ebooksbrasil · 2018. 3. 9. · Índice nota informativa autor capÍtulos i ii iii iv v vi vii viii...

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  • A Normalista (1893)

    Adolfo Caminha (1867-1897)

    Fonte digital:www.bn.br

    CopyrightDomínio Público

  • ÍNDICE

    Nota InformativaAutorCAPÍTULOSI II III IV V VIVII VIII IX X XI XIIXIII XIV XV

  • A Normalista Adolfo Caminha

    NOTA INFORMATIVA

    O romance A normalista foi publicado em 1893,há mais de 100 anos, portanto.

    Por esse motivo, é impossível lê-lo como se lê umaobra escrita nos dias de hoje. Em primeiro lugar, é pre-ciso que o leitor se transporte para um tempo anteriorao seu nascimento, do qual ele só poderia conhecer atra-vés de leituras ou de outras informações. A experiên-cia pessoal do leitor, aquela que ele vai acumulando navivência do seu dia-a-dia, muitas vezes pouco tem aver com o local, os acontecimentos e a moral que ser-viu para situar o drama vivido pelos personagens deum romance como A normalista.

    Logo no primeiro capítulo, o leitor precisa da aju-da do dicionário para saber o que é um amanuense, oucaptar o sentido de frases ou expressões como as insi-nuações malévolas da alcovitice vilã. E o víspora? Será

  • que todo jovem reconheceria nesse jogo um precursordo bingo atual? E phaeteon, caiporismo, redingote,coxia (no sentido de calçada), botica? E o tratamentode vossemecê?

    No caso de A normalista, outro problema de lin-guagem se coloca: o regionalismo. Além de ter de des-locar a sua imaginação e a sua compreensão no tempo,o leitor se vê diante de expressões restritas ao local emque se desenrola a história do romance. Nesse caso es-pecífico de A normalista, em Fortaleza, no Ceará, masexpressões que também podem ser de uso corrente emtodo o Nordeste.

    O professor e pesquisador literário M. CavalcantiProença escreveu que Adolfo Caminha teve a preocu-pação de se não tornar pomposo ou oratório, o que abriulugar para muito material de linguagem regional deestilização do coloquial.

    Assim, recolhemos os exemplos bichinha, rapari-ga de família, o peru era uma excelente bebida, e mes-mo ditos populares como: pela cara se conhece quemtem lombrigas, sem tugir nem mugir, e muitos outros.

    Na verdade, Adolfo Caminha não insiste em de-masiado nas palavras de cunho regional, o que fazemoutros escritores, para dar uma cor local a históriasambientadas em lugares de fala bem característica.

    Surge, ainda, uma terceira dificuldade para a com-preensão imediata do texto, pela utilização de palavraseruditas, pouco usadas na comunicação quotidiana dasconversas, do jornal, da televisão. Por exemplo: seródia,rótula, tabernáculo, estiolando, almiscarado.

    Mas tudo isso, vocabulário em parte antiquado,

  • regional ou erudito, não deve desestimular o jovem aprosseguir na leitura começada. Literatura também éeste enriquecedor contato com o que ainda não sabe-mos, mundos distantes do nosso, aberturas para o des-conhecido.

    E a história? O enredo? Também deve o leitor fa-zer um esforço para entender a problemática, a tensãoe o drama que se desenrola dentro do contexto da épo-ca e do local onde foi situado o romance.

    As reações dos personagens às situações por elesvividas há 100 anos são, certamente, retratadas de for-ma diferente caso fossem escritas nos dias de hoje.

    No entanto, o leitor deve deixar-se envolver poressa atmosfera regional do passado, que Adolfo Cami-nha descreve com minúcia realista. Josué Montello, emseu ensaio A ficção naturalista, afirma que A normalistasobressaía pela transplantação fiel e natural da vida daprovíncia e vigor na fixação dos temperamentos e doscaracteres.

    O romance relata as muitas tristezas e poucas ale-grias de uma jovem que é entregue por seu pai ao pa-drinho, para criá-la. Ela é uma menina normal, que es-tuda, que tem uma amiga confidente, um pretenso na-morado de nível muito superior ao seu e, desgraçada-mente, é engravidada pelo padrinho e acaba casando-se com um alferes da polícia.

    O pano de fundo é uma cidade provinciana do sé-culo passado, cheia de preconceitos e maledicências.A jovem Maria do Carmo, personagem principal, quedá nome ao romance, sofre as conseqüências desse meiomesquinho, que não oferece oportunidades de um cres-

  • cimento interior nem alternativas de vida.Uma história vulgar, passada numa cidade atrasa-

    da e vivida por personagens medíocres, sem horizon-tes nem futuro.

    Mas, graças ao talento do escritor Adolfo Cami-nha, acontece o milagre da criação literária: o texto seilumina de uma aura de beleza e continua atraindo, aolongo dos anos, a atenção e o interesse de gerações egerações de novos leitores.

    CLAUDIO MURILO LEAL

  • O Autor

    Adolfo Caminha

    Nome completo: ADOLFO FERREIRA CAMINHAPseudônimo: FÉLIX GUANABARINO.Nascimento: 29 de Maio de 1867, Aracati, CE.Falecimento: 1 de Janeiro de 1897, Rio de Janeiro.

    BIOGRAFIA

    Adolfo Caminha após ter-lhe morrido a mãe, fi-cando órfão com mais cinco irmãos, foi para a compa-nhia de parentes em Fortaleza. Seis anos depois, em1883, mudou-se para a casa de seu tio no Rio de Janei-ro que o matriculou na antiga Escola da Marinha. Em1886, saiu a publicação em versos de Vôos Incertos.No mesmo ano, fez uma viagem de instrução aos Esta-dos Unidos. Em 1887, a 16 de Dezembro, promovido a2º tenente, publicou Judite e Lágrimas de um Crente,livro de contos. Em 1888, regressa a Fortaleza e envol-ve-se em rumoroso escândalo, ao raptar a esposa deum alferes. O ministro da Marinha interfere, inutilmente,para pôr fim à situação. Em 1890, Adolfo Caminha,pressionado de todos os lados, se demite e com a mu-lher e duas filhas segue para o Rio de Janeiro, ondevive como funcionário público. Em 1891, fundou, em

  • Fortaleza, a Revista Moderna, e colaborou no jornal ONorte. Em 1893, lançou o romance A Normalista, co-laborou na Gazeta de Notícias e em O País. Em 1894,publicou No País dos Ianques, fruto de sua ida, oitoanos antes, aos Estados Unidos. Um ano depois, o ro-mance O Bom Crioulo, e Cartas Literárias. Em 1896,ano em que fundou a Nova Revista, publicou Tenta-ção. Atormentado pelas dificuldades econômicas e de-bilitado pela tuberculose, morre precocemente. Dei-xou inacabados os romances: Ângelo e O Emigrado.

  • A NORMALISTA

    Adolfo Caminha

    IJoão Maciel da Mata Gadelha, conhecido em For-

    taleza por João da Mata, habitava, há anos, no Trilho,uma casinhola de porta e janela, cor de açafrão, com afrente encardida pela fuligem das locomotivas que dia-riamente cruzavam defronte, e de onde se avistava aEstação da linha férrea de Baturité. Era amanuense,amigado, e gostava de jogar víspora em família aosdomingos.

    Nessa noite estavam reunidas as pessoas do costu-me. Ao centro da sala, em torno de uma mesa cobertacom um pano xadrez, à luz parca de um candeeiro delouça esfumado, em forma de abajur, corriam os olhossobre as velhas coleções desbotadas, enquanto uma vozfina de mulher flauteava arrastando as sílabas numacadência morosa: — Vin...te e quatro! Sessen...ta enove!... Cinqüen...ta e seis!...

    Havia um silêncio morno e concentrado em quedestacava o rolar abafado das pedras no saquinho dabaeta verde.

    A sala era estreita, sem teto, chão de tijolo, comduas portas para o interior da casa, paredes escorridaspedindo uma caiação geral. À direita, defronte da jane-

  • la, dormia um velho piano de aspecto pobre, encimadopor um espelho não menos gasto. O resto da mobíliacompunha-se de algumas cadeiras, um sofá entre as duasportas do fundo, a mesa do centro, e uma espécie deconsole, colocada à esquerda, onde pousavam dois jar-ros com flores artificiais.

    De onde em onde zunia o falsete do amanuense:— Quadra! Ou caçoava: — Os anos de Cristo!...

    Os óculos do Padre Eterno!Risadinhas explodiam a espaços, gostosas, indis-

    cretas uma pilhéria ricocheteava nos quatro ângulosda mesa.

    — É boa! É boa! fazia João da Mata erguendo acabeça, mostrando a dentuça.

    Depois voltava o silêncio, e a voz fina de mulhercontinuava a cantar os números solenemente.

    — Víspora! saltou de repente um rapazola de ócu-los, bigodinho fino, flor na botoeira do fraque de casi-mira clara.

    Toda gente o conhecia era o Zuza, quintanista dedireito, filho do coronel Souza Nunes.

    — Podem conferir, disse erguendo-se, risonho se-gunda linha.

    E estendeu o braço, passando o cartão para oamanuense.

    — Não desmarquem, não desmarquem, recomen-dou este espalmando a mão. Pode ter sido engano.Errare humanum est...

    Houve um ligeiro sussurro de vozes e de caroçosrolando sobre a mesa com um surdo ruído de contasdesfiadas. Todos desfizeram as marcações.

  • Numa das extremidades sentava-se João da Mata,de paletó de fazenda parda sobre a camisa de meia,costas para a rua.

    À direita mexia-se uma senhora gorducha, de seustrinta anos, metida num casaco frouxo de rendas, cabe-lo penteado em cocó, estampa insinuante, bons dentes:era a mulher do amanuense, que passava por sua legíti-ma esposa não obstante as insinuações malévolas daalcovitice vilã que entrevira escândalos na vida priva-da de D. Terezinha. Contudo, era tida em conta de ex-celente dona-de-casa, honesta, dizendo-se relacionadacom as principais famílias de Fortaleza.

    Ninguém ousava mesmo dirigir-lhe um gracejo demau gosto, uma pilhéria calculada. Inventava-se calú-nias do populacho que se correspondia ocultamentecom o presidente da província. Ela, porém, gabava,batendo no peito com orgulho, que tinha uma vida lim-pa, graças a Deus; que isso de patifarias não lhe entra-va em casa, não, mas era o mesmo. Estava ali o Janjãoque não a deixava mentir.

    Ao pé de D. Terezinha aprumava-se Maria doCarmo, afilhada de João, uma rapariga muito nova, comum belo arzinho de noviça, morena-clara, olhos cor deazeitonas, carnes rijas, e cuja atenção volvia-se insis-tentemente para o Zuza.

    As outras pessoas eram também da intimidade: oLoureiro, guarda-livros da firma Carvalho Cia., o Dr.Mendes, juiz municipal, mais a senhora, a LídiaCampelo, filha da viúva Campelo, e o estudante. Àsvezes ia mais gente e o víspora prolongava-se até meia-noite.

  • João da Mata era um sujeito esgrouvinhado, es-guio e alto, carão magro de tísico, com uma cor hepáti-ca denunciando vícios de sangue, pouco cabelo, ócu-los escuros através dos quais boliam dois olhos miúdose vesgos. Usava pêra e bigode ralo caindo sobre os bei-ços, tesos como fios de arame; a testa ampla confun-dia-se com a meia calva reluzente. Falava depressa, comum sotaque abemolado, gesticulando bruscamente, e,quando ria, punha em evidência a medonha dentuçapostiça. Noutros tempos fora mestre-escola no sertãoda província, de onde se mudara para a capital por con-veniências particulares. Era então simplesmente o pro-fessor Gadelha, o terror dos estudantes de gramática.O sertão foi-lhe aborrecendo; estava cansado de ensi-nar a meninos, era preciso fazer pela vida noutro meiomais vasto onde as suas qualidades, boas ou más, fos-sem aquilatadas com justiça. Estava perdendo-se, inu-tilizando-se e fossilizando-se, por assim dizer, entre umvigário seboso e pernóstico e um delegado de políciaignorante: Não era um águia, um Abílio Borges, umMacedo... mas reconhecia que também não era burro.Até podia fazer figura em Fortaleza.

    E abalou com tanta felicidade que não tardou sernomeado comissário de socorros ao tempo da grandeseca de 77, dois anos depois de sua chegada à capital.Desde logo tornou-se conhecido, suas façanhas corri-am impressas nos pasquins domingueiros. De uma fei-ta escapou milagrosamente de ser preso por crime dedefloramento numa menor, criada do Dr. Moraes e Sil-va; de outra feita apanhou de rebenque na cara por ha-ver caluniado um capitão de infantaria propalando uma

  • infâmia. Toda a gente o conhecia muitíssimo bem, porsinal tinha uma cicatriz oblonga e funda na têmporaesquerda, e não largava o mau vezo de roer o canto dasunhas.

    Depois da seca entregou-se de corpo e alma à polí-cia, à intriguinha partidária, à rabulice, à cabala eleito-ral, à chicana. Toda a vez que se anunciava um pleito,punha em jogo as mil e uma sutilezas que só o seu espí-rito sagaz podia conceber. Ninguém como ele sabiacopiar uma chapa em letra firme e aprumada. Aquilo apena cantava no papel que nem o lápis de um taquígrafo.E que letra, que esplêndido talhe! Dir-se-ia traçada ananquim, delicadamente, com a paciência de um chi-nês. Ninguém como ele sabia tirar proveito duma vitó-ria alcançada pelo partido. Discutia, falava alto, berra-va... impunha-se!

    — Extraordinário homem! diziam os chefes políti-cos; destes é que nós precisamos, destes é que precisao partido.

    Mas João sabia vender caro seu peixe. Fazia polí-tica por uma espécie de ambição egoísta, visando sem-pre tirar resultados positivos de suas artimanhas, em-bora com prejuízo de alguém.

    Dinheiro é o que ele queria, não lhe fossem falarem política sem interesse pessoal.

    — Histórias, homem, histórias! Isso de patriotis-mo é uma patranha, um rótulo falso! O que se quer édinheiro, o santo dinheirinho, a mamata. Qual pátria,qual nada! Patacoadas! Ele, João, trabalhava, lá issoera inegável: dava o seu voto, cabalava, servia de tes-ta-de-ferro, mas... tivessem paciência era mão pra lá

  • mão para cá... Porque argumentava a política é umaespeculação torpe como outra qualquer, como a de com-prar e vender couros de bode na praia, a mesmíssimacoisa; pois não é? Pra tudo é preciso jeito, muito jeiti-nho...

    Agora, porém, andava meio retraído, dava o seuvoto, calado, e passe muito bem! A política só lhetrouxera desenganos e inimigos. Não estava mais paraservir de degrau a figurão algum. Que se fomentassem!É boa! Trabalhara que nem besta de carga para no fimde contas ganhar o quê? Um pingue lugar deamanuense? Um miserável emprego que se anda ofere-cendo aí a qualquer vagabundo? Decididamente não opilhavam mais para a canga... Estava experimentado,meus senhores, experimentadíssimo.

    E agora, com efeito, ninguém o via mais nas reda-ções, entre os jornalistas da terra, a esbravejar contraos adversários, nem nos cafés, quanto mais em dia deeleição, sentado, como dantes, na sua cadeira demesário, carrancudo, circunspecto, a contar votos, alavrar atas. Estava outro homem, completamente ou-tro: amigo de casa, vivendo para si, com poucas amiza-des, metódico, econômico, às voltas com a sua atrabíliscrônica, sem ambições, sem dívidas.

    A sua grande paixão, o seu fraco era a Maria doCarmo, a menina de seus olhos, a afilhadinha; queriaum bem extraordinário à rapariga e tratava-a com umcarinho lânguido de amante apaixonado no supremograu do amor incondicional. Criara-a desde pequena,era como se fosse pai, tinha direitos sobre ela; podiamesmo beijá-la sem malícia, já se deixa ver nas faces,

  • na testa, nos braços e até, por que não? na boca.Às vezes, quando Maria voltava da Escola Nor-

    mal, ele mandava-a sentar-se na rede, a seu lado. Apequena guardava os livros e lá ia, sem fazer beiço,deitar-se com o padrinho, amarfanhando o ricovestidinho de cretone passado a ferro pela manhã. Obe-decia-lhe cegamente, nunca lhe dissera uma palavraáspera; ao contrário, eram carinhos, cafunés no alto dacabeça, cócegas, histórias de alma do outro mundo egracinhas para ele rir... Tinha sempre um sorriso frescoe luminoso para o seu padrinho. E João da Mata sentiaum bem-estar incomparável, uma delícia, um gozo ine-fável ante aquele esplêndido tipo de cearense morena,olhos cor de azeitona onde boiava uma névoa de inge-nuidade, cabelos compridos descendo até a altura dosquadris, desmanchando-se em ondas de seda finíssima...Quantas vezes, quantas! punha-se, por trás dos gran-des óculos escuros, a olhá-la como um pateta, sem queela sequer percebesse a fixidez de seu olhar cheio dedesejo!

    Maria estava-se pondo moça, entrava nos seus quin-ze anos, e o padrinho a adorá-la cada vez mais!

    João começou a enquizilar-se com as freqüentesvisitas do Zuza. Por fim notara certas tendências doestudante para a pequena, certo quebrar de olhos, umacomo insistência atrevida em dizer as coisas por metá-foras... Isso o incomodava, punha-lhe pruridos na cal-va, enraivecia-o. Quanto ao Loureiro não havia risco,o guarda-livros estava para casar com a Campelinho,era um rapaz sério. Mas o senhor Zuza?... Ali andavanamoro, apostava. Tinha idéia de ter lido na Província

  • uns versos dedicados a M. C. e assinados por Z.***Naquela noite, sobretudo, pareceu-lhe ver o mariolapassar uma carta, um papel a Maria. Boas! Era precisopôr um termo ao descaramento, sob pena de ele, João,desmoralizar-se no conceito da gente séria. Lá por serfilho do Sr. coronel não fosse pensar que faria o queentendesse. Alto lá! Tudo, menos patifaria dentro desua casa.

    E, enquanto ia enchendo os cartões automaticamen-te sem olhar para os números, pensava em Maria doCarmo, mordendo com desespero as guias do bigodaço.

    Quando o Zuza, todo gabola e amaneirado, verme-lho do calor da luz, gritou — víspora! numa voz triun-fante e clara, João esteve quase atirando-lhe com o car-tão. Vieram-lhe desejos imoderados de estourar, de darescândalo, trêmulo, nervoso, a semicalva reluzente desuor.

    — Sim senhor, disse secamente devolvendo o car-tão. Vamos à última...

    E o jogo continuou. Fez-se novo silêncio. Agoraera o Zuza, o futuro bacharel que cantava pausadamen-te, tirando as pedras com a ponta dos dedos e colocan-do-as devagar, cauteloso.

    Davam nove horas na Sé quando todos se ergue-ram. A Campelinho suplicou mais uma partida, o Lou-reiro também foi de opinião que se jogasse ainda umavez, todos, enfim, desejavam continuar, mas João daMata opôs-se tenazmente: que era tarde, tinha muitoque escrever.

    — Uma só, meu padrinho, rogou Maria do Carmotomando-lhe as duas mãos e fitando-o com os seus

  • magníficos olhos cor de azeitona.O amanuense estremeceu. Agora era a própria afi-

    lhada, a Sra. D. Maria do Carmo que lhe pedia com umsorriso extraordinário que jogassem! E na sua imagi-nação acentuava-se a suspeita do namoro com o estu-dante.

    Curvou-se e proferiu um palavrão ao ouvido darapariga. Estava desesperado, não se continha.

    — Não senhora, por hoje basta de víspora!Todos admiraram a súbita mudança na sua

    fisionomia a princípio tão alegre.A mulher do Dr. Mendes, muito afetada, acotove-

    lou o marido e despediu-se até a primeira vista.Zuza foi o último a retirar-se, fitando em Maria um

    olhar embebido de ternura.A noite estava muito escura e calma. As estrelas

    tinham um brilho particular, altas, minúsculas comocabeças de alfinetes em papel de seda escuro. Ouvia-sedistintamente, como por um tubo acústico, a toada dossoldados rezando à Virgem da Conceição, no quartelde linha e o marulhar da praia, distante. A rua do Tri-lho, deserta, com a sua iluminação incompleta, naque-les confins da cidade, parecia um túnel subterrâneo.Fazia medo transitar ali a desoras.

    Assim que se foram os habitués do víspora, Joãoda Mata desabafou: — Uma patifaria! O Sr. Zuza pre-tendia sem dúvida abusar da sua confiança, plantar adesordem no seio da família, mas estava muito engana-do. Ali era casa de gente pobre e honesta. Estava muitoenganadinho, seu pelintra!

    — Mas eu sei quem é a culpada, acrescentou furi-

  • oso, a culpada é a Sra. D. Maria do Carmo, porque seatreve a olhar para ele!

    Aquilo não podia continuar, o Sr. Zuza não lhepunha mais os pés em casa sob pretexto algum. Não seportava sério? Pois então fora! pra rua!

    Estavam fazendo de sua casa um alcouce! A Sra.D. Lídia vinha namorar o outro às suas barbas; já umavez caíra-lhe porta dentro uma imundície de carta anô-nima denunciando certos abusos...

    E colérico, soprando o bigode, sacudindo os bra-ços, esmurrando a mesa, berrava, com os olhos naalcova onde sumira-se D. Terezinha.

    Maria desaparecera pelo corredor e choravadebruçada sobre a mesa de jantar, onde ardia uma velade carnaúba.

    — Que sujeito! gania o amanuense. Pensa ele quenão tem mais do que enfronhar-se num fato de casimi-ra clara, com uma flor no peito, com modos desafardana, e zás! plantar-se na pequena, mas está muitoenganado! Aqui estou eu (e batia com força no peitoossudo) para impedir escândalos em minha casa!

    Debalde D. Terezinha aconselhava, aflita, que nãodesse escândalo, que fosse dormir — As paredes têmouvidos, dizia ela dentro da alcova. O moço era filhode gente graúda, e ele, Janjão, um simples empregadopúblico. Tivesse modos. Se houvesse má intenção porparte do Zuza, ela, Teté, seria a primeira a não consen-tir que ele pisasse o chão de sua casa. Mas, não senhor,a gente deve pensar antes de fazer as coisas. Pra quetodo aquele espalhafato, por que semelhante barulho?

    João da Mata, porém, estava fora de si, tinha a ca-

  • beça a arder como uma brasa. Seu temperamento ex-cessivamente irritável expandia-se com desespero aomesmo tempo que seu coração de homem gasto sentiapela primeira vez um quer que era, uma agonia, umasufocação ante a possibilidade de um namoro entre oestudante e a afilhada. Não era precisamente receio deque o Zuza pudesse iludir a rapariga desonrando-a eatirando-a por aí ao desprezo; era como revolta do ins-tinto, uma espécie de egoísmo animal que o torturava,acendendo-lhe todas as cóleras, dominando-o, como seMaria fosse propriedade sua, exclusivamente sua pordireito inalienável. Via-a caída pelo acadêmico, todavoltada para ele, amando-o talvez, preferindo-o a to-dos os outros homens, entregando-se-lhe. E o que seriadele, João, depois? Nem mais uma beijoca na boqui-nha rubra e pequenina, nem mais um abraço ao voltarda escola, cansadinha, o rosto afogueado pelo calor;nem mais uns cafunés, nem um sorriso daqueles queela sempre tinha para o padrinho... Isto é que o deses-perava!

    Desde a saída de Maria do colégio das Irmãs deCaridade tinha se operado uma mudança admirável noshábitos de João da Mata. Ela já não era para ele comouma filha; estava quase moça, incomparavelmente maisbonita e fornida de carnes. Já não era, que esperança!aquela Maria do Carmo da Imaculada Conceição, todasantidade, magrinha, com uma cor esbranquiçada emórbida de cera velha, o olhar macilento, a falar sem-pre no padre Reitor e na Superiora e na Irmã Filomenae noutras pieguices. Uma tontinha a Maria naquele tem-po. Quando ia passar o domingo em casa, uma vez no

  • mês, metia-se para os fundos do quintal ou pelascamarinhas, muito calada, muito sonsa, a ler a Imita-ção; não chegava à janela, não aparecia às visitas, doi-da por voltar ao colégio. Aquilo punha o padrinho demau humor. Uma coisa assim fazia até vergonha a ele,que detestava tudo quanto cheirasse a sacristia. PorqueJoão da Mata dizia-se pensador livre; não acreditavaem santos, e maldizia os padres. Jesus, na sua opinião,era uma espécie de mito, uma como legenda místicasem utilidade prática. Isso de colégios internos à guisade conventos não se acomodava com o seu tempera-mento. Também fora professor, olé! e sabia muito bemo que isso era um coito de patifarias. Queria a educa-ção como nos colégios da Europa, segundo vira em certopedagogista, onde as meninas desenvolvem-se física emoralmente como a rapaziada de calças, com uma ra-pidez admirável, tornando-se por fim excelentes mãesde família, perfeitas donas-de-casa, sem a intervençãoinquisitorial da Irmã de Caridade. Não compreendia(tacanhez de espírito embora) como pudesse instruir-se na prática indispensável da vida social uma criaturaeducada a toques de sineta, no silêncio e na sensaboriade uma casa conventual, entre paredes sombrias, comquadros alegóricos das almas do purgatório e das pe-nas do inferno; com o mais lamentável desprezo de to-das as prescrições higiênicas, sem ar nem luz, rezandonoite e dia ora pro nobis, ora pro nobis... Era da opi-nião do José Pereira da Província: Irmãs de Caridadeforam feitas para hospitais. O diabo é que no Ceará nãohavia colégios sérios. A instrução pública estava redu-zida a meia dúzia de conventilhos: uma calamidade pior

  • que a seca. O menino ou menina saía da escola saben-do menos que dantes e mais instruído em hábitos ver-gonhosos. As melhores famílias sacudiam as filhas naImaculada Conceição como único recurso para não vê-las completamente ignorantes e pervertidas. Afinal, paranão contrariar o Mendonça que queria a filha para san-ta, metera Maria do Carmo no convento.

    D. Terezinha participava das mesmas idéias doJanjão: Uma menina inteligente como Maria devia edu-car-se no Rio de Janeiro ou num colégio particular, masum colégio onde ela pudesse aprender o traquejo soci-al. Pode ser que as Irmãs sejam umas mulheresvirtuosíssimas e castas, mas filha sua não punha os pésem colégio de freiras...

    João da Mata detestava a padraria. Dava-se apenascom um padre, o cônego Feitosa, porque, dizia ele, eraum sacerdote sem hipocrisia, um padre como ele en-tendia que deviam ser todos os padres: asseado, inimi-go da batina, com afilhadas em casa... E por que não?Os padres são fisicamente (e sublinhava a palavra),anatomicamente, fisiologicamente homens como osoutros: têm coração, órgãos sexuais, nervos como osoutros homens. Portanto, assiste-lhes o mesmíssimodireito de procriação, direito natural e até consagradopela Escritura. O contrário é contrafazer a naturezahumana que, afinal, não obedece a preceitos de casti-dade. Daí, concluía João, daí o desregramento das clas-ses religiosas condenadas a eterno celibato. O próprioCristo dissera numa parábola cheia de senso e de expe-riência: Crescei e multiplicai-vos.

    Por amor de Deus não lhe falassem em padres. A

  • educação moderna, a educação livre, sem intervençãoda batina eis o que ele queria e apregoava alto e bomsom.

    Havia meses que Maria do Carmo cursava a Esco-la Normal. Sua vida traduzia-se em ler romances quepedia emprestados a Lídia, toda preocupada com bai-les, passeios, modas e tutti quanti... Ia à Escola todosos dias vestidinha com simplicidade, muito limpa, man-gas curtas evidenciando o meio-braço moreno e roliço,em cabelo, o guarda-sol de seda na mão, por ali aforatoque, toque, toque até à praça do Patrocínio, comouma grande senhora independente.

    Agora, sim, pensava o amanuense, Maria estavauma mocetona digna de figurar em qualquer salãoaristocrático.

    A fama da normalista encheu depressa toda a capi-tal. Não se compreendia como uma simples retirantesaída há pouco das Irmãs de Caridade fosse tão bem-feita de corpo, tão desenvolta e insinuante. As outrasnormalistas tinham-lhe inveja e faziam-lhe pirraças. Nasreuniões do Club Iracema era ela a preferida dos rapa-zes, todos a procuravam.

    João da Mata inflava. Certo não a entregaria porpreço algum a qualquer rapazola como o filho do coro-nel Souza Nunes.

    Entretanto, o Zuza era um rapaz da moda. Monta-va a cavalo, fazia versos, assinava a Gazeta Jurídica,freqüentava o palácio do presidente...

    João conhecera-o uma noite no baile do Dr. Cas-tro. Havia meses que se achava em Fortaleza estudan-do o quinto ano de direito e gozando a sua fama de

  • rapaz rico. Às seis horas da tarde já lá estava ele, noTrilho, em casa do amanuense, queixando-se da mono-tonia da vida cearense e gabando, com ares de fidalgo,a capital de Pernambuco. Ali, sim, a gente pode viver,pode gozar. Muito progresso, muito divertimento: cor-ridas de cavalos, uma sociedade papa-fina muitíssimobem-educada, magníficos arrabaldes, certo bom gostonas toaletes, nos costumes, certas comodidades que ain-da não havia no Ceará...

    — Ao que parece o Sr. Zuza não gosta do Ceará...disse-lhe um dia D. Terezinha.

    — Absolutamente não, minha senhora. Sou meioexigente em matéria de civilização; isto me parece ain-da uma terra de bugres...

    — De bugres?!— ...Sim, uma terra em que só se fala nas secas e

    no preço da carne verde. V. Exª compreende, não podecorresponder à expectativa de um rapaz de certa or-dem, por assim dizer educado na Veneza Americana...

    — Deste modo o Sr. Zuza ofende os seusconterrâneos, os seus parentes...

    — Absolutamente não.O que dizia é que o Recife está num plano muito

    superior a Fortaleza. Apenas estabelecia um paralelo.João da Mata achava-o pedante, desequilibrado,

    tolo. — Não, o Sr. Zuza não lhe punha mais os pés emcasa por forma alguma! bradava naquela noite.

    Maria continuava a chorar lá dentro, na sala de jan-tar, inconsolável, triste, com um grande desgosto naalma. De repente ouviu a voz do padrinho que a cha-mava. Ergueu-se com um movimento brusco e rápido,

  • o lenço nos olhos, soluçando devagar.João quis saber onde estava a carta que o Zuza lhe

    havia entregue. Botasse-a pra ali, já!Trêmula, abafando a cólera que lhe oprimia a res-

    piração, Maria não podia falar.— Vamos, vamos!— Não tenho carta alguma, disse num acento do-

    loroso.João da Mata sentiu atear-se-lhe o fogo da concu-

    piscência. Teve ímpetos de tomar entre as mãos a cabe-ça da afilhada e beijá-la, beijá-la sofregamente, com afúria de um selvagem, no pescoço, na boca, nos olhos...ímpetos de beijá-la toda inteira, como um doido. Mariadominava-o, fazia-lhe perder a tramontana.

    — Então aquele bandido não lhe entregou umacarta por debaixo da mesa, no víspora? Entregou, simsenhora, dê-ma!

    — Não senhor, não me entregou coisa alguma, tor-nou a normalista, sem levantar a cabeça fungando.

    Estavam em frente um do outro, ao pé da mesa. Asportas da sala já se tinham fechado; ele com o paletóaberto mostrando a camisa de meia cor de carne, o olharfixo em Maria; ela com o seu vestidinho claro de chita,cabelos penteados numa trança, acaçapada, submissaante a cólera rude do padrinho.

    — Pois bem, concluiu este moderando a voz. Tomesentido: vossemecê não me aparece mais àquele cabro-cha, está ouvindo?

    E depois duma pausa, com ternura:— Vá dormir, ande...Soprou o gás e foi deitar-se com a mulher, na

  • alcova.— Pois não achas, Teté, dizia ele em camisa de

    dormir, aconchegado à D. Terezinha, na larga cama dejacarandá: não achas que é um desaforo aquele patifevir à nossa casa para namorar?

    — Não, que tolice! O Zuza até é um rapaz sério...Vem, coitado, porque nos estima...

    — É boa! fez João. Então vem porque nos estima,hein? Esta cá me fica, Sra. D. Teté, esta cá me fica!

    — Homem, trate das suas hemorróidas que é me-lhor...

    — Ora, sabe que mais? Você é outra!E deram-se as costas fazendo ranger a cama.Com pouco ambos roncavam no discreto silêncio

    da alcova.Sobre a cômoda, ao pé do oratório, ardia uma

    lamparina de azeite.

  • IIFoi numa tarde infinitamente calma de dezembro

    de 1877 que o capitão Bernardino de Mendonça che-gou a Fortaleza, pela estrada nova de Mecejana, depoisde penosíssima viagem.

    A seca dizimava populações inteiras no sertão.Famílias sucumbiam de fome e de peste, castigadas porum sol de brasa. Centenas de foragidos, arrastando osesqueletos seminus, cruzavam-se dia e noite no arealincandescente dos caminhos abantesmas da desgraçagemendo preces ao Deus dos cristãos, numa vozrouquenha, quase soluçada. Era um horror de misériase aflições.

    Bernardino de Mendonça foi dos últimos que aba-laram do interior da província para o litoral na pista desocorros públicos. Totalmente desiludido, quase arrui-nado, vendo todos os dias passarem por sua porta, emCampo Alegre, magotes de emigrantes andrajosos quebatiam do sertão num êxodo pungente, acossados pelanecessidade, resolvera também ir-se com a família paraFortaleza, embora mais tarde fosse obrigado a procu-rar outros climas.

    Era homem sadio, vigoroso, excessivamente tra-balhador e dedicado. Contava a esse tempo quarentaanos, nada mais nada menos, e dizia com soberba, ga-bando o peito rijo, não se trocar por muito rapazolapimpão que aí vive nas cidades grandes caindo de té-dio e preguiça, cheio de vícios secretos. Corria-lhe nasveias largas e azuis de matuto inteligente, puro e abun-

  • dante sangue português. Nunca sofrera a mais leve dorde cabeça. Conhecia a sífilis por ouvir falar. Casaramuito moço, imberbe ainda, aos dezesseis anos, comuma prima colateral, D. Eulália de Mendonça Furtado,de uma família de Furtados da Telha. Até então só tive-ra três filhos, um dos quais, o mais velho, chamadoLourenço, fora recrutado para o exército por peraltaincorrigível. Outro, o Casimiro, mais rude e tambémmais obediente, vivia com os pais, era mesmo o va-queiro de Mendonça que descobrira nele especial vo-cação para esse inglório trabalho de andar atrás dasboiadas ecô! ecô! metido em couros, chapinhandoaçudes e lagoas, galopando à brida solta nas várzeas,ao ar fresco das manhãs do norte, identificado, por as-sim dizer, com o mugir nostálgico e penoso do gado.Desde menino, o pai acostumara-o à vida alegre docampo, e agora aí vinha também, Deus o sabe, triste eapreensivo, caminho da capital cearense, no seu pedrêschoutão, escanchado entre dois grandes alforjes de fa-rinha e carne salgada.

    Por último nascera Maria do Carmo, o último filhode Mendonça, a caçula. Em 1877 completava seis anos,e, para felicidade dos pais, era uma criança verdadeira-mente encantadora, com seu arzinho ingênuo e meigode sertaneja. A cor, os olhos, os dentes, o cabelo tudonela era um encanto: olhos puxando para negros, den-tes miudinhos e de uma brancura de algodão em rama,cabelos negros e luzidios como a asa da graúna more-na-clara. Crescia sem outra educação a não ser a quelhe davam os pais, de modo que, naquela idade, malsoletrava a Doutrina Cristã.

  • Mendonça abalara de Campo Alegre quando detodo lhe tinham fugido as esperanças de inverno segu-ro, depois de ter visto estrebuchar a última rês no soloduro e estéril.

    Todas as tardes, invariavelmente, da janela que di-zia para o poente, ou em pé na varanda, consultava otempo, os horizontes cor de cinza, o céu de um azuldiáfano de safira, procurando bispar na inclemência daatmosfera imóvel a sombra fresca de uma nuvem, umindício qualquer de chuva.

    Surpreendia às vezes, crivando a transparência doar, revoadas de aves de arribação. Recolhia-se anima-do. Mas os dias passavam quentes e secos.

    Outras vezes, à noitinha, clarões rápidos e lívidosabriam-se no poente como reflexos de luz elétrica; ou-via-se rolar a trovoada muito ao longe. Mendonça pu-nha-se a escutar calado, sentia um como arrepio bom, elá tornava a iludir-se alimentando, toda uma noite, adoce esperança de ver pela manhã o solo úmido e arama brotando verde e pujante da fornalha. Mas qual!As manhãs sucediam-se cada vez mais tépidas, sempingo de água, uma aragem leve, de cemitério, arrepi-ando a folhagem do arvoredo. Um céu muito alto, var-rido, monótono, indecifrável como um dogma.

    E pouco a pouco aquele estado de coisas foi atuan-do forte no espírito do sertanejo, como as vibrações deum clarim que dá sinal de marcha; pouco a pouco foi-se convencendo de que aquilo era uma situação impos-sível em que ele não devia absolutamente permanecer.

    Os açudes estorricavam mostrando os leitos greta-dos pelo sol, duros como pedra; juritis encandeadas iam

  • espapaçar ofegantes no chão, defronte da casa, casca-véis chocalhavam no alpendre, ocultas, invisíveis, etodas as coisas tinham um aspecto desolado e lúgubreque se comunicava às criaturas.

    Passava gente todo santo dia, a pé, de trouxa aoombro, arrastando-se pesadamente.

    Uma vez ele próprio, Mendonça, vira de perto aagonia lenta de uma mulher asfixiada pela elefantíasepernas inchadas, ventre inchado, rosto inchado horrí-vel!

    Decididamente era tempo de arrumar também osseus cacos e adeus Campo Alegre, adeus carnaubaisrumorejantes, adeus igrejinha branca! Ir-se-ia fazer pelavida em qualquer parte, em Fortaleza, onde felizmentecontava amigos políticos, correligionários dedicadosque certamente lhe não recusariam uma acha de lenha,um pouco de água fresca, um punhado de farinha...Demais era homem, graças a Deus, forte como novi-lho, tinha sangue nas veias trabalharia!

    Ao mesmo tempo lembrava-se da sua velha, daEulália, que andava adoentada, com umas pontadas nocoração, muito fraca e cuja natureza talvez não resis-tisse às fadigas duma viagem longa; pensava em Mariado Carmo, sua filha querida, a menina de seus olhos,tão nova ainda, e punha-se a meditar nos horrores daseca, nas febres de mau caráter, na quase absoluta faltade água, com um desalento a aniquilar-lhe as forças, adobrar-lhe a altivez de forte. Depois tornava ao mesmorio de idéias: não, aquele inferno do sertão, com umraio de tempo medonho seria talvez pior, seria a suadesgraça. De si para si media, calculava, meticulosa-

  • mente, toda a gravidade da situação a que chegara. Nãohavia outro recurso, outro jeito senão marchar para acapital, para onde quer que fosse, como tantos outrosinfelizes empolgados pela miséria. Iria, que remédio?bater à porta de um amigo, de um correligionário, deum cristão. Lembrou-se então do compadre João daMata, padrinho de Maria.

    Muito bem: iria ao compadre.Arribaram de manhã, muito cedo, ao romper da

    alva. Os cavalos, magros e ruins, romperam num trotemiúdo. Ao passarem defronte da igrejinha do povoado,um pobre nicho todo fechado, com as suas janelinhaspor pintar, solitário como uma coisa inútil, D. Euláliaciciou uma oração, e os outros, Mendonça e Casimiro,descobriram-se com respeito.

    Havia oito anos que isto fora...Enfiaram por uma estrada de areia que se prolon-

    gava indefinidamente, torcendo e retorcendo-se em zi-guezagues, ocultando-se aqui para brilhar lá adiante,por cima da floresta imóvel, como uma enorme serpen-te amarela dormindo ao sol...

    As pisadas dos animais abafavam-se na areia, e apequena caravana sumia-se na distância...

    Ao cabo de doze longos dias em que paravam pararepousar à sombra de alguma árvore que ainda verde-java ou nalguma palhoça abandonada, avistaram o cam-panário branco e alegre do Coração de Jesus, direito eesguio como o minarete de um templo muçulmano,destacando-se na meia sombra crepuscular, esbatidopela irradiação do sol que tombava glorioso ao fundoda tarde pardacenta.

  • Morria no ar calmo o dobre melancólico de umsino...

    Flutuava um cheiro vago de coisas podres. Para asbandas do Pajeú ardiam restos de fogueiras a extingui-rem-se.

    Uma tarde infinitamente calma, essa...Havia oito anos que isto fora, mas nos seus mo-

    mentos de desânimo, Maria do Carmo punha-se arelembrar toda essa tragédia de sua infância. Olhavapara o passado com a alma cheia de saudade, recordan-do, tintim por tintim, como se estivesse lendo num li-vro, ninharias, minudências de sua vida naqueles tem-pos em que ela, pobre e matutinha, via tudo cor-de-rosa através do prisma límpido e imaculado de sua me-ninice. Transportava-se, num vôo da imaginação, aCampo Alegre, e via-se, como por um óculos de ver aolonge, ao lado da mamãe, costurando quieta ou sole-trando a Cartilha, ou na novena do Senhor do Bonfim,muito limpa, com o seu vestidinho de chita que lhe derao Sr. vigário. Lembrava-se do papai quando voltava doroçado, de camisa e ceroula, chapéu de palha decarnaúba, tostado, trigueiro do sol, contando históriasde onças e maracajás...

    Recapitulava, mentalmente, com uma precisão cro-nológica, toda a sua vida e ficava horas e horas em cis-ma, a pensar, a pensar como se tivesse perdido o juízo...

    Nas Irmãs de Caridade é que lhe sobrava tempopara isso. Vinham-lhe à mente os episódios da viagem:uma grande cobra cascavel que o papai matara ao péduma árvore, à faca; as dificuldades que encontraramno caminho; um ceguinho que cantava na estrada sem

  • ter o que comer...Nunca mais lhe saíra da cabeça um retirante que

    ela vira estendido no meio do caminho, sobre o arealquente, ao meio-dia em ponto, morto, e completamen-te nu, com os olhos já comidos pelos urubus, os intesti-nos fora, devorados pelas varejeiras... Que feio aquilo!

    Não era má, de resto, a sua vida agora, em casa dospadrinhos, não era, mas se fosse possível tornar a sercriança, renascer e viver outra vez em Campo Alegre...

    No dia seguinte ao da chegada à capital, D. Euláliamorrera duma síncope cardíaca. Maria lembrava-semuito bem; a mamãe fora para o cemitério na padiolada Santa Casa de Misericórdia, toda de preto... Pareciavê-la ainda, com os olhos fundos, entreabertos, mãoscruzadas sobre o peito, dentro do esquife...

    Tempos depois vira-a em sonho, numa nuvem deincenso, cercada de anjos com um manto azul recama-do de estrelas, subindo para o céu... Por sinal acordousobressaltada, chamando pela madrinha, encolhendo-se toda na rede, fria de medo.

    Dias depois Mendonça embarcara para o norte.Ainda acabrunhado pelo desgosto que lhe trouxera amorte quase repentina da mulher, manifestou a João daMata desejos de ir tentar fortuna onde quer que fosse.Não podia continuar no Ceará, viúvo e ocioso, de bra-ços cruzados, sem dinheiro, olhando para o tempo, deci-didamente não podia continuar. Mas, havia uma difi-culdade a Maria. Se o compadre quisesse tomar a me-nina, encarregar-se de sua educação, mediante umamesada, um pequeno auxílio...

    O amanuense aceitou. Que fosse imediatamente

  • para o norte. A vida no Ceará não valia coisíssima al-guma. O Pará, sim, aquilo é que é terra de fartura e dedinheiro. Um homem trabalhador e honesto, como ocompadre, com um pouco de experiência, podia enricarda noite para o dia. Os seringais, conhecia os serin-gais? eram uma mina da Califórnia. Tantos fossemquantos voltavam recheados, de mão no bolso e cabeçaerguida. E o Ceará? Fome e miséria somente. Num mêsmorriam três mil pessoas, eram mortos a dar com o pé,morria gente até defronte do palácio do governo, umalástima!

    E acrescentou que o Ceará era boa terra para ospolíticos e ricaços, que o pobre em Fortaleza, ainda quepesasse quilogramas de honradez era sempre o pobre,maltratado, espezinhado, ridicularizado, perseguido,enquanto que o indivíduo mais ou menos endinheiradopodia contar amplamente, largamente (e abria os bra-ços) com a simpatia geral: tinha ingresso em todos ossalões, em toda a parte, até no santuário da família fos-se ele, embora, um patife, um grandíssimo canalha.Usava chapéu alto e gravata branca? Tinha um títulode bacharel? Não fizesse cerimônia, podia entrar ondequisesse — Uma terra de famintos, seu compadre!Fome, miséria e patifaria era o que se via. Com a Ma-ria do Carmo não tivesse cuidado; ele, João da Mata,havia de tratá-la como filha, não lhe faltaria nada; teriapara ela todas as carícias, todos os afagos de um pai.Mendonça podia mesmo demorar o tempo que quises-se no Pará, anos, séculos... a menina ficava em casa degente séria, pobre, é verdade, mas honrada.

    Daí a dias, um domingo de muito sol e muito ven-

  • to, realizou-se o embarque do capitão Mendonça e doCasimiro.

    Os conselhos de João calaram poderosamente noânimo forte e resoluto do sertanejo cuja confiança nocompadre era ilimitada. Sabia-o conhecido em quasetodo o Ceará, estimado mesmo por pessoas de bem,admirava-lhe muito o coração generoso e democrata,por tal forma que João se lhe afigurou o único homemcapaz de concorrer para a felicidade de sua filha refle-xões nascidas de boa-fé e da experiência da vida soci-al, que enchiam de íntima e doce consolação a almaingênua e simples do sertanejo.

    Mendonça conhecia Fortaleza superficialmente;suas viagens à capital tinham sido raríssimas; vieravezes contadas a negócio. Sabia os homens propensosao mal, por mais duma vez ele próprio fora vítima daingratidão de indivíduos que se diziam seus amigos e aquem fizera grandes benefícios; porém, a vida ruidosae dissoluta das capitais, esse tumultuar quotidiano devirtudes fingidas e vícios inconfessáveis, esse tropelde paixões desencontradas, isso que constitui, por as-sim dizer, a maior felicidade do gênero humano, esseacervo de mentiras galantes e torpezas dissimuladas,esse cortiço de vespas que se denomina — sociedade,desconhecia-o ele e nem sequer imaginava. Lá, no seutranqüilo recanto de Campo Alegre, onde só de longeem longe chegava o eco da vida elegante, ouvira falarem mulheres que traíam os maridos, filhos que assassi-navam os pais, incestos de irmãos, homens que negoci-avam com a própria honra... e tudo isso parecia-lhe sim-ples invenção das gazetas, romances de sensação que

  • ele ruminava devagar e esquecia depressa.— É uma grande alma aquele Mendonça! admira-

    vam os amigos.E era-o.Resolvera como que recomeçar a vida, esquecer o

    passado, recuperar o tempo perdido, trabalhando comoum mouro, entregando-se ao labor com todas as suasforças, dia e noite, sem descanso, nas florestas do Pará.

    E lá se fora barra fora, mais o Casimiro, na proadum vapor brasileiro, honrado e obscuro, no meio dedezenas de emigrantes que, como ele, iam fazer pelavida até... sabiam lá!...

    Antes de embarcar teve cuidados maternais para afilha. Comprou peças de chita, rendas, fitas, bugigan-gas, fantasias, tudo escolhido, tudo bom, e uma maletaamericana. Chamou-a à parte, beijou-a na testa e disse-lhe com os olhos cheios dágua e a voz trêmula que opapai havia de voltar se Deus quisesse, que ela fosseboa e obediente aos padrinhos, que estudasse, estudas-se muito, porque era feio uma mulher ignorante, e, fi-nalmente, que não esquecesse de rezar por alma damamãe...

    Maria lembrava-se de tudo.Depois ela ficara sozinha em companhia dos pa-

    drinhos.Nesse tempo moravam na rua de Baixo. Tinha-se

    mudado tudo: morrera-lhe a mãe, morrera-lhe o paiduma febre, no alto Purus. O Casimiro ninguém davanotícia dele, nunca mais voltara... O Lourenço, esse elanão conhecia andava no sul feito soldado. Estava só,por assim dizer, numa casa alheia. E, contudo, podia

  • dizer que não tinha tristezas, uma ou outra vez é que sepunha a pensar no passado.

    Depois que saíra da Imaculada Conceição a vidanão lhe era de todo má. Ora estava no piano, ensaiandotrechos de música em voga, ora saía a passear com aLídia Campelo, de quem era muito amiga, amiga deescola, ora lia romances... Ultimamente a Lídia dera-lhe a ler O Primo Basílio, recomendando muito cuida-do que era um livro obsceno: lesse escondido e haviade gostar muito. — Imagina um sujeito bilontra, umaespécie de José Pereira, sabes? o José Pereira, da Pro-víncia, sempre muito bem vestido, pastinhas,monóculo...

    — Não contes, atalhou Maria, tomando o livroquero eu mesma ler... Gostaste?

    — Mas muito! Que linguagem, que observação,que rigor de crítica!... Tem um defeito — é escabrosodemais.

    — Onde foste tu descobrir esta maravilha, criatu-ra?

    — É da mamãe. Vi-o na estante, peguei e li-o.Maria folheou ao acaso aquela obra-prima, disposta

    a devorá-la. E, com efeito, leu-a de fio a pavio, páginapor página, linha por linha, palavra por palavra, deva-gar, demoradamente.

    Uma noite o padrinho quase a surpreende no quar-to, deitada, com o romance aberto, à luz duma vela.Porque ela só lia O Primo Basílio à noite, no seu miste-rioso quartinho do meio da casa pegado à sala de jan-tar.

    Que regalo todas aquelas cenas da vida burguesa!

  • Toda aquela complicada história do Paraíso!... A pri-meira entrevista de Basílio com Luíza causou-lhe umasensação estranha, uma extraordinária superexcitaçãonervosa; sentiu um como formigueiro nas pernas,titilações em certas partes do corpo, prurido no bicodos seios púberes; o coração batia-lhe apressado, umanuvem atravessou-lhe os olhos... Terminou a leituracansada, como se tivesse acabado de um gozo infini-to... E veio-lhe à mente o Zuza: se pudesse ter uma en-trevista com o Zuza e fazer de Luíza...

    Até aquela data só lera romances de José deAlencar, por uma espécie de bairrismo mal-entendido,e a Consciência, de Heitor Malot publicada em folhe-tins na Província. A leitura do Primo Basílio desper-tou-lhe um interesse extraordinário — Aquilo é que éum romance. A gente parece que está vendo as coisas,que está sentindo...

    Não compreendera bem certas passagens, pensouem consultar a Lídia; sim, a Campelinho devia saber ahistória da champanha passada num beijo para a bocade Luíza.

    — Que porcaria! E assim também a tal sensaçãonova que Basílio ensinara à amante... não podia ser coisamuito asseada...

    Terminada a leitura do último capítulo, Maria sen-tiu que não fossem dois volumes, três mesmo, muitosvolumes... Gostara imensamente!

    No dia seguinte, antes de ir à Escola Normal, Ma-ria teve uma entrevista secreta com a amiga no quintalda viúva Campelo que morava defronte do amanuense.

  • A Campelinho tinha acabado de banhar-se e esta-va arranjando umas flores para a Nossa Senhora doOratório. Da saleta de jantar via-se o quintalzinho, cer-cado de estacas, estreito e comprido, com ateiras e umrenque de manjericões ao fundo, perto da cacimba. Umapitombeira colossal arrastava os galhos sobre o telha-do. O chão úmido da chuva que caíra à noite, porejavauma frescura comunicativa e boa.

    Lídia estava à fresca, de cabelos soltos sobre a to-alha felpuda aberta nos ombros, quando Maria apare-ceu.

    — Boa vida, hein? saudou esta. E logo, triunfante:— Acabei o Primo Basílio!

    — Que tal?— Magnífico, sublime! Olha, vem cá...E dando o braço à outra dirigiu-se para o banheiro,

    uma espécie de arapuca de palha seca de coqueiro,acaçapada, medonha, sem a mínima comodidade e paraonde se entrava por uma portinhola de tábua mal segu-ra.

    Uma vez ali, sentadas ambas num caixote que forade sabão, única mobília do banheiro, Maria sacou forao Primo Basílio, cuidadosamente embrulhado numafolha da Província. Queria que a Lídia explicasse umapassagem muito difusa, quase impenetrável à sua inte-ligência.

    — É isto, menina, que eu não pude compreenderbem. E, abrindo o livro, leu: ...e ele (Basílio) quis-lheensinar então a verdadeira maneira de beber champa-nha. Talvez ela não soubesse! — Como é? perguntouLuíza tomando o copo. — Não é com o copo! Horror!

  • Ninguém que se preza bebe champanha por um copo.O copo é bom para o Colares... Tomou um gole de cham-panha e num beijo passou-o para a boca dela, Luízariu..., etc., etc...

    — Como explicas tu isso?— Tola! fez a Campelinho. Uma coisa tão simples...

    Toma-se um gole de champanha ou de outro qualquerlíquido, junta-se boca a boca assim... E juntou a açãoàs palavras.

    — ...e pronto! bebe-se pela boca um do outro. Tãosimples...

    — E que prazer há nisso?— Sei lá, menina! tornou a outra com um gesto de

    nojo, cuspindo. Pode lá haver gosto...Depois, as duas curvadas sobre o livro, unidas, coxa

    a coxa, braço a braço, passaram à sensação nova.Lídia apressou-se em dizer que as mulheres do

    mundo é que sabem essas coisas... Quanto a ela nãoconhecia outras sensações além dos beijos na boca, àsescondidas, fora os abracinhos fortes e demorados, peitoa peito, isto mesmo com pessoa do coração... Contouentão que o seu primeiro namorado, um estudante doLiceu, um fedelho, tentara certa vez... Concluiu baixi-nho ao ouvido de Maria, com receio de que alguém asestivesse observando.

    — E consentiste?— Qual! Dei-lhe com um não na cara, e o tolo

    nunca mais me fez festa.Leram ainda alguns trechos do romance, rindo, co-

    chichando, acotovelando-se, e depressa a conversaçãotomou rumo diverso recaindo sobre o Zuza e o Lourei-

  • ro.— A propósito, perguntou Maria curiosa, preten-

    des mesmo casar com o guarda-livros?— Por que não? fez a outra erguendo-se. Muito

    breve tenho homem! Decididamente este não me esca-pa, tenho-o seguro... Vai todas as noites à nossa casa,como vês, está caidinho. A mamãe já não repara, dei-xa-se ficar com o dela...

    — Com o dela? inquiriu Maria com surpresa, mui-to admirada.

    Apanhada em flagrante indiscrição, Lídia confes-sou, muito em segredo, que uma noite encontrara D.Amanda na alcova com o Batista da Feira Nova, umnegociante...

    — !!!Maria tomava sentido, recalcando a curiosidade que

    lhe espicaçava o espírito. Calou-se para não ser indis-creta, e, depois de uma pausa em que folheava maqui-nalmente o romance:

    — Dize uma coisa, Lídia: tu amas deveras o Lou-reiro?

    — Que pergunta, criatura? Certamente que sim. Eleentão tem uma paixa doida por mim! Bebe-me com oolhar e me come de beijos. É na boca, no pescoço, naorelha, nos olhos, na nuca... Nunca vi gostar tanto debeijos! E é preciso que se note, conhecemo-nos há trêsmeses! E o teu Zuza?

    O namoro de Maria com o filho do coronel SouzaNunes estava no começo. A falar verdade, ela gostavado Zuza e casaria se ele quisesse, mas até aquela dataainda não se tinham comunicado. Conheciam-se nada

  • mais.Nessas confabulações íntimas com a amiga, Ma-

    ria, que começava a compreender a vida tal como ela éna sociedade, fingia-se ingênua, tolinha, expediente queusava sempre que desejava saber a opinião da Lídiasobre isto ou sobre aquilo.

    A princípio evitava conversar em amores, corandoa qualquer palavra mais livre ou a qualquer fato menossério que lhe contavam as colegas de estudo. Agora,porém, ouvia tudo com interesse, procurando inteirar-se dos acontecimentos, sem acanhamento, sem pejo.Pouco a pouco foi perdendo os antigos retraimentosque trouxera da Imaculada Conceição. A convivênciacom as outras normalistas transformara-lhe os hábitose as idéias. A Lídia principalmente era a sua confidentemais chegada. Quase sempre estavam juntas em casa,na Escola, nos passeios, em toda parte onde se encon-travam, de braços dados, aos cochichos... Havia entreelas um comércio contínuo de carinhos, de afagos e desegredos. Gabavam-se mutuamente, tinham quase osmesmos hábitos, vestiam-se pelos mesmos moldes,como duas irmãs.

    Lídia Campelo tinha então vinte anos. Era uma ra-pariga alta, fausse-maigre e bem-feita de corpo.

    A razão por que ainda não se casara ninguém ig-norava, toda a gente sabia é que a filha da viúvaCampelo, por via do atavismo, puxava à mãe. Não ha-via na cidade rapazola mais ou menos elegante, caixei-ro de loja de modas que não se gabasse de a ter beijado.Tinha fama de grande namoradeira, exímia em negóci-os de amor. O próprio João da Mata não gostava muito

  • daquela amizade com Maria. Mais de uma vez disseraa D. Terezinha as suas desconfianças, os seus escrúpu-los, os seus receios em relação a essa intimidade daafilhada com a Lídia: — Não consentisse a rapariga irà casa da outra. Antes prevenir que curar.

    Havia mesmo quem ousasse afirmar que aCampelinho já não era moça.

    Da viúva diziam-se horrores: aquilo era casa aber-ta... Tantos fossem, quantos ela recebia com risinho sem-vergonha, arregaçando os beiços. A filha seguia o mes-mo caminho.

    O certo, porém, é que o procedimento de D.Amanda não escandalizava a sociedade. Vivia na suamodesta casinha do Trilho, muito concentrada, semamigas, num respeitoso isolamento, saindo à rua pou-cas vezes em companhia da filha, não freqüentando osbailes nem o Passeio Público e muito menos as igrejas:vivia a seu modo, comodamente, do minguado montepiode seu defunto marido.

    — Uma mulher honesta! protestava o Loureiro.Infâmias era o que se diziam da pobre senhora, infâmi-as que caíam por terra, ante o indefectível procedimen-to de D. Amanda!

    E acrescentava convicto:— Tal mãe, tal filha!

  • IIIO velho mostrador da sala de jantar deu meia-noi-

    te, uma hora, e Maria do Carmo ainda estava acordada,a pensar no Zuza, arquitetando frases para responderao futuro bacharel em ciências jurídicas. Porque o es-tudante, como suspeitou o amanuense, achara meio decomunicar-se com a rapariga, atirando-lhe uma cartinhapor baixo da mesa, quando jogavam o víspora.

    Era a primeira vez que o Zuza lhe escrevia numaletra caligráfica, de mulher, miudinha, igual e redonda.Ao apanhar o envelope, com um movimento disfarça-do, Maria sentiu o sangue afluir todo para o rosto, comose todo o mundo a tivesse surpreendido em flagrante àsbarbas do padrinho. Ela mesmo, depois, admirou a suacoragem, ela que nunca desrespeitara o amanuense, te-mendo-o como a seu pai. Não pôde reprimir um susto,ficou fria, com os olhos baixos, sem prestar atenção aojogo. Pareceu-lhe ver através dos óculos escuros do pa-drinho um lampejo de cólera concentrada. Tremia como papel na mão, sem saber o que fizesse. Mas o vísporacontinuava animado e ela pôde cautelosamente guar-dar o objeto querido, pretextando sede e levantando-separa beber água no interior da casa. Guardou-o bemguardado, no fundo de uma caixinha de fitas, sem ler, evoltou imediatamente ao seu lugar com um alívio, muitolépida.

    Quando o amanuense entrou a esbravejar contra oZuza, esmurrando a mesa, batendo portas, colérico,medonho, Maria ficou lívida! Ta, ta, ta, ta, ia tudo águas

  • abaixo, o seu crime ia ser descoberto, não havia fugir.Estava irremediavelmente perdida! Enfiou pelo corre-dor com as mãos na cabeça, aflita. Decididamente opadrinho ia expulsá-la de casa... seu primeiro ímpetofoi voltar, atirar-se aos pés de João da Mata e pedir-lhe,suplicar-lhe por amor de Deus, por quem era que a per-doasse, que fora uma fraqueza, uma criancice... Isto,porém, seria complicar a situação, confessar-se culpa-da, entregar-se à cólera do amanuense. E ao sentar-se àmesa de jantar foi acometida por uma convulsão dechoro mudo, com a cabeça entre as mãos, cotovelosfincados na mesa, olhos fixos na luz moribunda da ve-linha de carnaúba.

    O padrinho berrou, jurou acabar com a bandalheira,disse horrores do Zuza, e, afinal, que felicidade para arapariga! foi se deitar com a mulher. Maria suspirouforte como se lhe tivessem tirado um grande peso docoração; e agora, só no seu quarto, lia e relia a carta doacadêmico, muito à fresca, sentindo um bem-estar con-fortável na sua rede de varandas, branca e sarapintadade encarnado.

    Fazia calor.Maria costumava dormir com a vela acesa, numa

    palmatória de flandres. Noutro quarto, defronte,ressonava a cozinheira, uma tirando para velha, cha-mada Mariana, e, no corredor, o Sultão abanava as ore-lhas sacudindo as pulgas. De quando em quando haviaum barulho de asas na sala de jantar: era a sabiá deba-tendo-se na gaiola, assombrada.

    Agora, sim, Maria estava só, completamente só,podia ler à vontade, uma, duas, três... quantas vezes

  • quisesse, a carta do Zuza. Nada como a noite para osnamorados! Era só quando ela gozava a sua liberdade,à noite, no seu quarto, em camisa, fazendo o que bementendesse...

    Minha senhora, dizia o futuro bacharel, muito res-peitoso. Tomo a liberdade de me dirigir a V. Exa. con-fiado na sua infinita bondade, nessa bondade que serevela em seus esplêndidos olhos de madona e na bran-dura meiga de sua voz cujo timbre faz-me lembrar todaa melodia duma harpa eólia tangida por mãos deserafins... Tomo esta liberdade para dizer-lhe simples-mente que a amo! e que este amor só podia ser inspira-do pela incomparável luz de seu olhar e pela músicasentimental de sua voz... Amo-a deveras... Só me restaesperar que V. Exa. aceite este amor como tributo sin-cero de um coração avassalado por sua beleza encanta-dora, e então serei o mais feliz dos homens.

    D. V. Exa. adm. e escravoJosé de Souza Nunes"Isto numa letrinha micros-

    cópica, indecifrável quase.Maria esteve meditando muito tempo sobre a res-

    posta que devia dar ao estudante, com os olhos na pa-rede onde esbatia a sombra da rede ao comprido. Paranão responder ficava-lhe mal, era uma falta de consi-deração. Devia responder fosse o que fosse. E, nessadúvida, lia e relia a carta numa inquietação que lhe ti-rava o sono. Realmente! começava cedo a sua carreiraamorosa e começava por um aspirante a bacharel! Se-ria verdade aquilo ou o rapaz queria divertir-se à suacusta? O Zuza parecia-lhe um bom moço, muito bem-educado, incapaz de seduzir uma rapariga honesta, de

  • costumes irrepreensíveis, refratário a pagodeiras... Àsvezes, porém, tinha cara de pedante com os seus ócu-los de ouro, com a sua flor na botoeira, dizendo que dê,dê-me você isto, faça você aquilo, ora sebo!

    Maria implicava com certos modos do rapaz.É verdade que tinha fortuna, era filho dum homem

    de bem, dum coronel... Mas...E lá vinha o mas, e a dúvida não se desfazia.Imaginava-se ao lado do Zuza, numa casinha mui-

    to bem mobiliada, com cortinas de cretone na sala dejantar e um viveiro de pássaros ele, de chambre e gor-ro sentado na escrivaninha a fazer versos, feliz, des-preocupado; ela com um robe-de-chambre todo bran-co, fitinhas na frente de alto a baixo, cabelo solto, a lero último romance da moda, recostada na espreguiça-deira, sem filhos... Que vida!

    Ao mesmo tempo lembrava-se de que o Zuza po-dia lhe sair um marido muito besta e casmurro, cuidan-do somente da papelada de autos e requerimentos, umadvogado com escritório e tabuleta à porta para fazer...nada! Ela, por outro lado, a cuidar dos filhos, muitobesuntada, da sala para a cozinha numa azáfama deburguesinha reles. Boas!

    E não assentava idéias, a mente que nem um rodo-pio, fantasiando situações disparatadas, coisas impos-síveis.

    Leu outra vez a carta, analisando-a palavra porpalavra, repetindo as frases à meia voz. Aquela lingua-gem alambicada e dengosa quis-lhe parecer tosca de-mais para ter sido do punho dum estudante de direito.— Que idiota! pensava; comparar seus olhos com olhos

  • de madona e sua voz com uma harpa eólia! E, numarrebatamento, levantou-se e guardou a carta nacaixinha de fitas. — Qual olhos de madona! Qual har-pa eólia, qual nada, seu besta!

    Daí a pouco também ressonava com a respiraçãoleve como uma carícia.

    O dia seguinte era domingo. Todos em casa doamanuense acordaram muito bem-dispostos. Haviamissa cantada na Sé. Espocavam foguetes e repicavamsinos. Meninos apregoavam numa voz cantada a Ma-traca a 40 réis! um jornaleco imundo que falava davida alheia e que por duas vezes trouxera sujidadescontra João da Mata. Maria do Carmo quis ver o quedizia a Matraca, apesar de o padrinho ter proibido ex-pressamente a entrada do pasquim em sua casa. Ali sólhe entrava a Província, dissera ele; isso mesmo por-que o José Pereira não exigia pagamento de assinatura.O mais era uma súcia de papéis nojentos que só servi-am para... Maria deu um pulo até a casa da viúvaCampelo e aí pôde comprar a Matraca. O padrinho es-tava no banho. — O Namoro do Trilho de Ferro! grita-vam os vendedores. Maria teve um palpite. Certo aqui-lo era com ela. Que felicidade o padrinho estar no ba-nho! Pagou ao menino, pedindo-lhe pelo amor de Deusque não gritasse mais o Namoro do Trilho de Ferro.Abriu o jornal ansiosa. Que horror! Havia, com efeito,uma piada sobre ela e o Zuza. Mais que depressa cor-reu a mostrar à Lídia.

    — Estás vendo, menina? Lê isto aqui. E apontoucom o dedo.

    Eram uns versos de pé de viola que contavam o

  • recente namoro do Zuza:

    A normalista do Trilho,ex-irmã de caridade,está caída pelo filhodum titular da cidade.

    O rapazola é galantee usa flor na botoeira:D. Juan feito estudantea namorar uma freira...

    Eis por que, caros leitores,eu digo como o Bahia:— Falem baixo, minhas flores,Senão... a chibata chia!...

    ...........................................

    Lídia achou graça na versalhada. Ela também jásaíra na Matraca.

    — Um desaforo, não achas? perguntou a normalistaindignada.

    — Que se há de fazer, minha filha? Ninguém estálivre destas coisas no Ceará moleque. Não se pode con-versar com um rapaz, porque não faltam alcoviteiros.Olha, eu aposto em como isto que aqui está saiu dacachola do Guedes.

    — Que Guedes?— tá feito redator principal da Matraca.

  • — E que mal fiz eu a esse Guedes que nem sequerme conhece?

    — Eu te digo. O Guedes andou a querer namorar-me. Chegou a escrever-me uma carta muito errada epiegas, pedindo uma entrevista... Que fiz eu? Ri-memuito das asneiras do bicho, trocei-o a valer e mandei-o pastar bem... Ora, o Guedes sabe que nós somos muitoamigas e talvez queira vingar-se indiretamente. Aí estáo que é, menina. Manda-o plantar couves e rasga estababoseira, que isto não vale senão nada.

    — Não vale nada, mas toda a gente lê e acredita, éo que é.

    — Sabem lá qual é a normalista do Trilho!A propósito Maria contou as ocorrências da vés-

    pera, a carta do Zuza, a cólera do padrinho, muito ve-xada.

    Estavam à janela, em pé, frente a frente. D. Amandaandava para os fundos da casa a mourejar. No fim darua, do lado da Estrada de Ferro, uma locomotiva faziamanobras, chiando, a deitar vapor fora. Chegou até afrente da casa da viúva, soltou um guincho rápido evoltou estralejando sobre os trilhos.

    ...E os sinos a repicarem na Sé e girândolas de fo-guetes estourando no ar. Chegavam espaçados sons demúsica que o vento trazia.

    — Não sei se deva responder, disse Maria dando acarta à amiga. Ele com certeza vem hoje para o víspora...

    — De forma que tens um compromisso a satisfa-zer...

    — Compromisso?— Sim, porque quem cala consente. Aceitaste a

  • carta, agora é responder. Diz-lhe que o amas também eque desde já o consideras teu noivo. Nisso de amorquanto mais depressa melhor. Eu pelo menos o enten-do assim. Queres, eu faço a minuta.

    — Eu, escrever para um homem?— Tola! Que crime há nisso? Eles não escrevem

    para nós? Olha, tolinha, não sejas criança. O homemfoi feito para a mulher e a mulher para o homem.

    — Mas...— Não tem mas nem meio mas. Decide-te a namo-

    rar o rapaz e deixa-te de meninices. Tu é que tens alucrar. O Zuza tem fortuna, está a formar-se e com maisum ano pode ser teu marido e fazer-te muito feliz.

    O que é que esperas de teu padrinho, um sujeitoestúpido e usurário como um urso? Já não tens pai nemmãe e ele já fala em tirar-te da Escola. É muito homempara botar-te a cozinhar. Não sejas tola!...

    Lídia interrompeu-se para cumprimentar um cava-leiro que passava. Era o Zuza montado num alazão re-luzente ao sol, de cauda aparada e arreios de prata. Oestudante trajava flanela e meias-botas de polimento,chapéu castor desabado, uma grande rosa branca nopeito, luva, rebenque, muito vistoso com seus óculosde ouro e seu bigodinho retorcido para cima.

    Fazia o costumado passeio matinal e lembrara-sede passar à porta do amanuense. Cumprimentourasgadamente a Campelinho. Maria ocultou-se enver-gonhada atrás do postigo olhando por entre as gretas.

    — Adorável! fez Lídia. E tu ainda queres mais,hein, minha tola?

    Como sentia não ser ela a querida do Zuza! Ambos

  • com vinte anos de idade, encarando a vida por um mes-mo prisma: passeios a cavalo, toaletes de verão e deinverno, como nos figurinos, com chácara no Benfica,um faetonte para virem à cidade, vacas de leite... Ummaná!

    Tinha o seu, o Loureiro, mas o guarda-livros pare-cia-lhe muito casmurro, muito indiferente a essas coi-sas de bom gosto, aos requintes da vida aristocráticaque ela ambicionava tanto. Queria-o mais por um ca-pricho, porque não encontrava outro homem em me-lhores condições que desejasse casar com ela. Sabia desua má fama e agarrava-se ao Loureiro como a umatábua de salvação. Tudo menos ficar para tia. Verdade,verdade, o Loureiro não era um sujeito ignorante e po-bre que lhe fizesse vergonha; mas não tinha certo apru-mo, certa elegância no trajar; aferrava-se à calça e aocolete branco, invariavelmente, e ninguém o demoviadaquele velho hábito. Entretanto possuía seu cabedalem casas e apólices da dívida pública. Ao passo que ooutro, o Zuza, sabia empregar seu dinheiro divertindo-se, trajando bem, passeando como um príncipe. Umasimples questão de temperamento.

    — Atira-te, minha tola. Aproveita enquanto o Brásé tesoureiro...

    — Que queres tu que eu faça?— Escreva logo essa carta e faze como eu: marca o

    dia do casamento. Assim é que se faz. Quem pensa nãocasa, lá diz o ditado, e é muito certo.

    A voz de D. Terezinha chamou a Maria do outrolado da rua. Era hora do almoço. O amanuense estavaapressado porque tinha de ir à praia, ao embarque do

  • conselheiro Castro e Silva que seguia para o Rio deJaneiro.

    João da Mata almoçou às carreiras, como quem vaitomar o trem, e abalou, enfiando-se no inseparável e jávelho chapéu-chile.

    Seriam onze horas pouco mais ou menos. Ummormação de fornalha abafava os transeuntes que des-ciam e subiam a rua de Baixo a pé, esbaforidos.

    No porto havia grande lufa-lufa de gente que em-barcava e desembarcava simultaneamente, bracejando,falando alto. A maré de enchente, crispada pela venta-nia de sudoeste, num contínuo vaivém, alagava o arealseco e faiscante. Gente muita ao embarque do conse-lheiro. Curiosos de todas as classes, trabalhadores adu-aneiros de jaqueta azul, guardas de Alfândega e ofici-ais de descarga com ar autoritário, de fardeta e boné,marinheiros da Capitania, confundiam-se numa promis-cuidade interessante. Jangadeiros, arregaçados até aosjoelhos, chapéu de palha de carnaúba, mostrando o peitorobusto e cabeludo, iam armando a vela às jangadas. Acada fluxo do mar havia gritos e assobios. Um alvoro-ço! Jangadas iam e vinham em direção do Nacional,que tombava como um ébrio, aproado ao vento. Ape-nas quatro navios mercantes fundeados e umacanhoneira argentina. Reluzia em caracteres garrafais,pintadinhos de fresco na popa duma barca italianaCivita Vecchia.

    O vapor apitou pedindo mala. Era uma maçada ir abordo com a maré cheia e um vento como aquele. De-mais o sol estava de rachar. Um carro parou à porta daEscola de Aprendizes marinheiros: era o conselheiro,

  • metido numa sobrecasaca muito comprida, cheia deatenções. Já o esperavam os amigos receosos de que ovapor não suspendesse sem o homem.

    A música da Polícia, formada à porta do quartel,gaguejou o Hino Nacional e o conselheiro, cheio de si,cortejando à direita e à esquerda, muito ancho, seguiua tomar o escaler da Alfândega.

    — Pílulas! fez João da Mata limpando a testa. Nãovale a pena a gente se sacrificar com um calor deste!

    Lá adiante encontrou o Loureiro, que vinha de des-pachar uma fatura no Trapiche, muito apressado com asua calça branca lustrosa de gomas sem uma dobra.

    — Por ali? É verdade, tinha ido a negócio.— Que há de novo? tornou o Loureiro.— Nada. Vou aqui ao embarque do conselheiro.— Hás de ganhar muito com isto...— Que queres, filho? A política, a política...— Qual política, homem! Com um solão deste não

    havia quem me fizesse ir a embarque de filho da mãenenhum.

    Uma lufada de poeira redemoinhou a dois passosdos interlocutores derribando bruscamente o chapéu doamanuense, pondo-lhe a calva à mostra.

    — Com os diabos! vociferou João da Mata abai-xando-se mais que depressa para apanhar o seu chileque rodava sobre as abas numa disparada vertiginosapor ali afora.

    — Fiau! fiau! Pega! pega! prorrompeu a garotadanuma vaia estrepitosa de gritos e assobios.

    — Canalha! resmungava o homem, enquanto oLoureiro escafedia-se daquela situação grotesca, sacu-

  • dindo com a ponta dos dedos a poeira do paletó, muitocalmo.

    O conselheiro tinha chegado ao trapiche com o seupréstito oficioso de amigos.

    O amanuense encavacou deveras — Diabos levemconselheiros e tudo! dizia ele mal-humorado, piscandoos olhos desesperadamente por trás dos óculos escu-ros, cobrindo a calva com um lenço para não constipar.E dali mesmo voltou à casa maldizendo-se por haverdeixado os seus cômodos por uma estopada inútil da-quela.

    Dava meio-dia. À porta do quartel de linha um sol-dado soprava a todo pulmão numa corneta muito bemareada.

    João da Mata caminhava devagar, automático,como quem vai com uma idéia fixa. Que séca! Podiamuito bem estar em casa àquela hora, metido na suacamisola fresca, de papo para o ar na rede, ao aconche-go morno da afilhada, saboreando-lhe o cheiro bom dascarnes; entretanto ali vinha ofegante como um boi esuado como dois burros, todo emporcalhado de poeira,furioso. Não lhe contassem para outra. Já tinha pensa-do mesmo em abandonar para sempre a política. Pílu-las! Mal lhe chegava o tempo para pensar na Maria doCarmo, naquela deliciosa boquinha fresca e rosada, boapara a gente levar a vida inteira a beijar...

    O Zuza tinha-lhe acordado o instinto; receava agoraque a menina se deixasse levar pelas gabolices do estu-dante e então lá se iam os seus belos projetos águasabaixo.

    Nunca se preocupara tanto com Maria do Carmo.

  • Desde que o Zuza começou a freqüentar a rua do Tri-lho não lhe saía mais da cabeça a afilhada. A própriaD. Terezinha por vezes tinha estranhado os seus modospara com a menina.

    Achava a Teté uma mulher gasta: queria uma rapa-riga nova e fresca, cheirando a leite, sem pecados tor-pes, a quem ele pudesse ensinar certos segredos doamor, ocultamente, sem que ninguém soubesse... Esta-va farto do amor conjugal. Nunca experimentara o con-tato aveludado de um corpo de mulher educada, vir-gem das impurezas do século. E quem melhor que Mariado Carmo, uma normalista exemplar e recatada, pode-ria satisfazer os caprichos de seu temperamento impe-tuoso? Era sua afilhada, mas, adeus! não havia entreele e a menina o menor grau de consangüinidade, por-tanto, não podia haver crime nas suas intenções... SeMaria houvesse de cair nas garras de algum bachareletesafado fosse ele, João da Mata, o primeiro a abrir cami-nho...

    Demais, argumentava de si para si, podia arranjartudo sem que ninguém soubesse. O segredo ficaria en-tre ele e a afilhada, inviolável como a sepultura de umsanto.

    E ia parafusando num meio simples e natural deconquistar o coração de Maria. Toda a questão era deoportunidade.

    Àquela hora a normalista arrastava ao piano a val-sa Minha esperança, cuja cadência punha uma mono-tonia irritante na quietação morna da rua do Trilho.

  • IVO futuro bacharel em leis ou simplesmente o Zuza,

    como era conhecido em Fortaleza o filho do coronelSouza Nunes, passava uma vida regalada, usufruindolargamente a fortuna do pai avaliada em cerca de cemcontos de réis. O coronel franqueava a burra ao filhocom uma generosidade verdadeiramente paternal. Que-ria-o assim mesmo, com todas as suas manias aristo-cráticas e afidalgadas, com os seus jeitos elegantes, ar-rotando grandeza e bom gosto, tal qual o presidente daprovíncia de quem se dizia amigo.

    — Cada qual com seu igual doutrinava o coronel.O que não admitia é que o filho se metesse com gentede laia ruim, que ele, coronel, nunca descera de suadignidade para tirar o chapéu ou apertar a mão a indi-víduos que não tivessem uma posição social definida.Aprendera isso em pequeno com o pai, o finadodesembargador Souza Nunes, homem de costumes se-veros, que sabia dar aos filhos uma educação esmera-da, quase principesca. O Zuza, dizia ele, não era maisdo que uma vergôntea digna desse belo troncogenealógico dos legítimos Souza Nunes, tão nobresquanto respeitados no Ceará.

    Era um orgulho para o coronel ver o filho passar acavalo, com o presidente, alvo do olhar bisbilhoteirodo mulherio elegante, em trajes de montaria, roupa deflanela, botas, chapéu mole desabado.

    O Zuza dava-se muito com o presidente que tam-

  • bém pertencia a uma alta linhagem de fidalgos de SãoPaulo e fora educado na Europa: um rapagão alegre,amador de cavalos de raça, ilustrado e amigo de mu-lheres.

    As revelações da Matraca sobre o namoro do Tri-lho de Ferro deram que falar à cidade inteira. Nas ro-das de calçada o fato propalou-se imediatamente à gui-sa de escândalo. A princípio ninguém sabia ao certoqual era a tal normalista ex-irmã de caridade. Que ha-via de ser a Lídia Campelo afirmavam uns. Mas aCampelinho nunca fora religiosa quanto mais freira.Afinal sempre se veio a saber a verdade e espalhou-selogo que a afilhada do João da Mata estava com umnamoro pulha mais o estudante. Não era Lídia mas davano mesmo, dizia-se: ambas estudavam na mesma esco-la, eram dignas uma da outra.

    E toda a gente dizia sua pilhéria, atirava seu con-ceito à boca pequena, com risadinhas sublinhadas pi-lhérias e conceitos que chegavam até aos ouvidos docoronel Souza Nunes, percucientes, incisivos comoferroadas de maribondos. — Não era possível, pensavaele. O Zuza era incapaz de semelhante criancice; umrapaz de certa categoria não se deixa iludir por umasimples normalista sem eira nem ramo de figueira, umarapariga sem juízo, filha de pais incógnitos, educadaem casa dum amanuense reles. Quem, o Zuza? Pois nãoviram logo a monstruosidade do absurdo? Era uma ca-lúnia levantada a seu filho. Que esta! Não faltava maisnada senão ver o nome do rapaz em letra redonda es-tampado na Matraca, um jornaleco imundo como umacloaca!

  • Morava na rua Formosa, numa casa assobradada evistosa com frontaria de azulejos, varandas, e dois ana-nases de louça no alto da cimalha, à velha moda portu-guesa.

    O coronel gostava de passar bem, de fazer figura,e, até certo ponto, revelava uma natureza delicada quenão era indiferente ao aspecto exterior das coisas; sa-bia mesmo aquilatar objetos de arte, escolher bric-à-bracs. No que respeita a asseio ninguém o excedia. Erao que se pode chamar um homem de bons costumes,um pouco orgulhoso e duma susceptibilidade a todaprova em matéria de dignidade pessoal: irrepreensívele caprichoso na intimidade doméstica como na vidapública.

    Fazia gosto a sala de visitas, forrada a papel-velu-do claro com ramagens cinzentas, mobiliada cominexcedível graça, sem ostentação, sem luxo, mas ondese notava logo certa correção no arranjo dos móveis,na colocação dos quadros, na limpidez dos cristais.

    Ao fundo, entre as duas portas altas e esguias quediziam para o interior da casa, ficava o piano, um Pleyelnovo, muito lustroso, sempre mudo, sobre o qual as-sentavam estatuetas de biscuit. À direita, descansandosobre grandes pregos dourados, o retrato a óleo do co-ronel com a sua barba em ponta, olhava para o piano,muito sério, em simetria com o da esposa.

    O corredor da entrada separava a sala de visitas dogabinete do Zuza que ficava à esquerda. — Não falta-va mais nada! repetia mentalmente o coronel, estendi-do na espreguiçadeira de lona, pernas trançadas, de-fronte da varanda, aparando as unhas.

  • Em casa usava calças brancas, paletó de seda ama-relo e sapatos de entrada baixa com flores no rosto delã.

    Era hora do almoço, o Zuza não devia tardar. Iafalar-lhe decididamente; aquela história do namoro nãolhe cheirava bem. Talvez o filho tivesse mesmo aestroinice pueril de desfrutar a rapariga.

    Daí a pouco entrou o estudante. Vinha muito jovi-al, cantarolando o Bocácio:

    Se acaso algum de nós tiver por sina atroz mulher que se não cale que a toda hora fale...

    E repetia muito alegre:— Trá lá lá lá... trá lá lá lá...— Vens muito alegre, hein, meu filho? interrom-

    peu o coronel da sala.Zuza tinha entrado para o gabinete e começava a

    despir-se.— Ah! meu pai estava aí?E logo:— Trago uma novidade.— Vejamos...— Vou a Baturité com o presidente.— Ainda bem, ainda bem... fez o coronel num tom

    desusado, sem erguer a cabeça.— Como ainda bem? inquiriu o estudante aproxi-

    mando-se.

  • Apenas trocara o fraque por um paletó de brim bran-co.

    — Porque... porque... Eu precisava mesmo falar-te. Ora, dize, uma coisa: leste o último número da Ma-traca?

    Zuza franziu os sobrolhos desconfiado, com umrisinho seco. — Não tinha lido a Matraca, não. Umjornaleco imoral que andava por aí? Não, não tinha lido.Por quê?

    — Que história é uma de namoro no Trilho de Fer-ro? Fala-se em ti, no teu nome, numa normalista...

    Cresceu o assombro do rapaz.— Eu?!... Meu pai está gracejando...— Juro-te que não. Mas olha, quem diz é a Matra-

    ca e alguém afirmou-me particularmente que a rua estácheia...

    — E esta! fez o Zuza cruzando os braços admira-do. Pois meu pai não vê logo que isto é um gracejo demau gosto, um canalhismo de província?

    — O que é certo é que não te fica bem a brincadei-ra.

    — Absolutamente não, e eu preciso saber quem éo autor do pasquim...

    A criada avisou que o almoço estava na mesa.— ...Sim, continuou Zuza, vou informar-me, pre-

    ciso saber...— Eis aí está por que fazes bem indo passar uns

    dias a Baturité.E polindo as unhas, o coronel dirigiu-se para a sala

    de jantar, grave como um apóstolo do bem, enquanto ofilho ia desabafando suas cóleras contra a sociedade

  • cearense.— Uma sociedade que lê a Matraca e gosta!

    No outro dia, com efeito, o futuro bacharel seguiano expresso para Baturité em companhia do Dr. Cas-tro, presidente do Ceará.

    Lia-se na Província:Segue amanhã, pela manhã, com destino a Baturité,

    a fim de visitar a importante fábrica Proença, o Exmo.Sr. Presidente da Província. Acompanham o ilustreamigo do Ceará os nossos distintos amigos e correligi-onários Srs. Dr. José de Souza Nunes e José Pereira,nosso colega de redação. S. Exa. pretende demorar-sealguns dias naquela cidade.

    Maria do Carmo leu com surpresa a notícia da Pro-víncia e não pôde conter um gesto de despeito. Era dessemodo que o Sr. Zuza estava doido por ela! Ir-se embo-ra sem ao menos lhe comunicar! Nem sequer deixaraum bilhetinho, um cartão com duas palavras, duas so-mente! Que custava escrever num pedaço de papel Voue volto?

    Zangara-se deveras, atirando a folha para um lado,trombuda, furiosa.

    Estava tudo acabado, não falaria mais no Zuza, nãolhe escreveria: que fosse bugiar! Moças havia muitasno Ceará: que procurasse uma lá a seu jeito e ela porsua vez trataria de arranjar noivo, mas noivo para ca-sar, noivo sério, noivo de bem!

    Entretanto, Maria não tinha feito reparo na des-pedida do Zuza, um soneto em decassílabos, com síla-bas demais nuns versos e de menos noutros. Adeus era

  • o título e vinha na terceira página da Província. Depoisé que viu por que a Lídia mostrou-lhe.

    — Já estavas fazendo mau juízo do rapaz, hein?disse a Campelinho.

    — Certamente, confirmou Maria. Nem ao menosteve a lembrança de me avisar!

    — Como querias tu que ele avisasse se ainda nãolhe respondeste a carta?

    Maria esteve pensando com o jornal na mão, lendoe relendo os versos, e, meio arrufada meio risonha:

    — Embora! O dever dele era me participar. O ho-mem é que faz tudo...

    E na manhã seguinte, muito cedo, pulou da rede efoi no bico dos pés, embrulhada no lençol, ver passar otrem através da vidraça.

    A locomotiva disparou numa rapidez crescente,soltando rolos de fumo e fagulhas que pareciam umairrisão aos olhos da normalista. A sineta, num badalarcontínuo, acordava os moradores do Trilho, àquela horaainda nos lençóis.

    Maria viu passar a enfiada de vagões estralejandosobre os trilhos e esteve muito tempo em pé ouvindo osilvo longínquo da locomotiva que ia, como uma coisadoida, sertão adentro! Começou então a sentir-se só;teve vontade de abrir num choro histérico como se lhehouvessem feito uma grande injustiça. Voltou para atepidez do seu quarto e lá deixou-se ficar até sair o sol,com um peso no coração, encolhida na rede, sem âni-mo para levantar-se, desejando um querer que era vago,extraordinário, que lhe punha arrepios intermitentes napele. Que bom se o Zuza estivesse ali com ela, na mes-

  • ma rede, corpo a corpo, aquecendo-a com seu calor...Àquela hora onde estaria ele? Talvez em Arronches...;não, já devia ter chegado a Mondubi... Imaginava-ometido num comprido guarda-pó de brim pardo, toman-do leite fresco na estação, ao lado do presidente, tiran-do do bolso da calça um maço de notas de banco, mui-to amável, rindo... Depois o trem apitava. Havia ummovimento rápido de gente que embarcava às pressas,e... lá ia outra vez por aqueles descampados afora, ca-minho da serra que se via ao longe, rente com as nu-vens, como aquelas cadeias colossais de montanhasonde há gelos eternos e que na geografia têm o nomede Alpes...

    De repente lembrou-se:— E se o trem desencarrilhasse...? Ia adormecen-

    do quando lhe veio à mente esta idéia. Sentou-se narede, esfregando os olhos, como se tivesse acordado deum pesadelo. — Se o trem desencarrilhasse o presi-dente morreria também...

    ...Teve um consolo. Não, o trem havia de chegarem paz com todos os passageiros. Espreguiçou-se todacom estalinhos de juntas e, maquinalmente, deixou es-capar um ai! ai! muito lânguido e prolongado.

    Lá fora recomeçava a labuta quotidiana. A criadapuxava água da cacimba; o cargueiro de água potávelenchia os potes; cegos cantavam na rua uma lengalen-ga maçante, pedindo esmola numa voz chorada; ven-dedores ambulantes ofereciam cajus... Havia um ruídomatinal de cidade grande que desperta.

    Nesse dia Maria do Carmo não foi à Escola Nor-

  • mal: que estava incomodada, com uma enxaqueca muitoforte.

    João da Mata tomou-lhe o pulso, mandou que mos-trasse a língua, muito solícito, com cuidados de pai: —Não era nada, uma defluxeira. E largou-se para a Re-partição, palitando os dentes.

    A Lídia, essa tinha liberdade plena em casa da mãe,ia à Escola quando queria e, se lhe convinha, lá nãopunha os pés. Deixou-se ficar também com a Maria.Tinham muito que conversar.

    — Que saudades, hein? começou a Campelinho.Estavam sós, na sala do amanuense. D. Terezinha

    tinha ido à casa da viúva mostrar um corte de fazendaque o Janjão lhe comprara.

    Maria, derreada na cadeira de balanço, fechou ovolume que estivera lendo, e, com um bocejo: — Éverdade, o diabo do rapaz não lhe saía da lembrança.Nem um castigo... Mas estava muito desgostosa da vida,já andavam inventando histórias, calúnias...

    — Não te importes minha tola. Ora! ora! ora!...Isso a gente faz ouvidos de mercador, e vai para adian-te. A vida é esta, e tola é quem se ilude.

    — Não, Lídia, as coisas não são como tu pensas.No Ceará basta um rapaz ir duas vezes à casa de umamoça para que se diga logo que o namoro está feio, queé um escândalo, e nós é que somos prejudicadas. Ah!porque já não é mais moça, porque é uma sem-vergo-nha é o quem dizem...

    — Pois olha, esta aqui há-de namorar até não po-der mais. Queres que te diga uma coisa? Isso de casa-mento é uma cantilena...

  • E, num assomo de despeito, a Campelinho lem-brou mulheres casadas que tinham amantes e que vivi-am muito bem na sociedade; citou a mulher do Dr.Mendes, juiz municipal. Estava ali uma que fora en-contrada aos beijos com o José Pereira, da Província,em pleno Passeio Público! Quem era que não sabia?Ninguém. Entretanto freqüentava as melhores famíliasda capital era a Sra. D. Amélia! Queria outro exem-plo?

    E abaixando a voz:— Aqui mesmo em casa o tens, minha tola. Nin-

    guém ignora neste mundo que D. Terezinha é amigadacom teu padrinho. E tudo mais é assim, querida Maria.A canalha fala de inveja, invejosos é o que não faltamnesta terra.

    Maria prestava atenção, silenciosa.— Então, disse ela por fim, achas que devo conti-

    nuar o namoro?— Que