eça de queiróa: "o mandarim"

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“Breve interpretação d’O Mandarim de Eça de Queirós” Burghard Baltrusch 1 “Breve interpretação d’O Mandarim de Eça de Queirós” (Burghard Baltrusch) Caricatura a O Mandarim: «Eça de Queiroz (o seu último romance O Mandarim em publicação no Diário de Portugal)», in O António Maria, Jul. 1880, p. 230

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Breve interpretação de "O Mandarim" de Eça de Queirós

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Page 1: Eça de Queiróa: "O Mandarim"

ldquoBreve interpretaccedilatildeo drsquoO Mandarim de Eccedila de Queiroacutesrdquo Burghard Baltrusch

1

ldquoBreve interpretaccedilatildeo drsquoO Mandarim de Eccedila de Queiroacutesrdquo

(Burghard Baltrusch)

Caricatura a O Mandarim laquoEccedila de Queiroz (o seu uacuteltimo romance O Mandarim em publicaccedilatildeo no Diaacuterio de Portugal)raquo in O Antoacutenio Maria Jul 1880 p 230

ldquoBreve interpretaccedilatildeo drsquoO Mandarim de Eccedila de Queiroacutesrdquo Burghard Baltrusch

2

Ainda que pertenccedila agrave segunda fase da criaccedilatildeo literaacuteria de

Eccedila de Queiroacutes O Mandarim (1880) foge em alguns

aspectos ao conceito de um realismo como mera

anatomia do caraacutecter e criacutetica do homem como o tinha

postulado nos tempos das Conferecircncias do Casino e

depois realizado nos grandes romances dos anos 1871 a

1880 Os elementos fantaacutesticos deste romance que tecircm

certas afinidades com A Reliacutequia (1884) lembram as ainda

romaacutenticas Prosas Baacuterbaras (postumamente publicado em

1903) da sua juventude Assim nO Mandarim confrontam-

se dois mundos Por um lado temos o Portugal do

constitucionalismo paralisador a mesquinhez e a hipocrisia

da burguesia portuguesa oitocentista e por outro lado o devaneio

esteacutetico da fantasia justificado jaacute na carta que deveria ter sido um

prefaacutecio o exotismo asiaacutetico dois mundos que se desvalorizam

mutua e ironicamente Fantasia e descriccedilatildeo naturalista fundem-se - um

traccedilo estiliacutestico que se intensifica nos uacuteltimos romances de Eccedila Em A

Reliacutequia seraacute a Palestina biacuteblica e nA ilustre Casa de Ramires (1897) a

Idade Meacutedia portuguesa As reminiscecircncias do romantismo revelam-se

tambeacutem na concepccedilatildeo panteiacutesta segundo a qual a vida e a consciencia

moral satildeo atributos de uma substacircncia

comum O ateu Teodoro considera em

consonacircncia com o diabo vida e morte

como banais transformaccedilotildees da mateacuteria

Esta ideia oriental e pitagoacuterica da

metempsicose entra em conflito com a

concepccedilatildeo idealista de que existe uma

consciecircncia moral humana com uma

intuiccedilatildeo da justiccedila Teodoro sofre assim da

ldquoBreve interpretaccedilatildeo drsquoO Mandarim de Eccedila de Queiroacutesrdquo Burghard Baltrusch

3

manifestaccedilatildeo de visotildees alucinatoacuterias do Mandarim que o Diabo lhe

permitira assassinar a fim de lhe herdar a fortuna As fontes do mito de

um crime perfeito remontam ateacute agrave antiguidade (Ciacutecero Quintiliano) onde

jaacute estava demarcada a ideia de que este soacute podia ser impedido por um

Deus omnisciente que estivesse espelhado na consciecircncia individual sob

a forma de moral ou remorso Eccedila chegou a conhececirc-lo seguramente em

Rousseau e Balzac ainda que as primeiras referecircncias se encontrem em

Le geacutenie du christianisme (1803) de Chateaubriand Mas

foi Balzac que no Pegravere Goriot (1834) deu origem ao

proveacuterbio ldquotuer le Mandarinrdquo (que aparece em 1873 no

dicionaacuterio Larousse) no sentido de praticar um crime

perfeito por causa de uma ambiccedilatildeo pessoal um tema

que depois teve grande ecircxito nos romances franceses

oitocentistas A concepccedilatildeo fantasista no entanto natildeo

diminui as componentes realistas desta novela Jaacute no

proacutelogo dialogal de dois amigos o segundo locutor aceita

a proposta do primeiro de fazer fantasia mas recomenda

sobriedade e uma moralidade discreta Desta maneira o

diabo um cavalheiro bem educado adverte que o

assassiacutenio eacute somente um meacutetodo de equilibrar as

necessidades universais um desorganizar-se da mateacuteria

cujos aacutetomos se reconstituiratildeo novamente agrave favor das

necessidades de outra pessoa Neste panteiacutesmo

diaboacutelico o diabo e as suas sugestotildees perdem tudo o

que poderiam ter de assustador Comparado com o mito

de Fausto natildeo haacute acccedilotildees violentas nem pacto assinado

com sangue O pacto consume-se subtilmente com o

simples tocar de uma campainha Teodoro jaacute superou de

certa maneira aquela busca do conhecimento e do mais

profundo sentido das coisas que ainda estaacute na base dos

ldquoTuer le mandarinrdquo

On lit dans le Pegravere Goriot de Balzac roman qui date de 1835 ce dialogue entre Rastignac et Bianchon laquo mdash As-tu lu Rousseau raquo mdash Oui raquo mdash Te souviens-tu de ce passage ougrave il demande agrave son lecteur ce quil ferait au cas ougrave il pourrait senrichir en tuant agrave la Chine un vieux mandarin sans bouger de Parisraquo (Eacutedit Houssiaux 1870 9me vol p 411) Rastignac eacutetait-il bien sucircr davoir vu cela dans Rousseau et ne confondait-il pas avec un passage du Geacutenie du christianisme ougrave Chateaubriand sexprimait ainsi laquo O conscience ne serais-tu quun fantocircme de limagination ou la peur des chacirctiments des hommes je minterroge je me fais cette question laquo Si tu pouvais par un seul deacutesir tuer un homme agrave la Chine et heacuteriter de sa fortune en Europe avec la conviction surnaturelle quon nen saurait jamais rien consentirais-tu agrave former ce deacutesir raquo (Ire partie livre VI chap II Du remords et de la conscience) Une chanson de Louis Protat intituleacutee Tuons le mandarin eacutevidemment posteacuterieure au roman de Balzac porte comme eacutepigraphe ces quelques lignes que le chansonnier attribue agrave Rousseau laquo Sil suffisait pour devenir le riche heacuteritier dun homme quon naurait jamais vu dont on naurait jamais entendu parler et qui habiterait le fin fond de la Chine de pousser un bouton pour le faire mourir qui de nous ne pousserait pas ce bouton et ne tuerait pas le mandarin raquo Enfin MM Albert Monnier et Edouard Martin ont donneacute au Palais-Royal le 20 novembre 1855 sous le titre As-tu tueacute le mandarin un petit acte dans lequel ils ont reproduit de confiance (scegravene II) la preacutetendue citation de Rousseau Si donc comme cela paraicirct agrave peu pregraves certain il y a ici une erreur dattribution cest Balzac qui a eacuteteacute le premier coupable et cest de son roman quest neacutee la formule tuer le mandarin qui nexiste quagrave leacutetat embryonnaire dans le passage de Chateaubriand (httpwwwdicopersocomterm47110xhtml)

ldquoBreve interpretaccedilatildeo drsquoO Mandarim de Eccedila de Queiroacutesrdquo Burghard Baltrusch

4

conflitos dos Faustos de Goethe e de Lenau e ainda continuaraacute

presente depois no Fausto - Trageacutedia Subjectiva de Fernando

Pessoa O seu impulso natildeo eacute nenhum desejo espiritual mas pelo

contraacuterio o ennui (teacutedio) que constituia jaacute o ponto de partida dos

Fleurs du Mal (1857) de Baudelaire No teacutedio do dia a dia mediacuteocre e

monoacutetono do amanuense do Ministeacuterio do Reino aparece o diabo

como uma realidade humana Impele a Teodoro a tocar a campainha

mas tem de limpar uma laacutegrima quando o Mandarim cai morto e quase reza pela sua

metempsicose Esta caraacutecteristica dialeacutectica do diabo sugere a sua iacutentima relaccedilatildeo

panteiacutesta com a consciecircncia de Teodoro e a aspiraccedilatildeo materialista deste O que

Teodoro lecirc num livro comprado na Feira da Ladra realiza-se palavra por palavra a

ficccedilatildeo de segundo grau sobe ao primeiro plano o que corresponde agrave fusatildeo de fantasia

e realidade nesta novela num jogo agraves escondidas do autornarradorprotagonista (A

possibilidade de Eccedila ter-se identificado com Teodoro sugere por exemplo o facto de

os dois terem sido ateus muito supersticiosos e terem sofrido de constantes crises

financeiras)

A duplicidade da forma narrativa e do conteuacutedo narrado eacute constantemente variado

ateacute ao paradoxo final entre o remorso inextinguiacutevel e a sua uacutenica consolaccedilatildeo possiacutevel

que eacute a da certeza que nenhum dos leitores se comportaria de maneira diferente No

final ao evocar outra vez o poema inicial dos Fleurs

du Mal Teodoro atribui ao puacuteblico leitor os mesmos

impulsos egoistas e materialistas e confronta-o com a

pergunta insinuante de um romance dentro do

romance tocaraacutes tu a campainha Esta construccedilatildeo

antiteacutetica eacute levada ateacute as suas uacuteltimas consequecircncias

que consistem em Teodoro supor que o leitor o faraacute e

advertendo-o ao mesmo tempo que natildeo faccedila

semelhante coisa

NO Mandarim temos portanto um tratamento bastante inovador da situaccedilatildeo

faacuteustica do ser humano em geral O conflito jaacute natildeo lhe eacute legado por uma entidade

AU LECTEUR [] Mais parmi les chacals les panthegraveres les lices Les singes les scorpions les vautours les serpents Les monstres glapissants hurlants grognants rampants Dans la meacutenagerie infacircme de nos vices Il en est un plus laid plus meacutechant plus immonde Quoiquil ne pousse ni grands gestes ni grands cris Il ferait volontiers de la terre un deacutebris Et dans un bacircillement avalerait le monde Cest lEnnui--Loeil chargeacute dun pleur involontaire Il recircve deacutechafauds en fumant son houka Tu le connais lecteur ce monstre deacutelicat --Hypocrite lecteur--mon semblable--mon fregravere (Charles Baudelaire Les fleurs du mal

ldquoBreve interpretaccedilatildeo drsquoO Mandarim de Eccedila de Queiroacutesrdquo Burghard Baltrusch

5

divina externa mas eacute desde jaacute internalizado O diabo natildeo torna a aparecer no final e

o testamento que lhe lega toda a fortuna de Teodoro eacute somente um siacutembolo de esta

ficar no mundo para uso de futuros desgraccedilados e desgraccediladas como ele A

moralidade discreta que o proacutelogo requeria que se baseia numa concepccedilatildeo idealista

de integridade moral e de sobriedade eacute aguada senatildeo desmentida pelas restantes

intenccedilotildees realistas da novela A apresentaccedilatildeo exoacutetica de

uma China semicolonizada evoca em primeiro lugar uma

criacutetica anti-colonialista e anti-imperialista facto que se

demonstra pela dependecircncia da burocracia chinesa das

exigecircncias do embaixador Camilof As Cartas de Inglaterra

e os Ecos de Paris postumamente publicados revelam o

desejo de Eccedila que surgiu possivelmente da sua

experiecircncia diplomaacutetica de demascarar o imperialismo

mesmo em pormenores idiacutelicos Tal acontece com a

missatildeo catoacutelica no meio da China onde crianccedilas chinesas

satildeo obrigadas a decorar as declinaccedilotildees latinas para

poderem seguir a liturgia catoacutelica o que eacute contrastado

com o ambiente acolhedor em que repousa Teodoro A

saacutetira do servilismo a uma sociedade de classes que

adora o poder do dinheiro como um deus estabelece-se

numa confrontaccedilatildeo iroacutenica da burocracia chinesa com a pequena e alta burguesia

portuguesa O quadro de costumes da pensatildeo da Madame Marques onde Teodoro

mora lembra-nos a pension Vauquer do Pegravere Goriot de Balzac que em oposiccedilatildeo agrave

ironia enternecida que envolve a sua correspondente portuguesa eacute descrita com um

cepticismo iroacutenico bastante mais severo O carinho com que o narrador trata a

brandura de costumes lusa sugere outra vez uma certa auto-ironia queirosiana uma

certa identificaccedilatildeo do autor com Teodoro O paradoxo tem uma presenccedila constante

nesta novela A hipocrisia moral do ateu Teodoro que ergue uma catedral a Nossa

Senhora das Dores o seu patriotismo sentimental que contrasta com o exibicionismo

ciacutenico que demonstra como narrador relativamente a Portugal (especialmente nos

Delegaccedilatildeo Britacircnica na China laquoThe british consulate from the Peiho riverraquo in The llustrated London News 1873 ldquoEsquecia-me dizer que mudaacutemos de padeiro fornecemo-nos agora na padaria da Embaixada inglesa deixaacutemos a da Embaixada francesa para natildeo Ter comunicaccedilotildees com o galho seco Aiacute estatildeo os inconvenientes de natildeo termos aqui na Embaixada russa uma padaria - apesar de tantos relatoacuterios tantas reclamaccedilotildees que sobre esse ponto tenho feito para a chancelaria de S Petersburgo Eles sabem bem que em Pequim natildeo haacute padarias que cada legaccedilatildeo tem a sua proacutepria como um elemento de instalaccedilatildeo e de influecircnciardquo (O Mandarim)

ldquoBreve interpretaccedilatildeo drsquoO Mandarim de Eccedila de Queiroacutesrdquo Burghard Baltrusch

6

diaacutelogos com Camilof) Esta tecirccnica narrativa alastra-se ateacute ao niacutevel

linguiacutestico Teodoro intenta comprar tudo ateacute as mulheres O verbo

amar emprega-o simplesmente no sentido de relaccedilatildeo sexual ainda

que no Portugal oitocentista amar tenha tido uma conotaccedilatildeo

exclusivamente ideal e sentimental Com este uso fora do comum o autor desvenda a

atitude hipoacutecrita da sociedade perante a realidade quotidiana A dialectizaccedilatildeo

contiacutenua das intenccedilotildees humanas as inconsequecircncias do comportamento efectivo

humano indicam que nos seres humanos natildeo haacute inteira consciecircncia do que estatildeo a

fazer Disto advecircm consequecircncias tatildeo graves como as que Teodoro causou tocando a

campainha colonialismo imperialismo injusticcedila social e o uso da religiatildeo pelos

detentores do poder para desviar a atenccedilatildeo da plebe dos seus problemas A falta de

reflexatildeo em Teodoro inicia de certa maneira a morte do mandarim Por outro lado

esta mesma reflexatildeo depois de realizar os efeitos da proacutepria acccedilatildeo desencadeia um

conflito na sua consciecircncia Atraveacutes da morte do mandarim Teodoro eacute confrontado

com a ideia da Morte A imaginaccedilatildeo que lhe permitiu tomar o aparecimento do diabo

como algo perfeitamente real tortura-o agora com as fantasias do sofrimento da sua

famiacutelia e com a visatildeo do Mandarim morto A sua decisatildeo de tornar-se dono do seu

proacuteprio destino coincide com o despertar da sua consciecircncia (em ambos sentidos) A

uacutenica soluccedilatildeo deste conflito entre o remorso e o desejo de recuperar a paz da alma

seraacute afinal a morte e a conciliaccedilatildeo com o facto de o seu puacuteblico leitor de todo o ser

humano resultar-lhe igual na sua condiccedilatildeo de criatura improvisada por Deus obra maacute

de maacute arguila meu semelhante e meu irmatildeo e que destruiria o mundo se pudesse

fugir do ennui

Loja Chinesa in The Illustrated London News 1873

ldquoA cada momento paraacutevamos a olhar as lojas ricas com as suas tabuletas

verticais de letras douradas sobre fundo escarlate os fregueses num

silecircncio de igreja subtis como sombras vatildeo examinando as preciosidades -

porcelanas da dinastia Ming bronzes esmaltes marfins sedas armas

marchetadas os leques maravilhosos de Swaton () ao fundo o mercador

aparatoso e imoacutevel escreve com um pincel sobre longas tabuinhas de

sacircndalo e um perfume adocicado que sai das coisas perturba e

entristecerdquo (O Mandarim)

Page 2: Eça de Queiróa: "O Mandarim"

ldquoBreve interpretaccedilatildeo drsquoO Mandarim de Eccedila de Queiroacutesrdquo Burghard Baltrusch

2

Ainda que pertenccedila agrave segunda fase da criaccedilatildeo literaacuteria de

Eccedila de Queiroacutes O Mandarim (1880) foge em alguns

aspectos ao conceito de um realismo como mera

anatomia do caraacutecter e criacutetica do homem como o tinha

postulado nos tempos das Conferecircncias do Casino e

depois realizado nos grandes romances dos anos 1871 a

1880 Os elementos fantaacutesticos deste romance que tecircm

certas afinidades com A Reliacutequia (1884) lembram as ainda

romaacutenticas Prosas Baacuterbaras (postumamente publicado em

1903) da sua juventude Assim nO Mandarim confrontam-

se dois mundos Por um lado temos o Portugal do

constitucionalismo paralisador a mesquinhez e a hipocrisia

da burguesia portuguesa oitocentista e por outro lado o devaneio

esteacutetico da fantasia justificado jaacute na carta que deveria ter sido um

prefaacutecio o exotismo asiaacutetico dois mundos que se desvalorizam

mutua e ironicamente Fantasia e descriccedilatildeo naturalista fundem-se - um

traccedilo estiliacutestico que se intensifica nos uacuteltimos romances de Eccedila Em A

Reliacutequia seraacute a Palestina biacuteblica e nA ilustre Casa de Ramires (1897) a

Idade Meacutedia portuguesa As reminiscecircncias do romantismo revelam-se

tambeacutem na concepccedilatildeo panteiacutesta segundo a qual a vida e a consciencia

moral satildeo atributos de uma substacircncia

comum O ateu Teodoro considera em

consonacircncia com o diabo vida e morte

como banais transformaccedilotildees da mateacuteria

Esta ideia oriental e pitagoacuterica da

metempsicose entra em conflito com a

concepccedilatildeo idealista de que existe uma

consciecircncia moral humana com uma

intuiccedilatildeo da justiccedila Teodoro sofre assim da

ldquoBreve interpretaccedilatildeo drsquoO Mandarim de Eccedila de Queiroacutesrdquo Burghard Baltrusch

3

manifestaccedilatildeo de visotildees alucinatoacuterias do Mandarim que o Diabo lhe

permitira assassinar a fim de lhe herdar a fortuna As fontes do mito de

um crime perfeito remontam ateacute agrave antiguidade (Ciacutecero Quintiliano) onde

jaacute estava demarcada a ideia de que este soacute podia ser impedido por um

Deus omnisciente que estivesse espelhado na consciecircncia individual sob

a forma de moral ou remorso Eccedila chegou a conhececirc-lo seguramente em

Rousseau e Balzac ainda que as primeiras referecircncias se encontrem em

Le geacutenie du christianisme (1803) de Chateaubriand Mas

foi Balzac que no Pegravere Goriot (1834) deu origem ao

proveacuterbio ldquotuer le Mandarinrdquo (que aparece em 1873 no

dicionaacuterio Larousse) no sentido de praticar um crime

perfeito por causa de uma ambiccedilatildeo pessoal um tema

que depois teve grande ecircxito nos romances franceses

oitocentistas A concepccedilatildeo fantasista no entanto natildeo

diminui as componentes realistas desta novela Jaacute no

proacutelogo dialogal de dois amigos o segundo locutor aceita

a proposta do primeiro de fazer fantasia mas recomenda

sobriedade e uma moralidade discreta Desta maneira o

diabo um cavalheiro bem educado adverte que o

assassiacutenio eacute somente um meacutetodo de equilibrar as

necessidades universais um desorganizar-se da mateacuteria

cujos aacutetomos se reconstituiratildeo novamente agrave favor das

necessidades de outra pessoa Neste panteiacutesmo

diaboacutelico o diabo e as suas sugestotildees perdem tudo o

que poderiam ter de assustador Comparado com o mito

de Fausto natildeo haacute acccedilotildees violentas nem pacto assinado

com sangue O pacto consume-se subtilmente com o

simples tocar de uma campainha Teodoro jaacute superou de

certa maneira aquela busca do conhecimento e do mais

profundo sentido das coisas que ainda estaacute na base dos

ldquoTuer le mandarinrdquo

On lit dans le Pegravere Goriot de Balzac roman qui date de 1835 ce dialogue entre Rastignac et Bianchon laquo mdash As-tu lu Rousseau raquo mdash Oui raquo mdash Te souviens-tu de ce passage ougrave il demande agrave son lecteur ce quil ferait au cas ougrave il pourrait senrichir en tuant agrave la Chine un vieux mandarin sans bouger de Parisraquo (Eacutedit Houssiaux 1870 9me vol p 411) Rastignac eacutetait-il bien sucircr davoir vu cela dans Rousseau et ne confondait-il pas avec un passage du Geacutenie du christianisme ougrave Chateaubriand sexprimait ainsi laquo O conscience ne serais-tu quun fantocircme de limagination ou la peur des chacirctiments des hommes je minterroge je me fais cette question laquo Si tu pouvais par un seul deacutesir tuer un homme agrave la Chine et heacuteriter de sa fortune en Europe avec la conviction surnaturelle quon nen saurait jamais rien consentirais-tu agrave former ce deacutesir raquo (Ire partie livre VI chap II Du remords et de la conscience) Une chanson de Louis Protat intituleacutee Tuons le mandarin eacutevidemment posteacuterieure au roman de Balzac porte comme eacutepigraphe ces quelques lignes que le chansonnier attribue agrave Rousseau laquo Sil suffisait pour devenir le riche heacuteritier dun homme quon naurait jamais vu dont on naurait jamais entendu parler et qui habiterait le fin fond de la Chine de pousser un bouton pour le faire mourir qui de nous ne pousserait pas ce bouton et ne tuerait pas le mandarin raquo Enfin MM Albert Monnier et Edouard Martin ont donneacute au Palais-Royal le 20 novembre 1855 sous le titre As-tu tueacute le mandarin un petit acte dans lequel ils ont reproduit de confiance (scegravene II) la preacutetendue citation de Rousseau Si donc comme cela paraicirct agrave peu pregraves certain il y a ici une erreur dattribution cest Balzac qui a eacuteteacute le premier coupable et cest de son roman quest neacutee la formule tuer le mandarin qui nexiste quagrave leacutetat embryonnaire dans le passage de Chateaubriand (httpwwwdicopersocomterm47110xhtml)

ldquoBreve interpretaccedilatildeo drsquoO Mandarim de Eccedila de Queiroacutesrdquo Burghard Baltrusch

4

conflitos dos Faustos de Goethe e de Lenau e ainda continuaraacute

presente depois no Fausto - Trageacutedia Subjectiva de Fernando

Pessoa O seu impulso natildeo eacute nenhum desejo espiritual mas pelo

contraacuterio o ennui (teacutedio) que constituia jaacute o ponto de partida dos

Fleurs du Mal (1857) de Baudelaire No teacutedio do dia a dia mediacuteocre e

monoacutetono do amanuense do Ministeacuterio do Reino aparece o diabo

como uma realidade humana Impele a Teodoro a tocar a campainha

mas tem de limpar uma laacutegrima quando o Mandarim cai morto e quase reza pela sua

metempsicose Esta caraacutecteristica dialeacutectica do diabo sugere a sua iacutentima relaccedilatildeo

panteiacutesta com a consciecircncia de Teodoro e a aspiraccedilatildeo materialista deste O que

Teodoro lecirc num livro comprado na Feira da Ladra realiza-se palavra por palavra a

ficccedilatildeo de segundo grau sobe ao primeiro plano o que corresponde agrave fusatildeo de fantasia

e realidade nesta novela num jogo agraves escondidas do autornarradorprotagonista (A

possibilidade de Eccedila ter-se identificado com Teodoro sugere por exemplo o facto de

os dois terem sido ateus muito supersticiosos e terem sofrido de constantes crises

financeiras)

A duplicidade da forma narrativa e do conteuacutedo narrado eacute constantemente variado

ateacute ao paradoxo final entre o remorso inextinguiacutevel e a sua uacutenica consolaccedilatildeo possiacutevel

que eacute a da certeza que nenhum dos leitores se comportaria de maneira diferente No

final ao evocar outra vez o poema inicial dos Fleurs

du Mal Teodoro atribui ao puacuteblico leitor os mesmos

impulsos egoistas e materialistas e confronta-o com a

pergunta insinuante de um romance dentro do

romance tocaraacutes tu a campainha Esta construccedilatildeo

antiteacutetica eacute levada ateacute as suas uacuteltimas consequecircncias

que consistem em Teodoro supor que o leitor o faraacute e

advertendo-o ao mesmo tempo que natildeo faccedila

semelhante coisa

NO Mandarim temos portanto um tratamento bastante inovador da situaccedilatildeo

faacuteustica do ser humano em geral O conflito jaacute natildeo lhe eacute legado por uma entidade

AU LECTEUR [] Mais parmi les chacals les panthegraveres les lices Les singes les scorpions les vautours les serpents Les monstres glapissants hurlants grognants rampants Dans la meacutenagerie infacircme de nos vices Il en est un plus laid plus meacutechant plus immonde Quoiquil ne pousse ni grands gestes ni grands cris Il ferait volontiers de la terre un deacutebris Et dans un bacircillement avalerait le monde Cest lEnnui--Loeil chargeacute dun pleur involontaire Il recircve deacutechafauds en fumant son houka Tu le connais lecteur ce monstre deacutelicat --Hypocrite lecteur--mon semblable--mon fregravere (Charles Baudelaire Les fleurs du mal

ldquoBreve interpretaccedilatildeo drsquoO Mandarim de Eccedila de Queiroacutesrdquo Burghard Baltrusch

5

divina externa mas eacute desde jaacute internalizado O diabo natildeo torna a aparecer no final e

o testamento que lhe lega toda a fortuna de Teodoro eacute somente um siacutembolo de esta

ficar no mundo para uso de futuros desgraccedilados e desgraccediladas como ele A

moralidade discreta que o proacutelogo requeria que se baseia numa concepccedilatildeo idealista

de integridade moral e de sobriedade eacute aguada senatildeo desmentida pelas restantes

intenccedilotildees realistas da novela A apresentaccedilatildeo exoacutetica de

uma China semicolonizada evoca em primeiro lugar uma

criacutetica anti-colonialista e anti-imperialista facto que se

demonstra pela dependecircncia da burocracia chinesa das

exigecircncias do embaixador Camilof As Cartas de Inglaterra

e os Ecos de Paris postumamente publicados revelam o

desejo de Eccedila que surgiu possivelmente da sua

experiecircncia diplomaacutetica de demascarar o imperialismo

mesmo em pormenores idiacutelicos Tal acontece com a

missatildeo catoacutelica no meio da China onde crianccedilas chinesas

satildeo obrigadas a decorar as declinaccedilotildees latinas para

poderem seguir a liturgia catoacutelica o que eacute contrastado

com o ambiente acolhedor em que repousa Teodoro A

saacutetira do servilismo a uma sociedade de classes que

adora o poder do dinheiro como um deus estabelece-se

numa confrontaccedilatildeo iroacutenica da burocracia chinesa com a pequena e alta burguesia

portuguesa O quadro de costumes da pensatildeo da Madame Marques onde Teodoro

mora lembra-nos a pension Vauquer do Pegravere Goriot de Balzac que em oposiccedilatildeo agrave

ironia enternecida que envolve a sua correspondente portuguesa eacute descrita com um

cepticismo iroacutenico bastante mais severo O carinho com que o narrador trata a

brandura de costumes lusa sugere outra vez uma certa auto-ironia queirosiana uma

certa identificaccedilatildeo do autor com Teodoro O paradoxo tem uma presenccedila constante

nesta novela A hipocrisia moral do ateu Teodoro que ergue uma catedral a Nossa

Senhora das Dores o seu patriotismo sentimental que contrasta com o exibicionismo

ciacutenico que demonstra como narrador relativamente a Portugal (especialmente nos

Delegaccedilatildeo Britacircnica na China laquoThe british consulate from the Peiho riverraquo in The llustrated London News 1873 ldquoEsquecia-me dizer que mudaacutemos de padeiro fornecemo-nos agora na padaria da Embaixada inglesa deixaacutemos a da Embaixada francesa para natildeo Ter comunicaccedilotildees com o galho seco Aiacute estatildeo os inconvenientes de natildeo termos aqui na Embaixada russa uma padaria - apesar de tantos relatoacuterios tantas reclamaccedilotildees que sobre esse ponto tenho feito para a chancelaria de S Petersburgo Eles sabem bem que em Pequim natildeo haacute padarias que cada legaccedilatildeo tem a sua proacutepria como um elemento de instalaccedilatildeo e de influecircnciardquo (O Mandarim)

ldquoBreve interpretaccedilatildeo drsquoO Mandarim de Eccedila de Queiroacutesrdquo Burghard Baltrusch

6

diaacutelogos com Camilof) Esta tecirccnica narrativa alastra-se ateacute ao niacutevel

linguiacutestico Teodoro intenta comprar tudo ateacute as mulheres O verbo

amar emprega-o simplesmente no sentido de relaccedilatildeo sexual ainda

que no Portugal oitocentista amar tenha tido uma conotaccedilatildeo

exclusivamente ideal e sentimental Com este uso fora do comum o autor desvenda a

atitude hipoacutecrita da sociedade perante a realidade quotidiana A dialectizaccedilatildeo

contiacutenua das intenccedilotildees humanas as inconsequecircncias do comportamento efectivo

humano indicam que nos seres humanos natildeo haacute inteira consciecircncia do que estatildeo a

fazer Disto advecircm consequecircncias tatildeo graves como as que Teodoro causou tocando a

campainha colonialismo imperialismo injusticcedila social e o uso da religiatildeo pelos

detentores do poder para desviar a atenccedilatildeo da plebe dos seus problemas A falta de

reflexatildeo em Teodoro inicia de certa maneira a morte do mandarim Por outro lado

esta mesma reflexatildeo depois de realizar os efeitos da proacutepria acccedilatildeo desencadeia um

conflito na sua consciecircncia Atraveacutes da morte do mandarim Teodoro eacute confrontado

com a ideia da Morte A imaginaccedilatildeo que lhe permitiu tomar o aparecimento do diabo

como algo perfeitamente real tortura-o agora com as fantasias do sofrimento da sua

famiacutelia e com a visatildeo do Mandarim morto A sua decisatildeo de tornar-se dono do seu

proacuteprio destino coincide com o despertar da sua consciecircncia (em ambos sentidos) A

uacutenica soluccedilatildeo deste conflito entre o remorso e o desejo de recuperar a paz da alma

seraacute afinal a morte e a conciliaccedilatildeo com o facto de o seu puacuteblico leitor de todo o ser

humano resultar-lhe igual na sua condiccedilatildeo de criatura improvisada por Deus obra maacute

de maacute arguila meu semelhante e meu irmatildeo e que destruiria o mundo se pudesse

fugir do ennui

Loja Chinesa in The Illustrated London News 1873

ldquoA cada momento paraacutevamos a olhar as lojas ricas com as suas tabuletas

verticais de letras douradas sobre fundo escarlate os fregueses num

silecircncio de igreja subtis como sombras vatildeo examinando as preciosidades -

porcelanas da dinastia Ming bronzes esmaltes marfins sedas armas

marchetadas os leques maravilhosos de Swaton () ao fundo o mercador

aparatoso e imoacutevel escreve com um pincel sobre longas tabuinhas de

sacircndalo e um perfume adocicado que sai das coisas perturba e

entristecerdquo (O Mandarim)

Page 3: Eça de Queiróa: "O Mandarim"

ldquoBreve interpretaccedilatildeo drsquoO Mandarim de Eccedila de Queiroacutesrdquo Burghard Baltrusch

3

manifestaccedilatildeo de visotildees alucinatoacuterias do Mandarim que o Diabo lhe

permitira assassinar a fim de lhe herdar a fortuna As fontes do mito de

um crime perfeito remontam ateacute agrave antiguidade (Ciacutecero Quintiliano) onde

jaacute estava demarcada a ideia de que este soacute podia ser impedido por um

Deus omnisciente que estivesse espelhado na consciecircncia individual sob

a forma de moral ou remorso Eccedila chegou a conhececirc-lo seguramente em

Rousseau e Balzac ainda que as primeiras referecircncias se encontrem em

Le geacutenie du christianisme (1803) de Chateaubriand Mas

foi Balzac que no Pegravere Goriot (1834) deu origem ao

proveacuterbio ldquotuer le Mandarinrdquo (que aparece em 1873 no

dicionaacuterio Larousse) no sentido de praticar um crime

perfeito por causa de uma ambiccedilatildeo pessoal um tema

que depois teve grande ecircxito nos romances franceses

oitocentistas A concepccedilatildeo fantasista no entanto natildeo

diminui as componentes realistas desta novela Jaacute no

proacutelogo dialogal de dois amigos o segundo locutor aceita

a proposta do primeiro de fazer fantasia mas recomenda

sobriedade e uma moralidade discreta Desta maneira o

diabo um cavalheiro bem educado adverte que o

assassiacutenio eacute somente um meacutetodo de equilibrar as

necessidades universais um desorganizar-se da mateacuteria

cujos aacutetomos se reconstituiratildeo novamente agrave favor das

necessidades de outra pessoa Neste panteiacutesmo

diaboacutelico o diabo e as suas sugestotildees perdem tudo o

que poderiam ter de assustador Comparado com o mito

de Fausto natildeo haacute acccedilotildees violentas nem pacto assinado

com sangue O pacto consume-se subtilmente com o

simples tocar de uma campainha Teodoro jaacute superou de

certa maneira aquela busca do conhecimento e do mais

profundo sentido das coisas que ainda estaacute na base dos

ldquoTuer le mandarinrdquo

On lit dans le Pegravere Goriot de Balzac roman qui date de 1835 ce dialogue entre Rastignac et Bianchon laquo mdash As-tu lu Rousseau raquo mdash Oui raquo mdash Te souviens-tu de ce passage ougrave il demande agrave son lecteur ce quil ferait au cas ougrave il pourrait senrichir en tuant agrave la Chine un vieux mandarin sans bouger de Parisraquo (Eacutedit Houssiaux 1870 9me vol p 411) Rastignac eacutetait-il bien sucircr davoir vu cela dans Rousseau et ne confondait-il pas avec un passage du Geacutenie du christianisme ougrave Chateaubriand sexprimait ainsi laquo O conscience ne serais-tu quun fantocircme de limagination ou la peur des chacirctiments des hommes je minterroge je me fais cette question laquo Si tu pouvais par un seul deacutesir tuer un homme agrave la Chine et heacuteriter de sa fortune en Europe avec la conviction surnaturelle quon nen saurait jamais rien consentirais-tu agrave former ce deacutesir raquo (Ire partie livre VI chap II Du remords et de la conscience) Une chanson de Louis Protat intituleacutee Tuons le mandarin eacutevidemment posteacuterieure au roman de Balzac porte comme eacutepigraphe ces quelques lignes que le chansonnier attribue agrave Rousseau laquo Sil suffisait pour devenir le riche heacuteritier dun homme quon naurait jamais vu dont on naurait jamais entendu parler et qui habiterait le fin fond de la Chine de pousser un bouton pour le faire mourir qui de nous ne pousserait pas ce bouton et ne tuerait pas le mandarin raquo Enfin MM Albert Monnier et Edouard Martin ont donneacute au Palais-Royal le 20 novembre 1855 sous le titre As-tu tueacute le mandarin un petit acte dans lequel ils ont reproduit de confiance (scegravene II) la preacutetendue citation de Rousseau Si donc comme cela paraicirct agrave peu pregraves certain il y a ici une erreur dattribution cest Balzac qui a eacuteteacute le premier coupable et cest de son roman quest neacutee la formule tuer le mandarin qui nexiste quagrave leacutetat embryonnaire dans le passage de Chateaubriand (httpwwwdicopersocomterm47110xhtml)

ldquoBreve interpretaccedilatildeo drsquoO Mandarim de Eccedila de Queiroacutesrdquo Burghard Baltrusch

4

conflitos dos Faustos de Goethe e de Lenau e ainda continuaraacute

presente depois no Fausto - Trageacutedia Subjectiva de Fernando

Pessoa O seu impulso natildeo eacute nenhum desejo espiritual mas pelo

contraacuterio o ennui (teacutedio) que constituia jaacute o ponto de partida dos

Fleurs du Mal (1857) de Baudelaire No teacutedio do dia a dia mediacuteocre e

monoacutetono do amanuense do Ministeacuterio do Reino aparece o diabo

como uma realidade humana Impele a Teodoro a tocar a campainha

mas tem de limpar uma laacutegrima quando o Mandarim cai morto e quase reza pela sua

metempsicose Esta caraacutecteristica dialeacutectica do diabo sugere a sua iacutentima relaccedilatildeo

panteiacutesta com a consciecircncia de Teodoro e a aspiraccedilatildeo materialista deste O que

Teodoro lecirc num livro comprado na Feira da Ladra realiza-se palavra por palavra a

ficccedilatildeo de segundo grau sobe ao primeiro plano o que corresponde agrave fusatildeo de fantasia

e realidade nesta novela num jogo agraves escondidas do autornarradorprotagonista (A

possibilidade de Eccedila ter-se identificado com Teodoro sugere por exemplo o facto de

os dois terem sido ateus muito supersticiosos e terem sofrido de constantes crises

financeiras)

A duplicidade da forma narrativa e do conteuacutedo narrado eacute constantemente variado

ateacute ao paradoxo final entre o remorso inextinguiacutevel e a sua uacutenica consolaccedilatildeo possiacutevel

que eacute a da certeza que nenhum dos leitores se comportaria de maneira diferente No

final ao evocar outra vez o poema inicial dos Fleurs

du Mal Teodoro atribui ao puacuteblico leitor os mesmos

impulsos egoistas e materialistas e confronta-o com a

pergunta insinuante de um romance dentro do

romance tocaraacutes tu a campainha Esta construccedilatildeo

antiteacutetica eacute levada ateacute as suas uacuteltimas consequecircncias

que consistem em Teodoro supor que o leitor o faraacute e

advertendo-o ao mesmo tempo que natildeo faccedila

semelhante coisa

NO Mandarim temos portanto um tratamento bastante inovador da situaccedilatildeo

faacuteustica do ser humano em geral O conflito jaacute natildeo lhe eacute legado por uma entidade

AU LECTEUR [] Mais parmi les chacals les panthegraveres les lices Les singes les scorpions les vautours les serpents Les monstres glapissants hurlants grognants rampants Dans la meacutenagerie infacircme de nos vices Il en est un plus laid plus meacutechant plus immonde Quoiquil ne pousse ni grands gestes ni grands cris Il ferait volontiers de la terre un deacutebris Et dans un bacircillement avalerait le monde Cest lEnnui--Loeil chargeacute dun pleur involontaire Il recircve deacutechafauds en fumant son houka Tu le connais lecteur ce monstre deacutelicat --Hypocrite lecteur--mon semblable--mon fregravere (Charles Baudelaire Les fleurs du mal

ldquoBreve interpretaccedilatildeo drsquoO Mandarim de Eccedila de Queiroacutesrdquo Burghard Baltrusch

5

divina externa mas eacute desde jaacute internalizado O diabo natildeo torna a aparecer no final e

o testamento que lhe lega toda a fortuna de Teodoro eacute somente um siacutembolo de esta

ficar no mundo para uso de futuros desgraccedilados e desgraccediladas como ele A

moralidade discreta que o proacutelogo requeria que se baseia numa concepccedilatildeo idealista

de integridade moral e de sobriedade eacute aguada senatildeo desmentida pelas restantes

intenccedilotildees realistas da novela A apresentaccedilatildeo exoacutetica de

uma China semicolonizada evoca em primeiro lugar uma

criacutetica anti-colonialista e anti-imperialista facto que se

demonstra pela dependecircncia da burocracia chinesa das

exigecircncias do embaixador Camilof As Cartas de Inglaterra

e os Ecos de Paris postumamente publicados revelam o

desejo de Eccedila que surgiu possivelmente da sua

experiecircncia diplomaacutetica de demascarar o imperialismo

mesmo em pormenores idiacutelicos Tal acontece com a

missatildeo catoacutelica no meio da China onde crianccedilas chinesas

satildeo obrigadas a decorar as declinaccedilotildees latinas para

poderem seguir a liturgia catoacutelica o que eacute contrastado

com o ambiente acolhedor em que repousa Teodoro A

saacutetira do servilismo a uma sociedade de classes que

adora o poder do dinheiro como um deus estabelece-se

numa confrontaccedilatildeo iroacutenica da burocracia chinesa com a pequena e alta burguesia

portuguesa O quadro de costumes da pensatildeo da Madame Marques onde Teodoro

mora lembra-nos a pension Vauquer do Pegravere Goriot de Balzac que em oposiccedilatildeo agrave

ironia enternecida que envolve a sua correspondente portuguesa eacute descrita com um

cepticismo iroacutenico bastante mais severo O carinho com que o narrador trata a

brandura de costumes lusa sugere outra vez uma certa auto-ironia queirosiana uma

certa identificaccedilatildeo do autor com Teodoro O paradoxo tem uma presenccedila constante

nesta novela A hipocrisia moral do ateu Teodoro que ergue uma catedral a Nossa

Senhora das Dores o seu patriotismo sentimental que contrasta com o exibicionismo

ciacutenico que demonstra como narrador relativamente a Portugal (especialmente nos

Delegaccedilatildeo Britacircnica na China laquoThe british consulate from the Peiho riverraquo in The llustrated London News 1873 ldquoEsquecia-me dizer que mudaacutemos de padeiro fornecemo-nos agora na padaria da Embaixada inglesa deixaacutemos a da Embaixada francesa para natildeo Ter comunicaccedilotildees com o galho seco Aiacute estatildeo os inconvenientes de natildeo termos aqui na Embaixada russa uma padaria - apesar de tantos relatoacuterios tantas reclamaccedilotildees que sobre esse ponto tenho feito para a chancelaria de S Petersburgo Eles sabem bem que em Pequim natildeo haacute padarias que cada legaccedilatildeo tem a sua proacutepria como um elemento de instalaccedilatildeo e de influecircnciardquo (O Mandarim)

ldquoBreve interpretaccedilatildeo drsquoO Mandarim de Eccedila de Queiroacutesrdquo Burghard Baltrusch

6

diaacutelogos com Camilof) Esta tecirccnica narrativa alastra-se ateacute ao niacutevel

linguiacutestico Teodoro intenta comprar tudo ateacute as mulheres O verbo

amar emprega-o simplesmente no sentido de relaccedilatildeo sexual ainda

que no Portugal oitocentista amar tenha tido uma conotaccedilatildeo

exclusivamente ideal e sentimental Com este uso fora do comum o autor desvenda a

atitude hipoacutecrita da sociedade perante a realidade quotidiana A dialectizaccedilatildeo

contiacutenua das intenccedilotildees humanas as inconsequecircncias do comportamento efectivo

humano indicam que nos seres humanos natildeo haacute inteira consciecircncia do que estatildeo a

fazer Disto advecircm consequecircncias tatildeo graves como as que Teodoro causou tocando a

campainha colonialismo imperialismo injusticcedila social e o uso da religiatildeo pelos

detentores do poder para desviar a atenccedilatildeo da plebe dos seus problemas A falta de

reflexatildeo em Teodoro inicia de certa maneira a morte do mandarim Por outro lado

esta mesma reflexatildeo depois de realizar os efeitos da proacutepria acccedilatildeo desencadeia um

conflito na sua consciecircncia Atraveacutes da morte do mandarim Teodoro eacute confrontado

com a ideia da Morte A imaginaccedilatildeo que lhe permitiu tomar o aparecimento do diabo

como algo perfeitamente real tortura-o agora com as fantasias do sofrimento da sua

famiacutelia e com a visatildeo do Mandarim morto A sua decisatildeo de tornar-se dono do seu

proacuteprio destino coincide com o despertar da sua consciecircncia (em ambos sentidos) A

uacutenica soluccedilatildeo deste conflito entre o remorso e o desejo de recuperar a paz da alma

seraacute afinal a morte e a conciliaccedilatildeo com o facto de o seu puacuteblico leitor de todo o ser

humano resultar-lhe igual na sua condiccedilatildeo de criatura improvisada por Deus obra maacute

de maacute arguila meu semelhante e meu irmatildeo e que destruiria o mundo se pudesse

fugir do ennui

Loja Chinesa in The Illustrated London News 1873

ldquoA cada momento paraacutevamos a olhar as lojas ricas com as suas tabuletas

verticais de letras douradas sobre fundo escarlate os fregueses num

silecircncio de igreja subtis como sombras vatildeo examinando as preciosidades -

porcelanas da dinastia Ming bronzes esmaltes marfins sedas armas

marchetadas os leques maravilhosos de Swaton () ao fundo o mercador

aparatoso e imoacutevel escreve com um pincel sobre longas tabuinhas de

sacircndalo e um perfume adocicado que sai das coisas perturba e

entristecerdquo (O Mandarim)

Page 4: Eça de Queiróa: "O Mandarim"

ldquoBreve interpretaccedilatildeo drsquoO Mandarim de Eccedila de Queiroacutesrdquo Burghard Baltrusch

4

conflitos dos Faustos de Goethe e de Lenau e ainda continuaraacute

presente depois no Fausto - Trageacutedia Subjectiva de Fernando

Pessoa O seu impulso natildeo eacute nenhum desejo espiritual mas pelo

contraacuterio o ennui (teacutedio) que constituia jaacute o ponto de partida dos

Fleurs du Mal (1857) de Baudelaire No teacutedio do dia a dia mediacuteocre e

monoacutetono do amanuense do Ministeacuterio do Reino aparece o diabo

como uma realidade humana Impele a Teodoro a tocar a campainha

mas tem de limpar uma laacutegrima quando o Mandarim cai morto e quase reza pela sua

metempsicose Esta caraacutecteristica dialeacutectica do diabo sugere a sua iacutentima relaccedilatildeo

panteiacutesta com a consciecircncia de Teodoro e a aspiraccedilatildeo materialista deste O que

Teodoro lecirc num livro comprado na Feira da Ladra realiza-se palavra por palavra a

ficccedilatildeo de segundo grau sobe ao primeiro plano o que corresponde agrave fusatildeo de fantasia

e realidade nesta novela num jogo agraves escondidas do autornarradorprotagonista (A

possibilidade de Eccedila ter-se identificado com Teodoro sugere por exemplo o facto de

os dois terem sido ateus muito supersticiosos e terem sofrido de constantes crises

financeiras)

A duplicidade da forma narrativa e do conteuacutedo narrado eacute constantemente variado

ateacute ao paradoxo final entre o remorso inextinguiacutevel e a sua uacutenica consolaccedilatildeo possiacutevel

que eacute a da certeza que nenhum dos leitores se comportaria de maneira diferente No

final ao evocar outra vez o poema inicial dos Fleurs

du Mal Teodoro atribui ao puacuteblico leitor os mesmos

impulsos egoistas e materialistas e confronta-o com a

pergunta insinuante de um romance dentro do

romance tocaraacutes tu a campainha Esta construccedilatildeo

antiteacutetica eacute levada ateacute as suas uacuteltimas consequecircncias

que consistem em Teodoro supor que o leitor o faraacute e

advertendo-o ao mesmo tempo que natildeo faccedila

semelhante coisa

NO Mandarim temos portanto um tratamento bastante inovador da situaccedilatildeo

faacuteustica do ser humano em geral O conflito jaacute natildeo lhe eacute legado por uma entidade

AU LECTEUR [] Mais parmi les chacals les panthegraveres les lices Les singes les scorpions les vautours les serpents Les monstres glapissants hurlants grognants rampants Dans la meacutenagerie infacircme de nos vices Il en est un plus laid plus meacutechant plus immonde Quoiquil ne pousse ni grands gestes ni grands cris Il ferait volontiers de la terre un deacutebris Et dans un bacircillement avalerait le monde Cest lEnnui--Loeil chargeacute dun pleur involontaire Il recircve deacutechafauds en fumant son houka Tu le connais lecteur ce monstre deacutelicat --Hypocrite lecteur--mon semblable--mon fregravere (Charles Baudelaire Les fleurs du mal

ldquoBreve interpretaccedilatildeo drsquoO Mandarim de Eccedila de Queiroacutesrdquo Burghard Baltrusch

5

divina externa mas eacute desde jaacute internalizado O diabo natildeo torna a aparecer no final e

o testamento que lhe lega toda a fortuna de Teodoro eacute somente um siacutembolo de esta

ficar no mundo para uso de futuros desgraccedilados e desgraccediladas como ele A

moralidade discreta que o proacutelogo requeria que se baseia numa concepccedilatildeo idealista

de integridade moral e de sobriedade eacute aguada senatildeo desmentida pelas restantes

intenccedilotildees realistas da novela A apresentaccedilatildeo exoacutetica de

uma China semicolonizada evoca em primeiro lugar uma

criacutetica anti-colonialista e anti-imperialista facto que se

demonstra pela dependecircncia da burocracia chinesa das

exigecircncias do embaixador Camilof As Cartas de Inglaterra

e os Ecos de Paris postumamente publicados revelam o

desejo de Eccedila que surgiu possivelmente da sua

experiecircncia diplomaacutetica de demascarar o imperialismo

mesmo em pormenores idiacutelicos Tal acontece com a

missatildeo catoacutelica no meio da China onde crianccedilas chinesas

satildeo obrigadas a decorar as declinaccedilotildees latinas para

poderem seguir a liturgia catoacutelica o que eacute contrastado

com o ambiente acolhedor em que repousa Teodoro A

saacutetira do servilismo a uma sociedade de classes que

adora o poder do dinheiro como um deus estabelece-se

numa confrontaccedilatildeo iroacutenica da burocracia chinesa com a pequena e alta burguesia

portuguesa O quadro de costumes da pensatildeo da Madame Marques onde Teodoro

mora lembra-nos a pension Vauquer do Pegravere Goriot de Balzac que em oposiccedilatildeo agrave

ironia enternecida que envolve a sua correspondente portuguesa eacute descrita com um

cepticismo iroacutenico bastante mais severo O carinho com que o narrador trata a

brandura de costumes lusa sugere outra vez uma certa auto-ironia queirosiana uma

certa identificaccedilatildeo do autor com Teodoro O paradoxo tem uma presenccedila constante

nesta novela A hipocrisia moral do ateu Teodoro que ergue uma catedral a Nossa

Senhora das Dores o seu patriotismo sentimental que contrasta com o exibicionismo

ciacutenico que demonstra como narrador relativamente a Portugal (especialmente nos

Delegaccedilatildeo Britacircnica na China laquoThe british consulate from the Peiho riverraquo in The llustrated London News 1873 ldquoEsquecia-me dizer que mudaacutemos de padeiro fornecemo-nos agora na padaria da Embaixada inglesa deixaacutemos a da Embaixada francesa para natildeo Ter comunicaccedilotildees com o galho seco Aiacute estatildeo os inconvenientes de natildeo termos aqui na Embaixada russa uma padaria - apesar de tantos relatoacuterios tantas reclamaccedilotildees que sobre esse ponto tenho feito para a chancelaria de S Petersburgo Eles sabem bem que em Pequim natildeo haacute padarias que cada legaccedilatildeo tem a sua proacutepria como um elemento de instalaccedilatildeo e de influecircnciardquo (O Mandarim)

ldquoBreve interpretaccedilatildeo drsquoO Mandarim de Eccedila de Queiroacutesrdquo Burghard Baltrusch

6

diaacutelogos com Camilof) Esta tecirccnica narrativa alastra-se ateacute ao niacutevel

linguiacutestico Teodoro intenta comprar tudo ateacute as mulheres O verbo

amar emprega-o simplesmente no sentido de relaccedilatildeo sexual ainda

que no Portugal oitocentista amar tenha tido uma conotaccedilatildeo

exclusivamente ideal e sentimental Com este uso fora do comum o autor desvenda a

atitude hipoacutecrita da sociedade perante a realidade quotidiana A dialectizaccedilatildeo

contiacutenua das intenccedilotildees humanas as inconsequecircncias do comportamento efectivo

humano indicam que nos seres humanos natildeo haacute inteira consciecircncia do que estatildeo a

fazer Disto advecircm consequecircncias tatildeo graves como as que Teodoro causou tocando a

campainha colonialismo imperialismo injusticcedila social e o uso da religiatildeo pelos

detentores do poder para desviar a atenccedilatildeo da plebe dos seus problemas A falta de

reflexatildeo em Teodoro inicia de certa maneira a morte do mandarim Por outro lado

esta mesma reflexatildeo depois de realizar os efeitos da proacutepria acccedilatildeo desencadeia um

conflito na sua consciecircncia Atraveacutes da morte do mandarim Teodoro eacute confrontado

com a ideia da Morte A imaginaccedilatildeo que lhe permitiu tomar o aparecimento do diabo

como algo perfeitamente real tortura-o agora com as fantasias do sofrimento da sua

famiacutelia e com a visatildeo do Mandarim morto A sua decisatildeo de tornar-se dono do seu

proacuteprio destino coincide com o despertar da sua consciecircncia (em ambos sentidos) A

uacutenica soluccedilatildeo deste conflito entre o remorso e o desejo de recuperar a paz da alma

seraacute afinal a morte e a conciliaccedilatildeo com o facto de o seu puacuteblico leitor de todo o ser

humano resultar-lhe igual na sua condiccedilatildeo de criatura improvisada por Deus obra maacute

de maacute arguila meu semelhante e meu irmatildeo e que destruiria o mundo se pudesse

fugir do ennui

Loja Chinesa in The Illustrated London News 1873

ldquoA cada momento paraacutevamos a olhar as lojas ricas com as suas tabuletas

verticais de letras douradas sobre fundo escarlate os fregueses num

silecircncio de igreja subtis como sombras vatildeo examinando as preciosidades -

porcelanas da dinastia Ming bronzes esmaltes marfins sedas armas

marchetadas os leques maravilhosos de Swaton () ao fundo o mercador

aparatoso e imoacutevel escreve com um pincel sobre longas tabuinhas de

sacircndalo e um perfume adocicado que sai das coisas perturba e

entristecerdquo (O Mandarim)

Page 5: Eça de Queiróa: "O Mandarim"

ldquoBreve interpretaccedilatildeo drsquoO Mandarim de Eccedila de Queiroacutesrdquo Burghard Baltrusch

5

divina externa mas eacute desde jaacute internalizado O diabo natildeo torna a aparecer no final e

o testamento que lhe lega toda a fortuna de Teodoro eacute somente um siacutembolo de esta

ficar no mundo para uso de futuros desgraccedilados e desgraccediladas como ele A

moralidade discreta que o proacutelogo requeria que se baseia numa concepccedilatildeo idealista

de integridade moral e de sobriedade eacute aguada senatildeo desmentida pelas restantes

intenccedilotildees realistas da novela A apresentaccedilatildeo exoacutetica de

uma China semicolonizada evoca em primeiro lugar uma

criacutetica anti-colonialista e anti-imperialista facto que se

demonstra pela dependecircncia da burocracia chinesa das

exigecircncias do embaixador Camilof As Cartas de Inglaterra

e os Ecos de Paris postumamente publicados revelam o

desejo de Eccedila que surgiu possivelmente da sua

experiecircncia diplomaacutetica de demascarar o imperialismo

mesmo em pormenores idiacutelicos Tal acontece com a

missatildeo catoacutelica no meio da China onde crianccedilas chinesas

satildeo obrigadas a decorar as declinaccedilotildees latinas para

poderem seguir a liturgia catoacutelica o que eacute contrastado

com o ambiente acolhedor em que repousa Teodoro A

saacutetira do servilismo a uma sociedade de classes que

adora o poder do dinheiro como um deus estabelece-se

numa confrontaccedilatildeo iroacutenica da burocracia chinesa com a pequena e alta burguesia

portuguesa O quadro de costumes da pensatildeo da Madame Marques onde Teodoro

mora lembra-nos a pension Vauquer do Pegravere Goriot de Balzac que em oposiccedilatildeo agrave

ironia enternecida que envolve a sua correspondente portuguesa eacute descrita com um

cepticismo iroacutenico bastante mais severo O carinho com que o narrador trata a

brandura de costumes lusa sugere outra vez uma certa auto-ironia queirosiana uma

certa identificaccedilatildeo do autor com Teodoro O paradoxo tem uma presenccedila constante

nesta novela A hipocrisia moral do ateu Teodoro que ergue uma catedral a Nossa

Senhora das Dores o seu patriotismo sentimental que contrasta com o exibicionismo

ciacutenico que demonstra como narrador relativamente a Portugal (especialmente nos

Delegaccedilatildeo Britacircnica na China laquoThe british consulate from the Peiho riverraquo in The llustrated London News 1873 ldquoEsquecia-me dizer que mudaacutemos de padeiro fornecemo-nos agora na padaria da Embaixada inglesa deixaacutemos a da Embaixada francesa para natildeo Ter comunicaccedilotildees com o galho seco Aiacute estatildeo os inconvenientes de natildeo termos aqui na Embaixada russa uma padaria - apesar de tantos relatoacuterios tantas reclamaccedilotildees que sobre esse ponto tenho feito para a chancelaria de S Petersburgo Eles sabem bem que em Pequim natildeo haacute padarias que cada legaccedilatildeo tem a sua proacutepria como um elemento de instalaccedilatildeo e de influecircnciardquo (O Mandarim)

ldquoBreve interpretaccedilatildeo drsquoO Mandarim de Eccedila de Queiroacutesrdquo Burghard Baltrusch

6

diaacutelogos com Camilof) Esta tecirccnica narrativa alastra-se ateacute ao niacutevel

linguiacutestico Teodoro intenta comprar tudo ateacute as mulheres O verbo

amar emprega-o simplesmente no sentido de relaccedilatildeo sexual ainda

que no Portugal oitocentista amar tenha tido uma conotaccedilatildeo

exclusivamente ideal e sentimental Com este uso fora do comum o autor desvenda a

atitude hipoacutecrita da sociedade perante a realidade quotidiana A dialectizaccedilatildeo

contiacutenua das intenccedilotildees humanas as inconsequecircncias do comportamento efectivo

humano indicam que nos seres humanos natildeo haacute inteira consciecircncia do que estatildeo a

fazer Disto advecircm consequecircncias tatildeo graves como as que Teodoro causou tocando a

campainha colonialismo imperialismo injusticcedila social e o uso da religiatildeo pelos

detentores do poder para desviar a atenccedilatildeo da plebe dos seus problemas A falta de

reflexatildeo em Teodoro inicia de certa maneira a morte do mandarim Por outro lado

esta mesma reflexatildeo depois de realizar os efeitos da proacutepria acccedilatildeo desencadeia um

conflito na sua consciecircncia Atraveacutes da morte do mandarim Teodoro eacute confrontado

com a ideia da Morte A imaginaccedilatildeo que lhe permitiu tomar o aparecimento do diabo

como algo perfeitamente real tortura-o agora com as fantasias do sofrimento da sua

famiacutelia e com a visatildeo do Mandarim morto A sua decisatildeo de tornar-se dono do seu

proacuteprio destino coincide com o despertar da sua consciecircncia (em ambos sentidos) A

uacutenica soluccedilatildeo deste conflito entre o remorso e o desejo de recuperar a paz da alma

seraacute afinal a morte e a conciliaccedilatildeo com o facto de o seu puacuteblico leitor de todo o ser

humano resultar-lhe igual na sua condiccedilatildeo de criatura improvisada por Deus obra maacute

de maacute arguila meu semelhante e meu irmatildeo e que destruiria o mundo se pudesse

fugir do ennui

Loja Chinesa in The Illustrated London News 1873

ldquoA cada momento paraacutevamos a olhar as lojas ricas com as suas tabuletas

verticais de letras douradas sobre fundo escarlate os fregueses num

silecircncio de igreja subtis como sombras vatildeo examinando as preciosidades -

porcelanas da dinastia Ming bronzes esmaltes marfins sedas armas

marchetadas os leques maravilhosos de Swaton () ao fundo o mercador

aparatoso e imoacutevel escreve com um pincel sobre longas tabuinhas de

sacircndalo e um perfume adocicado que sai das coisas perturba e

entristecerdquo (O Mandarim)

Page 6: Eça de Queiróa: "O Mandarim"

ldquoBreve interpretaccedilatildeo drsquoO Mandarim de Eccedila de Queiroacutesrdquo Burghard Baltrusch

6

diaacutelogos com Camilof) Esta tecirccnica narrativa alastra-se ateacute ao niacutevel

linguiacutestico Teodoro intenta comprar tudo ateacute as mulheres O verbo

amar emprega-o simplesmente no sentido de relaccedilatildeo sexual ainda

que no Portugal oitocentista amar tenha tido uma conotaccedilatildeo

exclusivamente ideal e sentimental Com este uso fora do comum o autor desvenda a

atitude hipoacutecrita da sociedade perante a realidade quotidiana A dialectizaccedilatildeo

contiacutenua das intenccedilotildees humanas as inconsequecircncias do comportamento efectivo

humano indicam que nos seres humanos natildeo haacute inteira consciecircncia do que estatildeo a

fazer Disto advecircm consequecircncias tatildeo graves como as que Teodoro causou tocando a

campainha colonialismo imperialismo injusticcedila social e o uso da religiatildeo pelos

detentores do poder para desviar a atenccedilatildeo da plebe dos seus problemas A falta de

reflexatildeo em Teodoro inicia de certa maneira a morte do mandarim Por outro lado

esta mesma reflexatildeo depois de realizar os efeitos da proacutepria acccedilatildeo desencadeia um

conflito na sua consciecircncia Atraveacutes da morte do mandarim Teodoro eacute confrontado

com a ideia da Morte A imaginaccedilatildeo que lhe permitiu tomar o aparecimento do diabo

como algo perfeitamente real tortura-o agora com as fantasias do sofrimento da sua

famiacutelia e com a visatildeo do Mandarim morto A sua decisatildeo de tornar-se dono do seu

proacuteprio destino coincide com o despertar da sua consciecircncia (em ambos sentidos) A

uacutenica soluccedilatildeo deste conflito entre o remorso e o desejo de recuperar a paz da alma

seraacute afinal a morte e a conciliaccedilatildeo com o facto de o seu puacuteblico leitor de todo o ser

humano resultar-lhe igual na sua condiccedilatildeo de criatura improvisada por Deus obra maacute

de maacute arguila meu semelhante e meu irmatildeo e que destruiria o mundo se pudesse

fugir do ennui

Loja Chinesa in The Illustrated London News 1873

ldquoA cada momento paraacutevamos a olhar as lojas ricas com as suas tabuletas

verticais de letras douradas sobre fundo escarlate os fregueses num

silecircncio de igreja subtis como sombras vatildeo examinando as preciosidades -

porcelanas da dinastia Ming bronzes esmaltes marfins sedas armas

marchetadas os leques maravilhosos de Swaton () ao fundo o mercador

aparatoso e imoacutevel escreve com um pincel sobre longas tabuinhas de

sacircndalo e um perfume adocicado que sai das coisas perturba e

entristecerdquo (O Mandarim)