libros, periódicos, pá-ginas de Internet, etc.– producidos por argentinos, mayormente a partir de 1981, provenientes de los canales escrito y oral en las proporciones adecuadas y procurando cubrir una variada gama de situaciones comunicativas; [b] – la elaboración, con la asisten-cia de herramientas informáticas especialmente adaptadas y res-petando las exigencias de la lexicografía moderna, de un planta (…) (DIEA, p.8).

Si bien es cierto que hay un corrimiento hacia un polo más clara-mente científico, procurando un efecto de objetividad y neutralidad en la obra, elidiendo o, al menos, nublando su condición política, es primordial señalar que no dejan de aparecer en el prólogo fragmentos

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vinculados con la identidad nacional. El diccionario se convierte, en ese marco, es un instrumento catalizador en aras del afianzamiento de una “conciencia lingüística nacional” (DIEA, p.8).

El alcance de “integral”Ahora bien, nos preguntamos cuáles son los límites de lo “integral”

en términos geográficos y sociales a la hora de registrar el léxico del es-pañol de la Argentina. De un lado, ha quedado en claro la posición del DIEA con respecto a la norma peninsular descripta y consignada bási-camente en el DRAE: “no es un desvío de una lengua central, sino que es una variante de ella”. Empero, “el DIEA representa el español estándar de la Argentina y contempla el léxico nuclear de la cultura letrada que circula actualmente en el país”. Por lo tanto, no incluye todo, sino una parte: lo que se considera “necesario”, “nuclear” de la cultura letrada y esto da cuenta de un imaginario de unidad, de completud representativa de la lengua practicada en la Argentina. Es, de este modo, una selec-ción, un recorte extraído de los materiales que conforman el corpus. Materiales que, vale aclarar, no están mencionados y, en consecuencia, no conocemos su procedencia geográfica ni social. Sólo sabemos que el corpus de datos lingüísticos fue diseñado a partir de la implementación de una serie de criterios: cronológico, geográfico, de medio. La escueta frase “los textos seleccionados son todos producidos en la Argentina” y la selección de las áreas temáticas “ficción; economía, finanzas y comer-cio; ciencias sociales y política; creencias y religión; ciencias humanas y artes; ciencias exactas y naturales; tecnologías y oficios; ocio; salud (…)” nos conduce a pensar que la lengua registrada es la empleada mayori-tariamente en la ciudad de Buenos Aires donde está la concentración económica, política, editorial y mediática. De este modo, la variedad lingüística urbana y culta pasa a constituirse en la variedad no marcada. A pesar de los esfuerzos por neutralizar la influencia de la variedad re-gional, se representa, hacia el interior de la Argentina, la idea de un cen-tro (la ciudad capital) y de una periferia marcada. El intento de reprimir (ocultar) el recorte realizado, muestra en la selección de entradas y en las definiciones su punto débil. Creemos que las formas escogidas, al ser difundidas por los instrumentos lingüísticos elaborados por empresas propietarias de medios de comunicación, generan la representación de un todo (Buenos Aires o Argentina) cuyas características son, en reali-dad, las de un cierto sector de la ciudad de Buenos Aires.

Para analizar cómo se configura la nomenclatura del DIEA, es ne-cesario hacer referencia al CIEA puesto que es, según su componente programático su punto de partida empírico. El uso de un corpus de da-tos es el único acervo o inventario capaz de nutrir metódicamente a la

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lexicografía actual con los vocablos que componen una nomenclatura basada en la realidad social y en el uso efectivo de la lengua El corpus no sólo es esencial, entonces, para establecer los significados de las pa-labras, su comportamiento sintáctico en contexto y sus posibles valores estilísticos, sino también para delimitar (y jerarquizar) las acepciones, elaborar las definiciones y proveer los ejemplos reales que ilustran el o los usos que las palabras tienen en una variedad de lengua. Asimismo, sirve también para hacer estudios cuantitativos de frecuencia de uso y de dispersión geográfica (regionalismos y geosinónimos), situacional y social de los vocablos, que lleven a una determinación apegada a la re-alidad de las marcas de uso de las palabras. En suma, la utilización o la explotación de un corpus para la elaboración de un diccionario es una vía opuesta a la construcción de un modelo lingüístico con criterios, muchas veces, preestablecidos, que la obra sólo se limita a constatar, tal como lo ha hecho el DRAE históricamente. El DIEA no explicita cuáles son las fuentes que integran el CIEA (sí explica, en cambio, como ya vimos, los criterios de conformación) que, vale decir, tampoco es de acceso público.

¿De dónde emana, pues, la norma idiomática que se quiere propagar con el DIEA? La norma, lingüística, lexicográfica y ortográfica, se esta-blece a partir, a nuestro criterio y como demostraremos con el análisis, de los usos de los sectores cultos, letrados y urbanos (principalmente de la ciudad de Buenos Aires). En la nomenclatura del DIEA, se incluyen sin discriminación ni marcación alguna, en un estado sincrónico de la variedad, voces que eran calificadas, en diccionarios complementarios, como neologismos, extranjerismos, indigenismos (sin indicación eti-mológica) y voces consideradas otrora (en los diccionarios complemen-tarios normativos) como barbarismos en la medida en que –declaran en el tramo programático– ciertamente se utilicen y se verifique su uso en el CIEA. Además, puesto que no se considera ningún criterio contrasti-vo, se fija el léxico “integral” y el diccionario se convierte, de este modo, en un instrumento destinado a la enseñanza de la lengua materna, a la comprensión, pero también, y principalmente, a la producción de tex-tos.

Ahora bien, analizamos la letra C para ver cuáles son los criterios para armar la nomenclatura, cuáles son los campos o dominios semán-ticos más representados y cuáles son las discursividades cardinales que atraviesan el discurso lexicográfico. En primer lugar, observamos que las clases de palabras registradas no son sólo o, en su mayoría, sustanti-vos y verbos (como en los diccionarios parciales), sino que hay también adjetivos, adverbios, interjecciones, pronombres, determinantes, prepo-siciones y conjunciones, es decir, todas las clases de palabra. Entre los

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pronombres, encontramos consigo y contigo (pronombres personales), cuál y cuándo (pronombres interrogativos). Entre las preposiciones, cabe, al cabo de, a causa de, por causa de, como para, al compás de, con, contra, al costado de. Y en el grupo de las conjunciones, capaz que, en caso de, en todo caso, con que, en / por consecuencia, por consiguiente, etc. Esto obedece, claro está, a la preocupación por la producción de textos tanto en registro escrito como oral. En cuanto a los adjetivos, se agrega una lista importante de gentilicios extranjeros ausentes en el DiHA por su carácter de obra complementaria y contrastiva: camboyano, cana-diense, caraqueño, caribeño, catalán, chadiano, checoslovaco, chipriota, cingalés, congoleño, coreano, corintio, costarricense, croata, entre otros. En segundo lugar, es interesante señalar que casi la totalidad de las pa-labras consignadas en el DiHA como ruralismos o con las marcas desus. (desusado) o p. us. (poco usado) no están incluidas en el DIEA. Las ex-cepciones, al cotejar ambas nomenclaturas, son pocas: carguero, catra-mina, chirusa, combinado. El hecho de recurrir a la frecuencia de uso (unidades léxicas que están documentadas en una cierta cantidad de ocurrencias) en los textos que forman el corpus producido a partir del año 1981 como criterio principal en la selección de la macroestructura conduce inevitablemente a la exclusión de voces rurales de aparición poco frecuente en el CIEA (y, podemos agregar, voces de otros sectores minoritarios como, por ejemplo, de algunas provincias, y de las zonas de frontera y de contacto) puesto que el mundo hoy es eminentemente ur-bano. En tercer lugar, en lo atinente a los neologismos y extranjerismos hay varios aspectos significativos para destacar. En la medida en que la planta del diccionario fue confeccionada por un grupo de investiga-doras de la Universidad Nacional de General Sarmiento (UNGS) –An-dreína Adelstein, Victoria Boschiroli, Inés Kuguel y Gabriela Resnik–, fueron volcados los neologismos recogidos por el proyecto “Antenas ne-ológicas” sede argentina que coordina el mismo equipo de trabajo que pensó el diccionario (Adelstein, Kuguel y Resnik, 2008 y Adelstein y Kuguel, 2008). Figuran, cacerolazo, carapintada, chupar y corralito, entre muchos otros. Según estas autoras, los tipos de proceso de creación de neologismos son: 1) creados mediante procesos formales (derivación y composición); 2) creados por cambios semánticos; 3) creados por prés-tamos de otras lenguas; y 4) creados por otros procedimientos (lexica-lización de una marca registrada, por ejemplo). La gran mayoría de las voces neológicas incluidas son tomadas de la prensa gráfica. En cuarto lugar, los extranjerismos son muchos y de orígenes diversos. No se tra-tan como elementos externos de la lengua, sino que están plenamente incorporados al caudal léxico de la variedad argentina del español. Los hay vinculados con distintas esferas semánticas y no se confinan a los

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aportes derivados del movimiento migratorio masivo de principios del siglo xx (cusifai), sino que responden a los requerimientos e intercam-bios coetáneos, es decir, a las discursividades contemporáneas: cachaça, cachet, call center, canon, capeletti, cash, casting, celebrity, CEO, chair-man, check in, check out, chill out, chop suey, city, clearing, commodity, container, cool, country, crouton, etc. En todos los casos, las voces con-tienen entre paréntesis, al lado del lema, la pronunciación. Esa es la úni-ca indicación de que se trata de términos extranjeros. Dichos vocablos pertenecen a varios rubros: comidas, bebidas, deportes, espectáculos, finanzas. Empero, recalcamos la fuerte presencia de vocablos (predomi-nantemente anglicismos) del área de la informática y de las nuevas tec-nologías: caché, CAD, chat, chip, cookie, crackear, etc. El discurso de la macroestructura del DIEA está atravesado por discursividades asocia-das a la urbanidad (y más precisamente a los sectores cultos), al presente (contemporaneidad) y a la innovación (ciencia y tecnología).

En definitiva, la macroestructura del DIEA está conformada por ne-ologismos, que son, en general, parte de los usos lingüísticos de ciertos sectores intelectuales, de la “cultura letrada”, que aparecen y se extienden desde el mundo de lo escrito y de las disciplinas científico-académicas. Se incluyen también extranjerismos, vinculados con objetos materia-les cotidianos. Los neologismos y los extranjerismos se articulan con la estructura social: los primeros, en general, proceden de los sectores más cultos o letrados de la sociedad, mientras que los segundos, por su carácter de aporte material más que intelectual, se extienden por todas las clases sociales, pero son predominantemente urbanos. Además, los extranjerismos pueden tener una circulación generalizada en todo el mundo hispánico o una difusión de alcance nacional o regional. La de-cisión que caracteriza la mirada nacional sobre los términos extranjeros frente a la peninsular consiste en conservar la ortografía original en la mayoría de los casos. Debido a los desarrollos del pensamiento (meta)lexicográfico en conjunción con los saberes especializados de las Cien-cias del Lenguaje y las nuevas tecnologías se produjo un giro en la forma de conformar la macroestructura: se pasa de las fichas artesanales que contienen autoridades literarias ejemplares (por supuesto, escritas) a corpus de muestras de uso auténtico en registro escrito y testimonios de la oralidad. Este regado de objetividad en la construcción de la nomen-clatura, que acentúa la ilusión de neutralidad, no escapa, sin embargo, a las determinaciones ideológicas características del momento histórico, de la sociedad y de la comunidad discursiva en la cual surgen las obras y se interviene sobre el lenguaje.

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Consideraciones finalesEl tratamiento otorgado al léxico nacional, en particular, los modos

de configurar las nomenclaturas es un campo de disputas en la práctica lexicográfica. Está en juego una idea de la lengua y del estatus de la va-riedad argentina del español. El DIEA, sin lugar a dudas, constituye un acontecimiento glotopolítico en la historia de las ideas sobre la variedad argentina del español puesto que quiebra la tradición lexicográfica de centro y periferia. Sin embargo, el hecho de que sea resultado de una iniciativa privada le asigna otro sentido glotopolítico de aquel que el lexicógrafo mexicano Luis Fernando Lara pensó para los diccionarios integrales en general y para el DEM en particular. Si bien tanto el ca-mino emprendido por el DIEA posibilitó que se ganara autonomía en relación con los diccionarios de la lengua general como que, desde el componente programático, se declarara que el discurso del diccionario despliega un dispositivo riguroso desde los puntos de vista científico y tecnológico, su elaboración responde a intereses particulares más que a intereses de una política pública y oficial, que legitime y transmita en el sistema educativo la lengua tal como se emplea en la Argentina. Su propósito es regular los usos lingüísticos con el fin de orientar (ho-mogeneizar) el empleo público del lenguaje y, así, potenciar su imagen en las disputas políticas, simbólicas y económicas que sostiene el sector privado, los medios de comunicación, con el Estado. La representación de lengua que antepone se circunscribe al de la región metropolitana y de los sectores letrados. Se configura, así, un imaginario de nación ur-bana. Es casi nula la representación del vocabulario de las provincias, de las zonas de contacto y del mundo rural.

La publicación del DIEA constituye un gesto que niega la ilusión de una lengua española general y afirma la diferencia en relación con la lengua del otro que es la misma (tiene la misma materialidad), pero que es diferente (debido a la propia experiencia histórica). El DIEA funda una nueva discursividad, pero no de modo integral (como se plantea en el componente programático), sino tomando como referencia los usos de un determinado sector – el culto – y de cierta área – la urbana, prin-cipalmente de la ciudad de Buenos Aires –, centro del poder político, económico y cultural, sede de la mayoría de los medios de comunica-ción y cuna del universo de lectores al cual se dirige la empresa que lo confecciona.

Notas1 La investigación, dirigida por la Dra. Elvira Narvaja de Arnoux, culminó con la defen-sa, en marzo del 2012, en la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad de Buenos

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Aires, de la tesis de doctorado titulada Continuidades y discontinuidades de la producci-ón lexicográfica del español de la Argentina. Un análisis glotopolítico de los diccionarios publicados en el marco del Centenario y en el del Bicentenario de la Revolución de Mayo. 2 Di Tullio (2010, p.190) señala: “La identidad lingüística argentina en singular no es más que una generalización que esconde múltiples respuestas, más valorativas que descriptivas, más ideológicas (en sentido amplio) o incluso políticas que estrictamente lingüísticas, todas difícilmente descontextualizables de las circunstancias (históricas, grupales, discursivas) de su producción”. Y, más adelante, la autora añade: “(…) la iden-tidad lingüística es una construcción (…) hecha de reflexiones sobre la lengua y sus componentes, pero también de valores afectivos (…) y también de ciertas acciones glo-topolíticas (…)”. (Di Tullio, 2010, p.207).3 Las distintas instancias del proceso estandarizador son: la selección, la codificación, la elaboración y la aceptación. Las dos primeras tareas implican la labor de dotar a la lengua de un patrón fónico, de una representación o transcripción gráfica (la creación de una escritura y la consecuente normalización de la ortografía siguiendo un criterio ya sea fonológico (a cada fonema le corresponde un grafema) ya sea etimológico, que proporcione información sobre la historia y sobre la familia de la palabra, de un modelo morfosintáctico y del vocabulario necesario (inventario del material léxico existente, incorporación o rechazo de préstamos y extranjerismos, homologación de la termino-logía científica y técnica, inclusión de neologismos, etc.). Las instancias siguientes a la selección y a la codificación se relacionan con el desarrollo funcional de la lengua. En suma, la norma lingüística estándar se erige como un intento de fijar las formas conside-radas convenientes, entre todos los usos posibles, de una variedad dada: de modo muy general, se determina porque son los que emplea cierto grupo social, habitualmente reconocido como culto o dirigente. Esas reglas se fijan en el tiempo y se difunden en el espacio a través, entre otros dispositivos, de los instrumentos lingüísticos y se usan en distintos ámbitos (justicia, educación, legislación, administración, medios de comuni-cación, política, ciencia, literatura). Dichas normas indican, así, qué formas deben res-petarse y cuáles deben descartarse por bárbaras, vulgares o extrañas ya que se escapan de los parámetros concebidos como correctos. Su determinación implica siempre una selección arbitraria y basada en fenómenos extralingüísticos más que lingüísticos entre varias opciones de uso. Definimos, en consecuencia, la lengua estándar como la varie-dad resultante del proceso de codificación. El estándar representa un ideal abstracto de unidad que permite (con los fines que lo asistan, cualesquiera sean) homogeneizar una realidad lingüística diversa. 4 Arnoux (2000 y 2008) explica que la Glotopolítica se centra en el estudio de las ac-ciones sobre el lenguaje en espacios institucionales oficiales y no oficiales. Aborda tanto las intervenciones explícitas como los comportamientos espontáneos, la actividad epi-lingüística y las prácticas metalingüísticas. Considera distintas temporalidades como la larga duración: la conformación de los Estados nacionales (en el marco de la economía mundo occidental) y los procesos de globalización (en el marco de la economía mundo planetaria); los tramos históricos de duración media vinculados con procesos y proble-máticas regionales, nacionales, supranacionales específicos (la independencia; la inmi-gración; el ascenso de movimientos populares; los golpes de Estado; la formación de los bloques de integración regional) y los acontecimientos concretos que suceden en deter-minadas coyunturas (la aparición de un muevo medio de comunicación o de una nueva tecnología de la palabra; la creación de instituciones educativas y de agencias de política lingüística como, por ejemplo, las academias de la lengua; el diseño y puesta en mar-cha de una reforma educativa). Y trabaja con diversos materiales del archivo histórico (próximo y distante): documentos variados (debates, polémicas, biografías, memorias,

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obras de ficción) a partir de los cuales se pueden indagar las prácticas lingüísticas; textos normativos (reglamentaciones, resoluciones, decretos, leyes, informes institucionales) que intervienen en el espacio de las lenguas y reflexiones descriptivo-prescriptivas es-tabilizadas (gramáticas, diccionarios, ortografías, textos didácticos, retóricas, artes de escribir) que regulan la actividad lingüística.5 Las representaciones (socio)lingüísticas se refieren a objetos lingüísticos (lenguas, va-riedades, hablas, acentos, registros, géneros, modos de leer, de hablar y de escribir) e implican evaluaciones sociales de esos objetos. Arnoux y Bein (1999) plantean que las representaciones son pantallas ideológicas que median, se interponen entre la praxis (la práctica real) y la conciencia social de la praxis e influyen en ella, y que como tal zona de la ideología están dotadas de materialidad discursiva. En los procesos político-lin-güísticos ponen de manifiesto su funcionamiento ideológico pues ocultan y develan las posiciones sociales y políticas confrontadas en el seno de una sociedad respecto de este campo, como de otros y revelan, asimismo, su sentido histórico. Las representaciones del lenguaje forman parte de las ideologías lingüísticas y éstas, a su vez, se inscriben en sistemas más amplios asociados con posicionamientos político-sociales.6 En adelante, las traducciones nos pertenecen. Los destacados en cursiva corresponden a los originales. 7 Los antecedentes más relevantes del diccionario monolingüe de lenguas vernáculas o nacionales europeas son: las transcripciones alfabéticas de determinados términos; las citas, los comentarios, las glosas (y autoglosas) o las traducciones de ciertas voces en los márgenes de textos administrativos, jurídicos, literarios o científicos en latín y las listas temáticas de palabras acompañadas de definiciones, en el campo de las manifestaciones protolexicográficas. Por otro lado, es menester señalar que los diccionarios monolingües del latín, los diccionarios bilingües (latín-lengua vernácula o lengua vernácula-lengua vernácula) y plurilingües, todos ellos con una clara función instrumental de traducción o de aprendizaje de lenguas segundas y extranjeras, especialmente por cuestiones cultu-rales, comerciales y militares; los glosarios como textos autónomos y las enciclopedias (repertorios de artículos ordenados por temas) son también anteriores a la aparición del diccionario monolingüe. Para un panorama de la prehistoria de la lexicografía monolin-güe, especialmente en el continente europeo, V. Auroux (1992a y b) y López Facal (2010).8 Agregamos el desarrollo de una economía capitalista incipiente, la invención de la imprenta, los contactos entre diferentes pueblos, la multiplicación de viajes, la creación de un sistema educativo, la implementación de formas de participación política, entre otros.9 Los Estados modernos fueron capaces de unificar la enorme multiplicidad de hablas bajo un modelo de lengua que pudiese ser impuesto a todos lo habitantes de un mismo país. Asimismo, las prácticas que los Estados desenvolvieron dentro de sus fronteras fueron también aplicadas a las situaciones coloniales, de manera que la ampliación de los mercados que supuso la expansión imperial de los Estados europeos se vio acom-pañada de políticas de difusión de sus lenguas nacionales.10 En un texto posterior, Auroux (2009, p.146) señala, refiriéndose a la adopción defini-tiva de la lengua por parte de los ciudadanos de un Estado: “La gramatización (la cons-trucción de instrumentos lingüísticos) es una condición necesario pero no suficiente”. Para el autor, las políticas lingüísticas reducidas a la gramatización resultan insuficien-tes, ya que se requiere también de la acción de los, siguiendo a Althusser (1970), Apa-ratos Ideológicos de Estado (escuela, medios de comunicación, familia, iglesia, servicio militar obligatorio) para que una lengua se transforme definitivamente en la lengua común de una determinada comunidad.

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11 Collinot y Mazière (1997, p.134) explican: “Leer el diccionario como un discurso im-plica someter a análisis dos sistematicidades: a) montaje de los enunciados fragmenta-dos del diccionario (entradas separadas) en un discurso histórico, dicho de otro modo, construcción del diccionario en «archivo»; b) para eso, establecen procedimientos de análisis de discurso que deconstruyen la superficie textual: recorrido en los artículos, montaje de series e interpretación de redes”.12 Guilhaumou (1997 y 2009) pretende con el concepto de acontecimiento lingüís-tico subrayar la importancia de considerar en la descripción de los procesos de gra-matización los espacios propicios para la innovación lingüística. Es imprescindible valorizar el aspecto innovador de la conciencia lingüística de los sujetos hablantes en relación con la propia lengua, tanto como el funcionamiento de los instrumentos lingüísticos en la producción de reconfiguraciones creativas del proceso de gramati-zación, especialmente en momentos de cambio histórico. Determinados hechos son concebidos como acontecimientos lingüísticos porque dislocan fronteras en el inte-rior de las prácticas lingüísticas entonces vigentes. Dichos acontecimientos señalan movimientos institucionales en relación con la producción de conocimiento sobre la lengua y también con respecto a la identidad lingüística. El concepto de aconteci-miento lingüístico se relaciona con la noción de acontecimiento discursivo (Orlandi, 2002) el cual es pensado como el momento de emergencia de formas singulares de subjetivación, siguiendo a Foucault ([1969] 2005). Ejemplos de acontecimientos discursivos pueden ser la colonización, la independencia, la inmigración masiva, la globalización pues producen efectos ideológicos determinados que afectan los modos de decir.13 Se proponen prácticas analíticas, también llamadas “gestos de lectura”, en las que se relaciona lo que es dicho con lo que no es dicho, con lo que es dicho en otro lugar o con lo que podría ser o podría haber sido dicho.14 Una de las coordinadoras del proyecto, Orlandi (2001), plantea que el programa en Brasil comparte los fundamentos epistemológicos formulados por Auroux, al tiempo que resalta los dos aspectos novedosos que le imprime la línea brasileña a la Historia de las Ideas Lingüísticas: por un lado, la cuestión fuertemente discursiva y, por otro, un tema de índole histórico-político ya que Brasil es un país de colonización, lo cual implica claramente un proceso particular de gramatización. Así, la autora propone cuatro mo-delos de gramatización: 1) basado en la construcción de una lengua literaria (irlandés, provenzal); 2) basado en la construcción de una lengua común a partir del desarrollo de un dialecto usado por la clase burguesa hegemónica (alemán, italiano); 3) basado en la construcción de una lengua nacional, con erradicación de las variedades locales, por voluntad de un Estado fuerte y centralizado (francés, castellano o español) y 4) tradición de las lenguas de colonización, caracterizada por la extensión de uso de una lengua ya instrumentalizada para otro territorio, como en los casos de las colonizaciones inglesa en los Estados Unidos, francesa en la región de Quebec en Canadá, portuguesa en Brasil y española en la mayoría de los países de América central y del sur.15 Realizan una lectura crítica del diccionario que atiende fundamentalmente a su sin-gularidad histórica. Singularidad histórica que se debe observar en su decir no sólo a partir de sus repeticiones, reformulaciones y transformaciones sino también a partir de sus silencios. Todos ellos claramente significativos. Considerar el diccionario como ob-jeto histórico implica tanto observar la estabilización de los sentidos en circunstancias específicas, como aprehender sus transformaciones, sus actualizaciones, sus rupturas. Una condición para eso es tener en vista la aparición y las transformaciones de los dic-cionarios en un espacio tiempo determinado, o sea, el establecimiento y el desarrollo de una tradición diccionarística.

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16 El término diccionarización fue acuñado por Nunes (2002, p.99) basándose, por su-puesto, en el de gramatización. Es “(…) la descripción e instrumentalización de la len-gua sobre la base del diccionario”. Unos años más adelante, Nunes (2006a, p.45) precisa: “Denominamos diccionarización al proceso histórico-discursivo de constitución de los diccionarios (…). El estudio de la diccionarización implica explicitar los procesos his-tóricos que llevan a la formación de este objeto, bien como mostrar la aparición y las transformaciones de las prácticas que permiten su construcción”. Como bien explica el autor, los diversos períodos históricos están relacionados con diferentes formas diccio-narísticas.17 V. también Lara (1996, 2004 y 2007). Para una síntesis del pensamiento lexicográ-fico de Lara, en especial sobre la lexicografía hispanoamericana, seguimos, además de los trabajos del propio autor, el discurso de recibimiento de José Luis Aliaga Jiménez a Lara, cuando éste fue nombrado miembro del Colegio Nacional de México: http:/www.colegionacional.org.mx/SACSCMS/XStatic/.../sobrelara.pdf [Fecha de consulta: 15-01-2012].18 Voz Activa es la marca de Tinta Fresca que se encarga de la publicación de instru-mentos lingüísticos de la variedad argentina del español (diccionarios, gramáticas y en-ciclopedias). En la página oficial de la marca se enuncia: “Voz activa es una marca de Tinta Fresca ediciones S.A., una empresa del Grupo Clarín de Argentina. Con la coor-dinación de Beatriz Tornadú, esta unidad está integrada por un equipo multidisciplina-rio de especialistas que producen artículos originales para diccionarios lexicográficos y diccionarios enciclopédicos, siguiendo los más actualizados criterios y procedimientos de la lexicografía y la compilación de repertorios y tesauros, orientados a reflejar la cultura de circulación social en nuestro medio y en nuestro tiempo. Los repertorios de Voz Activa se han elaborado pensando en la consulta de nuestros lectores”. http://www.voz-activa.com.ar/quienessomos.html [Fecha de consulta: 15-01-2012].19 El Grupo Clarín es el grupo de multimedios más grande de la Argentina. Se confor-mó oficialmente en 1999 y engloba distintos medios de comunicación. Sus principales accionistas conforman el 70,99% del paquete accionario. El porcentaje restante se divide entre un 9,11% que le corresponde al grupo inversor Goldman Sachs y un 19,9% se considera capital flotante. Desde 2008, a partir de la estatización de las Administradoras de Fondos de Jubilaciones y Pensiones (AFJP), el Estado posee 9% del grupo, a través del Fondo de Garantía de Sustentabilidad. Sin embargo la empresa se negó a aceptar la participación estatal en el directorio y en las asambleas. Las empresas del grupo Clarín tienen acciones en distintas áreas: prensa gráfica; ferias y exposiciones; editoriales desti-nadas a la publicación de libros y textos escolares; medios digitales; agencias de noticias; producción de papel de diario; servicios de televisión abierta y por cable; proveedores de internet; telefonía digital; canales de televisión, productoras de contenido de progra-mas de televisión y cinematográficos; transmisión de eventos deportivos; estaciones de radio y repetidoras. En el año 2008 se produjo un conflicto con el gobierno, cuyas re-percusiones continúan, debido al paro agropecuario patronal, al lockout. A partir de ese momento, comenzó una escalada de tensión con acusaciones de uno y otro lado sobre la libertad de expresión y el rol de los oligopolios comunicacionales en la información de los actos y las ideas de gobierno. Actualmente la principal discusión pasa por la ley de Servicios de Comunicación Audiovisual que establece las pautas que rigen el funciona-miento de los medios radiales y televisivos en la Argentina. Esta norma fue promulgada en el año 2009 por la presidenta Cristina Fernández de Kirchner y apunta, justamente, a la democratización de los medios y en contra de los monopolios.20 Los artículos no tienen marcas diatópicas de las distintas regiones lingüísticas de la Argentina. Sí tienen, en cambio, el símbolo asterisco * como indicación de geosinónimo

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(Colombia, España y México), que especifica que el lema en cuestión no es parte de la variedad lingüística del español de la Argentina. Ese símbolo va acompañado por la marca diatópica del país en el cual se emplea la voz o acepción registrada. 21 El banco de datos CREA está disponible en línea, en la página oficial de la RAE: http://www.rae.es [Fecha de consulta: 11-12-2011]. El CREA se describe como “(…) un conjunto de textos de diversa procedencia, almacenados en soporte informático, del que es posible extraer información para estudiar las palabras, sus significados y sus contex-tos. Un corpus de referencia es aquel que está diseñado para proporcionar información exhaustiva acerca de una lengua en un momento determinado de su historia y, por tan-to, ha de ser lo suficientemente extenso para representar todas las variedades relevantes de la lengua en cuestión. Atendiendo a este criterio, el CREA cuenta hasta ahora (mayo de 2008) con algo más de 160 millones de formas. Se compone de una amplia variedad de textos escritos y orales, producidos en todos los países de habla hispana desde 1975 hasta 2004. Los textos escritos, procedentes tanto de libros como de periódicos y revis-tas, abarcan más de cien materias distintas. La lengua hablada está representada por transcripciones de documentos sonoros, procedentes, en su mayor parte, de la radio y la televisión. El CREA es un corpus representativo del estado actual de la lengua, de manera que los materiales que lo integran han sido seleccionados de acuerdo con los parámetros habituales: Medio: el 90% corresponde a la lengua escrita y el 10% a la lengua oral. De ese 90%, un 49% son libros, otro 49% es prensa y el 2% restante recoge los textos que denominamos miscelánea: folletos, prospectos, correos electrónicos, ciberbitácoras, etc.Cronológico: el corpus está dividido en períodos de cinco años: 1975-1979; 1980-1984; 1985-1989; 1990-1994; 1995-1999, 2000-2004. Geográfico: el 50% del material del CREA procede de España, y el otro 50%, de América. A su vez este 50% se distribuye en las zonas lingüísticas tradicionales: caribeña, mexica-na, central, andina, chilena y rioplatense.Temático: cada uno de los tres grandes grupos de materiales (libros y prensa, miscelánea y oral) se clasifica de modo independiente: los textos de libros y prensa, en dos grandes grupos, ficción y no ficción, con 6 hipercampos que distribuyen hasta 20 áreas temáti-cas. Los textos de miscelánea se clasifican en impresa/no impresa y oral, así como en gé-neros y subgéneros. Los textos se seleccionan intentando mantener siempre el equilibrio establecido en la fase de diseño en todos sus parámetros.En la realización de los distintos diccionarios académicos se utilizan diariamente los materiales del corpus. Se pueden realizar búsquedas por modelos de combinaciones de palabras, comprobar frecuencias de aparición, ver ejemplos de uso de palabras y expre-siones, estudiar la época o el país en que tal o cual uso resulta más frecuente, y analizar los resultados de modo que la información que se registre en los diccionarios resulte ajustada a la realidad de la lengua.El CREA es, hoy por hoy, la única herramienta lingüística de gran magnitud existente para nuestra lengua. No cabe duda, por tanto, de que habrá de ser el punto de partida forzoso para investigaciones de diverso tipo, principalmente aquellas estrictamente lin-güísticas, pero también pertenecientes a campos tan dispares como el de la publicidad, la terminología o la sociología, así como para la elaboración de una enorme cantidad de productos derivados: gramáticas, diccionarios, tesauros, correctores ortográficos, mé-todos de didáctica del español, desarrollos informáticos de traducción automática, etc.”.22 Huelga decir que en los paradigmas verbales modelos (tiempo presente del indicativo y modo imperativo) aparece la forma correspondiente al vos en la segunda persona del singular y la forma correspondiente al ustedes en la segunda persona del plural. De todas

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maneras, destacamos que la tipografía de las formas correspondientes al vos y al ustedes son las no marcadas, la del tú y la del vosotros, por su parte, son las marcadas, las que figuran entre paréntesis.

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Palabras clave: proceso de diccionarización, español de la Argentina, diccionario integral

Palavras chave: processo de dicionarização, espanhol da Argentina, di-cionário integral

Key-words: process of dictionarization, Argentinian Spanish, com-prehensive dictionary

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A LÍNGUA BRASILEIRA EM SUA MEMÓRIA DISCURSIVA POÉTICA:

ESPAÇO DE DESDOBRAMENTOS

Ligia Caldonazo Cardoso1

Univás

RESUMO: Esse artigo fala da língua brasileira, sob um olhar que se afasta do português institucionalizado como língua imaginária no Brasil. Trata--se de análise de discurso em poética que apresenta uma prática de leitura de anagramas de versos de Anchieta e Tomás Antônio Gonzaga. De um lado, a análise dá visibilidade à poesia como próprio da língua; de outro, abre o olhar para gestos de interpretação não usuais da linguagem literá-ria.ABSTRACT: This article talks about the Brazilian language, under a gaze that moves away from the Portuguese institutionalized as the imagina-ry language in Brazil. It is discourse analysis of poetics that presents a practice of reading anagrams in verses of Anchieta and Tomás Antônio Gonzaga. On the one hand, the analysis gives visibility to poetry as a cha-racteristic of language itself, and, on the other hand, it opens our eyes to unusual gestures of interpretation of literary language.

Em seu artigo intitulado “A língua brasileira”, Eni Orlandi diz que “a questão da língua que se fala toca os sujeitos em sua autonomia, em sua identidade, (e) em sua autodeterminação” e questiona: falamos a língua portuguesa ou a língua brasileira?

Através do pensamento da autora, em vários de seus livros que trata da questão da língua e da língua no Brasil, em Análise de Discurso, e sob sua orientação na dissertação de Mestrado em Ciências da Linguagem, foi possível tecer considerações sob novos aspectos do conhecimento linguístico mostrando como a língua e o sujeito se deslocam, se dizem, se significam através da análise poética, em recortes, no movimento dos anagramas2, espaço do dizer de um real da língua, o da língua brasileira.

Dessa forma, esse artigo fala da língua brasileira, sob um olhar di-vergente do português institucionalizado como língua imaginária, lugar

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de arquivo, como linguagem no Brasil, que me atravessou enquanto su-jeito, no trabalho de pesquisa de mestrado, no que foi nomeado Traços de amor na materialidade da língua materna: esse jeito brasileiro de di-zer (CARDOSO, 2012), em que se fez mostrar, como pontua E.Orlandi (2002), a tecnologia da produção do instrumento linguístico, (na forma) em que se representa a língua para seus falantes, em seu conjunto, na nossa colonização.

O espaço em que essa produção do conhecimento linguístico se deu, foi a intrincada e bela rede dos anagramas, tão urdida, na sua forma, por Ferdinand de Saussure, ponto central para compreender e des/velar essa trama da língua que se fala no Brasil, na constituição de sujeitos em suas poéticas, representantes da ideologia portuguesa. Fez-se destaque An-chieta, em virtude das línguas que encontrou na condição de processo de produção linguístico: a do pai, a da mãe, a da ideologia portuguesa, a da nacionalidade espanhola e das línguas indígenas (colonização).

O objetivo da pesquisa teve como objeto de estudo a língua brasileira em sua memória discursiva poética, como língua materna, tratada em sua historicidade e não em sua história. Ou seja, a noção de língua ma-terna não pensada em sua cronologia, ou evolução, mas sim no modo de funcionamento, como língua primeira, que embora filiada “a uma cons-trução anterior, (mostrou-se) independente, em oposição ao que é cons-truído” pelo enunciado, (PÊCHEUX, 1997) no processo de colonização.

Ao considerarmos como objeto de estudo a língua brasileira em sua memória discursiva poética, como língua materna, língua primeira, em relação com a estrangeira que resulta de encontros e desencontros, pen-samos como processo discursivo em Anchieta, a palavra Maria, em rela-ção ao poético referente a mar/movimento (mar/ia), como movimento de constituição da nossa língua brasileira. Polissemia na língua (e não só da língua)3.

Considerações poéticas, sobre Anchieta e Tomás Antônio Gonzaga, tomaram-me ao analisar a forma poética, nas condições em que esta se dá, interpelados pela ideologia e assujeitados à língua brasileira, no acontecimento da colonização, não se inscrevendo no processo que a língua imaginária instala. A entrada no simbólico é observada pela na-tureza da alíngua.

Nos versos a língua não soa como algo óbvio, não é uma evidência pela qual se apresenta uma identidade linguística como natural, no sentido de que se nasce para falar uma língua. Nascer em um lugar não determina uma relação de equivalência com a língua, pois a língua é processo, não está pronta, acabada, posto que o sujeito ao nascer não é algo acabado, definido pelo estatuto da identidade de origem. Isso, como incompletude do sujeito que atravessa a língua e é por ela atravessado, e se dará, onde os

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discursos produzidos sob certas condições permitem observar produção de efeitos de sentidos em determinada direção. “Para a teoria do discurso, a língua tem sua unidade, sua própria ordem, com a diferença que não é uma unidade fechada: a língua é sujeita a falhas e é afetada pela incom-pletude (...), o lugar da falha e a incompletude não são defeitos, são, antes, a qualidade da língua em sua materialidade: falha e incompletude são o lugar do possível” (ORLANDI, 2009).

O dispositivo teórico da Análise de Discurso permitiu ir ao lugar onde coloco a língua que se fala no Brasil, como a língua brasileira e não como a língua portuguesa, ou como dizem “a nossa língua portu-guesa”, lugar de efeito de sentidos, onde “a relação com a linguagem não é jamais inocente, (e) não é uma relação com as evidências” (ORLAN-DI, 2005), mas uma prática de leitura, onde o simbólico e o político se conjugam nos efeitos. A questão da língua numa formação discursiva determinante, processo de transmudar, não é uma questão meramente linguística, mas discursiva, nomeação, enunciação, de como o sujeito poético discursou e discursa sobre o amor na e pela língua brasileira, língua fluida e eletiva.

Justifico o termo, língua eletiva em Anchieta, pela escolha incons-ciente e de se fazer memória considerando o desaparecimento rápido de uma memória portuguesa/ideológica cristã, para uma outra, lugar em que a língua se encarna eletivamente no Brasil, na dêixis, em versos, onde o discurso no duplo dos anagramas, mostra a transferência que se dá no poema, uma outra constituição. O poeta, enquanto sujeito não é mais o Anchieta de lá, e a língua também vai junto com a constituição do sujeito. Duplamente, nesse movimento, o poeta leva a língua junto.

“Se falha e incompletude são o lugar do possível” e se cabem nelas a falta, cabe então, um outro, um impossível, num movimento para den-tro, mudança de estado, entre língua e alíngua, movimento de afasta-mento para aproximação. Há aí um ponto de encontro com um real, no real da língua, (...) lugar para o “impossível”, para o equívoco, para a elipse, para a falta, (...) lugar para a deriva (onde) “tudo não se diz, pois há um impossível próprio da língua” (MILNER, 1987, p.06). Nesse mo-vimento consideramos a linguagem poética como leitura de anagramas, aspecto linguístico que trata da configuração da brasilidade nos dois po-etas, na interpretação dos poemas que deslizam pela língua fluída, e se apresentam no que é anagramático, como a língua brasileira, que como processo identitário tornou-os sujeitos da língua desse novo território, Brasil.

Os versos em Santa Inês e em Marília de Dirceu, analisados em pro-cedimento de leitura e interpretação anagramática, permitiram perce-ber enquanto alíngua, que exerce na língua um ponto de cessação4 da

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falta de escrever, é que desfaz o conjunto, e apresenta outra configuração linguística.

No acontecimento poético de/em Anchieta e Tomás Antônio Gon-zaga faz-se entender de acordo com Pêcheux, que “emerge uma rede de relações associativas implícitas-paráfrases, implicações, alusões, etc... (numa) série heterogênea de enunciados”, funcionando sob diferentes registros discursivos e com uma estabilidade lógica variável (PÊCHEUX, 1990, p.23), no gesto de interpretação poético (ou da poética).

Há na poesia o que é subversivo, sub/versivo, o que está na alíngua que se apresenta como materno, numa materialidade que não é a de origem, mas da qual se originou, sem entretanto estar preso ao ato pri-meiro. Materno aqui deve ser entendido, como o que se faz marcar por aquilo que é mobilidade e história e que se apresenta para além do teatro da consciência, entendendo que essa mobilidade dá-se na poética de Anchieta quando este fala de uma outra língua, versos sobre a areia e em Tomás Antônio Gonzaga quando nos fala sobre os sítios.

Esses poetas burlam, pela excelência e materialidade da poética, o signo enquanto espaço de silenciamento e de vazio e se dizem na hete-rogeneidade. Essa heterogeneidade que a princípio carrega a memória da língua “todo dizer tem necessariamente a memória do outro” (AU-THIER-REVUZ, 1990), mas que no “esquecimento é um dos modos do político se marcar na relação com a memória” (ORLANDI, 2002, p.50), ou seja, esse materno na poesia desses autores e que diz da língua brasi-leira, se faz pelo político no jogo entre “o que é preciso calar (esquecer) para que apareça o novo” e o que é calado para impedir o novo sentido” (id., 2002, p.50) .

Nesse jogo poético é preciso que se veja o funcionamento discursivo do sujeito que fala de si e de sua identidade linguística, da historicidade, o modo como se inscreve na história para significar, em processo de produção de sentidos, e que nos permite verificar que um sentido esta-belecido por uma língua, o sentido português, o mais evidente pelo ato da colonização, não é o que estabelece a identidade linguística da nação Brasil, pois no domínio da linguística há que se considerar “o fato de que há língua e há línguas. Duplicidade (PÊCHEUX & GADET, 1981).

Os anagramas seriam uma forma de perceber “a rebeldia da palavra, de sua ‘ resistência’ em colocar-se sob o domínio daquele que a utiliza: (...), ela não cessa de produzir sentidos esses nunca acabados, jamais detidos. (...) a palavra “justa”, insiste em se dizer e é para encontrá-la que seguimos falando (TEIXEIRA, 2005, p.15).

Nas margens, sobre a areia, Anchieta, pelo desejo daquilo que não cabia mais no gesto de interpretação da língua portuguesa, e para en-contrar o que é justo, faz inúmeros versos, e na repetição, vai marcando

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a língua e se marcando como sujeito, no próprio sentido que o faz sujei-to da incompletude.

De onde vejo, da formação discursiva poética, não há um simples poema escrito na areia da praia como uma questão do poeta que ins-pirado pelo imaginário registra palavras para falar do que é sagrado na transparência da linguagem, esse seria o teatro da consciência se dizen-do: “eu escrevo sobre Maria”. Aqui a interpretação em Anchieta, aberta ao simbólico, diz-se da opacidade e da/na materialidade da linguagem como efeito metafórico, onde a ideologia do sujeito do religioso não é vista na direção que se toma como universalizante, mas sim em gesto de leitura que diz da língua, na alíngua, o possível sentido em que Anchieta se faça ver/entender.

O que acontece em Anchieta, essa língua que se inscreve e que o faz sujeito dela, o é, porque faz sentido em sua história de sujeito, “história da língua para o sujeito, (que adere) (...) à memória do objeto simbólico em que ele se constitui (...) não há, (...) como desconhecer a história do sujeito e da língua na produção do conhecimento do sujeito sobre a língua,” (ORLANDI, 2002, p.28-29) deslocamento de memória pois que “todo discurso é uma mexida na rede de memória” (PÊCHEUX apud E. ORLANDI, 03/2012, Informação Pessoal).

Nossa língua brasileira no discurso poético de Anchieta apresenta-se como discurso fundador, na “estruturação do discursivo, e vai constituir a materialidade de uma certa memória social” (ACHARD, 2010) que se dá no implícito.

Anchieta é autor, sujeito produtor de linguagem pela língua que ele-ge e cujo enunciado no poema À Santa Inês, em sua função enunciati-va, apresenta condições de produção assumida como sujeito de direito, marcando resistência (pelo que se inscreve na alíngua) que afeta a regu-laridade do sistema da língua que se diz portuguesa, equívoco, tanto na ambiguidade quanto no deslizamento a que nossa análise se refere. Ao escrever os versos, ele não mais está assujeitado à questão do sujeito do religioso, formação discursiva onde a determinação religiosa do que é subordinado à autoridade soberana, mas a sua “pessoa que é motivo de algo, pessoa considerada em suas aptidões” (HAROCHE, 1992) enten-dendo que “ser sujeito de direito, não é nada mais que “ser para a lei”.

Subjetividade, que segundo Benveniste, “é a capacidade do locutor em se colocar como sujeito” (id., 1992, p.163) e o “funcionamento da subjetividade está no exercício da língua” (id., 1992, p.164), o que nos leva a pensar que a filiação a que estamos ligados, enquanto nação, não nos remete aos sentidos discursivos portugueses.

Se há em algumas palavras brasileiras a relação de homofonia5, com a língua portuguesa, estar no solo Brasileiro é antes um exercício so/lo,

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exercício de composição/constituição e/na composição de Anchieta, em versos que sozinho traça diante do mar, essa oração que o sujei-to do religioso estende ao sujeito de direito, de discursar já em outra língua, na e sobre a língua brasileira, apresentado no amor como dis-cursividade de algo que na expressão literal apresenta-se como amor divino, mostra-nos antes a opacidade do amor na e pela língua que se faz materna.

A memória em Santa Inês não poderia ser concebida como uma es-fera plana e nem como conteúdo homogêneo, mas sim um espaço de desdobramentos.

Não se vende em praça, Este pão da vida, Porque é comidaQue se dá de graça.Oh preciosa massa!Oh que pão tão novoQue com vossa vindaQuer Deus dar ao povo!

Oh que doce boloQue se chama graça!Quem sem ela passaÉ mui grande tolo, Homem sem mioloQualquer deste povoQue não é famintoDeste pão tão novo.

Nesse recorte pode-se perceber a constituição dos sujeitos que vie-ram para o Brasil... e o pão da vida ...que se faz no verbo é graça... graça que se insinua quando se diz: qual é sua graça? e a graça é o nome...e o nome é o que nomeia...e o nomear é anunciação pelo discurso... esse pão tão novo é a nova terra... esse pão tão novo é a língua... porque se di-zer no Brasil...nessa massa tão densa de línguas...que amassa o pão e dá vida nova. O poema todo é uma bela transferência de um mundo para outro, de um sujeito para outros, de uma língua para outra, de sentidos para outros: Oh que pão tão novo/NOVO MUNDO!

Em Tomás Antônio Gonzaga, quando esse diz: que sítios são estes?, em repetição (são estes) remete-nos a análise do lugar/espaço de signifi-cação na incompletude da linguagem, lugar de muitos sentidos, do que

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não se apreende à primeira vista. E ainda afirma: “eu o mesmo não sou”. Desliza o sujeito para outra posição.

São estes os sítios?São estes; mas euO mesmo não sou.Marília, tu chamas?Espera, que eu vou.

No discurso do poeta, as palavras criam vida própria, na condição de análise, pela incompletude que é condição da linguagem já que, “nem sujeitos e nem sentidos, estão completos, já feitos, constituídos defini-tivamente “atestando a abertura do simbólico, modo de entremeio da relação, da falta que é lugar do impossível” (ORLANDI, 2005).

Ao posicionar, o amor como traço de brasilidade, e relacionar Ma-rília como Mar/ilha, como a palavra amor (um dos nomes /Saussure), descrevo o deslize do amor como ilha, como esse espaço/lugar de sig-nificação, algo que de particular como sentido torna-se coletivo, como traço poético pela singularidade que pode ser encontrado no deslize que a poética permite. Dar sentido à, para Pêcheux.

Gonzaga parte do individual, que “parece caracterizar a língua, para o coletivo, esse espaço de significação da poética que permite transfor-mar as formas de silêncio na deriva da interpretação pelo sujeito/lei-tor, pois a poética leva para além o que os “indivíduos recebem como evidente, o sentido do que ouvem e dizem, leem ou escrevem (do que eles querem e do que se quer lhes dizer) enquanto sujeitos-falantes (...)” (PÊCHEUX,1997).

A análise feita a partir de anagramas mostra uma outra possibilidade de interpretação do acontecimento, para além da estrutura da língua e do conhecimento linguístico estável, redesenhando uma outra forma de perceber o discurso, cujas malhas, na poética, não se dá somente na representação do que é versificado, mas na própria poesia de que toda a língua é capaz.

Notas1 Mestre em Ciências da Linguagem pela Univás2 Anagramas: “antecedente da palavra tema (...) Texto sob o texto, (...) um pré – texto” (Starobinsky, 1971, p.18-19).3 Cf Espaços Multilingues, Forum de Francofonia e Multinguismo, Québec, E. Orlandi , 2012 (site:www.cienciasdalinguagem.net/).4 Ponto de cessação, “que poderia ser chamado também de ponto de poesia (...) o ponto onde cessa a falta, o um a mais que o preenche (onde) o poeta se reconheça nisto que ele consiga efetivamente, senão perceber a falta, ao menos afetá-la” (MILNER, 1997, p.25).

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5 Homofonia: Igualdade fonética entre dois vocábulos ou entre um vocábulo e uma expressão (grupo de palavras). Dicionário Informal. Disponível em <http://www.dicionarioinformal.com.br/homofonia/> Acesso em 08/04/2012.

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Palavras-chave: discurso, poética, anagramasKey-words: discourse, poetics, anagrams

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ATUAÇÃO INQUISITORIAL NO BRASIL: CONTRIBUIÇÃO

NOS PROCESSOS DE IDENTIFICAÇÃO DE UM SUJEITO BRASILEIRO

Gileade GodoiCEFET-RJ

RESUMO: Tomando como corpus o livro das confissões e denúncias da última visitação feita pelo Santo Ofício da Inquisição ao Grão-Pará e Maranhão, este artigo reflete sobre o modo como as visitações do Santo Ofício ao Brasil-Colônia, com suas prescrições e proscrições, mobilizaram os processos de identificação de um sujeito brasileiro; e, nesse jogo, como memórias intercontinentais constituíram parte desse sujeito através da transferência, resistência e ressignificação.

ABSTRACT: Taking as corpus of analysis the book of confessions and de-nunciations from the last visitation of the Holy Office of the Inquisition made to the colonial state of Grão-Pará and Maranhão, this article reflects on how the visitations of the Holy Office to colonial Brazil, with its pres-criptions and proscriptions, mobilized the process of identifying a Brazi-lian subject, and in this process,how intercontinental memories became part of this subject through transference, resistance, and redefinition.

As Visitações do Santo Ofício ao Brasil sempre suscitaram meu in-teresse. Propus-me, pois, tomando como corpus o livro das confissões e denúncias da última visitação, feita ao Grão-Pará e Maranhão, a analisar o quanto tinham influenciado na constituição dos processos de identi-ficação de um sujeito brasileiro, naquilo que é hoje considerado pela população em geral como uma característica desse povo, como seu mul-ticulturalismo e sincretismo religioso.

E por que trabalhar com documentos da visitação do Santo Ofício da Inquisição, em especial essa última visitação? Duas questões básicas me

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motivaram. Em primeiro lugar, pelo fato de resultarem de ato institucio-nal de proscrição e prescrição; em segundo lugar por se dar contra uma população colonial que estava em vias de se constituir como nação, visto que se iniciou 59 anos antes da Independência do Brasil.

Parti do conceito teórico de acontecimento discursivo, aquele “ponto de encontro de uma atualidade e uma memória”, definido por Pêcheux (1997, p.17), reconhecendo o Edital de Fé como o acontecimento dis-cursivo deflagrador da construção da memória pecado, que se atualiza-va no monitório da inquisição, com sua lista de proscrições. Mais que atualizar, a força desse acontecimento discursivo processava uma res-significação dos sentidos, visto que ao ocorrer o encontro da memória com a atualidade, aquilo que antes havia sido praticado como ato natu-ral, incorporado ao cotidiano, ganhava a conotação de pecado, como se pôde constatar em vários relatos, quando o confitente declarava só ter tomado conhecimento de sua culpa depois que se leram os editais.

Comecei a perceber que o Edital de Fé possuía um funcionamen-to discursivo que se colocava como a voz de Deus de tal forma que as vozes divergentes eram imediatamente associadas ao demônio. Dizeres e fazeres que se desviavam da concepção de fé prescrita pela Igreja fo-ram demonizados. As línguas dos pajés, línguas ditas incógnitas, foram consideradas línguas dos mestres das feitiçarias. A língua interdita pelo Diretório dos índios era a língua da rusticidade e barbaridade. Mais que isso, era a língua que assujeitava seus falantes a essa barbaridade em que viviam. Somente o uso da língua portuguesa seria capaz de trazer civilidade. Se diabólica era a língua, o eram também todos os ritos nela praticados. Assim, muitas das práticas e hábitos coloniais foram alçados à categoria de pecado, forçando um movimento discursivo que isentasse de culpa os confitentes ou que as minimizasse ante a Inquisição.

Um movimento interessante foi o que ocorreu nas confissões de cunho moral relativas às práticas de relações sexuais pelo “vaso pre-posteiro”, para utilizar a nomenclatura da época. O discurso da igreja e, consequentemente, o inquisitorial, definia como prática sodomíti-ca aquela que resultava na seminação no dito vaso preposteiro. Sem isso, não se consideraria que o ato teria sido cabal, o que minimizaria a culpa de seu praticante. Esse discurso conceitual foi incorporado por todos os que confessaram essa prática. O confitente afirmava ter seminado ou no chão ou no vaso natural, nunca no vaso pre-posteiro, do que resultava que, de fato, não havia caído no pecado dito nefando. A expressão “seminar no vaso preposteiro”, que servia à definição do pecado, nas confissões, precedida da negativa, passou a estar a serviço da descaracterização do pecado, funcionando como fator expiatório.

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Procurando compreender de que modo as práticas que chamei má-gicas subsistiram à censura, percebemos um recurso recorrente, que foi ocorrendo em um crescente em relação ao tempo: o de abrigar elemen-tos da fé católica nos ritos considerados desviantes. Resistência abri-gando-se na censura. E essa resistência funcionava como uma espécie de silenciamento. Ao trazer referências da religiosidade católica para o interior das práticas consideradas pagãs, silenciava-se a possibilidade de acusação de heresia, dado que este conceito implicava necessariamente, segundo Novinksy, “ruptura com o dominante, ao mesmo tempo em que é uma adesão a uma outra mensagem” (2007, p.11). Ser herege seria escolher e isolar de uma verdade global uma verdade parcial e obstinar--se nessa escolha. Não se observa essa escolha, essa obstinação nos con-fitentes. Ao contrário, o que se vê é uma declaração de arrependimento por terem praticado algo considerado desviante pela igreja, apesar de o terem feito em “boa fé”, ou “sem entender que obrava[m] mal”.

Fugir da pecha de herege já era possível, mas era necessário também, dadas as condições de produção, reinscrever-se no lugar e posição de cristão. Verificamos um funcionamento discursivo nas denúncias que cumpria esse papel em relação aos denunciantes. Não podemos esque-cer de que as denúncias em quase todos os casos envolviam o denun-ciante na prática que delatava, tornando-o co-partícipe, visto que ele mesmo ou alguém da família era o beneficiário dos rituais de cura.

Como, pois, denunciar uma prática pagã da qual se beneficiou sem se auto proscrever? A ressalva funcionou aqui como “lugar de argumenta-ção, de reorientação de sentidos, de contestação não frontal; como lugar de reinscrição do sujeito na posição de cristão”1. É o que se verifica no caso da denúncia feita por Domingos Rodrigues contra a Índia Sabina. Após confessar ter recorrido à prática desviante de cura, o sujeito res-salva que “sua mulher não conseguiu melhorar senão pelos exorcismos da Igreja que a dita índia também aconselhou que buscasse”. Apenas através da Igreja e de seus ritos considerados puros e legítimos foi pos-sível experimentar realmente a cura. A reinscrição do sujeito na posição de cristão e o reconhecimento da “fé verdadeira” se dá na ressalva, feita ao final. É através da ressalva que ao sujeito confitente ou denunciante é permitido argumentar a seu favor acerca da não intencionalidade do comportamento considerado herético pela Igreja. A ressalva é, pois, es-paço de argumentação. É a prova de que o Edital de Fé pôs em funciona-mento os sentidos desejados e que, em consequência, os desvios foram identificados e rejeitados. A materialidade discursiva da confissão fecha o ciclo do arrependimento, levando o sujeito cristão de volta ao rumo perdido. Arrependimento vem do latim rĕpōnĕrĕ: recolocar, repôr, res-tabelecer.2 O espaço de argumentação é o “fiador” para a reinscrição do

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sujeito na ordem discursiva católica. Aceitar a ressalva é a garantia para a Igreja do restabelecimento dessa ordem.

Índios, negros, brancos e mestiços, em uma convivência mais ou me-nos estreita, definida talvez pelas relações de trabalho, teriam resguar-dadas suas práticas religiosas de origem? E como se falar em origem quando a referência é o mestiço? O uso do amuleto, aqui conhecido como bolsa de mandinga, prevalente entre os homens, é um dos ele-mentos que nos permitem perceber que não era muito possível a ca-tegorização de práticas religiosas usando o critério étnico. O uso do amuleto era uma prática originalmente africana, com influências da religião muçulmana (já que versículos do alcorão eram utilizados na confecção dos amuletos), na colônia foi substituída pela religião católica e que, marcando a contradição inerente às práticas coloniais que a Igreja queria combater, servia para garantir uma morte cristã, dentre outras propriedades pagãs, como fechar o corpo, impedindo que seu portador fosse atingido por facadas ou tiros (Vainfas, 2001). Ter naturalizada essa prática pagã, não implicava furtar-se às práticas cristãs, pois os mesmos que portavam essas bolsas de mandinga iam à missa, comungavam, par-ticipavam ativamente do processo litúrgico no serviço religioso.

A contradição é uma constante nas denúncias e confissões dos setecen-tos e um elemento importante para a constituição do processo de identifi-cação dos sujeitos na colônia. É na contradição que os sentidos vão se trans-formando, se perpetuando e ganhando espaço na memória colonial.

O discurso e as memórias do outro estão sempre presentes nos dis-cursos proferidos e nas práticas em uso, confirmando o que diz Pêcheux quando afirma que “é porque há o outro nas sociedades e na história (...) que pode haver identificação e transferência (...). É porque há essa ligação que as filiações históricas podem se organizar em memórias, e as relações sociais em redes de significantes” (1997, p.54). Identificação e transferência são marcas da organização das memórias coloniais cujas redes de significação se constituem de forma a identificar e diferenciar a religiosidade da colônia da religiosidade da metrópole.

É esse processo de transferência que vemos agir na possibilidade de interpretação verificada no discurso de Raymundo Bitencourt quando afirma que não tem má opinião da índia Sabina “porque sempre ouviu dizer que tudo o que ela faz é por virtude especial de uma cruz, que dizem tem no céu da boca”. Constrói-se, aí, uma “pluralidade contra-ditória de filiações históricas” (Pêcheux, 1997, p.55).

Seja nas bolsas de mandinga, seja nas orações que dentre práticas não cristãs contém orações e elementos cristãos, é esse processo de transferência que permite o espaço de argumentação do sujeito no sen-tido de evocar para si um lugar de inocência ou de desconhecimento

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do pecado inscrito na prática através do acontecimento discursivo do Edital de Fé. Há, entre a população colonial, uma interpretação de le-gitimidade das práticas pagãs quando imiscuídas em orações e gestos religiosos cristãos.

Uma questão que surgiu no decorrer da análise do corpus e que não pôde ser ignorada foi a da imagem que se fazia do negro e do índio na sociedade colonial, questão relacionada à imputação de responsabilida-de e de credibilidade da fala desses dois representantes da população do Brasil-Colônia.

A responsabilidade pelos atos desviantes da fé católica só poderia ser imputada a alguém de posse de seu juízo e, seguindo a praxe inqui-sitória, perguntava-se sempre ao denunciante, acerca do denunciado, se este, no momento da prática pagã referida tinha entendimento e juízo e se não estava tomado por bebidas. Assim, em relação aos índios, ante essa mesma pergunta, aparecia sempre uma construção adjetivadora específica para referir-se a eles: sua condição. Os denunciantes, ao afir-marem que “segundo a condição que tem de índia lhe parece sufi-cientemente entendida”, ou “ainda que são o primeiro mameluco, o segundo índio, têm juízo claro e não mostram ser doudos” produzem um discurso cujo sentido coloca o índio em um lugar de inferioridade intelectual, sem tirar-lhe a responsabilidade por seus atos: o índio não é capaz de compreender as coisas como um natural da colônia, ou como os portugueses, mas dessa condição intelectual limitada, tem conheci-mento e juízo suficientes para saber o que faz nas questões referentes à fé. Nas relações com o Santo Ofício, quando acusados, os índios jamais são imputados como incapazes.

À “condição de índio” atrelava-se um juízo relativo à crença aborígi-ne. Era de praxe também, nos interrogatórios, perguntar ao denuncian-te a opinião que este tinha acerca da fé, vida e costumes do denunciado. Acerca de uma índia, um denunciante afirmou que “não tem dela muito boa opinião como a não pode ter das mais pessoas na sua condição”. O discurso de reprovação da crença indígena não é, aqui, uma opinião do denunciante, como se pode perceber. Este apenas recupera um discurso que já está lá, significando. Um discurso que se espera ser reproduzido do lugar e posição de um bom cristão. E os discursos de um bom cristão reiteram, reproduzem, repetem o discurso inquisitorial. Não era, pois, possível, ter da crença das pessoas na condição de índio, uma boa opi-nião. A imagem que os denunciantes reproduziam do índio nas denún-cias era a imagem que a igreja tinha dos indígenas reverberada nesse discurso-denúncia. Se tomarmos o fato de que recorriam às práticas in-dígenas para tentar curar-se, veremos que a imagem que o habitante da colônia tinha do índio diferia daquela que ele reproduzia nas denúncias.

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A imagem que os portugueses faziam do negro não se fazia mani-festa nas denúncias, ou seja, não há explicitado um posicionamento da população colonial ou uma reprodução desta em relação ao negro. Elas foram reveladas pelos representantes do clero que cumpriam a função de ratificantes, aqueles que avaliavam se as confissões ou denúncias fei-tas eram ou não dignas de crédito. Acerca de Joaquim Antonio, ango-lano, os padres ratificantes declararam que “pelas razões de ele volun-tariamente vir confessar a própria culpa, e declarar tantas pessoas com as quais se tem cometido a mesma, o que não seria fácil de fingir prin-cipalmente em um preto ainda que ladino, com as circunstâncias que expôs na sua confissão e denunciação (...)”, parecia que falava a verdade e merecia crédito.

Os sentidos vão sendo construídos na caracterização de incapacida-de intelectual do negro.

Primeiramente, tudo o que o negro relatou, com as circunstâncias que expôs, é identificado como algo que “não seria fácil de fingir”. Ne-nhuma pessoa, de nenhuma condição ou etnia, teria facilidade de in-ventar tantos fatos, com tantos detalhes.

Em seguida, como motivo ratificador do status de verdade do que havia sido denunciado, acrescenta-se que “não seria fácil de fingir prin-cipalmente em um preto”. Se já seria difícil de fingir para qualquer um, para um preto seria mais difícil ainda, o que evidencia um discurso que se constrói na caracterização do negro como intelectualmente inferior.

Finalmente, esse lugar de incapacidade é reiterado pela expressão concessiva “ainda que”: “não seria fácil de fingir principalmente em um preto, ainda que ladino”. O negro é, pois, na sociedade colonial, tão reconhecidamente incapaz que ainda que ele fosse muito astuto3, ainda assim não teria capacidade suficiente para produzir nenhum pensamen-to ou história mais elaborada.

Essa visão se confirma, curiosamente, no que poderia parecer um contra exemplo disso na denúncia feita por um outro negro. Nesse caso, os padres ratificantes afirmam que “pelo bom conhecimento que têm da capacidade, boa vida e procedimento do denunciante lhes parecia que falava verdade no que dizia e merecia crédito”.

Nenhuma ressalva, nenhuma referência à sua condição de negro ou à incapacidade decorrente dessa condição. O que fez com que o negro João Vidal merecesse crédito foi “o bom conhecimento” que tinham de sua capacidade, boa vida e procedimento”. Os padres que compunham a mesa de denúncias do Santo Ofício tinham conhecimento da vida e do proceder do negro. Perguntei-me de onde viria esse conhecimento ca-paz de, sem ressalvas, fazer com que a denúncia dele merecesse crédito? A resposta foi encontrada na fala de identificação, feita em sua apresen-

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tação, quando diz que é “casado com Maria Izabel, preta da Costa da Mina, escrava do capitão Joaquim Rodrigues Leitão, familiar do Santo Ofício4 morador em casa do mesmo (...)”.

A credibilidade do negro advém do conhecimento que os padres ti-nham dele, conhecimento esse proveniente do fato de ele morar na casa de um familiar do Santo Ofício. Quem atestava a capacidade e o bom proceder do denunciante era um funcionário da Inquisição, de quem não se esperaria que abrigasse ou tolerasse em sua casa alguém que ti-vesse “crença, vida e procedimento” desviantes. Atestar a credibilidade do preto, nesse caso, era, em última instância, atestar a correção de um funcionário civil da Inquisição, cuja vida deveria ser considerada ilibada para manutenção de seus privilégios. Não se estava, pois, considerando aqui um negro especial, cuja capacidade diferia da dos demais, abrindo a possibilidade de tirá-los do lugar de incapaz. Não se passa a produzir um sentido diferente para o lugar do negro, não significa que a imagem do negro para o branco, português, religioso católico, seja outra; apenas reitera-se o lugar do branco assegurando-lhe seu status quo.

Ainda quanto a esse olhar europeu sobre a colônia, mas em relação a outra questão, foi possível observar que o encontro de “dois imaginá-rios” “constitutivos de povos culturalmente distintos” (Mariani, 2004), estabelece outro gesto de leitura a fim de permitir a identificação dos elementos típicos da colônia com o imaginário europeu. Isso provoca uma demonização dos ritos aqui encontrados e uma reformulação des-ses rituais.

Há o encontro das práticas e imaginário europeu com as práticas e imaginário colonial, bem como o desencontro desse imaginário consigo mesmo (idem, ibidem). Os ritos de cura já não se limitavam a defuma-douros, potagens, toques de maracá e uso de cuias. O imaginário sabáti-co europeu passou a se fazer presente nesses ritos. As feiticeiras voado-ras encontram seus correspondentes coloniais nos saltos pelos telhados e a presença demoníaca é atestada por estrondos e pés de vento no teto.

O encontro desses dois imaginários distintos vai criando uma outra memória tanto no colonizado quanto no colonizador. As práticas dos colonos tornam-se também a dos colonizadores levando até mesmo au-toridades portuguesas como o ouvidor geral da cidade, Dr. Mello e Al-buquerque, e o governador João de Abreu Castelo Branco a recorrerem à índia Sabina para descobrir o que causava os males que os acometiam.

Esse encontro entre dois imaginários provoca um deslocamento de sentidos interessante, posto que um mesmo acontecimento, o da prática desviante, é considerado e avaliado pelo denunciante a partir de dois tempos distintos, ou seja, o fato é narrado a partir de uma memória pretérita, mas é avaliado ante o inquisidor a partir de uma memória

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atualizada, presente. Nesse sentido poderíamos mesmo considerar que a própria denúncia é um acontecimento discursivo, pois promove o en-contro dessa memória do pecado com a atualidade, cuja condição de produção é o conhecimento do Edital de Fé, que considerei como O acontecimento discursivo por excelência nessa análise.

Assim, ao denunciar a índia Sabina e, por via indireta, confessar ter participado de ritos pagãos, Domingos Rodrigues reportando-se ao tempo pretérito, tempo do fato ocorrido, afirma que “tendo notícia e sendo a todos notório que uma Índia chamada Sabina (...) tinha vir-tude para descobrir e remediar os males ocultos”, “mandou vir a dita sua sogra (...) para ver se podia remediar a moléstia da dita sua filha e mulher hoje dele denunciante”. Entretanto, referindo-se ao mesmo fato, em resposta ao inquisidor sobre o que pensava da dita índia não hesita em dizer que “a tem por uma fina bruxa e feiticeira porquanto não tem virtudes para poder descobrir cousas ocultas”.

E o mesmo processo se repete em outra denúncia: natural de Belém, afetado pela memória colonial e metropolitana, Manoel de Souza No-vais, diante da mortandade de seus escravos, atribuída por ele a “ma-lefícios e feitiçarias que se faziam, pela razão de se encontrarem pelas árvores de cacau uns embrulhos de cousas desconhecidas.”, afirma que depois de ter “se valido por várias vezes dos exorcismos da Igreja, teve notícia, e era público nesta cidade, que uma índia chamada Sabina (...) tinha virtude para descobrir e desfazer os feitiços. Obrigado de sua ne-cessidade, a mandou buscar (...)”.

Entretanto, questionado pelo inquisidor, atribui as adivinhações à “arte diabólica, pois não constava que ela tivesse ido antes a dita fazenda nem que conhecesse pessoa alguma da família dele denunciante, nem que ela tivesse virtudes tão adiantadas que Deus obrasse por ela aquela maravilha”. O fato realizado era considerado por Manoel Novais, uma maravilha, entretanto, realizado por uma índia, não poderia ser obra de Deus, senão diabo.

Quando a descoberta dos feitiços escondidos tem o papel de denún-cia propriamente dita, (momento em que é avaliado ante o inquisidor) o fato de a índia tê-los descoberto de forma muito fácil é atribuído não mais a virtudes. Mudada a condição de produção - nesse caso condição de produção que considerei referencial, já que a narrativa ocorre em um mesmo momento, mas tomando como referente tempos distintos – muda-se a atribuição de sentidos.

O tempo pretérito, que se refere ao momento em que buscou ajuda, tem o papel de justificativa para o recurso à prática pagã, tempo este fora do alcance do acontecimento discursivo produzido pelo Edital de Fé, visto que a denúncia refere-se a fato ocorrido anos antes da Visitação

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do Santo Ofício. Já o tempo presente aborda a mesma prática já com um olhar afetado pelo Edital. E é isso que vai fazer com que os sentidos difiram quando relacionados a um e outro tempo.

Esse acontecimento discursivo provoca um deslizamento de sentidos que vai do divino ao diabólico. Assim, nesse desencontro da memória colonial veem-se em disputa duas formações discursivas diversas. O su-jeito brasileiro vai, assim, constituindo-se nessa tensão entre a naturali-zação e a diabolização das práticas cotidianas coloniais.

Essa tensão discursiva caracterizada por sentidos em disputa reapa-rece quando, ao final de sua denúncia, Manoel Novais “declara que a dita índia na referida ocasião não fez ação alguma nem pronunciou pa-lavra que lhe parecesse supersticiosa”. A ressalva, aqui, permite perceber a contradição do sujeito colonial que, ao mesmo tempo em que cede à injunção do Edital de fé e denuncia (“por descargo de sua consciência”), procura abrandar a culpa denunciada ou confessada. Embora tal injun-ção só lhe permitisse atribuir as “maravilhas obradas” pela Índia Sabina à arte diabólica, não podia deixar de afirmar que, naquela ocasião, ela “não fez ação alguma nem pronunciou palavras que lhe parecessem su-persticiosas”, o que, de certa forma, o redimia de tê-la procurado.

Essa dialética entre bem e mal, esse imbricamento de formações dis-cursivas, de fé colonial e fé metropolitana é constitutiva do processo de identificação do sujeito brasileiro que se está construindo na colônia.

A permanência dos visitadores por seis anos na colônia intensifi-cou a relação da população com as questões da fé católica e foi criando “espaços transferenciais de identificação, constituindo uma pluralidade contraditória de filiações históricas” (Pêcheux, 1997b, p.55) perceptíveis nas denúncias que narravam os ritos e os discursos rituais, como é o caso de nosso exemplo privilegiado, os rituais praticados pela índia Sa-bina.

Nas três denúncias feitas contra ela foi possível identificar três formas rituais distintas e progressivas no que diz respeito a esses espaços trans-ferenciais. As duas primeiras dizem respeito a atos que foram praticados antes da instalação da mesa de visitação do Santo Ofício, e a última foi praticada durante o processo de visitação, o que significa dizer que a censura estava em plena atuação. Se a censura atuava, a resistência tam-bém funcionava abrigando em seus ritos as palavras, o gestual e os ritos católicos. É isso que vemos ocorrendo nos processos rituais praticados por essa índia, que vão de adivinhar sem “ação ou palavra supersticiosa”, fazer curas acrescentando a seus ritos o uso da água benta e a recomen-dação ao exorcismo da Igreja a, finalmente, fazer as mesmas curas ainda com o recurso da água benta e a recomendação dos exorcismos, mas acrescentado agora os elementos da Trindade e o sinal da cruz.

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O relato da eficácia das curas feitas pela índia alterava-se à medida que os elementos católicos se tornavam mais visíveis. Assim, em um pri-meiro momento temos a ressalva de que “a dita sua mulher não conse-guiu melhorar senão pelos exorcismos da igreja”, que a índia aconselhou que buscasse. Os procedimentos desviantes da índia, passíveis de serem denunciados, não obtiveram resultado, mesmo quando a água benta foi usada. Apenas os exorcismos, feitos na igreja e pela igreja, surtiram efeito.

Em um segundo momento, quando suas práticas estavam mais afe-tadas ou tornavam mais visíveis os elementos da fé católica, ocorre uma admissão parcial de eficácia: “não há dúvida que ele denunciante expe-rimentou algum alívio com as ditas curas...”. Entretanto, como esperado, dadas as condições de produção, a ressalva vem na sequência: “... ainda que não experimentou em se lhe aclarar a vista dos olhos com o sumo de uma erva chamada camaraã, que ela lhe foi buscar e aplicou para o dito fim”. Obteve alívio, mas não cura.

Não se pode deixar de considerar que nas denúncias feitas, a negação da efetividade dos ritos pagãos seja uma injunção. Afirmar que surtiram efeito seria colocar-se também no desvio; seria tornar-se um comparsa do demônio, segundo a visão inquisitorial. Negar, aqui, era imperioso.

Há, pois, um crescente imbricamento entre as práticas locais e me-tropolitanas; dos colonos e dos colonizadores; pagãs e cristãs. Assim, reconhecer a eficácia das curas mágicas vai se tornando possível, ainda que algum elemento cristão funcionasse como avalizador, permitindo que a força das práticas não cristãs prevalecesse, ainda que no desvio. Incorporar os elementos cristãos, aqui, é uma forma de resistência. In-corporar a fé da metrópole, ou melhor, elementos daquela fé, é a via pela qual se possibilita manter a fé e as práticas coloniais.

Podemos perceber os deslizes de sentidos também no juízo que é fei-to da índia Sabina por seus denunciantes, todos ancorados também nas condições de produção presente e pretérita ou referencial, já menciona-das. Assim, os dois primeiros denunciantes, ao justificarem ter recorri-do à índia, afirmam que o fizeram porque era “a todos notório que uma índia chamada Sabina (...) tinha virtudes para descobrir e remediar o que estava oculto”. Depois, tornando clara a força mediadora do Edital na produção de sentidos, afirmam não terem denunciado antes porque só passaram a refletir acerca dessa questão após a publicação do Edital de fé. Por fim, no momento de emitirem frente ao visitador o juízo que faziam dela, marcando a contradição entre o primeiro juízo, feito antes da injunção do Edital, um afirma que ela não tinha virtude para Deus obrar por ela aquela maravilha e que ela o fizera, pois, por arte diabólica e o outro diz que a tinha “por fina bruxa e feiticeira porquanto não tem virtudes para poder descobrir as cousas ocultas (...)”

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O efeito provocado pelo acontecimento discursivo Edital de Fé é pas-sível de ser observado nas denúncias e também nas confissões. A me-mória dos fatos relatados, quando no encontro com essa atualidade, tem seu sentido imediatamente ressignificado. É isso o que ocorre também aqui, quando o denunciante diz, como já mencionado, que não havia meditado, refletido ou considerado esse assunto a não ser quando ouviu o Edital. E, tendo-o ouvido, já não considera mais que a índia possua virtudes. De uma mulher abençoada por Deus, passa a ser uma “fina bruxa” e feiticeira.

Movimento diferente ocorre no exemplo da última denúncia. É im-portante lembrar que esta é relativa a fato ocorrido após a publicação do Edital de Fé, o que provoca uma mudança no modo como a injunção ocorre. Esse sujeito que vai buscar os préstimos da índia está já afetado pelos sentidos produzidos pelo Édito, mas o fato de tê-lo buscado no último ano da presença do Santo Ofício na colônia é uma pista de como as memórias, a resistência e as transferências vinham produzindo seus efeitos por aqui.

A despeito da presença inquisidora na colônia, Raymundo José de Bitencourt, o autor da última denúncia, “Lendo notícia que uma índia chamada Sabina (...) tinha préstimo para fazer curas,” e que costumava, “com efeito, fazê-las em várias pessoas, a mandou chamar”. Deixou claro em seu relato a contrariedade em fazer a denúncia, afirmando que só o fizera “por descargo de sua consciência” (assim como os demais de-nunciantes) e por ser obrigado por seu confessor, a quem deu parte do referido.

Na avaliação que faz da índia, não ocorre a contradição de sentidos entre o tempo pretérito e o tempo presente. Pelo contrário, mantém o sentido produzido inicialmente, dizendo que “dela não tem má opinião, porque sempre ouviu dizer que tudo o que ela faz é por virtude especial de uma cruz, que dizem tem no céu da boca. E não tem notícia de que seja mal procedida”. Percebe-se que a injunção age sobre ele em uma via transversa, porque inicialmente revela o ocorrido apenas a seu confes-sor e apenas pela ação deste é levado a denunciar. Denuncia, mas não ressignifica o sentido produzido inicialmente.

Pode-se considerar que há já, na colônia, uma outra memória, cujo encontro com a atualidade faz significar diferente de tempos atrás. Re-ferir-se aos ritos da índia já não é referir-se a algo totalmente estranho à fé católica. Como atribuir ao demônio a recomendação do uso de água benta? Como considerar feitiçaria a recomendação aos exorcismos da Igreja? Possuía a Índia Sabina, virtudes para “obrar maravilhas”? Outra memória se consolidou. Se havia estranheza nos ritos realizados, isso não provocou repulsa nem demonização por parte do português Ray-

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mundo Jose, visto que tudo o que ela fazia “era por virtude especial de uma cruz que dizem tem no céu da boca.”

Em um espaço temporal de quatro anos, a índia deixa de ser julgada como feiticeira, como alguém que não possuía virtudes para ser classi-ficada como alguém que tinha uma virtude especial, que lhe permitia fazer as curas e adivinhações pelas quais era conhecida e divulgada na cidade, tendo, inclusive, atendido ao alto escalão da colônia portuguesa, como foi o caso do Governador e do Ouvidor Geral.

Água benta, exorcismos, sinal da cruz, Pai Nosso, Ave Maria. Sím-bolos e rituais católicos de reafirmação da fé, de circunscrição do sagra-do, deixam seus lugares habituais para significarem em um lugar outro, confundindo posições de sujeito, funcionando na transferência de me-mórias, porque “não há ritual sem falhas enfraquecimento ou brechas”. (Pêcheux, 1995, p.301) Uma cruz no céu da boca, e a “arte diabólica” é passível de tornar a ser vista como virtude por força da memória simbó-lica marcada no corpo.

Não se pode deixar de considerar que essa marca no corpo, a cruz no céu da boca, é uma construção discursiva. Os préstimos que a índia tinha de fazer curas, “era por virtude especial de uma cruz que” diziam ter “no céu da boca”. A marca invisível do símbolo cristão ganhava visi-bilidade discursiva na memória colonial tornando-se um saber notório e incontestável, confirmado pela eficácia das curas de Sabina que, se-gundo o denunciante, “(...) tinha préstimo para fazer curas, e as fazia com efeito em várias pessoas”. Isso é confirmado pelos padres ratifican-tes ao final da denúncia que, acerca das curas que relatara Raymundo José, afirmam que “se lhe podia dar crédito por ser notório em toda esta cidade que a dita Índia é costumada a fazer tudo e muito mais do que declarou o denunciante”. O mistério de uma cruz gravada no céu da boca era o fiador da tão questionada virtude de Sabina para obrar “ma-ravilhas”. Fragmentos de rituais cristãos e pagãos, costurados em uma religiosidade nascida da resistência, gerada na censura, fortalecida na memória.

Ao catolicizar aquilo que a Inquisição condenava, ao incorporar as palavras consideradas sagradas das principais rezas, bem como o uso de elementos sagrados, como a água benta, e atribuir a esses elementos a eficácia das curas, criava-se uma possibilidade de manutenção das prá-ticas pagãs, que sobreviveram na repetição dos signos católicos a elas incorporados, possibilitando, assim, a sedimentação de memórias

Não poderia deixar de apresentar ainda uma última questão, referen-te aos relatos que chamei de fantásticos, assim considerados pelo caráter sobrenatural que era a eles impresso nas narrativas das denúncias. Se-gundo Laura de Mello e Souza (1993, p.178):

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(...) entre o povo lusitano, a ideia do conventículo noturno, as concepções acerca do voo e da metamorfose, o fantasma do in-fanticídio marcaram presença, mesmo se de forma esparsa, de-sarticulada e fragmentária. Umas tantas alusões às danças demo-níacas e à reverência ante o demo sugerem conexões entre este imaginário e o misterioso mito do sabá.

Isso, aliado à frequência com que ocorreram tais relatos fantásticos e por me parecer que a crença nessas histórias era compartilhada por colonizador e colonizado – visto que em nenhum momento houve da parte dos visitadores ao ouvi-las demonstração de surpresa ou descren-ça – fez com que merecessem minha atenção.

Nessas narrativas – que chamei de discurso sabático colonial – é pos-sível identificarmos o trabalho de construção de sentidos da Igreja ao naturalizar e dar veracidade e crédito à capacidade de comunicação e comércio com o demônio e à sua participação na vida e no cotidiano das pessoas, agindo como adivinho através daqueles que com ele se comu-nicavam. A participação ativa do diabo nas cerimônias relatadas, bem como a referência a quartos escuros e saltos pelos telhados, semelhantes aos voos das feiticeiras, demonstra como a memória demonológica lu-sitana estava presente na memória colonial, memória heterogênea, na qual encontramos filiações de sentidos do sabá e dos ritos indígenas ressignificados, configurando, assim, um traço da memória colonial.

Considerei os saltos pelos telhados, os pés de vento e as vozes incóg-nitas não referenciáveis como uma ficcionalização das denúncias.

Por mais que esses fatos fantásticos se afigurassem como uma ficção, a solenidade da denúncia os revestia de um caráter de verdade. Mais rei-teradas as histórias, mais o tribunal as valorizava como fatos verídicos e incontestáveis, como indícios de desvios de fé, como prova de que os de-nunciados eram partícipes de ações demoníacas e praticantes de feitiçarias.

Entendemos, assim, essa ficcionalização, fruto da memória lusitana impressa na memória indígena e escrava negra, como um meio para legitimar a definição de povo rústico e bárbaro, carente de quem gover-nasse seus corpos e suas almas.

Esse jogo, em contrapartida, fazia ecoar uma memória lusitana na colônia, produzindo sentidos e construindo uma memória local, híbri-da, que se consolidaria como uma memória tipicamente colonial, iden-tificada com o povo que aqui se perpetuaria, e que, afetada ainda por outros sentidos e outras memórias viria a constituir seus processos de identificação.

Da ficção à fé, das práticas pagãs às cristãs, das práticas cristãs às prá-ticas sincréticas, é possível mapear, através das denúncias feitas à mesa

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do Santo Ofício, memórias de três continentes que se tornaram, através da resistência processada pelo viés da incorporação e transformação, uma só memória: a memória do sincrético povo brasileiro. Memórias que se fundem, se transformam e possibilitam gestos de identificação desse povo. Memórias que sobreviveram, que individualizam conferin-do identidade, fazendo com que muitas vezes, o cidadão comum sequer se lembre que essa memória que é uma e que o identifica, um dia foram várias em disputa por prevalecimento e sobrevivência, mas que não se amalgamaram indivisivelmente e vivem, ainda hoje em disputas de po-der.

Notas1 Godoi, G. Grão-Pará e Maranhão em Tempo de Graça: memórias, transferência e resistência nos processos constitutivos de identificação de um sujeito brasileiro. 2012, Tese de doutorado IEL-UNICAMP.2 SARAIVA, F. R. Dos S. Novíssimo dicionário latino-português. 10.ed. Rio de Janeiro/Belo Horizonte: Garnier, 1993.3 O dicionário Michaelis on line registra também como sinônimo de ladino o “Mestiço ou negro que aprendia e sabia qualquer ofício ou arte”. 4 Oficial leigo da inquisição Ibérica. Cf. VAINFAS,R. Dicionário do Brasil colonial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

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Palavras-chave: Santo Ofício, discurso, identidade brasileiraKey-words: Holy Office, discourse, Brazilian identity

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ESTUDO DO CAMPO DE CONHECIMENTO FONOAUDIOLÓGICO E A CLARIFICAÇÃO

DO SEU OBJETO CIENTÍFICO

Renata Chrystina Bianchi de BarrosUnicentro – Campus Irati

RESUMO: Através de um percurso histórico de análise, este artigo propõe um debate acerca do objeto científico do campo de conhecimento fonoau-diológico, buscando ampliar a compreensão sobre a forma material da clínica a fim de ponderar sobre pontos nodais do seu funcionamento, ins-taurando um espaço material e simbólico próprio para o debate científico sobre a ciência fonoaudiológica – a clínica terapêutica.

ABSTRACT: Through a historical procedure of analysis, this paper pro-poses a debate about the scientific object in the field of knowledge of speech-therapy, seeking to broaden the understanding of the material form of the clinic in order to think over some nodal points of its mode of operation, establishing a material and symbolic space for the scientific debate on this science – the therapeutic clinic.

IntroduçãoConsiderando a urgência de se pensar epistemologicamente o cam-

po de conhecimento fonoaudiológico a fim de contribuir com a desco-berta do seu objeto científico para que a prática científica seja elaborada em função de um objeto próprio, e não de outra clínica próxima, é do seu interior que nos colocamos para debater a sua própria práxis e sua possível teoria singular elaborada por pares, fundamentando e compre-endendo sua história e caminhos ainda a serem trilhados.

As questões que instigam a elaboração de novos estudos e o debruçar sobre esse campo de conhecimento a fim de aprofundarmo-nos para novas descobertas das suas singularidades científicas se dão por ser a fonoaudiologia um campo de conhecimento originado como discipli-na constituída no entremeio de outras ciências possuidoras de objetos

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científicos próprios, e por esta ainda não reconhecer o seu próprio obje-to científico. Com o enfrentamento proposto colocamo-nos a observar como (e quanto) a produção prática e teórica do profissional e do pes-quisador dessa área se perde em meio ao transporte e transferência de noções de outras ciências (cf. Barros, 2011) comprometendo a relação necessária entre sujeito e objeto, impedindo o retorno metódico da te-oria ao objeto científico de referência, já que não há um objeto para o qual se voltar.

Assim, pensamos na importância de se manter vivo o debate da com-preensão da singularidade da clínica Fonoaudiológica a fim de fomentar teoricamente sua práxis, através do aprofundamento das definições e características dos seus métodos, instrumentos, do seu sujeito de inter-venção, colaborando com uma construção de arquivo que aponte para a definição de um objeto científico, já sabido existente, mas ainda não conhecido pela ciência que constitui.

O desvelamento do objeto científico desta disciplina, que desponta teórica e praticamente na elaboração da sua práxis, certamente contri-buirá para o direcionamento da atuação do profissional e do pesquisa-dor fonoaudiólogo em meio ao transporte e transferência1 de noções de outras ciências, colaborando para o delineamento científico da área com a possibilidade do retorno metódico da teoria ao objeto científico de referência. Atualmente, a não consideração da existência de um ob-jeto científico que possibilite o retorno metódico bidirecional da clínica terapêutica fonoaudiológica para uma produção teórica própria da área coopera negativamente para a sua práxis, promovendo uma práxis tera-pêutica fragmentada em áreas anátomo-biológicas do paciente, incitan-do constructos teóricos que fortalecem processos de medicalização em detrimento da consideração da linguagem (cf. Tesser, 2006).

O risco da medicalização da práxis fonoaudiológica sobre o paciente advém da sua história. Este é um campo de conhecimento construído no tangenciamento entre a medicina, a psicologia, a linguística e a edu-cação. Não existe outra disciplina que tenha sido originada no entre-meio de outras grandes disciplinas científicas e clínicas como estas. E é por esta, entre outras razões, que propomos o estudo epistemológico da fonoaudiologia, fundamentados sobre a base dos estudos epistemo-lógicos das ciências médicas e da saúde, das ciências humanas e sociais, porém, voltados para o levantamento científico da inscrição da fonoau-diologia partindo de estudos contemporâneos como o fizeram Casari e Lopes (2006) e Ostiz (2010).

Dessa forma, com a presente pesquisa, objetivamos debater sobre o objeto científico fonoaudiológico, tomando o “conhecimento pro-posicional” (cf. Dutra, 2010) através do estudo do Tesauro do campo

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científico da fonoaudiologia para compreender, sob a luz da teoria da Análise de Discurso (cf. Pêcheux, 1997 e Orlandi, 1996a, 1996b, 2012), a sua forma de apresentação através dos descritores usados em trabalhos publicados e recentes em uma revista de significância para a este campo científico.

O espaço material da clínica fonoaudiológicaOcupando um espaço próprio em paralelo às clínicas médicas e psi-

cológicas, sendo, o objeto da primeira, a doença que incide no corpo humano e, da segunda, a subjetividade do indivíduo ou do sujeito em sofrimento psíquico (cf. Barros, 2011), qual é o objeto de intervenção da clínica fonoaudiológica para o qual se elaboram tantas técnicas e se constroem instrumentos e ferramentas se há, na sua configuração, o acontecimento de divisões em campos de atuação fazendo parecer que para cada campo há um objeto de intervenção diferente? E para quem?

A fonoaudiologia clínica pode ser separada em quatro áreas de espe-cialização2: audição e equilíbrio, voz, motricidade orofacial e linguagem. São estas quatro especialidades voltadas para áreas de estudo que po-dem ser diretamente relacionadas ao corpo de indivíduos, ou sujeitos – fazemos aqui um alerta para que não se pense que, apesar de podermos relacionar todas estas áreas com lugares anátomo-fisiológicos do corpo humano (audição e equilíbrio: órgãos da orelha externa, média e inter-na e do sistema vestíbulo-coclear; voz: órgãos dos aparelhos fonatório e respiratório; motricidade orofacial: órgãos do aparelho fonatório e di-gestório; linguagem: córtex cerebral, órgãos do sistema motor), o corpo é o objeto de intervenção da fonoaudiologia. Este é objeto da medicina clássica que, ao elaborar métodos e instrumentos para a ação sobre o corpo descobre um novo objeto científico – a doença.

Aqui versamos sobre a forma material da clínica a fim de ponderar pontos nodais do seu funcionamento instaurando um espaço material e simbólico próprio para o debate científico sobre a ciência fonoaudio-lógica. Para nós, o paciente da clínica fonoaudiológica é sujeito. Assim o compreendemos porque ocupamos um lugar teórico (Análise de Dis-curso) que concebe que

todo sujeito já é sujeito porque é interpelado pela ideologia, pela língua e pela história [numa] sujeição àquilo que é dos sentidos... é pelo assujeitamento à língua, na história, que o homem se sub-jetiva, significando e sendo significado na medida mesma em que as relações discursivas e sentidos são mobilizados (BARROS, 2004, p.57).

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Este lugar de compreensão do sujeito transforma a interpretação so-bre o paciente, configurando a prática sobre o objeto de intervenção. Ou seja, a práxis terapêutica é transformada pela força teórica anteriormen-te mobilizada. É esta uma prática que só existe através de uma ideologia e “só há ideologia por e para sujeitos” (cf ALTHUSSER, s/d apud HEN-RY, 1992, p.23).

A força da escolha da denominação do paciente enquanto indivíduo ou sujeito implica no comprometimento teórico, analítico e prático com um ou outro espaço teórico, porque estas noções alicerçam as discipli-nas científicas, assim como seus objetos científicos e de intervenção afe-tam a prática terapêutica.

Do mesmo modo, sem nos prolongar sobre cada um dos fundamen-tos das ciências humanas, pensamos que neste processo de produção do conhecimento próprio da clínica, o terapeuta que se põe a pensar o paciente da sua clínica como indivíduo também habita teorias científi-cas que contém em seu substrato indícios que direcionam a sua prática. Porém, o objeto de intervenção não se modifica. O que muda em função das teorias científicas é o paciente sob as ideias de sujeito ou de indiví-duo, transformando o modo de funcionar as teorias através dos métodos de intervenção. Há a consideração de um ou mais fundamentos para a indicação da natureza deste sujeito ou indivíduo: a ideologia e a histó-ria, para o sujeito da Análise de Discurso; a cultura e as relações sociais, para o sujeito do sócio-interacionismo; o inconsciente, para o sujeito da Psicanálise; o comportamento humano na relação com o ambiente, para o sujeito da teoria do desenvolvimento; a anatomia e a fisiologia sadias e doentes, para o indivíduo da medicina; e o ambiente com estímulos sobre o organismo humano, para a mudança do comportamento, para o indivíduo do behaviorismo.

Essa transferência das ideias e saberes de um campo científico para outro resignifica os sujeitos, objetos e instrumentos sobre os quais há ação numa práxis terapêutica e é a interpretação desses saberes e práti-cas pelo profissional que os recebe, voltados para a posição que ocupa num espaço clínico outro para agir sobre o seu objeto de intervenção, que transforma os sentidos.

Com esse novo funcionamento, a clínica fonoaudiológica é posta em paralelo a outras duas grandes clínicas que são partes integrantes da sua configuração. Há, portanto, nesta configuração, uma estrutura que lhe é singular. Não existe outra disciplina que tenha sido originada neste en-tremeio. Tomamos o exemplo da aproximação da fonoaudiologia com a linguística.

Para Barros (2004), “enquanto prática de reabilitação, a fonoaudio-logia, num perfil da área paramédica, foi condicionada à figura do mé-

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dico. A Medicina e a Psicologia, ciências estabelecidas e já consolidadas, legitimaram a doença da linguagem propondo uma conduta corretiva (p.15)”. A fonoaudiologia iniciou a sua prática e a construção do seu referencial teórico pautada em ideais corretivos, como aponta o estudo realizado por Berberian (2001), que encontra a formulação desse cam-po de conhecimento fundamentada em referenciais linguísticos do es-truturalismo, em meio ao movimento político da década de 1920, que visava a eliminação das diferenças sociais aparentes na língua nacional, caracterizando a fonoaudiologia como ―profissão responsável por prá-ticas corretivas da fala.

Assim, o fonoaudiólogo, compreendendo a linguagem como estrutu-ra, desenvolvia seu trabalho perseguindo a possibilidade de caracterizar e descrever as patologias da linguagem. Sua atuação estava intimamen-te ligada às ideias de correntes teóricas como o inatismo e o estrutu-ralismo. Esta prática é comumente nomeada de clínica tradicional ou tradicional-hegemônica. Após a década de 1970, a visão da linguagem como comunicação foi transformada, e a fonoaudiologia começou a questionar os conceitos de sujeito e linguagem adotados na medida em que a Linguística avançava em suas reflexões, dando ênfase ao sujeito no processo de desenvolvimento da linguagem e ao da língua. A este modo de prática clínica chamaremos de clínica discursiva. Utilizaremos aqui a caracterização oferecida por Zaniboni (2007) para a prática fonoaudio-lógica tradicional-hegemônica:

(...) – trata-se dos estudos que, fundamentados essencialmente na literatura médico-biologicista, com princípios normativos e cor-retivos da linguagem, tem suas idéias e seus ideais predominan-do e perdurando frente a outras propostas teóricas. São aqueles estudos que, fundamentados em concepções positivistas de (se) fazer ciência, preocupam-se em apresentar métodos empírico--objetivos para avaliar, quantificar e, assim, generalizar a forma de funcionamento da linguagem... (ZANIBONI, 2007, p.13).

Diferentes autores produziram materiais demonstrando sua preocu-pação com a manutenção dos ideais médicos patologizantes e para com o apagamento das especificidades daquilo que torna o homem sujeito no mundo (Bolaffi, 1994; Lacerda, 1995; Barros, 2004; Bordin, 2006; Za-niboni, 2007; Fedosse , 2008; Labigalini, 2009; Navarro, 2009). Apoia-dos em Henry (1992) ressaltamos que, inclusive no interior da própria linguística, em cada uma dessas práticas, ou destes estudos, está alçada uma diferente linguística. Paul Henry (1992) destaca que em linguística

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(...) perfilam-se concepções diferentes do que se entende por ci-ência em geral e o que se entende por cientificidade na linguística em particular (...). O lugar atribuído ao sujeito nas teorias linguís-ticas comanda a posição tomada com relação ao sentido, naquilo que se entende por língua. (HENRY, 1992, p.113).

Em meio à história da fonoaudiologia, pensar no interior/no espaço da Análise de Discurso em um campo do conhecimento que há pou-co fez seu primeiro contato com ela não é tarefa fácil. Compreender e aceitar a forma com que a Fonoaudiologia percebe as alterações da linguagem com os instrumentos da Análise de Discurso pode ser, ini-cialmente, incômodo, uma vez que vimos percorrendo um caminho que privilegia aquilo que é palpável na clínica médico-terapêutica (cf. Fou-cault, 2003).

Com base na historia da fonoaudiologia, do seu advento à con-temporaneidade, podemos afirmar que abdicar do confortável para o trabalho clínico, isto é, daquilo que faz parecer que somos capazes do controle do que dizemos, não é simples. Aqui, conforme formu-lamos anteriormente, pensamos a fonoaudiologia como uma dis-ciplina de intersecções, inicialmente transferindo instrumentos de outras ciências, significando para o seu próprio fazer, com as ideias da medicina para o trabalho com o corpo, da psicologia para o tra-balho com a subjetividade e também com o conhecimento e os ins-trumentos da linguística para o trabalho com a língua. Porem, é pre-mente dizer que a união dessas ideias tem sido ainda utilizada para a elaboração de técnicas que proporcionam perceber um homem/sujeito fragmentado, recortado, com marcas específicas da divisão dos territórios, uma vez que estas clínicas apresentam característi-cas epistemológicas, físicas, simbólicas e práticas diferentes. Assim, pensamos que a reflexão que propomos aqui se faz urgente, uma vez que podemos perceber que, no campo de conhecimento fonoaudio-lógico, ainda não se reflete sobre o que pode lhe ser próprio quando do uso de instrumentos para pensar o seu objeto e os seus métodos de atuação.

Indiciando a necessidade de estudo do tesauro do campo de conhecimento fonoaudiológico3

Pensamos a fonoaudiologia instaurada como um campo científico que, como aponta Bourdieu (2004, p.20) “[a noção de campo] está aí para designar esse espaço relativamente autônomo” e enquanto tal, se coloca na posição de defender ou transformar o seu próprio campo a fim de impor confronto e visibilidade perante seus pares.

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Em percurso histórico sobre o nascimento da fonoaudiologia Ber-berian (2007) constatou que sua origem foi marcada por uma demanda social e política e vem pensando, desde então, a sua práxis ao redor de uma perspectiva moldada por outros campos de conhecimentos autô-nomos e investe pouca atenção àquilo que é da sua própria construção e formulação própria (cf. Cunha, 2000; Barros, 2004; Barros, 2011).

Um importante problema relacionado a esta condição foi apresen-tado por Cunha (1997) orientando que ao ser descrita como uma disci-plina de empréstimos, a fonoaudiologia acaba por reduzir a sua prática clínica àquilo que pode ser mensurado e analisado organicamente uma vez que, tendo a medicina como fundamento da sua formação, o profis-sional percebe seu sujeito de intervenção constituído prioritariamente de matéria orgânica.

Em contrapartida, sabemos que a fonoaudiologia tem ampliado seus espaços de intervenção pensando não somente em demandas sociais, mas, sobretudo, fundamentando-se em estudos teóricos realizados no próprio interior do seu campo de conhecimento, e na relação com as instituições e outros campos. Tendo isso posto, constatamos essa afir-mação ao nos deparar com o posicionamento de instituições sociais de regulação e fomento de pesquisa, especificamente a Comissão Especial de Estudos CNPq, Capes, Finep (2009/2012), que graduam a fonoau-diologia como área (campo) de conhecimento, como segue:

Para nós, isto é resultado da ampliação do arquivo de produção científica fonoaudiológica que vem registrando seus gestos através de pesquisas que apontam a existência de um sujeito, de um método e de instrumentos para a sua práxis, além da realização de pesquisas que objetivam o desvelamento dos seus elementos científicos (BARROS, 2011), porém é ainda necessário que se aprofundem os estudos sobre esse campo a fim de contribuir para o direcionamento da sua práxis e para o fortalecimento da fonoaudiologia como um campo de conheci-mento autônomo e provocativo às demais ciências.

Tendo pontuado nossas metas, clarificamos a proposta de nos orientar pelos estudos fundamentais das ciências da saúde, das ciên-cias humanas e sociais, realizando uma pesquisa que objetiva explorar e descrever os registros das pesquisas científicas fonoaudiológicas, abor-dando qualitativamente os dados obtidos para a interpretação sob a luz da Análise de Discurso.

Dessa forma, ocupamo-nos com o estudo dos modos de se fazer ci-ência na fonoaudiologia a fim de proporcionar maior familiaridade com o registro da ciência fonoaudiológica através de seus descritores e de apresentar características importantes que representam hoje este campo científico no domínio da ciência.

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Como estratégia, a pesquisa, exploratória, foi realizada junto ao ban-co de dados SciELO, no qual encontra-se indexada a Revista da Socie-dade Brasileira de Fonoaudiologia online. Optamos por explorar esta publicação por tratar-se de documento de uma sociedade científica que é inclusive responsável pela elaboração, produção e execução dos Con-gressos Brasileiros e Internacionais de Fonoaudiologia, podendo assim ser considerada uma importante entidade de representação da produção científica deste campo. O corpus desta pesquisa foi, portanto, composto por publicações da Revista da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia no ano de 2010, 2011 e 2012.

Considerando o estudo de Bocato e Fujita (2006), a fonoaudiologia não está completamente considerada e articulada com os descritores de saúde e está hierarquizada na categoria de saúde pública, mas não so-mente. Os termos comuns à fonoaudiologia estão também hierarquiza-dos em outras categorias “sendo as principais a anatomia, doenças, téc-nicas e equipamentos, psicologia e psiquiatria, antropologia, educação, sociologia, e fenômenos sociais, entre outras” (BOCATO & FUJITA, 2006, p.20). Estes descritores devem representar os campos conceituais das comunidades que servirão.

Apesar de Bocato e Fugita (2006) recomendarem à BIREME4 a cons-trução de uma categoria própria para a fonoaudiologia, por conter nes-ta, “características específicas” (p.28) dentro da área da saúde, pensamos que a atual apresentação do DeCS representam o que vimos debatendo ao longo deste texto, até então.

Ao nos deparar com a escolha por palavras-chaves nos estudos pu-blicados na Revista da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia podemos visibilizar os deslizamentos do campo de conhecimento da fonoaudio-logia para a área da saúde, direcionada para a dicotomia saúde-doença. Entendemos claramente a necessidade, muitas vezes, da escolha de pa-lavras voltadas para o campo da doença, uma vez que a fonoaudiologia se coloca a terapeutização de sujeitos em processos de doença, seja ela mental, vestibular ou vocal, porém os descritores anormalidade e trans-tornos (para citar apenas dois) têm sido utilizados tanto para a descri-ção de pesquisa e ação voltados para aspectos especificamente orgânicos quanto para outras que são sociais e de linguagem. Ao fazer uma busca pelos descritores anormalidade e transtornos, o DeCS apresenta os se-guintes grupos de definição:

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O autor, ao optar por estes descritores, e não outros, para descre-ver parte ou o todo do material a ser publicado, insere-se politicamente num campo semântico que direciona a sua produção para determinado espaço teórico e prático. Na condição de produção acima, frente a es-colha dos descritores apresentados, os autores optam por palavras que nos deslizam os sentidos para as noções da patologia, isto é, da doença, condição própria do estudo e práxis da medicina.

Conforme apresentado por Bocato e Fugita (2006), a fonoaudiologia, ao ser agrupada hierarquicamente em áreas cientificamente estabelecidas na área da saúde, acaba por ter apagada sua singularidade enquanto campo científi-co, afastando-se daquilo que se propõe (cf. Barros, 2004, 2011), inclinando-se para a manipulação de objetos científicos outros, que não o seu próprio.

Campanatii-Ostiz e Andrade (2010, p.398) acreditam que “quando uma dada comunidade científica não desenvolve a sua própria termino-logia técnica e científica, vê-se obrigada a usar alguma outra terminolo-gia de área mais desenvolvida para a comunicação de seus conteúdos”. Para nós não é o fato de uma comunidade ser mais ou menos desen-volvida que a impelem a utilizar a terminologia de outras comunidades científicas, mas o fato dessa comunidade não ter claro o seu real papel frente aos fenômenos científicos. Para a fonoaudiologia, especificamen-te, por não haver a clarificação do seu objeto científico e, assim, a deli-mitação da sua objetividade frente ao lugar que ocupa.

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Esta objetividade não está diretamente ligada a uma ciência posi-tiva, mas àquela que estabelece um retorno metódico bidirecional no objeto científico ao objeto de intervenção e à base teórica ali instaurada para a elaboração e execução da práxis terapêutica. É preciso saber para quem se elabora um processo terapêutico, sob qual sujeito e ideologias teóricas partindo de um ponto que favoreceu a escolha por esta clínica terapêutica e não outra. A partir dessas articulações pode-se então fazer a escolha dos instrumentos e métodos terapêuticos a serem utilizados.

E não sejamos ingênuos ao ponto de pensar que a escolha de um ou outro descritor de estudos para indexação de bibliografia não interfere na elaboração de processos terapêuticos. São estes importantes docu-mentos que fomentam a práxis fonoaudiológica, assim como o contrá-rio também é possível.

Campos de sentido, Campos de conhecimento A história da constituição da fonoaudiologia, como já citado ante-

riormente, corrobora para esta aparente aproximação do objeto de ci-ência e intervenção fonoaudiológica dos objetos de outras disciplinas na sua prática clínica, sendo observada na escolha de descritores por autores fonoaudiólogos, mas especialmente se dá por estar, na relação de complementaridade entre as ciências aqui relacionadas, o ponto de convergência para se pensar o homem no interior desta clínica – um ser biológico, psicológico e social. Esta condição de sujeito complementar, constituído por aspectos não apenas biológicos, ou sociais ou psicológi-cos é necessária para a fonoaudiologia.

A atuação fonoaudiológica se dá na estreita relação do corpo anáto-mo-fisiológico com o próprio da linguagem sobre um objeto de inter-venção que não é constituído complementarmente numa relação direta do corpo com a linguagem.

Por não haver corpo que não esteja investido de sentidos “constituí-do por processos nos quais as instituições e suas práticas são fundamen-tais para a forma como ele se individualiza” (ORLANDI, 2012, p.93), o corpo sobre o qual a clínica fonoaudiológica intervém está relacionado com a própria instituição que ele habita enquanto sujeito-paciente. Por-tanto, porque é pensado no interior da clínica fonoaudiológica, a práxis fonoaudiológica não é realizada sobre o objeto de intervenção sujeito, mas sobre o corpo investido de sentidos, marcado por uma condição própria da linguagem, da sua não transparência.

Isto que chamamos de corpo-sentido (cf. Barros, 2011) não é o corpo na forma empírica, no qual se localiza o objeto de intervenção da fono-audiologia. Corpo-sentido é o modo como o corpo significa num gesto discursivo (comunicativo). O sujeito da clínica fonoaudiológica, ao pro-

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curar por atendimento terapêutico fonoaudiológico, traz consigo o seu corpo investido de sentidos: da boa-má comunicação, do bom-mau fa-lante, do sujeito-paciente que se subjetiva porque tem estabelecido rela-ções de sentido únicas. Num gesto de procurar atendimento terapêutico fonoaudiológico, simboliza o desejo, a sua vontade de ruptura com esta forma de relação com a sociedade. É este corpo investido de sentidos o objeto de intervenção da clínica fonoaudiológica – o corpo-sentido, o objeto de intervenção desta clínica.

Devemos aqui nos lembrar a que se propõe a fonoaudiologia: à tera-pêutica do indivíduo ou sujeito que procura por atendimento fonoau-diológico por apresentar queixas e questionamentos acerca da comuni-cação (cf. quadro 1), através de métodos que possibilitem a “pesquisa, prevenção, avaliação e terapia fonoaudiológicas na área da comunicação oral e escrita, voz e audição, bem como em aperfeiçoamento dos pa-drões da fala e da voz” (Lei 6965/81).

O paciente que procura por atendimento fonoaudiológico será en-tão submetido a práticas que visem a prevenção, a reabilitação e/ou o aperfeiçoamento das condições do seu corpo para a comunicação. Este não é um corpo – anatômico e fisiológico, e não é qualquer corpo – de qualquer lugar e espaço. Este é o corpo de um homem (indivíduo ou sujeito) que se relaciona com o mundo, que procura intervenção fono-audiológica em espaço clínico próprio da terapêutica, para a adequação das condições anátomo-fisiológicas para a comunicação através deste aparato corporal, porém, incondicionalmente, sobre as considerações da relação deste corpo com o funcionamento da linguagem.

A linguagem é própria do homem, e isto o diferencia do animal (cf. HENRY, 1992). Esta formulação – do homem em oposição ao animal – é uma máxima da compreensão das diferentes áreas da ciência. Confor-me aponta Henry (op cit), a existência da linguagem, “invocada como apoio a uma irredutibilidade do humano à animalidade” (HENRY, 1992, p.115) direciona para uma problemática dos estudos do homem (da linguagem) nas ciências humanas e nas ciências sociais, que chama de complementaridade, trazendo aos estudos das áreas o acontecimento de mais de um objeto de estudo científico. Henry (idem, p.114) resume esta condição com uma frase: “do humano, tudo aquilo que não é de ordem do psicológico, é social reciprocamente”.

O que para o autor é um problema – o hiato existente na relação do psicológico e do social, por tratar de compreender o lugar da lin-guística para o estudo da linguagem −, para nós é necessário, pois nesta relação de complementaridade está a compreensão do sujeito e do objeto de intervenção5 da clínica fonoaudiológica, somados a um corpo anatômico e fisiológico (humano). Na fonoaudiologia o

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homem é um ser biológico, psicológico e social e, acrescentamos, afetado pela história e pela ideologia.

Pensamos que, independente da especialidade da clínica fonoaudio-lógica, é para o trabalho com a linguagem que a fonoaudiologia elabora a sua prática, de maneira intimamente relacionada ao corpo do sujeito (ou indivíduo). Em nome da prevenção, da reabilitação e/ou o aperfei-çoamento da comunicação humana (cf. Lei 6965/81). A capacidade e as habilidades de comunicação do homem são terapeutizadas para a ade-quação da sua existência no espaço social, para as relações na sociedade.

Pensamos que esta é uma singularidade da clínica fonoaudiológica. Esta clínica tem em sua constituição um sujeito e um objeto científico6 e de intervenção, que são próprios deste espaço, funcionando ideológica e praticamente e que independem da materialidade referida pelas espe-cialidades fonoaudiológicas. Há um sujeito na clínica fonoaudiológica para a adequação das condições de um corpo-sentido para significar comunicativamente. Sobre este objeto de intervenção são praticadas atividades elaboradas com objetivos específicos de cada área de espe-cialização.

O especialista em voz poderá realizar práticas de adequação do siste-ma respiratório e vocal, assim como, das condições articulatórias para a expressão vocal. Na área de audição e equilíbrio o terapeuta poderá agir com mensurações audiológicas, com seleção e adaptação de aparelhos de amplificação sonora individuais para a facilitação da audição. Para a adequação das condições anatômicas e de funcionamento do complexo orofacial, o fonoaudiólogo selecionaria atividades para a isotonia mus-cular, massagens e estimulação de pontos e zonas motoras da face para a adequação anátomo-funcional da face para a fala, e o especialista em linguagem poderá fazer a sua prática intimamente relacionada à estru-tura e ao funcionamento da língua (enquanto entidade representativa de uma nação) pela leitura e pela escrita, para a adequação da comuni-cação escrita (compreensão e expressão comunicativas).

A clarificação do objeto de intervenção fonoaudiológica envolve o problema com o qual a fonoaudiologia se depara ao discutir a sua singu-laridade enquanto disciplina prático-científica. A explicação sobre o seu objeto tangencia os objetos de intervenção da medicina - o corpo para as práticas da audiologia e equilíbrio, motricidade orofacial e voz, e da psicologia. A subjetividade para a prática na área de linguagem, porém, não se confunde.

O homem é um Ser da linguagem, do simbólico, das relações. Para que o sujeito possa comunicar é preciso que ele considere (de forma conscien-te ou não) diversos aspectos: anatomia e fisiologia do corpo humano, a língua (estrutura e acontecimento), a audição, a fala (aspectos prosódicos,

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articulatórios etc), a voz (pitch, loudness, projeção etc), o interlocutor, o espaço que ocupa, as formas-sujeitos-históricas etc. Não é possível haver em situações de comunicação, enquanto condição de produção, separação de elementos que interdependem para a comunicação. Inclusive quando há a falta de qualquer um deles, ou quando há falhas no seu aconteci-mento e é com base nestas afirmações que reafirmamos que é na relação de complementaridade científica que está a compreensão do sujeito e do objeto de intervenção da clínica fonoaudiológica, somados a um corpo anatômico e fisiológico (humano), constituindo um sujeito bio-psico--social para a fonoaudiologia. Porém, o seu objeto de intervenção não é uma somatória de elementos advindos de ciências e áreas afins, pois o pensamos no interior de uma clínica singular – a clínica fonoaudiológica, assim como não o é seu objeto científico.

Para nós, o objeto de intervenção da clínica fonoaudiológica é o corpo que significa, pois está investido de sentidos – corpo-sentido. Pa-rafraseando Orlandi (2011), consideramos que o sujeito é individuado num mecanismo de interpelação do Estado pela ideologia, afetado pela língua e pela história em condições próprias de uma sociedade capi-talista. Num modo de significar pela linguagem, ele simboliza em seu corpo marcas da relação com a sociedade. E é por existir esta relação que, pensamos, não pode ser pensada fora de suas condições políticas e ideológicas.

As condições políticas e ideológicas que referimos são aquelas em que circulam os sentidos da “boa comunicação”, ou seja, da ilusão da transparência da linguagem e dos sentidos que faz parecer aos sujei-tos que aquilo que se diz é inteiramente compreendido por quem ouve (cf. ORLANDI, 1996; PÊCHEUX, 1997). Funciona também a noção de imaginário,

que na relação discursiva, é um mecanismo dentro de uma con-juntura sócio-histórica e que faz necessariamente parte do fun-cionamento da linguagem. Ele assenta-se no modo como as rela-ções sociais se inscrevem na história e são regidas por relações de poder inscritas na sociedade (BARROS, 2004, p.58).

Desse modo, temos que o sujeito é interpelado pela ideologia do bem-falar7, da boa comunicação, numa sociedade regida por regras po-lítico-ideológicas que estabelecem condições para que os sujeitos sejam considerados aptos ou não para ocupar lugares-sociais privilegiados cultural e economicamente.

Observe-se que não estamos afirmando aqui que uma ou outra al-teração de comunicação acontece ou aparece no corpo do sujeito por

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ocasião da interpelação da ideologia do bem-falar8, mas que este é um fator determinante para que este sujeito procure atendimento fonoau-diológico e não psicológico ou médico. Isto acontece porque este é o su-jeito da clínica fonoaudiológica que, ao procurar por atendimento tera-pêutico fonoaudiológico, traz consigo o seu corpo investido de sentidos: da boa-má comunicação, do bom-mau falante, do sujeito-paciente que se subjetiva porque tem estabelecido relações de sentido únicas. Num gesto de procurar atendimento terapêutico fonoaudiológico, simboliza o desejo, a sua vontade de ruptura com esta forma de relação com a sociedade. É este corpo investido de sentidos o objeto de intervenção da clínica fonoaudiológica – o corpo-sentido, não o corpo como forma empírica, no qual se localiza o objeto de intervenção da fonoaudiologia. Corpo-sentido é o modo como o corpo significa num gesto comunica-tivo, num gesto de significação.

De Souza (2010) aponta como o corpo – discursivizado como cor-po, ainda enquanto carne – apresenta sentidos como uma “presença de entremeio – que fica entre dois sujeitos” apoiando-se sob a ideia de efeito ideológico elementar de Althusser (ALTHUSSER, 2007 apud DE SOUZA, 2010, p.05) “eu sou” – “indivíduo interpelado em sujeito pela ideologia”. É este um corpo-simbólico.

Pensamos que a clínica fonoaudiológica é o espaço de se pensar, de compreender e de intervir sobre os gestos comunicativos do sujeito-pa-ciente. Gesto aqui pensado como “ato no nível simbólico” (PÊCHEUX, 1969 apud ORLANDI, 1996, p.18), não como ação empírica, mímica. São gestos comunicativos: a escrita, a leitura, a fala etc. Estes gestos, numa condição de produção que aponte um sujeito que se percebe mau--falante, mau-comunicador e instaura uma prática possível de clínica fonoaudiológica.

E que espaço é este, o da clínica, que autoriza intervenções de um homem sobre o outro, que autoriza ao próprio homem submeter-se à avaliação, interpretação e intervenção de um outro homem sobre o seu corpo, sobre os seus sentidos?

Ao afirmamos que um espaço significa na medida dos acontecimen-tos, temos a necessidade de saber sobre esse espaço no qual “as coisas” acontecem. Um espaço com sua forma material “que é histórica, com sua opacidade e seus equívocos... em que o conteúdo se inscreve” (ORLAN-DI, 1999, p.31-32). Assim, ao falarmos de acontecimento num espaço entre quatro paredes no qual estão acomodadas camas que são usadas para dormir – o que chamamos de quarto, é diferente de falarmos de acontecimentos em um espaço entre quatro paredes no qual estão aco-modadas macas com pacientes para atendimento – o que chamamos de hospital ou ambulatório. Isso em função da sua forma material. Os

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efeitos de sentido que circulam num espaço têm relação com o que está posto pela forma material porque nela estão inscritas condições históri-cos e ideológicos que configuram sentidos.

Não nos interessa o pensamento de que o espaço da clínica é o lugar onde o paciente é aquele que sofre de uma doença e é observado por um terapeuta capacitado para diagnosticar e proceder a um tratamento. Nosso olhar é para um espaço clínico que se preocupa com a posição--sujeito que se apresenta como paciente (da cidade) que sofre. Temos também que considerar que a clínica é um corpo urbano com o qual o sujeito se relaciona. “Sujeito-paciente e sujeito-terapeuta, com suas es-pecificidades, histórias sentidos e imagens sobre suas posições, relações frente a outros sujeitos, espaços e instituições (...)” (BARROS, 2004, p.66). Pensar a clínica é pensá-la no espaço urbano em que se constitui e constitui o sujeito que procura por atendimento, é olhar para a manu-tenção do diferente na coletividade, o sentido.

Interessa-nos pensar a clínica como espaço singular da cidade, apon-tada por Silva (1999, p.23) como “espaço de interpretação, com lugares enunciativos que o seu habitante ocupa para ser sujeito do que diz e pro-duzir sentidos em uma relação determinada com a história”, além de nos atermos em questões de subjetivação, da interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia, afetado pela língua e das formas de individuação do sujeito pelo Estado (ORLANDI, 2012).

Consideramos a língua para a compreensão do processo de individu-ação, porém esta nos interessa não na sua forma estrutural que apresenta um conteúdo a ser descoberto, mas sim nas formas materiais da ciência do discurso que permite a análise do funcionamento do texto, isto é, colocando em questão os sentidos que circulam para dada interpretação. Considera-mos que os sentidos e a interpretação estão dados para interrogação.

Na realidade, não há um sentido (conteúdo), só há funcionamen-to da linguagem. No funcionamento da linguagem, o sujeito... é constituído por gestos de interpretação que concernem sua posi-ção. O sujeito é a interpretação... É pela interpretação que o su-jeito se submete à ideologia, ao efeito da literalidade, à ilusão do conteúdo, à construção da evidência dos sentidos, à impressão do sentido já-lá. A ideologia se caracteriza assim pela fixação de um conteúdo, pela impressão do sentido literal, pelo apagamento da materialidade da linguagem e da história, pela estruturação ideo-lógica da subjetividade (ORLANDI, 2001, p.22).

É o dispositivo ideológico de interpretação funcionando nos acon-tecimentos do mundo. Este está relacionado ao interdiscurso – rede de

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memória discursiva – que é estruturado pelo esquecimento9. Nesse mo-vimento, na relação do sujeito com os sentidos que circulam em dada conjuntura, é que as posições sujeito se darão sob as forças de inter-pelação ideológica de formações sociais que controlam a interpretação institucionalmente.

Por sabermos que a clínica fonoaudiológica tem uma forma material singular e que em sua práxis está re-significando e construindo instru-mentos e métodos próprios que se têm instaurado no processo tera-pêutico fonoaudiológico, trabalhamos acontecimentos que interpelam o sujeito em sujeito complementar e possibilita a práxis fonoaudiológica sobre um objeto de intervenção singular.

Palavras finaisA proposta de analisar os descritores utilizados para indexação de

trabalhos científicos fonoaudiológicos foi profícua ao indicar a necessi-dade de ampliação do estudo.

A breve análise realizada apontou a ausência de definição objetiva para o campo científico fonoaudiológico e apesar dos autores optarem por incluir descritores de diferentes áreas e campos científicos que fun-cionam na tangência com a fonoaudiologia, também incluem descrito-res que apresentam a sua práxis.

Neste percurso, apresentamos uma proposta de debate que, pensa-mos, é de grande importância para a fonoaudiologia e para a ciência de modo geral acerca da necessidade da clarificação do objeto científico fonoaudiológico.

O campo científico fonoaudiológico contemporâneo apresenta pro-fícua produção científica, porém tem sido representado por meio de es-colha de palavras-chaves que circulam pelos significados da patologia na práxis fonoaudiológica e, apesar de em sua grande parte não serem relacionadas com a proposta de atuação para a adequação da comuni-cação, apontam para a existência de um objeto científico a ser definido e caracterizado.

Na instância do confronto com os resultados obtidos através da elaboração deste material, pudemos nos colocar a pensar, a partir do advento da clarificação e da compreensão da singularidade da clínica fonoaudiológica, os sentidos que se mostram latentes para essas discus-sões, provocando esta disciplina prática para que se empenhe na com-preensão do seu objeto de ciência e, desta forma, se coloque a produção de conhecimentos teóricos próprios que possam fomentar a sua práxis.

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Notas1 Para a distinção e definição destas noções cf. E. Orlandi (2001).2 Pensamos aqui somente as áreas de especialização da práxis clínica, não considerando a Fonoaudiologia Educacional e a Fonoaudiologia em Saúde Pública.3 Projeto de Pesquisa Especial (PQe) autorizado e realizado na Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná (UNICENTRO). RESOLUÇÃO CONSET - SES/I 014/2012.4 Centro Latino-Americano e do Caribe de Informações em Ciências da Saúde.5 Objeto de intervenção, e não do objeto científico fonoaudiológico.6 Mesmo que ainda não definido pela área.7 Os trabalhos de Friedman (1994), importante autora sobre o tema gagueira, diferem do nosso ao pensar a ideologia do bem-falar por ocupar o teórico da Psicologia Social e nós, da Análise de Discurso.8 Neste trabalho não objetivamos compreender as alterações em suas especificidades.9 Cf. Pêcheux (1997c): “o esquecimento nº 1 inscreve o sujeito em uma formação dis-cursiva e produz a ilusão de que o sujeito é fonte de seus enunciados ... O esquecimento nº 2 diz da onipotência do sentido. O sujeito, ao enunciar, tem a ilusão da transparência do sentido, achando que quando diz algo é porque apenas pode dizer esse algo como o disse” (Barros, 2004 p.57-58).

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Palavras-Chave: Linguagem; Fonoaudiologia; Ciência; Clínica.

Keywords: Language; Speech Therapy; Science; Clinic.

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PEIRCE E LACAN: AS SOBRAS DEIXADAS PELO SIMBÓLICO

Mírian dos SantosUnivás

1. IntroduçãoBuscando por si mesmo, o ego acredita encontrar-se no espelho das criaturas para se perder naquilo que não é ele. Esta situ-ação é fundamentalmente mítica. É uma metáfora da condição humana, uma vez que estamos sempre ansiando por uma completude que não pode jamais ser en-contrada, infinitamente capturada em mi-ragens que ensaiam sentidos onde o senti-do está sempre em falta. (SANTAELLA, 1886, p.28)

Somos seres simbólicos, seres de linguagem. Dizer isto significa que só conseguimos entrar em contato com o outro por meio de uma me-diação. Entre mim e o e outro se interpõem signos das mais diferentes naturezas. Só podemos nos aproximar dos objetos e de outros homens através da linguagem; só utilizando a linguagem podemos apreender, em parte, a realidade.

Esses elementos simbólicos que nos propiciam a aproximação com o outro são elementos que agem como duplos. Eles não são as coisas, mas estão no lugar das coisas. São sempre fragmentos incompletos que representam algo que não são eles e representam o real de uma certa maneira, dentro de certos limites, sendo, portanto sempre parciais.

Lúcia Santaella (1996, p.64), analisando esse aspecto na linguagem e usando como sinônimo de linguagem a palavra signo, adverte-nos que há

CRÔNICAS E CONTROVÉRSIAS

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A impossibilidade de se subverter o caráter do signo como duplo, visto que se este, o signo, fosse capaz de atingir a mais absolu-ta identidade e completude em relação ao objeto que representa, então não seria mais o signo, seria o próprio objeto e este objeto estaria fadado ao desaparecimento. É devido à fenda da diferença que a realidade, na sua completude complexa, resiste como re-alidade. É devido a esta fenda entre o querer ser o objeto, sem, no entanto, poder sê-lo que o signo insiste na sua parcialidade e incompletude de signo.

O inelutável caráter duplo da linguagem assinala que entre o “real” e a linguagem, abre-se uma brecha. Isto significa que a linguagem ja-mais esgotará todas as potencialidades da “realidade”. Na sua inteireza constitutiva, na sua integralidade existencial, a “realidade”, os objetos do mundo, o referente é intangível: sempre haverá aspectos sobre os quais a linguagem não poderá ocupar-se. Por mais que se fale e se es-creva a respeito de um simples objeto que está a nossa frente, nunca esgotaremos todas as possibilidades significativas. A linguagem jamais apreende todos os significados de um objeto. Isto se dá porque em cada atribuição de significado dado a um objeto interferem as condições de produção, as experiências colaterais que se conceituam, segundo Peirce (CP 8.179) como uma espécie de intimidade que o intérprete deve ter com o signo. É uma informação anterior ao signo, adquirida por meio de outros signos.

Entre o real e a linguagem, existe um estado pulsante, prenhe de pos-sibilidades, aberto as mais variadas interferências. Ignorar este aspecto é agir como o mítico Narciso.

Segundo Santaella (1996), Narciso, ao se olhar nas águas do rio, en-cantou-se com a própria imagem. Mas a imagem não era ele, era seu duplo e ao tentar se apossar da imagem, apossar-se da linguagem que a ele se referia, mas que não era ele, Narciso se destruiu. Considerou a imagem de si mesmo como se fosse o real e se esvaiu. Narciso se perdeu porque não considerou que entre a linguagem (imagem de si mesmo) e o “real” (o existente, ele mesmo) havia uma fenda, que assinala a in-completude da linguagem. Ou seja, a linguagem, por mais que queira ser fiel ao objeto não é o objeto, o ser existente no mundo. A linguagem é apenas uma parte do “real” e por mais que ela se aproxime do “real”, jamais será o objeto. Querer transformar a linguagem em objeto tem consequências sérias: aniquila o objeto e a linguagem; destrói tanto o objeto quanto a linguagem. A linguagem acaba por engolir a vida e a vida por engolir a linguagem. Para Santaella, Narciso perde-se por não perceber a imagem – linguagem – como fragmento parcial e incompleto

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que, como toda linguagem só pode estar no lugar de, sem que, no entan-to, possa ser o objeto a que se refere.

Isto posto, este artigo objetiva estabelecer relações de parentesco en-tre as os registros essenciais da realidade humana - ou categorias exis-tenciais, explorados por Lacan - do conceito de objeto do signo aborda-do por Peirce.

2. Os registros lacanianosLacan, relendo a obra de Freud, estabeleceu os três registros psicana-

líticos da dimensão psíquica humana. São eles o imaginário, o simbólico e o real.

O imaginário é o registro da busca por si mesmo no outro. É neste processo que nasce a subjetividade. A criança, segundo o célebre Estágio do Espelho de Lacan (1966), pensa ver sua imagem refletida no espelho e nesse ato, pensa também reconhecer seu próprio corpo. Acredita ter alcançado a unidade. Ao tomar-se como a imagem que se apresenta, a criança se engana, porque a imagem de si mesma é apenas um registro do eu. A imagem representa o eu. Não é o eu. É fragmento parcial do eu da criança. O Estágio do Espelho bem ilustra que a constituição da identidade dialeticamente se instaura na relação com a alteridade.

Visto dessa forma, o registro do imaginário se apresenta como um engodo. No entanto, essas ilusões fornecidas pelo imaginário são regis-tros carregados de significados e, ao mesmo tempo agem como pro-vedores de conteúdos para o simbólico, ou seja, o imaginário é uma imagem externa e prenhe, que desperta sentidos num sujeito. Assim “senhor e servo do imaginário o eu se projeta nas imagens em que se espelha: imaginário da natureza, do corpo, da mente e das relações so-ciais” (SANTAELLA; NÖTH, 1999, p.190).

E isto nos mostra que o ser humano desde a sua origem será um ser que busca a completeza, mas é marcado pelo desamparo: sozinho está. Nasio (1993) completa estas afirmações, dizendo que a imagem total de seu corpo, o corpo da criança, no estágio do espelho, como unidade imaginária, na verdade são sensações múltiplas e dispersas.

O simbólico é o espaço do significante, lugar da linguagem, ins-talação da forma material da linguagem. Serve para Lacan “designar um sistema de representação baseado na linguagem” como afirmam Roudinesco e Plon (1988). Espaço da mediação. “Ele é lei, estrutura regulada sem a qual não haveria cultura. Lacan chama isso de grande Outro. O Outro, grafado em maiúscula, foi adotado para mostrar que a relação entre o sujeito e o grande Outro é diferente da relação com o outro recíproco e simétrico ao eu imaginário” afirma Santaella (1986, p.28). Se o imaginário nos traz a imagem, o simbólico nos apresenta

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um corte: um corte entre o objeto “real” existente no mundo e a sua representação.

O real, extraído simultaneamente do vocabulário da filosofia e do conceito freudiano de realidade psíquica, designa uma realidade feno-mênica que é imanente à representação e impossível de simbolizar, con-forme podemos encontrar no Dicionário de Psicanálise (1988). O real é, para a psicanálise, aquilo que não cessa de se escrever. Ele não inter-rompe jamais a representação. Sempre haverá um resto irrepresentável, algo que resiste à simbolização. Na categoria do real, Roudinesco e Plon (1988) afirmam que Lacan estabeleceu uma realidade desejante que é inacessível a qualquer simbolização.

O real lacaniano difere daquilo que comumente conhecido como noção corrente de realidade. Para ele, o real é a sobra do imaginário que o simbólico não consegue capturar em toda sua integridade. Do real, na sua verdade, apenas nos aproximamos pela mediação do signo. “Real é aquilo que falta na ordem simbólica, o resíduo, o resto ou sobra ineliminável de toda articulação que pode ser aproximada, mas nunca capturada” (SANTAELLA & NÖTH, 1999, p.191).

Estes três registros têm como marca a incompletude e há uma rela-ção de interdependência entre eles. E é Santaella (2008, p. 148) quem nos demonstra a interdependência desses registros lacanianos, explici-tando-nos que um registro prescinde do outro. Vejamos nas próprias palavras da autora:

Embora poderoso na função mediadora dos laços sociais que en-seja, o Simbólico não passaria de uma maquinaria regrada, se não fosse o imaginário para preenchê-lo com conteúdos, mas esses conteúdos são sempre ilusórios, alimentados pela nostalgia de uma imagem primeva, que não cessa de acenar com a promessa de uma completude que se prova impossível.

O simbólico são significantes, que assumem sentido com as cores do imaginário. Entre o imaginário e o simbólico há a produção de sentido. O imaginário fornece conteúdos para os sentidos; o simbólico lhes dá fisicalidade. E o real?

No real habitam as pulsões, compreendendo a pulsão como desejo que nos alimenta. É uma carga energética que nos impulsiona a procu-rar o objeto desejado. Os objetos são sempre desejados, mas a satisfação é apenas momentânea, o que significa que, satisfeito um desejo, outro desejo nasce e precisa ser satisfeito. É este o mecanismo que governa o erotismo e a publicidade, por exemplo. Santaella (2008, p.146) nos ajuda a compreender melhor o conceito de pulsão. Senão vejamos:

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Pulsão significa, como bem o demonstrou Freud, que nenhum objeto de nenhuma necessidade jamais poderá trazer satisfação ao corpo do humano porque a natureza da pulsão é dar intermi-náveis voltas em círculos, um movimento cujo verdadeiro ob-jetivo coincide com o seu próprio caminho rumo a uma meta inalcançável. Ainda para Santaella (2008, p.147), o objeto da pulsão foi chamado

por Lacan de objeto “a”. O objeto “a” é uma curvatura do próprio espa-ço do que resulta só seja possível dar voltas quando se quer alcançar o objeto. Por isso mesmo é o objeto “a” que impede que o círculo do prazer se feche, introduzindo um desprazer irredutível na própria busca do prazer.

No Dicionário de Psicanálise (1998, p.551) encontramos o seguin-te conceito para o objeto (pequeno) a: “termo introduzido por Jacques Lacan em 1960 para designar o objeto desejado pelo sujeito e que se furta a ele a ponto de ser não representável, ou se tornar um ‘resto’ não simbolizável”.

Nasio (1993, p.117) afirma que “o objeto “a”, dentre das várias acep-ções que se pode dar a ele, em sentido estrito “é o gozo enigmático e inominável que Lacan chama de mais gozar. O advérbio mais frisa que o objeto é sempre um excesso ou um a mais de energia residual, inassi-milável pelo sujeito”.

O gozo, para Lacan, segundo Nasio (1993) não se confunde com vo-lúpia. Segundo o autor, a ideia de gozo se liga a Freud, quando afirma que o ser humano é atravessado pelo desejo, sempre constante e jamais realizado de atingir um objetivo impossível: atingir uma felicidade abso-luta que se confunde com o desejo, também inatingível, da completude.

Para Santaella (2008, p.149) é “pela falta que o desejo se anima”. Continua a autora dizendo que o desejo pode funcionar via descarga, retenção e liberação total. Essa terceira via, “a da liberação total da energia sem entraves e sem limites, é puramente hipotética e irreali-zável”.

A partir do funcionamento do desejo, Lacan, segundo Nasio (1993, p.27) propõe três tipos de gozo: o gozo fálico, o mais gozar e o gozo do outro. “O gozo fálico corresponderia à energia dissipada durante a descarga parcial, tendo como efeito um alívio relativo, um alívio incom-pleto da tensão inconsciente”.

O mais gozar consiste em reter uma parcela do gozo, isto é, há uma energia psíquica que não é totalmente descarregada. O mais gozar tem um aspecto residual a quem cabe estimular constantemente a tensão interna.

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Façamos aqui uns parênteses para relacionar esse conceito de mais gozar com o erotismo. Para Bataille (1988), o erotismo resulta de ele-mentos antagônicos, mas complementares que seriam a vida e a morte. E essa ideia advém da compreensão do mito de Eros, pois segundo a mitologia grega, Eros, o deus do amor, tem capacidade de provocar a unidade, além dos limites da união sexual. Seu poder se estende à ideia de conexão com o princípio da vida ou com o da morte.

Isto porque, conforme registra Platão em O banquete, Aristófones, convidado do Banquete, narra que antes do nascimento de Eros, a humanidade se compu-nha de três sexos: o masculino, o feminino e andrógino. Os andróginos tinham apenas uma cabeça, mas duas genitálias, quatro pernas, braços e orelhas. Essa natureza os tornava poderosos, tanto é que resolveram desafiar os deuses. Zeus, então, corta-os ao meio para deles retirar-lhes o poder. Mutilados e incompletos, esses seres partem em buscam da sua metade. Sentem-se incom-pletos. Anseiam por um desejo de unidade e de união. Desta trama é que resulta Eros, a busca de um desejo, sempre satisfeito, mas apenas por alguns momentos.

Finalmente resta-nos abordar o terceiro tipo de gozo que é gozo do outro. É ainda Nasio (1993, p.27) que nos fornece esclarecimentos sobre a terceira categoria do gozo. Para ele, “seria um estado hipotético que corresponderia à situação ideal em que a tensão fosse totalmente des-carregada sem o entrave e nenhum limite”. Seria a obtenção impossível da total liberação do gozo.

Como podemos ver todas essas categorias da psicanálise que levan-tamos acima põem em evidência a incompletude1 que habita no ser hu-mano. Analisemos a partir de agora o objeto peirceano.

3. O objeto peirceanoSegundo Peirce (CP 1.339), o signo “‘representa’ algo para a idéia que

provoca ou modifica. Ou assim - é um veículo que comunica à mente algo do exterior. O ‘representado’ é o seu objeto; o comunicado, a sig-nificação; a idéia que provoca, o seu interpretante.” Um signo envolve, portanto, uma tríade que pode ser dada pelo diagrama abaixo (figura 1).

Signo/Representamen

Objeto Interpretante Figura 1

Tríade peirceana para a definição de signo (DRIGO, 2007, p.63)

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Deste modo, observando o diagrama, podemos dizer que um signo representa o objeto, portanto é a causa fundante desse signo, ou como nos diz Peirce, “o ‘representado’ é o objeto”. Se ele representa o objeto, ou seja, se está no lugar do objeto, não é o próprio objeto. Santaella (1995, p.49) afirma que:

O signo representa o objeto, porque, de algum modo, é o próprio objeto que determina essa representação, porém aquilo que está representado no signo não corresponde ao todo do objeto, mas apenas uma parte ou aspecto dele. Sempre sobram outras partes ou aspectos que o signo não pode preencher completamente.

O signo, afeta uma mente (no caso, pensemos na mente humana) e nela determina algo devido a esse objeto, o interpretante. Como o signo é o “veículo que comunica à mente algo do exterior”, então, só temos acesso ao mundo exterior por meio de signos. No ato de apreender os fenômenos, o pensamento necessariamente os converte em signos.

Vamos conferir essas explicações em outra definição de Peirce.

Defino um Signo como qualquer coisa que, de um lado, é assim determinado por um objeto e, de outro, assim determina uma ideia na mente de uma pessoa, esta última determinação, que de-nomino o Interpretante do signo é, desse modo, mediatamente determinada por aquele Objeto. Um signo, assim, tem uma rela-ção triádica com seu Objeto e com seu Interpretante (CP 8.343).

O interpretante é o produto da síntese intelectual e a ação do signo só se efetiva quando ele gera outro signo, ou seja, o interpretante não permanece como potencialidade.

Quanto ao objeto, objeto de nosso estudo, ouçamos Peirce:

(...) temos de distinguir o Objeto Imediato que é o objeto tal como o próprio signo o representa e cujo Ser depende assim de sua representação no Signo, o Objeto Dinâmico, que é a realidade que, de alguma forma, realiza a atribuição do Signo à sua repre-sentação (CP 4.536).

Para Peirce, portanto, o signo possui, pois, dois objetos: o imediato e o dinâmico. Expliquemos. O imediato está dentro do signo. É o modo como o signo apresenta o objeto dinâmico a uma mente, sugerindo, in-dicando ou representando o que está fora dele. O objeto imediato tem uma natureza sígnica e, segundo Santaella (1995), Peirce introduziu essa

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noção para demonstrar a impossibilidade de acesso direto ao objeto di-nâmico, sem a mediação do objeto imediato. Exemplifiquemos. Se for um signo verbal, por exemplo, o objeto imediato pode se configurar no tamanho das letras ou na escolha de uma palavra em detrimento de ou-tra; se visual, pode traduzir o objeto dinâmico em nuanças de cor, for-ma, traçado, tamanho, jogos de luz, sombra. Podemos dizer que o objeto imediato, de natureza sígnica, é a própria materialidade que se nos apre-senta, ou seja, é o material com que os usuários de signos trabalham.

O objeto imediato é nosso acesso ao objeto dinâmico. A função do objeto imediato é, então, agir como elemento mediador entre signo e objeto dinâmico. Ele é “sempre um signo que nos coloca em contato com tudo aquilo que chamamos de ‘realidade’” (SANTAELLA, 1995). Ao capturar uma faceta do objeto dinâmico, o objeto imediato já é uma imagem mental, e se faz representar no próprio signo.

Cada apreensão do mundo, configurada no objeto imediato, são pe-daços do que existe no mundo. É o mundo em fatias que se nos apre-senta e cada representação focaliza um aspecto, sem jamais conseguir abarcar o ser/objeto por inteiro.

O objeto dinâmico é aquilo que rodeia o signo, está ao seu entorno. Segundo a autora (2002) quando pronunciamos uma frase, nossas pa-lavras falam de alguma coisa, referem-se a algo, aplicam-se a uma de-terminada situação ou estado de coisas. Elas têm contexto. Assim todo contexto particular que está no entorno do signo é seu objeto dinâmico. Dessa forma, o objeto dinâmico é externo ao signo e é sempre muito mais amplo do que o signo, ou seja, ele é maior do que aquilo que o ob-jeto imediato, na sua natureza sígnica, é capaz de representar.

A captação feita pelo signo de apenas um dado do objeto dinâmi-co advém da impotência do signo para abraçar o objeto em todas as dimensões. Sempre ficarão significados à mercê de novos intérpretes com outros registros de memória e em outras condições de produção de interpretantes, com outras experiências colaterais. Outros aspectos ficarão pulsando à espera de novas encarnações simbólicas a partir das sugestões do imaginário. É a realidade grávida de sentidos.

Do objeto dinâmico, o signo sempre capta um dos aspectos. O objeto dinâmico se situa na amplidão de aspectos que um signo pode suge-rir, apontar ou representar. Os outros aspectos ou algumas das sobras podem ser recuperadas no processo da semiose ou, ainda, podem ser flagradas em outras semioses particulares. A captação feita pelo signo de apenas um dado do objeto dinâmico advém da impotência do signo para abraçar o objeto em todas as dimensões.

Vemos então que ao representar o objeto, o signo apresenta dupla face. A primeira face aponta para fora – dinâmico – e a segunda aponta

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para dentro; é o objeto imediato, objeto tal como o signo o representa. O dinâmico corresponde à realidade, ao contexto e o intérprete precisa ter familiaridade prévia com essa realidade para apreender o signo. É a exigência da chamada experiência colateral. O objeto imediato é sempre um recorte do objeto dinâmico, dada à amplitude deste último. Estes dois objetos, à luz do signo e, correlatamente, produzem o interpretante.

O signo é incompleto devido à sua impossibilidade de reter o objeto dinâmico que é vasto e ilimitado. O signo só poderá representar algum aspecto do objeto - o aspecto inscrito no signo que é o objeto imediato. O signo busca então se completar no interpretante.

Santaella, de uma maneira muito didática deixa bem clara a diferen-ça entre objeto imediato e do objeto dinâmico, a partir da análise do signo espelho. Vejamos nas próprias palavras da autora:

A primeira característica do signo é a de funcionar como uma es-pécie de duplo em relação ao seu objeto dinâmico. A imagem espe-cular é um duplo daquilo que está nela refletido. A imagem refleti-da é um signo. Aquilo que ela reflete é o objeto dinâmico. Ora esse objeto dinâmico tem sempre muito mais caracteres do que aqueles que aparecem na imagem especular. Só pode fazer do objeto refle-tido uma captura frontal, perdendo a parte lateral ou traseira ou vice-versa. O modo como o objeto dinâmico aparece naquele refle-xo especifico se constitui em objeto imediato (2001, p.46).

Sintetizando, podemos dizer que o objeto dinâmico é aquele que, do lado de fora do signo, no mundo “real”, determina o signo. Alguma espé-cie de correspondência liga o signo ao objeto. A primeira representação mental dessa correspondência (e como representação mental já é signo) é o objeto imediato. O que faz a ponte do signo até o objeto dinâmico é o objeto imediato e assim o faz com a preponderância de algum aspecto que o fundamento ou natureza do signo impele. Se o fundamento do signo for uma qualidade, ele capturará do objeto dinâmico como mera aparência, ou algo que apenas sugira o objeto dinâmico. Se a natureza do signo for a de ser existente, sua conexão com o objeto será factual e o signo indica, aponta para o objeto dinâmico; finalmente, se o signo tiver caráter de lei, ele vai representar o objeto dinâmico, em termos convencionais.

Na semiose, portanto, nos aproximamos do objeto dinâmico, cami-nhamos ao seu encalço. Nela estamos sempre no espaço da procura. Estamos sempre no meio do caminho, pois nunca podemos afirmar que um signo desenvolveu todo o seu potencial a ponto de esgotar todos os aspectos que o objeto dinâmico, via objeto imediato, pode sugerir, indicar ou representar.

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Algumas considerações Isto posto, acreditamos que o simbólico de Lacan parece-nos ter cor-

respondência com o objeto imediato de Peirce. Tanto o simbólico como o objeto imediato apresentam a natureza de linguagem. É o simbólico que apresenta um corte no imaginário. É o objeto imediato que apresen-ta uma fatia do contexto que o rodeia o signo.

E o imaginário lacaniano, espaço da formação da subjetividade, identidade, da alteridade, não poderia ser chamado como contexto do signo, ou seu objeto dinâmico?

Se assim for, o sentido estaria na conjunção do real e do imaginário, na conjunção do objeto imediato e objeto dinâmico. E o real, por ser impossível de ser simbolizado, permaneceria como aquilo que não cessa de se escrever.

E tanto os conceitos psicanalíticos como os conceitos de objeto de Peirce, não estariam apontando para a impossibilidade de completude, um desejo humano que, inelutavelmente, não cessa de acenar para a humanidade, mas que nunca se cumpre?

Notas1 Sobre incompletude do sujeito e dos sentidos ver E. Orlandi (1988).

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LACAN, J. Ecrits. Paris: Seuil, 1996.NASIO, J. D. Cinco lições sobre as teorias de Jacques Lacan. Rio de Janei-

ro: Zahar, 1993.ORLANDI, E. “A incompletude do sujeito: e quando o outro somos nós?”

In: ORLANDI, Eni (org.). Sujeito e texto. São Paulo: EDUC, 1988. PLATÃO. “Banquete”. In: Diálogos. São Paulo: Tecnoprint, s.dROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de Psicanálise. Rio de Ja-

neiro, Zahar, 1998. SANTAELLA, L. “As três categorias peirceanas e os três registros la-

canianos: correspondências” In: Cruzeiro Semiótico (Porto), 1986, 4: 25-30.

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______. A teoria geral dos signos: semiose e autogeração. São Paulo: Ática, 1995.

______. Cultura das mídias. São Paulo: Experimento, 1996.______. Matrizes da linguagem e do pensamento: sonora, visual e ver-

bal. São Paulo: Iluminárias, 2001.______. Semiótica aplicada. São Paulo: Pioneira Thomson Learning,

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2008.SANTAELLA, L. & NÖTH, W. Imagem: cognição, semiótica e mídia.

São Paulo: Iluminuras, 1999.

Palavras-chave: Imaginário. Real. Simbólico. Signo.

Key-words: Imaginary. Real. Symbolic. Sign.

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AUROUX, S. (2012) Matematização da lin-guística e natureza da linguagem.

São Paulo: Hucitec.

Obras como Revolução Tecnológica da Gramatização, Filosofia da Linguagem e A questão da origem das línguas tornaram-se, desde que publicadas, referências a pesquisas em diferentes domínios da linguís-tica. Cada um desses títulos parecia nos deixar diante de uma evidên-cia: já não nos surpreenderíamos com a densidade e a consistência dos trabalhos de Sylvain Auroux em seus novos empreendimentos teóricos, analíticos e históricos sobre a natureza da linguagem e sobre a linguís-tica e suas tecnologias.

Prendermo-nos às evidências, contudo, nos deixa enganar. Os tra-balhos de Auroux sobre o processo de gramatização das línguas e sua relação com o próprio desenvolvimento de uma ciência da linguagem mostram-se também, cada vez mais, fazer terreno para o desenvolvi-mento de pesquisas sempre singularmente interessantes: o pesquisador do Centro Nacional da Pesquisa Científica (Centre national de la recherche scientifique – CNRS) da Universidade de Paris 7 e membro do Projeto Inter-nacional História das Ideias Linguísticas contempla-nos, agora, com seu título Mathématisation de la linguistique et nature du langage. Traduzida para o por-tuguês por Débora Massmann e publicada no Brasil pela editora Hucitec sob o nome de Matematização da linguística e natureza da linguagem, a obra é, se-guramente, uma amostra dos diferentes interesses que norteiam o pesquisador francês: em breves oito capítulos, somos apresentados a uma face específica da história das ciências da linguagem, a face da relação com as matemáticas; nesse mesmo percurso histórico somos também levados a entender as aproxi-mações e os distanciamentos entre lógicos, linguistas e matemáticos, de modo que não nos fica pouco de uma ideia sobre a filosofia dessas ciências; mais importante ainda, à medida que apresenta os impasses, fracassos e sucessos da constituição de uma linguística matemática, o autor não nos poupa detalha-mentos e exemplos de como os modelos matemáticos implicavam diretamente no domínio da semântica.

De um lado, pois, um panorama histórico das relações entre linguagem e matemáticas; de outro, pousos específicos sobre como essas relações con-tribuíram, direta ou indiretamente, para o progresso dos estudos linguísticos

RESENHA

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(e matemáticos) e, especialmente, para uma sempre diferente relação com o sentido, seja de palavras, de sintagmas, de frases, de enunciados, de texto ou das coisas do mundo.

O contato com a introdução da obra não nos deixa dúvidas quanto ao su-cesso de Auroux em seu esforço “para ser suficientemente claro e para tornar a leitura mais acessível aos não especialistas” (nota 1, p.11). Isso, contudo, não implica dizer que a obra não possa ser útil também a especialistas ou que não possa contribuir para a formação destes. As frequentes referências a manuais de autores de diferentes domínios que outrora se interessavam por questões que tocam a linguagem, bem como as inúmeras notas explicativas, à medida que dão à obra a densidade característica dos trabalhos do autor, contextuali-zam de modo bastante claro os passos em direção a uma linguística matemá-tica e, ao mesmo tempo, sugerem objetos científicos que, talvez, passassem despercebidos.

Ainda que investidas por uma linguística matemática tenham sido frequen-tes desde a lógica aristotélica, é só a partir da década da segunda metade do século XX que ela parece encontrar berços em que se desenvolver. O próprio autor, aliás, chama atenção para a recepção institucional das universidades aos estudos que tentavam, de uma ou de outra forma, matematizar a linguística: em primeiro lugar, não é estranha certa resistência a esse movimento, sobretudo porque o que se punha, de antemão, era uma nova demanda de saberes e de instrumentos com os quais a linguística passaria a trabalhar; depois, sabemos que mesmo pequenos deslocamentos teóricos refletem, no fundo, em novas posições quanto à natureza do objeto científico – da língua ou da linguagem, no caso –, as quais nem sempre (ou raramente) são facilmente sustentáveis; final-mente, a diversidade de modelos formais que proliferavam nem sempre eram razoáveis, sobretudo porque se restringiam muito diretamente às gramáticas categoriais e às linguagens aplicativas e, dessa forma, pareciam representar limites à extensão de domínio dos estudos linguísticos.

O terreno para o desenvolvimento da linguística matemática veio, inicial-mente, com modelos formais de representação da linguagem. Mas não fal-taram também iniciativas que procurassem nos números a razão e o sucesso de uma matematização. Auroux, a esse propósito, não hesita em atribuir essa forma de conceber a linguística matemática ao legado de Kant, para quem a matemática seria o reduto da ciência. De qualquer forma, pois, incontestavel-mente, assistimos, no decorrer da história, a uma matematização da linguística; é essa história, então, que o pesquisador francês tenta recompor, orientado por questões que não seriam melhor postas senão em suas próprias palavras:

Quando ocorreu a relação entre as matemáticas e a gramática? Como? Se houve fracassos, impasses e sucessos, o que podemos deduzir das condições necessárias para uma matematização da

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linguística? Que relação se estabelece entre a matematização e a própria natureza da linguagem? (p.16)

Esse conjunto de perguntas impõe ao autor a tarefa de discutir, pri-meiramente, outra questão fundamental, que nomeia o primeiro ca-pítulo do livro: O que é matematizar as ciências da linguagem? No desdobramento de sua reflexão sobre essa questão, um aspecto da his-toricidade das ciências se destaca: “Os empréstimos de uma disciplina a outra não são raros” (p.17). O problema que Auroux procura examinar, porém, vai um pouco mais longe: esses empréstimos, por si só, não são suficientes para a constituição de um novo domínio em uma ciên-cia específica. De outra forma: o simples gesto de procurar representar uma língua ou uma linguagem com base em instrumentos matemáti-cos é insuficiente para dar forma a um domínio que possamos chamar efetivamente de linguística matemática. A constituição de um domínio científico depende, pois, de conceitos novos e da possibilidade de que estes sejam articulados de forma a permitir uma compreensão singular do objeto científico.

Longe da definição trivial de matematização, Auroux destaca uma condição essencial para que reconheçamos uma efetiva “linguística ma-temática”: ambas as ciências em relação, a linguística e a matemática, devem se beneficiar dessa simbiose. A linguística, de um lado, deve reconhecer nessa relação novos conceitos capazes de explicar fenôme-nos específicos relacionados a seu objeto; as matemáticas, por seu lado, podem ver, na linguagem, a constituição de um novo objeto sobre o qual se deter. É justamente em função desse aspecto fundamental que o autor diferencia, no curso da história das ciências, três processos de “matematização”: a matematização intrínseca, que implica que um novo conceito seja necessariamente pensado na relação com a matemá-tica; a matematização extrínseca, em que a representação matemática é simplesmente mobilizada em um novo domínio; e, finalmente, a mate-matização artificial, em que os instrumentos matemáticos mobilizados não levam a qualquer ganho epistemológico.

O percurso do autor ao trabalhar esses três processos de matematiza-ção é bastante claro ao destacar a necessidade da relação entre as mate-máticas e a linguística para que possamos falar de uma matematização intrínseca, de uma linguística matemática: qualquer avanço conceitual na linguística representa também, de outro lado, a possibilidade de mo-bilizar as matemáticas em direção à busca por novos instrumentos e novas formas de representação. É nesse sentido que o autor destaca a fecundidade, a “projetabilidade”, como condição necessária para uma matematização de sucesso, a qual depende também de uma confirma-

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ção empírica, do foco em propriedades específicas do objeto de estudo e, ainda, da capacidade de superar, por operações específicas do modelo construído, eventuais contraexemplos.

Diante da constatação de que os modelos formais fizeram, então, ter-reno para o processo de matematização da linguística, Auroux se detém, em seu capítulo dois, à relação entre Formalização e Matematização. Se o senso comum sugere que estes dois procedimentos seriam qua-se sinônimos, somente a análise histórica permitiria uma compreensão mais rica sobre cada um deles. O autor sugere, então, que se observe o processo de gramatização: a criação de gramáticas rompe com a linea-ridade temporal da linguagem e a leva para um plano bidimensional que pressupõe a existência da escrita; nesse processo, o que entra em jogo, necessariamente, é uma metalinguagem que permite um trabalho sobre paradigmas e exemplos e que, desse modo, possa dar conta de uma ge-neralização de determinados aspectos das línguas.

Para Auroux, a linguagem é naturalmente metalinguística, porque cada palavra pode representar tanto seu nome quanto seu conceito. Essa propriedade da linguagem não a deixaria, porém, longe de qualquer sistema formal, pois esse também pressupõe uma metalinguagem que possa lidar com os paradigmas e exemplos. Contudo, a metalinguagem de qualquer sistema formal, mesmo o da gramática (e da escrita), é essencialmente tributária a outra propriedade da linguagem, a transpo-sicionalidade: o suporte fônico pode dar lugar a outros suportes. Se a metalinguagem própria das linguagens tem como efeito uma ambigui-dade “natural”, o desafio da formalização é duplo: à medida que deve generalizar aspectos da linguagem em um sistema “necessariamente não unívoco” (p.25), deve também ser capaz de restringir essa ambigui-dade. Esse trabalho, como podemos imaginar, não pode ser feito sem que antes a transposição disponha de meios que esvaziem a significação do elemento a ser generalizado. É justamente nesse ponto que clássicos modelos da lógica, em que a representação literal permite que palavras deem lugar a letras, demonstram-se decisivos para a matematização: é só diante da abstração inicial que se estabelecem efetivos sistemas formais, mas são as ações sobre esses sistemas, com procedimentos que dão conta de propriedades específicas das línguas, como o significado ou o valor fônico, que nos permitem falar de matematização. É jus-tamente pelo trabalho desses sistemas sobre a linguagem que Auroux delimita três diferentes processos de matematização: a matematização de cobertura, em que elementos da língua (sílaba, fonema e letras, por exemplo) cedem lugar a propriedades ou números; a matematização substitutiva, em que os elementos de uma linguagem são substituídos por outros elementos que preservam as propriedades dessa linguagem;

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e a matematização semântica, em que a significação dos elementos da linguagem é o aspecto central e recebe, assim, uma representação ma-temática.

No capítulo três, As propriedades interessantes, o pesquisador francês estreita o foco sobre a gramática para ilustrar como, desde o início, ela já dava ares de cientificidade: como em qualquer ciência, seu objeto es-teve, inicialmente, bastante definido sobre a correção, a boa formação da expressão. Tratar dessa boa formação impunha a gramáticos um trabalho sobre regras que fizessem convergir a gramaticalidade e a aceitabilidade de uma expressão. Contudo, adverte Auroux, esse era apenas meio cami-nho: as regras trabalham essencialmente na orientação e na descrição de um fenômeno, não implicando, pois, sua existência; as ciências, por sua vez, buscavam a formulação de universais, as leis, que dessem conta de fenômenos necessariamente existentes, constatáveis. Não é à toa, pois, que a ideia de leis, ainda que equivocadamente, tenha sido apropriada na gramática histórica e comparada: ainda que se falasse em “leis fonéticas’, estas não davam conta da relação de fenômenos restritos e obrigatórios que efetivamente condissesse a uma formulação universal.

Na esteira das propriedades interessantes, Auroux demonstra ainda como a lógica, por muito tempo, determinou a concepção de enunciado, limitando-o às condições de valor de verdade e à construção prototípica Sujeito – Cópula – Predicado. Essa restrição imposta pela lógica, como ciência, limitava sobremaneira a linguagem natural, sua linguagem alvo, a que se propunha analisar. Não era raro, pois, que expressões da linguagem natural fossem minimamente manipuladas – formalizadas, de certa forma – a fim de reduzi-las à linguagem-objeto, a uma expres-são em que o valor de verdade e a estrutura predicativa ficassem explíci-tos. Evidentemente, entre a linguagem alvo e a linguagem-objeto havia considerável diferença, mas o lógico ainda lançaria mão de um terceiro nível que as pudesse formalizar e representar, no qual a metalinguagem entraria para dar conta de termos teóricos e teoremas. Essa concepção de enunciado proposta pela lógica em muito influenciou a concepção gramatical, que o reduzia, de certa forma, a duas propriedades funda-mentais: a completude e a redutibilidade. O xeque a essas concepções de enunciado só veio muito mais tarde, no século XX, sobretudo com Chomsky, quando a noção de composicionalidade passa a ser funda-mental: seria, então, a presença, a ausência e organização dos elementos linguísticos que definiria o bom ou mau “enunciado”. O importante, para Auroux, é destacar que essa revisão conceitual impunha, desde início, o distanciamento das duas propriedades anteriormente atribuídas aos enunciados: o “acabamento”, seu efeito de completude, seria an-tes decorrência da “capacidade de tratamento mnemônico do homem”

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(p.30) do que do próprio enunciado; qualquer enunciado é, pois, sempre uma já redução de uma expressão na linguagem natural. Se a “rup-tura chomskyana”, pela noção de composicionalidade, representa uma aproximação ao cálculo aritmético, posto que a ausência ou presença de elementos pudesse ser “operacionalizada”, Auroux não deixa passar o primeiro problema desse modelo: embora pudesse dizer algo sobre uma boa formação do enunciado, ainda estava muito longe de tratar da significação, outro aspecto fundamental da linguagem natural.

De qualquer forma, porém, a ideia de composicionalidade abre espa-ço para uma importante para reflexão: é uma ideia que só é possível se se considerar alguma semelhança entre a linguagem e as matemáticas. É a essa semelhança que Auroux se detém no capítulo quatro, A lingua-gem e os números. Para Auroux, o caráter discreto dos números e das palavras – são, afinal, “unidades” passíveis de uma combinação que não as destitui de sua distinção – alimentou iniciativas de uma matematiza-ção da linguística. Primeiramente, o autor destaca a repercussão da “lei de Zipf”, que buscava um “universal” que fizesse corresponder a fre-quência de emprego de elementos linguísticos e as mudanças fonéticas: tratava-se, evidentemente, de um esforço de Zipf por uma aproximação com as “ciências naturais que o permitisse tratar a linguagem, efetiva-mente, como “fenômeno natural”. A questão essencial para as pesquisas de Auroux, contudo, nunca é apenas a enumeração de acontecimentos históricos, mas uma análise de suas contingências. Para o autor, o fra-casso da “lei de Zipf” reside essencialmente em dois fatos: primeiro, como lei estatística, ela não forneceria explicações específicas sobre a linguagem; segundo, a ideia de uma constante própria da língua é uma evidência do desconhecimento do fator cultural que afeta as línguas – e que deixa à margem, portanto, qualquer hipótese de tratamento como “fenômeno puramente natural”.

O empreendimento de Zipf, contudo, não é fato isolado na história. O conhecimento histórico de Auroux permite que ele nos apresente tam-bém aos trabalhos de lexicógrafos da Renascença que buscavam, pela atribuição de números às linhas de uma lista de palavras corresponden-tes em diferentes línguas, uma nomenclatura universal, mostrando, as-sim, claro desconhecimento de que o valor semântico é próprio de cada língua – é arbitrário – e não pode, pois, ser concebido como nomencla-tura. O autor nos apresenta ainda mais: mesmo no século XVIII houve trabalhos que buscavam calcular a “boa formação” gramatical a partir da atribuição de valores numéricos a funções gramaticais. Auroux não poupa: trata-se, para o autor, de um procedimento pouco fecundo, pois apenas “substitui (inutilmente e de forma ambígua) os nomes habituais das funções gramaticais por número” (p.39).

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Em Leis e medidas de semelhanças, capítulo cinco do livro, o autor nos apresenta a trabalhos específicos que procuravam, na semelhan-ça entre línguas, leis que permitissem mensurar o distanciamento entre elas ou determinar, pontualmente, no curso temporal da história, o nas-cimento delas. O compasso de Auroux neste ponto da obra se preserva: a descrição da iniciativa de matematização seguida da reflexão quanto às causas de seus impasses e fracassos. É assim, então, que conhecemos faces de uma história da linguística: sempre reportados à relação entre a apropriação de instrumentos matemáticos, sobretudo na gramática com-parada, e uma concepção quanto à natureza da linguagem. O autor rela-ciona, então, a ideia de Court de Gébelin em busca de um método que permitisse alcançar a “língua primitiva” aos trabalhos de comparatistas, que proporiam as “leis fonéticas”, e ao empreendimento de Ruhlen, que teria chegado, pela comparação de vocabulários mínimos, a um conjun-to de raízes que comporiam a “língua mãe da humanidade” (p.42); da mesma forma, elucida o percurso que levaria Swadesh à constituição da glotocronologia, que procurava em instrumentos matemáticos formas de datar a separação das línguas. A grande questão para Auroux, neste ponto de sua reflexão, é que, de uma ou de outra forma, essas inicia-tivas guardavam sempre uma “orientação positivista” (p.40): na ânsia de fazer soar mais científico o objeto linguagem, levavam a aproxima-ções quase arbitrárias – e notadamente inconsistentes – entre línguas; as operações autorizadas pelos modelos não conseguiam sustentar se-quer os conceitos de que lançavam mão, como os de “palavra”, “raiz”, “significação” ou “língua”; a mínima confiança nos resultados obtidos por cada modelo demandaria uma irrestrita confiança nas hipóteses que o sustentavam; e, finalmente, a presença de constantes nas fórmulas que procuravam generalizar acontecimentos linguísticos é, no mínimo, incômoda, pois “se tais constantes existem, então a linguagem não per-tenceria à contingência da história” (p.47).

Considerando que “a lógica concerne efetivamente a fenômenos linguísticos” (p.33), Auroux procura, no capítulo seis, Os usos das fun-ções, fazer terreno para a demonstração de como “é a matematização contemporânea da lógica que abriu caminho de acesso em direção ao da gramática” (p.34). O pesquisador leva-nos, então, a observar a signi-ficativa diferença entre a proposta de Le Marchant Douse e de Gottlob Frege. O cuidado de Auroux na análise e descrição da ideia de Le Mar-chant Douse não nos deixa dúvida do quanto este autor apenas buscava, na analogia matemática, uma forma de passar, com base em uma não explicada restrição dos fenômenos descritos na lei de Grimm, de uma representação temporal da linguagem para uma representação funcio-nal: as restrições impostas ao trabalho de Grimm evidenciavam, a uma

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só vez, quase em uma cadeia de consequências, uma matematização ainda artificial, a incapacidade de generalização e a pouca fecundidade do procedimento. O contraponto para essa análise de Auroux é o traba-lho do matemático Frege, para quem a ideia de representar a predica-ção em termos de função, ao passo que impunha uma quase absoluta revisão da concepção lógica de proposição, produzia novos conceitos e permitia maior possibilidade de trabalho sobre a linguagem-alvo. A ideia de Sylvain Auroux ao contrapor duas diferentes formas de em-préstimos entre ciências já estava sinalizada em sua afirmação de que “o sucesso [da matematização] passa pela extensão da noção de ‘cál-culo’ e pela possibilidade de utilizar outros objetos além de números” (p.39); ao mesmo tempo, é assim que o autor abre as portas para seus dois capítulos finais.

A lenta descoberta do cálculo das extensões é um capítulo singu-larmente interessante para aqueles que buscam compreender como a matematização da linguística foi, pouco a pouco, procurando lidar com seu maior obstáculo: a significação. Cumprindo com seu propósito de considerar “o longo período da história, isto é, muito mais as séries do que os momentos isolados” (p.16), o autor mostra como, desde Platão, passando por Aristóteles, já havia reflexões que procuravam tratar os conceitos segundo classes como gênero e espécie e, nessa medida, rela-cioná-los por “operações” que resultariam na significação das palavras. Se havia equívocos iniciais na forma como essas operações pretendiam tratar o valor semântico da linguagem, não se pode negar, contudo, que as “equações” que procuravam sumarizar conceitos foram a base para que se percebesse que, no fundo, parte do sentido de uma expressão de-pendia, primeiro, do entendimento do alcance particular dos termos da expressão e, depois, do efeito que a relação entre os termos estabelecia sobre cada um de seus constituintes. É assim que diferentes autores, em diferentes momentos históricos, foram levados a lidar com as noções de compreensão e extensão de ideias para, por exemplo, explicar o al-cance conceitual de expressões linguísticas e as relações de continência e não continência entre ideias apresentadas na relação predicativa “S é P” (Sujeito, Predicado). Constituíra-se, assim, segundo o autor, a “ló-gica das ideias”, que procurava nas estruturas algébricas instrumentos para descrever o funcionamento de aspectos da linguagem. Auroux não deixa em branco o fato de que a “lógica das ideias”, na tentativa de ex-plicar o pensamento sob um mecanismo de cálculo, mesmo com inves-tidas posteriores de gramáticos como Bauzée, é ainda insuficiente para que a reconheçamos como uma matematização: vários procedimentos linguísticos recorrentes que diziam respeito ao sentido (a negação, por exemplo) foram, a princípio, deixados de lado; o tratamento dado à

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linguagem deixava a entender que o sentido de um enunciado seria o conjunto das ideias que o comporiam.

De qualquer forma, porém, reconhece o autor, a “lógica das ideias” foi essencial para o posterior sucesso da matematização, sobretudo por um de seus maiores entraves: a noção de cálculo. Pouco a pouco, o avanço das ciências matemáticas permitiam que as operações algébri-cas fossem mais abstraídas e, assim, que a noção de cálculo viesse a figurar mais incisivamente sem a necessária presença dos números: estaria, então, constituído o mínimo terreno para uma matematização semântica que, porque ainda operando com a abstração das operações, delimitava um novo domínio de interesse da matemática. Havia ainda impasses – como o problema dos quantificadores –, mas havia também teóricos, especialmente Frege, dispostos a tratar deles.

O curso de qualquer ciência depende sempre das diferentes posições sobre as quais se toma um objeto específico: a consistência de qualquer modelo pode sempre soçobrar por qualquer menor variação no ponto de vista. O trabalho de Auroux, em As linguagens formais, a semân-tica dos mundos possíveis e as gramáticas aplicativas, é justamente demonstrar que mesmo os avanços de Frege no século XIX não resisti-riam às críticas, pois seus interesses mais específicos impunham limites à possibilidade de cálculo. Foi necessário, então, que se pensasse mais detidamente a relação que se estabelecia entre a linguagem objeto, as regras que permitiam tratá-la e as fórmulas a que a manipulação des-sas regras permitia chegar: eis o passo decisivo em direção à teoria de modelos, cujo foco passava a um domínio específico de objetos para, somente assim, proceder ao estudo de suas propriedades. Estaríamos diante, de qualquer forma, de sistemas formais que, por deslocamentos de questões, levariam a “avançar sobre a via da definição de diferentes tipos de linguagens formais” (pp.67-68). Auroux demonstra como essas linguagens formais desenhariam novas preocupações a pesquisadores no século XX, especialmente sobre a noção de “calculabilidade”. A ideia da máquina de Turing, autômato que daria conta de calcular, in-finitamente – cobrindo, assim, a recursividade das linguagens naturais –, os símbolos presentes em células lidas e/ou escritas, viria a concreti-zar, definitivamente, o alcance da noção de extensão, sobretudo porque “a numerização, ou a analogia numérica, não é mais uma necessidade: sobre as casas da máquina de Turing a natureza dos símbolos que nós inscrevemos não tem nenhuma importância” (p.69).

Que a “teoria das linguagens formais [seja] uma obra de matemáti-cos e de lógicos” (p.70) não impediu, contudo, que linguistas se voltas-sem para elas e, pouco a pouco, a redirecionassem para uma aplicação às linguagens naturais. Caso singular e decisivo, sob certos aspectos,

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para a matematização da linguística é o de Chomsky, pesquisador que, sobretudo pela noção de regra de reescrita – outra “ruptura chomskya-na” – o levaria a trabalhar com gramáticas transformacionais e, assim, apesar dos impasses, a promover a “aproximação das linguagens for-mais e das linguagens naturais” (p.74). Auroux destaca, neste ponto, que a matematização proposta por Chomsky, porque dizia respeito es-sencialmente à sintaxe, se limitava a uma abordagem muito superficial da semântica, pois a restringia aos elementos terminais das línguas, ao léxico. Essa limitação de Chomsky motivaria diferentes autores a se deter sob a “construção semântica da linguagem” (p.78) e, assim, a reintroduzir, por exemplo, para o estudo de construções modalizadoras, a noção de “mundo possível”. Mas lidar com a semântica das línguas naturais exigia ainda outras aproximações das linguagens formais para a busca de procedimentos que permitissem lidar com a ambiguidade e a negação (novamente), por exemplo. Não foram poucos, pois, os em-preendimentos “aplicativos” que buscavam lidar, pelas categorias gra-maticais, por combinações lógicas ou por operadores de cálculo, com a semântica das línguas naturais. Para Auroux, o essencial desses empre-endimentos é que eles levam a “considerar não somente o encadeamen-to de expressões de línguas naturais, mas as próprias expressões, senão sempre como uma sequência de operações ou aplicações, pelo menos como marcas de operações” (p.86): estaríamos diante, então, de uma matematização semântica, essencialmente intrínseca.

É incontestável a posição de destaque que a linguística matemática tem hoje; mas é incontestável também, por outro lado, que, mesmo com seus avan-ços, ela ainda “recobre essencialmente o aspecto puramente gramatical da lin-guagem em seu sentido mais tradicional” (p.93). O mérito da obra de Auroux é fazer-nos “descobrir” essa condição da linguística matemática e ver que ela não é fortuita. A face da história da linguística traçada em A matematização da linguística e a natureza da linguagem constitui um excelente lugar onde linguistas, matemáticos, lógicos e demais interessados possam encontrar obje-tos e motivações para um percurso de pesquisas em um domínio que pode ter, seguramente, importantes e interessantes desdobramentos, sobretudo se puder lidar com o desafio de que “não basta que a teoria linguística avance na direção de qualquer novo objeto ‘matematizável’ para que ela apareça como entidade ‘matemática’” (p.92).

Danilo Ricardo de OliveiraMestrando em Linguística

Universidade Estadual de Campinas