economia solidária e formação humana

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i UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO TESE DE DOUTORADO ODILON LUIZ POLI ECONOMIA SOLIDÁRIA E FORMAÇÃO HUMANA: experiências de trabalho e educação em agroindústrias familiares associativas no Oeste catarinense CAMPINAS-SP, 2006.

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Experiências de trabalho e educação em agroindustrias familiares associativas no Oeste Catarinense.Tese de Odiolon Luiz Poli.

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  • iUNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

    FACULDADE DE EDUCAO

    TESE DE DOUTORADO

    ODILON LUIZ POLI

    ECONOMIA SOLIDRIA E FORMAO HUMANA: experincias de trabalho e educao em agroindstrias familiares associativas no Oeste

    catarinense

    CAMPINAS-SP, 2006.

  • iii

    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

    FACULDADE DE EDUCAO

    TESE DE DOUTORADO

    ECONOMIA SOLIDRIA E EDUCAO: experincias de trabalho e educao emagroindstrias familiares associativas no Oeste catarinense

    Odilon Luiz Poli

    Dra. Mrcia de Paula Leite

    Este exemplar corresponde redao final da tesedefendida pro Odilon Luiz Poli e aprovada pelaComisso Julgadora.

    Data:_____/_____/_______

    Assinatura:

    ___________________________________

    Comisso Julgadora:

    ___________________________________

    ___________________________________

    ___________________________________

    ___________________________________

    ___________________________________

    ___________________________________

    2006

  • vRESUMO

    A presente tese investiga como os agricultores familiares envolvidos na criao de agroindstriasfamiliares associativas no Oeste catarinense, uma resposta poltica crise enfrentada pelaagricultura familiar desde a segunda metade dos anos 70, vm reelaborando sua experincia devida e de trabalho a partir da implantao desses novos empreendimentos. Ela procura observarem que medida os ideais polticos que estiveram presentes na origem desses empreendimentospermanecem no imaginrio desses trabalhadores e no seu cotidiano de trabalho. O problema que orientou o percurso de investigao pode ser assim proposto: como oscamponeses envolvidos na criao e operao de agroindstrias familiares associativas ligadas Unio Central da Agroindstrias Familiares do Oeste catarinense (UCAF), esto reelaborandosuas experincias de vida e de trabalho a partir da implantao dessas unidades de produo?A hiptese com que trabalhamos a de que a forte motivao poltica presente na origem dessesempreendimentos foi um dos fatores que influenciou decisivamente a trajetria de organizao econduo dos trabalhos no cotidiano das agroindstrias, bem como na forma de interpretar seusignificado. Porm as decises dos trabalhadores envolvidos na organizao e funcionamento dosempreendimentos e o modo como esses empreendimentos so percebidos por esses trabalhadores,so influenciadas tambm por outros fatores de ordem objetiva (situao econmica,necessidades materiais, presena e atuao dos mediadores, etc) e de ordem subjetiva(representaes sobre o futuro, objetivos e interesses pessoais, ideais polticos, expectativas deinsero social, elaboraes pessoais sobre a insero no trabalho, etc). O trabalho de pesquisa foi organizado em trs momentos principais. Num primeiro momento,desenvolveu-se um estudo exploratrio voltado caracterizao das experincias existentes naregio Oeste catarinense que, atualmente, podem ser agrupadas em torno do conceito deeconomia solidria. Num segundo momento, realizou-se uma caracterizao geral dasagroindstrias familiares associativas vinculadas Unio Central das Agroindstrias Familiaresdo Oeste Catarinense UCAF, que atuam no processamento de carne suna, com o intuito dereunir um conjunto de informaes sobre os empreendimentos dessa cadeia produtiva, analisandosuas caractersticas comuns e seu impacto econmico e social para os envolvidos. O terceiromomento voltou-se ao estudo em profundidade de dois empreendimentos da cadeia produtiva dacarne suna, caracterizada no momento dois, definidos por escolha intencional.Os resultados obtidos confirmam a hiptese de trabalho e elucidam o modo como as novasexperincias de vida e de trabalho vm sendo elaboradas pelos envolvidos em cadaempreendimento, num processo histrico especfico em que interagem condies objetivas esubjetivas, alm do patrimnio cultural dessa populao.

    Palavras chave: Trabalho e Formao Humana, Economia Solidria, AgroindstriasFamiliares.

  • vii

    ABSTRACT

    This thesis investigates how the familiar farmers, are busy with the creation of the associatefamiliar agro industries associative in the West of Santa Catarina; a politic answer to face thecrisis by the familiar agriculture since the second half of 70s; is re-elaborating its life and workexperiences from implanting these new enterprises. The thesis tries to observe how the politicsideals, were presented in the origin of these enterprises, remaining in the workers imaginary andin their daily work.The problem that oriented the investigation course can be proposed like this: How the farmers areinvolved in the creation and operation of the associative familiar agro industries linked to UCAF(Unio Central das Agroindstrias Familiares do Oeste Catarinense) are they re-elaborating theirlife and work experiences from implanting these production units?The hipotese in this work is that the strong politic motivation present in the origin of theseenterprises was one of the factors that has influenced strongly in the organization trajectory andwork conduction in the daily agro industries, as well as the way to interpret its meaning.However, the decisions of the workers involved in the organization of the enterprises and the waythat these enterprises are perceived by these workers, are also influenced by other factors in anobjective order (economic situation, materials needs, presence and the mediators performanceetc.) and by the subjective order factors (representations about the future, objective and personalinterests, politics ideals, social insertion expectancy, personal elaborations about the workinsertion, etc.)The research work was organized in three main moments. In the first moment, it was developedan exploratory study directed to the experiences characterizations existing in the West of SantaCatarina that, nowadays, they can be joined to the concept of supportive economy. In the secondmoment, it came true a general characterization of the associative familiar agro industries linkedto UCAF (Unio Central das Agroindstrias Familiares do Oeste Catarinense), that act in thepork meat process, with the intention to join an amount of information about the enterprises ofthis production chain, analyzing its common characteristics and its economic and social impact tothe people involved. The third moment came directed to the deep study of two pork meatproduction chain enterprises, characterized in the second moment, defined by the intentionalchoose.The results obtained confirm the work hipotese and elucidate the way how the new life and workexperiences are being elaborated by the people involved in each enterprise, in an specifichistorical process, in what they interact objective and subjective conditions, beyond the culturalpatrimony of this population.

    Key words: Work and Human Formation, Supportive Economy, Familiar Agribusiness.

  • ix

    AGRADECIMENTOS

    Ao concluir essa tese, relembro com carinho das pessoas que, no longo percurso de sua

    elaborao, marcaram presena junto de mim, de muitas maneiras, e foram importantes para

    viabilizar essa conquista.

    De modo muito especial eu agradeo:

    prof Mrcia de Paula Leite, minha orientadora, que com sua maneira serena e segura,

    me estimulou sempre a seguir em frente.

    prof Liliana Segnini, pelas ricas trocas que possibilitou, nos momentos em que tive o

    privilgio de interagir durante o curso.

    Ao Prof. Gaudncio Frigotto pelas valiosas dicas, no princpio do trabalho, as quais

    trouxeram luzes importantes para o delineamento da pesquisa.Tambm pelo estmulo que sua

    amizade e desprendimento sempre me proporcionaram.

    s funcionrias da secretaria da ps-graduao, particularmente Nadir e Gi que, desde

    os tempos do mestrado, sempre chamaram ateno pela sua dedicao incondicional ao nosso

    atendimento.

    Unochapec por ter viabilizado as condies institucional para que esse doutorado

    fosse possvel.

    Aos colegas do Centro de Cincias da Educao, pelo estmulo que sempre me deram

    para continuar, mesmo nos momentos em que as condies objetivas conspiravam contra e

    pareciam inviabilizar o trabalho.

    Aos colegas de trabalho da reitoria da Unochapec, pela compreenso e apoio.

    Particularmente Rose e Maria Luiza que no mediram esforos (e sacrifcios) para permitir que

    eu me dedicasse concluso desta tese. Do mesmo modo Cssia e Daiane que suportaram os

    piores momentos, em que o cansao e a preocupao, tornavam o dia-a-dia muito mais difcil.

    Aos meus familiares, todos, pela incondicional compreenso minha inevitvel

    ausncia, nos longos dias que a elaborao deste trabalho consumiu.

    De um modo muito especial, aos integrantes das agroindstrias familiares associativas

    ligadas UCAF e a todos os tcnicos, dirigentes e funcionrios da APACO, pela sua pronta

    colaborao com o trabalho de pesquisa.

    A todos o meu reconhecimento e minha eterna gratido.

  • xi

    RELAO DE SIGLAS E ABREVIATURAS

    ACARESC: Associao de Crdito e Assistncia Tcnica de Santa CatarinaACARPESC: Associao de Crdito e Assistncia Pesqueira de Santa Catarina. ACI: Aliana Cooperativa InternacionalADS-CUT: Agncia de Desenvolvimento Solidrio da Central nica dos TrabalhadoresAECOS: Associao Estadual de Condomnios SuincolasAPACO: Associao dos Pequenos Agricultores do Oeste CatarinenseASCOP: Associao das Cooperativas de Produtores de Leite do Oeste Catarinense. BNDS: Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social.CAE IP: Centro de Agricultura Ecolgica de Ip (RS), atualmente denominado deCAPA: Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor.CCRA: Cooperativa Central da Reforma AgrriaCEMA: Central Municipal de Apoio CEPAGRI: Centro de Assessoria e Apoio aos Trabalhadores RuraisCEPAGRO: Centro de Estudos e Promoo da Agricultura de GrupoCETAP: Centro de Apoio s Tecnologias Alternativas Populares.CE: (Centro Ecolgico). CIDASC: Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrcola de Santa CatarinaCNBB: Conferncia Nacional dos Bispos do BrasilCNPq: Conselho Nacional de Pesquisa.CONCRAB: Confederao das Cooperativas de Reforma Agrria do BrasilCORLAC: Companhia Riograndense de Leite e correlatosCPA: Cooperativa de Produo AgropecuriaCPS: Cooperativa de Prestao de ServiosCPT: Comisso Pastoral da TerraCREDI-CHAPEC: Cooperativa de Crdito Mtuo dos Servidores Pblicos Municipais deChapec.ECOSOL: Sistema Nacional de Cooperativas de Economia SolidriaCRESOL: Sistema de Cooperativas de crdito Rural com Interao Solidria. CUT: Central nica dos TrabalhadoresDER-FUNDEP: Departamento de Estudos Rurais da Fundao de Desenvolvimento de Educaoe Pesquisa da Regio Celeiro. DESER: Departamento de Estudos Scio-Econmicos Rurais.ECOSOL: Sistema Nacional de Cooperativas de economia e crdito SolidrioEMBRAPA: Empresa Brasileira de Pesquisa AgropecuriaENMC: Ensaio Nacional de Milho Crioulo.

  • xii

    EPAGRI: Empresa de Pesquisa Agropecuria e Extenso Rural de Santa CatarinaERMC: Ensaio Regional de Milho CriouloFETRAF-SUL-CUT: Federao dos Trabalhadores na Agricultura Familiar Regio Sul daCentral nica dos TrabalhadoresFMPA: Fundo de Mini-Projetos AlternativosFUNCITEC: Fundao de Cincia e Tecnologia de Santa Catarina.GCA: Grupo de Cooperao agrcola.GESPAR: Metodologia de Gesto ParticipativaIASC: Instituto de Apicultura de Santa CatarinaITCP: Incubadora de Cooperativas PopularesMAB: Movimento dos Atingidos pelas BarragensMCA: Movimento de Cooperao AgrcolaMCT: Ministrio de Cincia e TecnologiaMMA: Movimento das Mulheres AgricultorasMMC: Movimento das Mulheres CamponesasMST: Movimento dos Sem TerrasPNUD: Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento. PROGER: Programa de Gerao de Emprego e Renda. PRONAF: Programa de Fortalecimento da Agricultura FamiliarOCB: Organizao das Cooperativas do BrasilOCESC: Organizao das Cooperativas do Estado de Santa CatarinaREDE ITA-SUL: Rede de Tecnologias Alternativas da Regio Sul.SAI: Sistema de Assessoria e InformaoSEBRAE: Sistema Brasileiro de Apoio s Micro e Pequenas EmpresasSCA: Sistema Cooperativista dos AssentadosSTR: Sindicato dos Trabalhadores Rurais.UCAF: Unio Central das Agroindstrias Familiares do Oeste CatarinenseUFSC: Universidade Federal de Santa CatarinaUNOCHAPEC: Universidade Comunitria Regional de ChapecVIANEI: Centro Vianei de Educao Popular

  • xiii

    LISTA DE QUADROS

    Quadro 1. Cooperativas Ligadas ao Sistema Cooperativista dos Assentados que atuam no OesteCatarinense ...................................................................................................................................185

    Quadro 2. Cooperativas Integrantes da Rede de Cooperativas de Comercializao Localizadas naRegio Oeste Catarinense.............................................................................................................187

    Quadro 3. Cooperativas de Produtores de Leite Localizadas na Regio Oeste Catarinense........190

    Quadro 4. Relao das Cooperativas Singulares do Sistema CRESOL, no Oeste Catarinense ...201

    Quadro 5. Resumo das Operaes realizadas pelo Banco do Povo entre 2002 e 2005................202

    Quadro 6. Empreendimentos Incubados no Programa Empresa Me de Cooperativas Populares doMunicpio de Chapec..................................................................................................................208

    Quadro 7. Agroindstrias Familiares Associativas Vinculadas UCAF.....................................215

    Quadro 8. Composio das Famlias Integrantes do Grupo de Cooperao Agrcola Hbner ....223

    Quadro 9. Composio das Famlias Integrantes do Grupo de Cooperao Agrcola Ternus .....226

    Quadro 10. Composio Atual das Famlias Integrantes do Grupo de Cooperao Agrcola MonteAlegre ...........................................................................................................................................230

  • xv

    SUMRIO

    INTRODUO GERAL ...............................................................................................................1

    O Contexto da Pesquisa................................................................................................................3

    O Problema de Pesquisa .............................................................................................................13

    A Pesquisa ..................................................................................................................................16

    Questes Tericas.......................................................................................................................19

    CAPTULO I ELEMENTOS SOBRE A FORMAO HISTRICA DO OESTE

    CATARINENSE E SUA REALIDADE ATUAL ......................................................................43

    1.1 Crise da Agricultura Familiar Tradicional............................................................................49

    1.2 Reaes Frente Crise da Economia Camponesa Tradicional ............................................54

    1.3 Crise da Agricultura Familiar Tradicional e Resistncia Poltica ........................................66

    CAPTULO II NOVAS ALTERNATIVAS DE PRODUO E A EMERGNCIA DE

    NOVOS SUJEITOS NO OESTE CATARINENSE ..................................................................73

    2.1 Processos Pedaggicos e as Transformaes da Cultura Camponesa: diferentes pedagogiasem ao .......................................................................................................................................78

    2.1.1 A pedagogia da extenso rural ......................................................................................79

    2.1.2 A pedagogia da assistncia tcnica das empresas integradoras.....................................85

    2.1.3 A pedagogia da igreja, a partir da teologia da libertao ..............................................89

    2.1.4 Os movimentos sociais - seus discursos e suas prticas................................................94

    2.1.5 A APACO e seus programas educativos .......................................................................97

    2.1.6 Os programas de formao e intercmbio desenvolvidos pelo movimento sindical...110

    2.1.6.1 O programa terra solidria....................................................................................110

    2.1.6.2 O programa de agricultor para agricultor..........................................................112

    2.1.7 A escola .......................................................................................................................113

    2.1.8 A eletrificao rural .....................................................................................................114

    CAPTULO III SOBRE A ECONOMIA SOLIDRIA ORIGENS, CONCEITOS E

    DESENVOLVIMENTO ATUAL..............................................................................................118

    3.1 Origens da Economia Solidria ..........................................................................................119

    3.2 Sobre o Conceito de Economia Solidria ...........................................................................124

    3.3 Sobre o Significado Social e Poltico da Economia Solidria............................................130

  • xvi

    CAPTULO IV O DESENVOLVIMENTO DA ECONOMIA SOLIDRIA NO OESTE

    CATARINENSE .........................................................................................................................146

    4.1 Fatores que Favoreceram o Desenvolvimento da Economia Solidria no Oeste Catarinense..................................................................................................................................................148

    4.1.1 A densidade institucional ............................................................................................148

    4.1.2 Os instrumentos de apoio ao desenvolvimento da economia solidria .......................155

    4.1.2.1 As entidades fomentadoras...................................................................................156

    4.1.2.2 Instrumentos de apoio: as redes............................................................................160

    4.1.2.3 Os programas de fomento a empreendimentos de economia solidria ................165

    4.1.3 Os programas de formao profissional ......................................................................170

    4.1.4 A existncia de um capital social frente s dificuldades de reproduo da agriculturafamiliar .................................................................................................................................171

    4.2 Frentes de Desenvolvimento da Economia Solidria no Oeste Catarinense ......................172

    4.2.1 Produo agrcola associativa ou agricultura de grupo ...............................................173

    4.2.1.1 Cooperativas do ramo agropecurio .....................................................................180

    4.2.1.2 Associaes de agricultores..................................................................................192

    4.2.1.3 Grupos de cooperao agrcola ............................................................................194

    4.2.1.4 Condomnios.........................................................................................................195

    4.2.1.5 Clubes de integrao e troca de experincias .......................................................196

    4.2.2 Os Sistemas de crdito solidrio..................................................................................196

    4.2.2.1 O fundo de mini projetos ......................................................................................198

    4.2.2.2 O sistema CRESOL..............................................................................................198

    4.2.2.3 As associaes de garantia de crdito (Fundos de Aval e Banco do Povo) .........200

    4.2.2.4 O Sistema ECOSOL .............................................................................................203

    4.2.3 Os mini projetos alternativos.......................................................................................205

    4.2.4 Os empreendimentos econmicos e solidrios surgidos a partir de programas pblicosde fomento economia solidria ..........................................................................................207

    4.2.5 Agroindstrias familiares associativas ........................................................................209

    CAPTULO V EXPERINCIAS DE VIDA E DE TRABALHO NAS AGROINDSTRIAS

    FAMILIARES ASSOCIATIVAS DO OESTE CATARINENSE ..........................................217

    5.1 Caracterizao dos Empreendimentos Selecionados..........................................................222

    5.1.1 O empreendimento A ..................................................................................................222

    5.1.2 O empreendimento B...................................................................................................229

    5.2 Sobre a Origem Social dos Sujeitos ...................................................................................234

  • xvii

    5.3 A Experincia do Trabalho Associado ...............................................................................236

    5.4 Experincias de Trabalho nas Agroindstrias ....................................................................256

    5.4.1 Apontamentos e consideraes sobre as novas experincias de trabalho ...................265

    5.5 Anotaes e Consideraes sobre as Novas Relaes de Produo...................................277

    5.6 Horizontes Societais e Perspectivas Futuras: observaes e apontamentos.......................291

    CONCLUSO GERAL .............................................................................................................293

    REFRENCIAS BIBLIOGRFICAS .....................................................................................303

    ANEXO........................................................................................................................................321

    APNDICE .................................................................................................................................325

  • 1INTRODUO GERAL

    A presente tese investiga como os agricultores familiares envolvidos na criao de

    agroindstrias familiares associativas no Oeste catarinense, uma resposta poltica crise

    enfrentada pela agricultura familiar desde a segunda metade dos anos 70, vm reelaborando sua

    experincia de vida e de trabalho a partir da implantao desses novos empreendimentos. O

    problema que me propus a esclarecer como os camponeses envolvidos na criao e operao de

    agroindstrias familiares associativas ligadas Unio Central da Agroindstrias Familiares do

    Oeste catarinense (UCAF)1, esto reelaborando suas experincias de vida e de trabalho a partir da

    implantao dessas unidades de produo? O trabalho de investigao resgata os processos

    educativos presentes na trajetria de transformao desses trabalhadores, at ento habituados

    apenas s prticas tradicionais da agricultura familiar2, procurando captar ainda o significado

    dessas agroindstrias familiares na trajetria de vida dos trabalhadores envolvidos, tanto em

    termos de alternativa pessoal de vida, quanto em termos de alternativa de construo (ou no) de

    novas formas sociais de futuro3, no contexto do movimento social de economia solidria, do qual

    passaram a tomar parte, a partir de meados dos anos 90.

    1 A Unio Central das Agroindstrias Familiares do Oeste Catarinense (UCAF) surgiu por iniciativa dasagroindstrias ligadas Associao dos Pequenos Agricultores do Oeste Catarinense (APACO), estimulados poresta, como encaminhamento voltado aprofundar os avanos obtidos atravs de diversas aes de fomento edesenvolvimento de modo a melhorar a qualidade dos seus produtos e do prprio processo de produo, visando criarcondies de participao formal no mercado. A entidade visa socializar a oferta de servios e a assessoriaprofissional indispensveis ao funcionamento das agroindstrias e a melhoria constante de sua produo. 2 Destaque-se o carter acentuadamente cclico e repetitivo das atividades da agricultura familiar tradicional. Nesseprocesso de trabalho, o trabalhador aprendia a executar as tarefas atravs da convivncia com os adultos e, depoistendia a repeti-las por toda a vida, como uma tradio. Atravs desses processos educativos, esses trabalhadoreslograram a preparao necessria para criar, organizar e gerir agroindstrias familiares associativas. Diferentementedas prticas ligadas agricultura familiar tradicional, entretanto, esse novo processo de trabalho lhes exige oexerccio de habilidades e hbitos totalmente diferentes dos quais estavam habituados3 Tomo aqui o conceito de formas sociais de futuro no sentido que lhe atribui Oliveira (apud FRIGOTTO, 1999), ouseja, dizem respeito s possibilidades de produo de novas condies sociais de vida e, portanto, de novas condiessociais de produo, capazes de superar tanto as contradies atuais do capitalismo, quanto daquelas (j extintas) dosocialismo real, incorporando o imenso progresso tcnico a favor das necessidades e ampliao da liberdade humana.Como o demonstra Frigotto, o caminho de construo dessa alternativa na perspectiva de Oliveira e Hobsbawmcontinua a ser a construo do socialismo.

  • 2A hiptese com que trabalho a de que a forte motivao poltica presente na origem

    desses empreendimentos4 foi um dos fatores que influenciou decisivamente a trajetria de

    organizao e conduo dos trabalhos no cotidiano das agroindstrias, bem como na forma de

    interpretar seu significado. Porm as decises dos trabalhadores envolvidos na organizao e

    funcionamento desses empreendimentos e o modo como so percebidos por esses trabalhadores,

    so influenciadas tambm por outros fatores de ordem objetiva (situao econmica,

    necessidades materiais, presena e atuao de mediadores, etc) e de ordem subjetiva

    (representaes sobre o futuro, objetivos e interesses pessoais, ideais polticos, expectativas de

    insero social, elaboraes pessoais sobre a insero no trabalho, etc). Desse modo, seguindo as

    pistas abertas por Thompson (1981, 1989) acredito que a reelaborao da experincia de vida e de

    trabalho por esses trabalhadores, ocorre dentro das coordenadas da cultura e das condies de

    vida do grupo social em que esto inseridos e do contexto de relaes por ele estabelecido, sendo

    um processo a um s tempo, de carter social e coletivo, bem como pessoal e subjetivo, tecido

    por vias muito complexas e, portanto, imprevisveis, que depende do modo como ocorre a

    insero pessoal de cada sujeito no processo e da interpretao subjetiva sobre o seu significado.

    Apresento a seguir alguns aspectos que permitem esclarecer os contornos do problema de

    pesquisa que orientou a presente elaborao.

    4 Como ser esclarecido um pouco mais adiante, o surgimento dessas agroindstrias familiares associativas ocorreu apartir de uma reao poltica dos agricultores frente a uma acentuada crise que passou a ser enfrentada pelaagricultura familiar da regio, no momento em que o capital industrial passou a atuar no campo, buscando integraressa agricultura ao circuito e lgica da produo industrial. Esse processo de avano das relaes do capitalismoindustrial no campo ficou conhecido no Brasil como modernizao da agricultura. Frente a ela os agricultoresapresentaram diferentes reaes, como ser esclarecido no primeiro captulo da tese.Uma dessas formas de reao foi a reao poltica, levada a efeito atravs da organizao de quatro movimentossociais, cada um dos quais agregando uma identidade especfica, dentro do contexto geral da agricultura familiar daregio. Os quatro movimentos em tela so: o Movimento dos Sem Terra (MST), o Movimento dos Atingidos pelasBarragens do Rio Uruguai (MAB), o Movimento das Mulheres Agricultoras (MMA) e o Movimento de OposiesSindicais, junto aos Sindicatos de Trabalhadores Rurais.Nos seus primeiros anos esses movimentos sociais se caracterizaram pela realizao de grandes mobilizaes demassa de protesto e de reivindicao, alm de outras aes com o mesmo carter. Contudo, a partir do final dadcada de 80, os integrantes desses movimentos e, alguns mediadores externos ligados, principalmente, igrejacatlica, ao Partido dos Trabalhadores e ao movimento sindical, passaram a trabalhar na busca de alternativas deproduo para a agricultura familiar, com o objetivo tanto de redimensionar as relaes e o papel da agriculturafamiliar com a sociedade e superar o carter meramente reivindicatrio dos movimentos, quanto no sentido deconstruir uma sociedade alternativa, em relao ao capitalismo e ao socialismo real. Foi nesse contexto e com essaintencionalidade que essas agroindstrias familiares associativas foram criadas. A esse respeito, ver POLI (1995).

  • 3O Contexto da Pesquisa

    A colonizao foi o processo atravs do qual o Oeste catarinense5 passou a ser povoado

    por camponeses descendentes de imigrantes europeus (especialmente alemes, italianos e

    poloneses), vindos principalmente do vizinho estado do Rio Grande do Sul, no qual, o

    esgotamento da fronteira agrcola nas terras destinadas colonizao forou a sada de muitos

    camponeses (sobretudo casais jovens) para outros estados, especialmente para o Oeste

    Catarinense e Sudoeste do Paran. Montanhosas, de difcil acesso e enjeitadas pela grande

    propriedade, essas terras se assemelhavam muito s recebidas pelos primeiros colonizadores,

    quando da sua chegada ao Brasil. (POLI, 1995).

    A estratgia do governo catarinense para promover a colonizao foi a concesso de

    grandes reas a empresas colonizadoras que se encarregaram da retirada de madeira e subdiviso

    da rea em pequenos lotes a serem vendidos para os descendentes de imigrantes, vindos do RS, e

    tambm da limpeza do terreno, que consistia na retirada dos caboclos intrusos que habitavam

    a regio sem ter ttulo das terras que ocupavam.

    O processo de colonizao, iniciou-se em 1910, mas s comeou a se intensificar a partir

    de 1916, aps a soluo do conflito de fronteiras entre Paran e Santa Catarina conhecido como

    Guerra do Contestado. A partir de ento, o governo catarinense passou a dar um franco incentivo

    ao processo colonizador, visando consolidar sua presena na regio. A partir dessas iniciativas, a

    colonizao ganhou maior impulso, especialmente depois de 1930, aproximadamente,

    estendendo-se at a dcada de 60.

    5 Existem diferentes critrios para a definio da rea de abrangncia da regio conhecida como Oeste catarinense.Campos (1987) inclui nesse conceito apenas a rea da Micro Regio Colonial Oeste Catarinense, cuja dimenso total de 14.222 km2, estendendo-se da fronteira da Repblica Argentina at os municpios de Passos Maia e PonteSerrada (inclusive), onde ocorre o incio da Regio Colonial do Rio do Peixe. Contudo, a maioria dos estudiosos5utiliza um outro critrio pelo qual a regio Oeste Catarinense compreende o Vale do Rio do Peixe, Meio e ExtremoOeste Catarinense, englobando as microrregies homogneas Colonial Oeste Catarinense e Colonial do Rio do Peixe,conjuntamente, conforme se pode observar no mapa (ANEXO A).Esta definio deve-se ao fato de que essa rea constitui uma regio homognea com caractersticas bastantesemelhantes em seu relevo, nas caractersticas do processo de colonizao e na sua estruturao econmica,alicerada, atualmente, na produo agrcola e agroindustrial e em pequenos estabelecimentos quase sempreintegrados ou dependentes dos complexos agroindustriais que se estabeleceram na Regio a partir da dcada de 50.Este ser o critrio de definio adotado no presente trabalho.Definida a partir deste critrio, a regio possui uma superfcie territorial de 25.338 km2 , correspondendo a 26,4% doterritrio do estado de Santa Catarina. Mesmo sendo uma rea de menor densidade populacional, abriga 25% dapopulao estadual, destacando-se, no plano econmico, especialmente pelo seu setor agrcola e agroindustrial, oqual gera pelo menos a metade do valor global da produo primria do estado de Santa Catarina.

  • 4A partir do processo de colonizao, o Oeste catarinense estruturou sua economia com

    base num modelo de agricultura familiar que, mesmo preservando muitas caractersticas do

    modelo original6 campons (LAMARCHE, 1993) voltava-se principalmente produo de

    excedentes destinados ao mercado. Proprietrios da terra que cultivavam, comprada com o

    investimento de uma certa quantia em dinheiro, esses agricultores familiares controlavam a maior

    parte dos fatores necessrios sua produo, o que lhes conferia uma certa autonomia em relao

    sociedade abrangente. No obstante, participavam do processo produtivo na condio de

    produtores de matrias primas destinadas ao processamento industrial, raramente

    comercializando seus produtos aos seus consumidores finais (POLI, 1995, 2001).

    No final dos anos setenta, esse modelo de produo agrcola, que prosperou por pelo

    menos trs dcadas e constituiu as bases para a integrao da regio economia nacional, entrou

    em crise. As novas condies de produo colocadas pelo processo de modernizao da

    agricultura, a partir da incorporao dos avanos da engenharia gentica e de insumos de origem

    industrial, elevaram os padres de produtividade a nveis antes inimaginveis e inviabilizaram a

    continuidade do modelo de produo tpico da agricultura familiar tradicional da regio,

    destruindo as bases do modo de vida por ela sustentado.

    Diante desse fenmeno, seguindo as pistas abertas por dois estudos realizados

    anteriormente (POLI, 1995, 2001) observei que as reaes dos camponeses foram bastante

    diversas. Uma parcela considervel abandonou o campo para ocupar as vagas abertas nos grandes

    frigorficos instalados na regio a partir de ento, assumindo a condio operria. Outra parcela

    6 Lamarche (1993) procurou construir um modelo explicativo sobre o modo como as unidades camponesas deproduo interagem com a sociedade capitalista que as envolve, que fosse capaz de elucidar variaes e combinaesde elementos que, por vezes, aparentam ser confusas ou at caticas em termos de assimilao de influncias ou deresistncia a elas. Ao observar o comportamento dessas unidades, percebeu que, em muitas regies, como na Frana,em boa parte da Europa e, em conseqncia, nos ncleos coloniais do Sul do Brasil, originados a partir da imigraoeuropia, a absoluta maioria das exploraes familiares advm do modelo campons, cujas caractersticas foramdesenvolvidas ao longo de um perodo de desenvolvimento histrico do campesinato europeu. Isto que dizer que,nestes casos, a quase totalidade das unidades de explorao agrcola teve um antepassado campons que lhetransmitiu os traos socioculturais caractersticos desse modelo campons. A esse patrimnio cultural original, aoqual todas as exploraes agrcolas familiares esto ligadas, em maior ou menos grau, ele chama de ModeloOriginal. A existncia desse modelo original comum no significa, no entanto, que todas as exploraes agrcolassejam idnticas, possuindo um mesmo sistema de valores e mesmas ambies para o futuro. Ao contrrio, [...] oestado de conservao deste patrimnio, pode variar consideravelmente de uma sociedade para outra e mesmo deum explorador para outro da mesma sociedade (ibidem, p. 17). O importante, segundo o autor, perceber o papelfundamental, no modo de funcionamento da explorao familiar, de um modelo anterior ao qual todo explorador,com maior ou menor conscincia, necessariamente se refere.

  • 5ingressou na produo integrada7 e, mesmo permanecendo no campo, tornou-se parte do processo

    de produo industrial, atuando a partir da determinao direta das indstrias integradoras. Uma

    parcela menor buscou novas fronteiras agrcolas, deslocando-se para outros estados como Mato

    Grosso, Rondnia, Maranho e outros. Outros ainda, por razes diversas e ainda no estudadas,

    resistiram ao xodo e integrao agroindstria, permanecendo no campo praticando uma

    agricultura pouco tecnificada, s custas de uma drstica reduo do consumo, experimentando um

    processo de empobrecimento progressivo. Uma parcela, por fim, optou pela reao poltica,

    combatendo as novas investidas do capital industrial, a partir da organizao de movimentos

    sociais de contestao, reivindicando melhores cndies de vida e de trabalho na agricultura.

    Atravs deles, desenvolveram uma srie de estratgias de resistncia que incluam desde as

    mobilizaes de massa de protesto e reivindicao, at estratgias de produo alternativa, com

    destaque para a produo associada e o desenvolvimento de tecnologias alternativas, baseadas

    nos princpios da agroecologia e na negao da chamada agricultura qumica. Esse processo de

    lutas foi um momento fundamental de afirmao da categoria agricultura familiar8 como

    identidade comum e elo de articulao das diferentes frentes de luta, bem como para a construo

    de alternativas de viabilizao das unidades familiares de produo agrcola.

    A compreenso dos desdobramentos desse processo exige tomar em considerao, alm

    da realidade regional, as transformaes sociais, econmicas e culturais ocorridas no contexto do

    capitalismo mundial, as quais vm provocando profundas mudanas nas condies e nas

    perspectivas de vida e de trabalho da populao. A partir dos anos 90 passamos a presenciar, no

    Brasil, a intensificao dos efeitos de um fenmeno complexo, de abrangncia mundial, que pode

    ser expresso, entre outras denominaes, como o advento de uma nova ordem mundial, com a

    qual a populao em estudo precisou interagir. Apesar da diversidade de interpretaes sobre o

    fenmeno, h um razovel consenso entre os diferentes autores consultados de que as ltimas trs

    dcadas foram marcadas pela acelerao de vrios processos de mudana e que, no Brasil, os

    efeitos desse processo se fizeram sentir mais intensamente a partir da dcada de 90. Dentre os

    7 A produo integrada uma modalidade de produo agropecuria desenvolvida na regio, onde os agricultores,mesmo continuando a ser proprietrios da terra, passam a sediar unidades de produo de matrias primas,totalmente integradas ao circuito industrial de produo, em que todas as especificaes da produo (o que, quanto ecomo produzir), passam a ser definidas pelas prprias indstrias integradoras. Nessa modalidade de produo osagricultores passam a atuar como mo-de-obra do processo de produo industrial, sob superviso direta da indstriaintegradora e sem qualquer autonomia. Um estudo bastante completo dessa forma de produo encontra-se emBelatto (1985).8 A esse respeito ver BADALOTTi (2003).

  • 6principais processos de transformao, vale citar a crise do Padro de Acumulao Fordista e o

  • 7advento de novas tecnologias e novas formas de organizao do trabalho; a mundializao dos

    mercados de bens e fluxos financeiros; a difuso ampla das teses e polticas neoliberais e,

    principalmente, a crise da sociedade salarial9 e do estado de bem estar social.

    Do ponto de vista do tema em estudo, merece destaque, de modo especial, o fato de que

    a confluncia desses fatores possibilitou uma significativa economia, em termos de mo-de-obra

    utilizada pelas empresas, seja pela reduo pura e simples dos postos de trabalho ou pela

    estratgia da sub-contratao, atravs do processo de terceirizao. Em termos sociais, isso

    significa o aumento da pobreza e uma crescente dificuldade de insero no mundo do trabalho de

    uma parcela considervel da populao que, para sobreviver, passa a lanar mo das mais

    diversas alternativas de produo de renda e/ou meios de vida.

    No Brasil, vrios autores destacam a interao entre os princpios fundantes da

    acumulao flexvel10 com a trajetria histrica do desenvolvimento nacional, marcada

    fortemente, entre outros, por dois processos que, na presente anlise, se revelam importantes. De

    um lado, o princpio de modernizao defensiva11 e o padro predatrio de uso da mo de

    obra.12 Os resultados dessa interao tm sido uma assimilao conservadora do novo paradigma

    industrial, marcada por profundas diferenas entre setores e sobrevivncia de muitos elementos

    do paradigma taylorista-fordista, alm do aumento do desemprego, da precarizao do trabalho e

    da insegurana registrados em outros pases, com um agravante de que isto vem a ocorrer numa

    realidade j profundamente marcada pela pobreza de grande parte da populao e pela fragilidade

    dos direitos sociais.

    Hobsbawn (apud FRIGOTTO, 1999) destaca que o resultado dessa situao um

    aumento acentuado dos problemas sociais, paralelamente a uma perda da capacidade dos estados

    para a gerao de polticas de desenvolvimento. Essa realidade dificulta sobremaneira a busca de

    solues para os graves problemas sociais enfrentados por uma parte considervel da populao

    do planeta.

    9 Modo de desenvolvimento que predominou no perodo ps-guerras at o incio da dcada de 80 do sculo XX, noqual os salrios representavam a forma absolutamente predominante de estruturao do consumo de massa. Nesseperodo, nos pases desenvolvidos, os ndices de assalariamento da populao economicamente ativa (urbana)superava a marca dos 80%.10 Expresso utilizada, com freqncia, para denominar a nova dinmica de organizao da produo, no contexto da3 revoluo industrial (Harvey, 1993). 11 Refere-se a atitude recorrente de grande parte do empresariado brasileiro que, espontaneamente, no busca amodernizao do processo produtivo, limitando-se a reagir aos surtos modernizadores vindos do exterior (Carvalho,1994; Leite, 1994)12 Diz respeito a permanncia de uma relao entre o capital e o trabalho no Brasil, na qual predomina a falta deinvestimentos no desenvolvimento da mo de obra, o autoritarismo empresarial, baixos salrios e precariedade dosdireitos sociais (Carvalho, 1994).

  • 8Castel(1998) demonstra que o atual momento de crise vai muito alm de uma

    dificuldade conjuntural relativa ao emprego, e significa uma transformao muito mais profunda

    que est rompendo com as condies bsicas que permitiam a vigncia da sociedade salarial,

    tornando-a invivel, mesmo em face de uma (pouco provvel) retomada significativa do

    crescimento econmico em nvel mundial. Em suas palavras: O desemprego no uma bolha que se formou nas relaes de trabalho e que poderia serreabsorvido. Comea a tornar-se claro que a precarizao do emprego e o desemprego seinseriram na dinmica atual da modernizao. So as conseqncias necessrias dosnovos modos de estruturao do emprego, a sombra lanada pelas restruturaesindustriais e pela luta em favor da competitividade [...]. (CASTEL, 1998, p. 516-517).

    Na esteira do rompimento do (frgil) equilbrio que caracterizou a sociedade salarial,

    assiste-se ao ressurgimento de um considervel contingente de pessoas que simplesmente

    parecem ser desnecessrios para os processos de produo, de consumo e da organizao social

    como um todo. Nas palavras do autor:[...] a caracterstica mais perturbadora da situao atual , sem dvida, o reaparecimentode um perfil de trabalhadores sem trabalho que Hannah Arendt evocava, os quaisliteralmente, ocupam na sociedade um lugar de supranumerrios, de inteis para omundo (ibidem, p. 496).

    Essa elevao acentuada do desemprego, tem levado ao que Segnini(1999) e outros

    autores tem chamado de fragilizao da fora de trabalho. Com seu poder de barganha bastante

    reduzido, os trabalhadores tem renunciado s lutas pela garantia de direitos e priorizado a defesa

    pura e simples do emprego. A precarizao e a reduo dos ganhos tem sido a tnica e tm

    contribudo em muito para a concentrao cada vez maior da riqueza.

    Singer (1997) destaca, nesse sentido, a importncia do processo de terceirizao que tem

    transformado muitos empregos formais em ocupaes sem garantias.Talvez melhor do que a palavra desemprego, precarizao do trabalho descreveadequadamente o que est ocorrendo. Os novos postos de trabalho que esto surgindoem funo das transformaes das tecnologias e da diviso internacional do trabalho,no oferecem, em sua maioria [...] as compensaes usuais que as leis e contratoscoletivos vinham garantindo. (SINGER, 1997, p. 24).

    Em pases como o Brasil, onde a renda historicamente foi bastante concentrada, em que

    a sociedade salarial sequer se instalou em sentido pleno e o estado de bem estar social sequer

    existiu, as condies atuais tm significado o aprofundamento do abismo que separa as classes

    sociais.

    A exemplo do que vem ocorrendo em outras regies, no Oeste Catarinense, as novas

    condies econmicas mundiais tm provocado o aumento da pobreza e da excluso social.

  • 9Nessa regio, o agravamento das condies de vida da populao se deve a dois processos

    concomitantes. De um lado as crescentes dificuldades de viabilizao da agricultura familiar, no

    contexto da modernizao da agricultura13 e, de outro, a diminuio do nvel de emprego no setor

    agro-industrial, nos anos 90, devido ao processo de reestruturao produtiva.

    O resultado da ao desses fatores tem sido tanto a intensificao do xodo rural e a

    concentrao da populao em alguns centros urbanos, quanto uma dificuldade crescente de

    viabilizao econmica.

    Ocorre que, at o incio dos anos 80, os deslocamentos populacionais provocados pelo

    xodo rural eram, de alguma forma, compensados pelo aumento dos postos de trabalho nos

    frigorficos em expanso. Quando, porm, no incio dos anos 90, as agroindstrias intensificaram

    a utilizao de novas tecnologias poupadoras de mo-de-obra, diminuindo sensivelmente o

    nmero de postos de trabalho14, a situao econmica da regio passou a agravar-se

    sensivelmente. Essa realidade foi acompanhada por diversos movimentos de carter poltico-

    institucional, envolvendo tanto o governo do estado de Santa Catarina, quanto as prefeituras da

    regio, cujo foco era a busca de alternativas para o desemprego crescente. Tais iniciativas,

    contudo, no lograram grande xito em termos concretos15.

    Particularmente no que se refere aos agricultores familiares, como desdobramentos do

    processo de organizao poltica registrado no final da dcada de 80, comearam a surgir novas

    formas de organizao e atuao, de carter tcnico-profissional, voltados ao desenvolvimento e

    operacionalizao de solues a determinadas problemticas identificadas pelos camponeses no

    seu processo de luta poltica. Merece destaque nesse sentido a criao da Associao dos

    Pequenos Agricultores do Oeste Catarinense (APACO), no ano de 1989, uma ONG que passou a

    13 A partir da segunda metade da dcada de 70, o modelo de produo agrcola familiar tradicional entrou em crisedevido ao processo conhecido como modernizao da agricultura que, em todo o pas caracterizou-se pelaintensificao do uso de insumos e mquinas de origem industrial e que permitiu, ao mesmo tempo, ganhossignificativos de produtividade e dispensa de grande parte da mo-de-obra. (Ver a esse respeito especialmente Silva,1982). Na regio, esse processo significou a inviabilizao econmica da maioria das unidades familiares deproduo agrcola e o deslocamento de grandes contingentes populacionais do meio rural para o urbano, atravs doxodo rural. A esse respeito ver Uczai (1992), Belatto (1985) e Poli (1994 e 1995). 14 Vale lembrar que grande parte da mo de obra utilizada nos frigorficos era de baixa qualificao, voltada execuo de tarefas simples e repetitivas, justamente a mais atingida pelo desemprego, no contexto da 3 revoluoindustrial. 15 Destaca-se, nesse sentido o Frum de Desenvolvimento Regional Integrado (FDRI) que realizou uma significativamovimentao poltica, com inmeras reunies e eventos para discusso da problemtica do desenvolvimento daregio chegando, inclusive, a propor alguns projetos especficos voltados a estimular o surgimento de alternativas dedesenvolvimento. Porm, caracterizado pelo distanciamento em relao populao mais pobre, sem demonstrar

  • 10

    efetivo conhecimento de suas necessidades e marcado por fortes disputas polticas internas, alm de contar com adesconfiana de importantes setores organizados, suas iniciativas foram de pouco xito prtico.

  • 11

    desenvolver uma srie de programas voltados ao desenvolvimento tcnico, profissional e poltico

    de alternativas de produo opostas ao modelo da revoluo verde16. Atuando numa perspectiva

    embasada na associao, na cooperao e na sustentabilidade (social e ambiental), na autogesto

    e na solidariedade, tinha como meta viabilizar a autonomia dos camponeses em relao aos

    insumos de origem industrial e a criao de um sistema de produo agrcola baseado na

    agroecologia17. A partir desses esforos, comearam a surgir e a ganhar visibilidade uma grande

    diversidade de iniciativas de produo que tinham por base esses princpios (cooperao,

    autogesto, sustentabilidade e solidariedade), os quais podem ser abarcados pelo conceito de

    Empreendimentos econmicos e solidrios18.

    Dentre essas alternativas de produo desenvolvidas no bojo desse movimento, como

    desdobramentos dessas iniciativas, est a criao de agroindstrias familiares associativas, que

    sero o objeto central da presente pesquisa. Impulsionadas por um dos programas especficos

    desenvolvidos pela APACO, as agroindstrias familiares associativas so empreendimentos

    voltados ao processamento industrial de produtos de origem animal ou vegetal, oriundos da

    agricultura familiar, geralmente produzidos pelas prprias famlias que constituram e mantm a

    agroindstria em funcionamento. Seu objetivo a agregao de valor aos produtos da agricultura

    16 A Revoluo Verde o modo como ficou conhecido o processo de transformao radical da produo agrcola apartir da sua vinculao ao desenvolvimento industrial e ao mercado capitalista, mediante a produo e incorporaode avanos cientficos e tecnolgicos (atravs da utilizao de insumos de origem industrial) ao processo deproduo agrcola, bem como a adoo dos princpios da racionalidade tcnica ao seu processo de gesto, permitindoganhos de produtividade at ento inimaginveis para a agricultura. Belatto (1985) afirma que, para alm dosinteresses econmicos envolvidos nesse processo, a revoluo verde teve claros objetivos polticos, sendo umatentativa de evitar que a mobilizao poltica das populaes camponesas dos pases menos desenvolvidosredundasse em revolues polticas, particularmente revolues socialistas. 17 Uma descrio detalhada de tais programas e seus desdobramentos ser feita no captulo 2. 18 O conceito de Empreendimentos Econmicos e Solidrios (EESs), ser discutido no captulo 3, no contexto daconceituao de Economia Solidria. Contudo, para facilitar a compreenso do seu uso, transcrevemos o conceitoadotado pela Secretaria Nacional de Economia Solidria, criada pelo governo federal em 2002, que afirma:

    [...] os Empreendimentos Econmicos Solidrios compreendem as organizaes:coletivas organizaes suprafamiliares, singulares e complexas, tais como:associaes, cooperativas, empresas autogestionrias, grupos de produo, clubes detrocas, redes e centrais, etc;cujos participantes ou scios(as) so trabalhadores(as) dos meios urbano e rural queexercem coletivamente a gesto das atividades, assim como a alocao dos resultados;permanentes, incluindo os empreendimentos que esto em funcionamento e aqueles queesto em processo de implantao, com o grupo de participantes constitudo e asatividade econmica definidas;com diversos graus de formalizao, prevalecendo a existncia real sobre o registrolegal;que realizam atividades econmicas de produo de bens, de prestao de servios, defundos de crdito (cooperativas de crdito e os fundos rotativos populares), decomercializao (compra, venda e troca de insumos, produtos e servios) e de consumosolidrio. (BRASIL, 2006, p. 13).

  • 12

    familiar, mediante o seu processamento industrial de modo alternativo s grandes agroindstrias

    que dominam o cenrio regional (frigorficos, laticnios, e outras).

    As agroindstrias familiares associativas ligadas UCAF, atuam em dez diferentes

    cadeias produtivas a saber: carne suna e derivados, leite e derivados, aves de postura19, peixes,

    frango de corte, mel, sucos e bebidas, frutas e hortalias, derivados da cana-de-acar e plantas

    medicinais.

    Na perspectiva do presente estudo, merece ateno o fato de que, nesse processo, esses

    trabalhadores saem da condio de agricultores que praticavam uma forma de produo

    fortemente embasada na tradio camponesa, portanto, de acentuado carter repetitivo, para uma

    condio de criadores de uma nova alternativa de produo, indita na sua trajetria histrica, na

    qual vivenciam um processo produtivo bastante diferenciado, com habilidades novas, novos

    hbitos e novos conceitos, tendo que lidar, inclusive com as expectativas e exigncias de um

    mercado de produtos para o atendimento de consumidores finais de mercadorias.

    Destaque-se que nesse processo, eles vm interagindo com o cenrio do capitalismo

    globalizado, sumariamente descrito acima, no qual o agronegcio tornou-se um fenmeno

    globalizado, que movimenta grandes cifras e promovido por poderosas organizaes

    econmicas, algumas das quais presentes no Oeste catarinense, o que faz com que esta seja uma

    regio de grande destaque no cenrio mundial do agronegcio.

    Merece ateno tambm o fato de que, a partir da segunda metade da dcada de 90 e,

    especialmente, a partir do incio da dcada atual, esse movimento em curso no Oeste catarinense

    passou a manter contato com o que se vem denominando de movimento social da economia

    solidria, o qual, a partir da prpria elaborao do termo economia solidria, passou a agregar

    novos elementos interpretao e conduo das experincias em curso. Desse modo, mesmo

    no tendo surgido e se estruturado sob o conceito de economia solidria, essas experincias

    passaram, a partir de um dado momento, a integrar o conjunto desse movimento, o que acabou

    por ampliar o escopo (terico e poltico) de sua identidade.

    19 Aves criadas com a finalidade especfica de produo de ovos.

  • 13

    O Problema de Pesquisa

    O problema que orientou o presente percurso de investigao pode ser assim proposto:

    como os camponeses envolvidos na criao e operao de agroindstrias familiares associativas

    ligadas Unio Central da Agroindstrias Familiares do Oeste catarinense (UCAF), esto

    reelaborando suas experincias de vida e de trabalho a partir da implantao dessas unidades de

    produo?

    As questes de pesquisa que auxiliaram no desenvolvimento do trabalho foram as

    seguintes: como se caracteriza a trajetria histrica dos trabalhadores que participaram da criao

    e operao das agroindstrias familiares associativas ligadas UCAF, no Oeste Catarinense?

    Como se caracteriza o processo pelo qual esses trabalhadores construram e vm construindo as

    novas competncias e os novos hbitos exigidos pelas novas experincias de trabalho, bem como

    as novas percepes sobre sua insero no mundo do trabalho? Em que medida os ideais polticos

    que estiveram presentes na origem desses empreendimentos continuam presentes no imaginrio

    dos trabalhadores envolvidos e no cotidiano de trabalho nessas agroindstrias? Como se

    caracterizam as relaes de trabalho no interior desses empreendimentos? De que modo os

    trabalhadores envolvidos percebem e projetam o desenvolvimento das relaes de trabalho no

    interior dos empreendimentos e na sociedade como um todo? Que novas possibilidades de

    insero social e que novas perspectivas de futuro so percebidas por esses agricultores

    familiares, a partir da produo dessas novas experincias de organizao do trabalho? Que

    potencialidades percebem nesses novos processos de trabalho para a produo de novas

    condies sociais de vida, ou seja, de novas formas sociais do futuro? Em que medida os

    empreendimentos em estudo compartilham as caractersticas, os valores e perspectivas de

    desenvolvimento presentes no movimento social da economia solidria?

    Interessa aqui, ento, particularmente, discutir como essas novas experincias de vida e

    de trabalho vm sendo experimentadas pelos trabalhadores envolvidos e as representaes que

    eles vm construindo acerca desse processo, atravs das quais procuram explicar a realidade em

    que se encontram inseridos e a partir das quais vm construindo suas imagens de futuro e

    orientando suas decises frente a ele.

    A motivao principal para a escolha do objeto do presente estudo, que se inscreve na

    temtica trabalho e educao, vem da convico de que estudos que busquem apreender as

  • 14

    relaes entre os processos de trabalho e os processos educativos so fundamentais. Tal

    importncia se expressa de dois modos: a) seja para compreender o sentido e estabelecer

    princpios e mtodos mais adequados organizao dos processos educativos (em suas diversas

    formas, inclusive na forma escolar), voltados a fortalecer a ao dos sujeitos envolvidos em

    processos de transformao das relaes sociais (necessidade tica e poltica); b) seja no sentido

    de compreender o lugar do trabalho na compreenso dos processos sociais e as possibilidades do

    mesmo continuar sendo um princpio epistemolgico e educativo fundamental na atualidade, em

    meio s profundas transformaes por que passa a sociedade em nvel global.

    Mesmo sem fazer desse debate terico o seu foco especfico, o presente estudo dialoga

    com tais temticas, j que busca apreender essas duas dimenses destacadas. Em primeiro lugar,

    busca reconstituir e, a partir disso, apreender a importncia e o sentido da participao dos

    processos educativos na formao e fortalecimento desses trabalhadores, possibilitando que

    operem a criao e implantao de tais empreendimentos, bem como produzam novas

    interpretaes sobre suas experincias de trabalho. Ocorre que a organizao de

    empreendimentos voltados a agroindustrializao, a partir de unidades de produo agrcola

    familiar e de sujeitos cuja experincia de trabalho sempre esteve ligada apenas produo

    agrcola familiar tradicional, destinada a fornecer matria prima in natura para a indstria, exige

    uma profunda reelaborao de suas experincias de trabalho. Primeiro porque exige

    conhecimentos, habilidades, hbitos e procedimentos muito diferentes daqueles exigidos no

    processo de produo agrcola tradicional. Mesmo que muitos dos produtos produzidos

    comercialmente, a partir da instalao das agroindstrias, j fossem produzidos, de forma

    artesanal, para atender as necessidades de subsistncia do grupo familiar, e mesmo que o

    processo de produo nas agroindstrias familiares associativas preserve um carter artesanal,20

    os procedimentos utilizados na produo, bem como os conhecimentos, as habilidades e os

    hbitos exigidos so bastante diferentes daqueles presentes na sua trajetria histrica anterior, o

    que lhes vm exigindo a incorporao de novas prticas, novos saberes e novos hbitos. Isso

    ocorre em funo de que, alm do processo de produo em maior escala, os agricultores

    familiares, nessa nova condio, precisam responder a rigorosos critrios de controle sanitrio, o

    que exige hbitos e procedimentos inusitados em seu processo de produo anterior21.

    20 O carter artesanal dos seus produtos , inclusive, um dos fatores de afirmao dessas agroindstrias no mercado.21 Exemplo disso a exigncia de utilizao de botas e roupas brancas que devem ser esterilizadas toda vez queentram ou saem do frigorfico, ou ainda, a obrigatoriedade da utilizao de gorros com capuz e a proibio de sedeslocarem para outras reas de trabalho dentro do frigorfico, alm daquela definida, estritamente, para a suaparticipao no processo de produo. Tais prticas, segundo os relatos, eram impensveis na sua experincia

  • 15

    Alm disso, o fato de passar da condio de produtores de matrias primas condio de

    produtores de mercadorias a serem vendidas no mercado, diretamente ao consumidor final,

    tambm exige toda uma reelaborao de suas experincias de trabalho. Enquanto produtor de

    matrias primas, sua participao na cadeia produtiva terminava na porteira da propriedade, no

    momento em que a produo era entregue, viva ou in natura, ao intermedirio que a negociava

    com as indstrias. Ao contrrio disso, nesse momento em que assumem a condio de produtores

    de mercadorias a serem vendidas ao consumidor final, passam a conviver com a exigncia de

    prestar ateno a aspectos antes totalmente ignorados como, por exemplo, a identificao das

    preferncias dos consumidores, as quais envolvem, alm da preocupao com o sabor, muitos

    cuidados relativos forma e aparncia dos produtos oferecidos. O prprio modo de vestir-se, de

    conversar e de se apresentar no mercado precisou ser totalmente redimensionado. Os que atuam

    na comercializao da produo, por exemplo, passaram a ter que se esforar para perceber a

    preferncia de cada comprador e at o seu estado de humor e a elaborar estratgias capazes de

    interagir com tais fatores. Desse modo, foram obrigados a vivenciar novas experincias de

    trabalho, que passaram a exigir um novo processo de qualificao.

    Em segundo lugar, esta tese dialoga com o debate sobre se os processos de trabalho

    continuam (ou no) a ser decisivos no processo de formao desses sujeitos e na definio das

    suas condies, possibilidades e perspectivas de existncia numa dada realidade. Nesse sentido, a

    influncia dos novos processos de trabalho, produzidos a partir da criao de agroindstrias

    familiares associativas, pela unio de unidades familiares de produo agrcola, mediante

    processos de associao e em vista da produo de novas relaes de trabalho, baseadas em

    princpios diferentes do princpio da economia capitalista (reciprocidade, autogesto,

    sustentabilidade e solidariedade), na formao (profissional, poltica e tica) desses trabalhadores

    e na definio de suas convices, expectativas e interpretaes sobre as formas sociais de futuro,

    so um tema de interesse, na anlise dessas experincias.

    preciso considerar aqui, a inteno expressa de se produzir novas relaes de produo

    no interior desse processo de trabalho, rompendo tanto com a cultura tpica do modelo campons,

    quanto com a tradio fordista do modelo agroindustrial brasileiro, manifesta, explicitamente,

    anterior de produo agrcola e de criao de animais e um dos aspectos mais difceis de serem assimilados na novaexperincia de produo.

  • 16

    pelos agentes que apoiaram e estimularam a organizao dessas novas experincias de trabalho22.

    Um registro necessrio e importante que as experincias em estudo, mesmo tendo

    surgido sem qualquer contato prvio com a temtica, passou, a partir da metade dos anos 90, a

    manter contatos cada vez mais intensos com o movimento social da economia solidria. Do ponto

    de vista da temtica do presente estudo, esse fato da maior importncia porque, a partir de

    ento, essas experincias e seus agentes passaram a tomar parte de um debate mais amplo e

    abrangente sobre o significado, os rumos e as possibilidades dessas iniciativas, no contexto social

    brasileiro e mundial, na perspectiva de construo de um modelo de produo alternativo ao

    capitalismo.

    Desse modo, mais do que proceder a uma anlise sobre o significado econmico ou

    poltico desses empreendimentos, buscarei captar o modo como seus sujeitos vm se constituindo

    enquanto trabalhadores, especialmente o modo como vem ocorrendo sua insero nessa nova

    realidade e como os mesmos esto experimentando as mudanas ocorridas e elaborando o

    significado dessas experincias em que se encontram inseridos.

    A Pesquisa

    O trabalho de pesquisa foi organizado em trs momentos principais. Num primeiro

    momento, desenvolvi um estudo exploratrio, que envolveu reviso bibliogrfica, anlise

    documental e trabalho de campo, voltado caracterizao das experincias existentes na regio

    Oeste catarinense que, atualmente, podem ser agrupadas em torno do conceito de economia

    solidria. Essa anlise exploratria visou contextualizar as experincias em estudo, situando-as no

    interior de um processo histrico mais abrangente que as envolve e as influencia em grande

    medida. Os resultados desse primeiro momento do trabalho de pesquisa esto expressos nos

    quatro primeiros captulos da tese.

    Num segundo momento, realizei uma caracterizao geral das agroindstrias familiares

    associativas vinculadas Unio Central das Agroindstrias Familiares do Oeste Catarinense

    22 Essa inteno aparece, explicitamente, tanto nos documentos da APACO e da UCAF, quanto do movimentosindical dos trabalhadores rurais da regio. Alm disso esse tema (da produo de novas alternativas de trabalho eproduo baseadas em princpios no capitalistas) uma das nfases do discurso da teologia da libertao queorientou as aes da igreja catlica na regio a partir de meados da dcada de 70 (POLI, 1995).

  • 17

    UCAF, que atuam no processamento de carne suna, com o intuito de reunir um conjunto de

    informaes sobre os empreendimentos dessa cadeia produtiva, analisando suas caractersticas

    comuns e seu impacto econmico e social para os envolvidos. Os resultados desse segundo

    momento da pesquisa so apresentados ao longo do captulo cinco da presente tese, bem como no

    Apndice A.

    O terceiro momento voltou-se ao estudo em profundidade de dois empreendimentos da

    cadeia produtiva da carne suna, caracterizada no momento dois, definidos por escolha

    intencional, tendo como critrio o tempo de existncia do grupo (um mais antigo e um de

    organizao mais recente), a constituio formal do empreendimento (um vinculado a uma

    cooperativa de produo e outro constitudo como micro-empresa) e a relao com o grupo de

    cooperao agrcola que lhe deu origem (um dos empreendimentos est vinculado a apenas um

    grupo e o outro rene dois grupos distintos que se associaram para organizar a agroindstria).

    Nesse terceiro momento busquei aprofundar a anlise de sua caracterizao interna (com

    nfase na reconstituio da especificidade de suas trajetrias, na caracterizao da sua dinmica

    de funcionamento e nas relaes de trabalho desenvolvidas no seu interior), de seu

    relacionamento com a sociedade envolvente (institucional, econmico e poltico) e,

    principalmente, a trajetria de seus integrantes, os trabalhadores. Nesse processo buscou-se

    elucidar suas trajetrias de vida (espaos e processos educativos com que interagem,

    representaes sobre o presente e futuro e suas perspectivas de vida e de trabalho com o

    empreendimento e a forma de perceber sua insero presente e futura na sociedade), tentando

    apreender o modo como esses camponeses esto elaborando sua nova experincia de vida e de

    trabalho.

    Na investigao desse processo busquei levar em considerao as afirmaes de Leite

    (1994) sobre a identidade da classe trabalhadora, ao destacar que ela se constri nos embates

    contra o capital, a partir da experincia mais ampla de lutas, que extrapolam o espao restrito do

    trabalho. Ou seja, optei pela compreenso de que a constituio de sujeitos coletivos e a

    construo da sua capacidade de se apresentar enquanto ator social depende no s da sua

    vivncia no processo de produo, mas tambm de sua experincia mais geral de lutas adquirida

    nos seus embates contra o capital. No caso em estudo, a capacidade desses camponeses se

    apresentarem enquanto um ator social, depende no s de sua experincia no processo de

    produo, mas tambm de sua experincia de luta e resistncia contra o capital, vivenciada

    atravs dos longos anos de embate contra o processo de modernizao da agricultura em suas

    diferentes manifestaes. Assim, se as novas experincias de trabalho nas agroindstrias atuam

  • 18

    sobre a subjetividade desses trabalhadores e sobre o modo como elaboram suas experincias de

    vida e de trabalho, essa elaborao tambm influenciada pela identidade de classe construda

    nos momentos anteriores de luta contra o processo de modernizao agrcola, no interior dos

    movimentos sociais, bem como pela sua identificao com o trabalho, construda na sua trajetria

    anterior de produo agrcola. Por essa razo, fundamental que o processo de investigao

    aborde a trajetria desses sujeitos para alm do espao do trabalho. Os resultados desse terceiro

    momento da pesquisa so apresentados no quinto captulo da presente tese.

    Em termos metodolgicos optei pelo desenvolvimento de um processo de reflexo, que

    combina os elementos tericos com as informaes obtidas no desenrolar do processo de

    pesquisa, dentro de uma concepo que entende que a teoria possui uma importncia fundamental

    no processo de elucidao da realidade estudada e na compreenso das informaes obtidas no

    processo de investigao.

    Cada momento da pesquisa contou com estratgias prprias de desenvolvimento. O

    primeiro momento foi desenvolvido a partir da anlise documental, de entrevistas com agentes

    vinculados a ONGs, sindicatos e servios pblicos, alm de integrantes dos prprios

    empreendimentos. Alm disso, procedi o levantamento de dados primrios e secundrios sobre

    cada uma das diferentes frentes de economia solidria identificadas.

    O segundo momento foi desenvolvido atravs de visitas a cada um dos empreendimentos

    identificados (da cadeia de carne suna e derivados) e preenchimento de um formulrio padro

    com informaes gerais sobre o empreendimento, alm de um formulrio sobre os grupos

    familiares participantes, de forma a realizar um senso da populao envolvida. Os formulrios

    foram preenchidos a partir das informaes prestadas pelos coordenadores de cada

    empreendimento, identificados previamente. No total foram visitados oito empreendimentos.

    O terceiro momento da pesquisa envolveu um processo de observao participante,

    dentro dos princpios da pesquisa etnogrfica e a realizao de entrevistas em profundidade com

    todos os trabalhadores envolvidos nos dois empreendimentos selecionados, atravs das quais

    efetuou-se a coleta de histrias de vida sumrias dos trabalhadores envolvidos no processo de

    criao do empreendimento. A utilizao de depoimentos orais, baseados na experincia pessoal

    de cada ator, dentro do processo histrico em questo, no impediu que no processo de entrevista

    fossem levantadas pelo pesquisador, questes consideradas pertinentes e importantes para a

    compreenso do tema em estudo, embora se tenha procurado adotar uma postura de no impedir,

    mas, ao contrrio, de estimular o relato, pelo entrevistado, daquelas experincias que ele mesmo

    considerasse mais relevantes, numa combinao do que Demartini (1992), seguindo a definio

  • 19

    de Bertaux (1980), chamou de histrias de vida sumrias. Isto , depoimentos baseados na

    histria pessoal do entrevistado, mas que se concentram principalmente em torno do tema em

    estudo.

    Essa forma de atuao condizente com a concepo de cincia que entende ser a

    abordagem qualitativa, a metodologia por excelncia das cincias sociais, embora no se negue a

    possibilidade de se lanar mo, complementarmente, de tcnicas de cunho quantitativo.

    (FERRAROTI, 1981).

    Questes Tericas

    Em termos tericos, a anlise se baseia na perspectiva do materialismo histrico,

    particularmente no que E. P. Thompson tem caracterizado como materialismo histrico e

    cultural. A opo deve-se pelo fato de estarmos lidando com processos de formao humana, no

    curso de um processo de transformao social, onde os sujeitos em formao so tambm atores

    centrais do prprio processo. nesse sentido que as anlise de Thompson e outros autores

    prximos de sua perspectiva, apresentam contribuies muito importantes, visto que lidam

    exatamente com um dos desafios centrais propostos pelo materialismo histrico, qual seja o modo

    de compreender a interao entre a especificidade histrica, a ao humana e a lgica dos modos

    de produo, em cada processo histrico particular e especfico.

    Para tanto, a explicitao de alguns princpios e de algumas categorias tericas

    fundamental. Organizei essas contribuies em dois momentos principais. Em primeiro lugar,

    apresentamos a discusso produzida por Ellen Wood23, a partir da obra de E.P. Thompson, que

    tem como eixo a renovao do materialismo histrico e desenvolve trs pontos particularmente

    importantes para nossa anlise: a questo da separao do econmico e do poltico no

    capitalismo, os debates marxistas em torno da metfora estrutura/superestrutura e, por fim, a

    questo do conceito de classe social no marxismo. Em segundo lugar, complementando o debate

    e aproximando-o da realidade especfica em estudo nesta tese, nos concentramos um pouco mais

    detidamente no desenvolvimento do conceito de experincia humana e suas implicaes para a

    anlise dos processos histricos, a qual realizamos especialmente a partir de trs obras do prprio

  • 20

    Thompson24. Entendemos que esse debate, em seu conjunto, traz elementos fundamentais para a

    anlise das experincias de vida e de trabalho nas agroindstrias familiares no Oeste catarinense.

    O propsito de Ellen Wood por em discusso alguns princpios tericos do

    materialismo histrico, resgatando seus propsitos e sua lgica, a partir de suas origens em Marx.

    Segundo ela, sempre houve duas teorias principais da histria do marxismo. O marxismo crtico e

    o marxismo que buscava (via determinismo tecnolgico) aspectos mais compatveis com a

    ideologia capitalista, suprimindo o veio crtico do materialismo. Esta verso de marxismo pouco

    difere das concepes convencionais de evoluo e progresso sociais, para as quais o movimento

    da histria em si foi, desde o incio, governado pelo que poderia ser chamado de leis naturais da

    sociedade comercial: as leis da competio, da diviso do trabalho e da produtividade crescente

    baseada na inclinao natural dos seres humanos para a troca, o comrcio e o intercmbio.

    Essa perspectiva marxista tem algumas caractersticas importantes que definem sua

    abordagem da histria. Em primeiro lugar, uma concepo da base econmica em termos no-

    sociais e tecnicistas, incompatveis com tudo o que no fosse a aplicao da metfora

    base/superestrutura; em segundo lugar, uma concepo de histria como uma sucesso mecnica,

    preordenada e unilinear de modos de produo, que teve muito em comum com a economia

    poltica clssica e seus estgios de civilizao; Por fim, uma concepo no-histrica de

    transies histricas em particular a transio do feudalismo para o capitalismo cuja premissa

    exatamente o que se quer explicar, quando se identificam princpios e leis do movimento

    capitalista em toda a histria. Ao contrrio disto, o materialismo histrico, em sua verso crtica,

    nega a possibilidade de que essas leis sejam as leis universais da histria, sendo o capitalismo um

    fenmeno histrico e especifico (WOOD, 2003).

    Para enfrentar tal debate a autora toma por base a contribuio terica de E.P. Thompson,

    segundo a qual o autor marxista que, com maior pertinncia, enfrentou esse debate, no

    obstante as crticas que recebeu de dentro e de fora do marxismo, incluindo autores inscritos na

    perspectiva crtica do marxismo. Sem se eximir do tratamento crtico das proposies do autor,

    Wood (2003) faz um resgate do debate de Thompson em alguns temas centrais para a

    compreenso do desafio bsico do materialismo histrico, qual seja o de compreender a

    23 WOOD, Ellen Meiksins. Democracia contra o capitalismo: a renovao do materialismo histrico. So Paulo,Boitempo, 2003. 24 Referimo-nos aqui s obras: A Misria da teoria(1981); Tradio, revolta e conscincia de classe (1989) e Aformao da classe operria inglesa (1987).

  • 21

    articulao entre a especificidade histrica, a ao humana e a influncia da lgica dos modos de

    produo, em contextos histricos especficos.

    Sobre a separao entre o econmico e o poltico no capitalismo

    Um primeiro tema discutido pela autora o da separao entre o econmico e o

    poltico no capitalismo. Segundo ela, a inteno original do materialismo histrico era oferecer

    fundamentao terica para se interpretar o mundo a fim de mud-lo. Porm, depois de Marx,

    muitas vezes, o marxismo perdeu de vista esse projeto terico e seu carter essencialmente

    poltico. Houve, em particular, uma tendncia a perpetuar a rgida separao conceitual entre o

    econmico e o poltico.

    Marx procurou mostrar o mundo no seu aspecto poltico, inclusive nos seus textos

    econmicos mais tcnicos. A essncia da sua crtica da economia poltica foi justamente revelar a

    face poltica da economia (capitalista) que havia sido obscurecida pelos economistas polticos

    clssicos. O segredo fundamental da produo capitalista revelado por Marx segredo que aeconomia poltica ocultou sistematicamente... refere-se s relaes sociais que esto adisposio do poder que se estabelecem entre os operrios e o capitalista para quemvendem sua fora de trabalho. Esse segredo tem um corolrio: a disposio de poderentre o capitalista e o trabalhador tem como condio a configurao poltica doconjunto da sociedade o equilbrio de foras de classe e os poderes do Estado quetornam possvel a expropriao do produtor direto, a manuteno da propriedade privadaabsoluta para o capitalista e seu controle sobre a produo e a apropriao (WOOD,2003, p. 28).

    Marx, no volume I de O Capital revela que o ponto de partida da produo capitalista

    no outro seno o processo de isolar o produtor dos meios de produo (MARX apud WOOD,

    2003, p. 28). Esse processo (acumulao primitiva) contou com a participao efetiva do estado

    em favor da classe expropriadora. Com isso Marx revela: o segredo ltimo da economia

    capitalista poltico.

    Para compreender essa perspectiva, preciso ter em mente que o que distingue

    radicalmente Marx dos economistas clssicos que ele no cria descontinuidades ntidas entre as

    esferas econmica e poltica (idem). A premissa aqui que o modo de produo no existe em oposio aos fatores sociais,e que a inovao radical de Marx em relao economia poltica burguesa foiprecisamente a definio do modo de produo e das prprias leis econmicas emtermos de fatores sociais.O mecanismo da mais-valia uma relao social particular entre apropriador e produtor.Ele opera por meio de uma organizao particular de produo, distribuio e trocas e sebaseia numa relao particular entre classes, mantida por uma configurao particular depoder.(WOOD, 2003, p. 31)

  • 22

    A insistncia de Marx, nesse aspecto, se justifica porque, ocultando-se essa dimenso

    poltica e a especificidade histrica dessas relaes, possvel economia poltica clssica

    reivindicar a naturalidade e a conseqente perenidade das relaes capitalistas de produo,

    afastando-as de qualquer possibilidade de disputa poltica, mesmo quando trabalhadores diretos e

    apropriadores estejam envolvidos em conflitos e lutas. Assim, compreender a dimenso poltica

    do capitalismo, para alm de sua imagem de neutralidade das relaes econmicas,

    fundamental.

    O que chama ateno, particularmente, no capitalismo que, diferente dos modos de

    produo anteriores, o mesmo apresenta uma diferenciao nica da esfera econmica, o que

    significa que a produo e a distribuio assumem uma forma completamente econmica,

    deixando de estar envoltas em relaes sociais extra-econmicas e, portanto, a apropriao do

    excedente de trabalho ocorre na esfera econmica e por meios econmicos. O capitalismo tem a capacidade nica de manter a propriedade privada e o poder deextrao de excedentes sem que o proprietrio seja obrigado a brandir o poder polticodireto em sentido convencional. O Estado que separado da economia, emboraintervenha nela pode aparentemente pertencer (por meio do sufrgio universal) atodos, apropriador e produtor, sem que se usurpe o poder de explorao do apropriador.A expropriao do produtor direto simplesmente torna menos necessrio o uso de certospoderes polticos diretos para a extrao de excedentes e isso exatamente o quesignifica dizer que o capitalista tem poderes econmicos, e no extra-econmicos, deexplorao. (WOOD, 2003, p. 43).

    Assim, embora a fora de coao da esfera poltica seja necessria para manter a

    propriedade privada e o poder de apropriao, a necessidade econmica oferece a compulso

    imediata que fora o trabalhador a transferir sua mais-valia para o capitalista a fim de ter acesso

    aos meios de produo. Sob esse aspecto, o capitalismo difere das formas pr-capitalistas por que

    estas se caracterizam por modos extra-econmicos de extrao da mais-valia: a coao poltica,

    legal ou militar, as obrigaes ou deveres tradicionais, etc. que determinam a transferncia de

    excedentes para um senhor ou para o Estado por meio de servios prestados, aluguis, impostos e

    outros. (WOOD, 2003).

    H ainda um outro sentido em que o poder poltico privado a condio essencial da

    produo capitalista e, na realidade, a forma assumida pela autonomia da esfera econmica. De

    um lado, o capitalista est sujeito aos imperativos da acumulao e da competio que o obrigam

    a expandir o valor do excedente. Por outro, o trabalhador est preso ao capitalista no apenas pela

    sua autoridade pessoal, mas pelas leis do mercado que determinam a venda do poder de trabalho.

    Ento so leis autnomas da economia e do capital em abstrao que exercem o poder, e no

    a imposio voluntria pelo capitalista de sua autoridade pessoal sobre o trabalhador. E essas leis

  • 23

    abstratas da acumulao capitalista impem ao capitalista (e as leis impessoais do mercado lhe

    do condies de faz-lo) precisamente o exerccio de um grau sem precedentes de controle sobre

    a produo (idem).

    A grande contribuio de Marx nesse sentido e que Thompson busca resgatar, mesmo

    navegando contra a corrente majoritria do prprio marxismo, que as estruturas de dominao e

    de poder so absolutamente essenciais para o funcionamento das leis econmicas do capitalismo.

    Ou seja, a separao absoluta da economia em relao s outras esferas da sociedade no

    capitalismo apenas aparente, o que pe por terra a pretensa naturalidade das suas leis

    econmicas. Esse fato essencial principalmente por possibilitar o resgate da interferncia das

    aes humanas na histria.

    Sobre a metfora base/superestrutura

    Um segundo tema explorado por Wood (2003) o modo como Thompson enfrentou o

    debate sobre a metfora base/superestrutura, to presente nas elaboraes marxistas,

    especialmente naquelas de perspectiva estruturalista. Segundo essa perspectiva, o modo de

    produo um objeto abstrato-formal que traz inscrito em si toda uma estrutura social que

    contm vrios nveis, econmicos, polticos e ideolgicos, mas que no existe na realidade de

    modo puro, isto , com todos os elementos presentes em sua descrio. J o conceito de

    formao social usado para indicar uma sociedade concreta e especfica, na qual, porm, nunca

    encontramos um determinado modo de produo puro ou absoluto. Ao contrrio, no mundo real

    s existem formaes sociais impuras e essas sempre contm elementos de vrios modos de

    produo, com todos os seus nveis constituintes ou at vrios fragmentos relativamente

    autnomos de modos de produo.

    Segundo Thompson, as conseqncias dessa abordagem so que, de um lado, a lgica

    estrutural supera o fato histrico. De outro, parece que as relaes que realmente prevalecem

    entre o Estado e o modo de produo nas sociedades historicamente existentes pouco tm a ver

    com essa lgica estrutural e parecem quase acidentais. Com isso, tal construo perde quase

    completamente a possibilidade de explicar as sociedades concretas em sua historicidade.

    Confrontar o determinismo econmico, resgatando os princpios do materialismo

    histrico na anlise da histria, desafio que E. Thompson se props, implica resgatar a ao

    humana e a conscincia humana das mos mortas dos economicismos cruamente reducionistas25.

    25 WOOD (2003, p. 59-60).

  • 24

    Ao contrrio do modelo base/superestrutura com seus nveis entendidos como caixas fechadas,

    espacialmente separadas e descontnuas, que permite apenas duas opes inaceitveis (aderir ao

    reducionismo simplista que entende que a caixa econmica bsica est refletida nas caixas

    superestruturais ou remetemos a determinao econmica para algum caso ltimo muito

    distante), Thompson entende que as determinaes econmicas, apesar de admitirem toda a

    gama de complexidades e especificidade histrica, esto, sempre l e no apenas no caso

    ltimo. essa difcil dialtica entre especificidade histrica e a sempre presente lgica doprocesso histrico que o materialismo histrico pede que entendamos. Ela exige, comoThompson sempre o entendeu, uma concepo do econmico, no como uma esferaregionalmente separada que de certa forma material por oposio a social, masque em si irredutivelmente social de fato, uma concepo de lei material como algoconstitudo de relaes e prticas sociais. Ademais, a base o processo e as relaesde produo no apenas econmica, mas tambm resulta, e nelas corporificada,em formas e relaes jurdico-polticas e ideolgicas que no podem ser relegadas a umasuperestrutura espacialmente separada. (WOOD, 2003, p. 60).

    Thompson compreende que o processo e as relaes de produo que constituem um

    modo de produo so expressos tanto por uma lgica moral, quanto por uma lgica

    econmica, por valores e modos de pensar caractersticos, assim como por padres

    caractersticos de acumulao e de troca. Esses valores, normas e formas culturais, argumenta,

    no so menos reais do que as formas especificamente econmicas pelas quais se exprime o

    modo de produo. E afirma: a ideologia e a cultura tm uma lgica prpria e constitui um

    elemento autntico nos processos histricos. Podemos legitimamente analisar a ideologia no

    apenas como produto, mas tambm como processo26. Por outro lado, dado que os efeitos

    determinativos do modo de produo operam simultaneamente na esfera econmica e na no-

    econmica, eles so tambm ubquos. Ou seja, a inteno no negar, nem reduzir a

    importncia dos efeitos determinativos do modo de produo, mas, ao contrrio, reforar a

    proposio de que eles so operacionais o tempo todo e em toda a parte (WOOD, 2003).

    Particularmente, no mbito do estudo desta tese, essa situao de simultaneidade e de

    no separao estanque bem perceptvel. As relaes de produo so profundamente

    influenciadas por idias e valores situados no campo da moral e da cultura. Por outro lado, como

    veremos adiante, a vivncia das novas relaes de produo tambm influenciam o

    desenvolvimento dos valores e da cultura dos envolvidos.

    26 (THOMPSON apud WOOD, 2003, p. 62)

  • 25

    Sobre as classes sociais e a conscincia de classe

    Nesse ponto chega-se a um momento importante da contribuio de Thompson para a

    anlise dos fenmenos de transformao social em que as populaes se vem diante de novos

    desafios colocados pelo meio, que afetam seu cotidiano e suas