ebook - ifigénia

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  • Eurpides

    Ifignia entre os Tauros

    Traduo do grego, introduo e comentrioNuno Simes Rodrigues

    Srie Autores Gregos e Latinos

    Ifignia entre

    os Tauros

    OBRA PUBLICADA COM A COORDENAO CIENTFICA

    Por favor, verificar medidas da lombada

    Eurpides

    Srie Autores Gregos e Latinos Traduo, introduo e comentrioISSN: 2183-220X

    Apresentao: Esta srie procura apresentar em lngua portuguesa obras de autores gregos, latinos e neolatinos, em traduo feita diretamente a partir da lngua original. Alm da traduo, todos os volumes so tambm caraterizados por conterem estudos introdu-trios, bibliografia crtica e notas. Refora-se, assim, a originalidade cientfica e o alcance da srie, cumprindo o duplo objetivo de tornar acessveis textos clssicos, medievais e renascentistas a leitores que no dominam as lnguas antigas em que foram escritos. Tambm do ponto de vista da reflexo acadmica, a coleo se reveste no panorama lusfono de particular importncia, pois proporciona contributos originais numa rea de investigao cientfica fun-damental no universo geral do conhecimento e divulgao do patrimnio literrio da Humanidade.

    Periodicidade: trimestral

    Estruturas EditoriaisCoordenadores Gerais (General Editors)A. Centro de Estudos Clssicos e Humansticos (Coimbra)- Delfim Leo (Universidade de Coimbra)- Jos Ribeiro Ferreira (Universidade de Coimbra)- Lusa Portocarrero (Universidade de Coimbra) - Maria do Cu Fialho (Universidade de Coimbra)- Sebastio Pinho (Universidade de Coimbra)

    B. Annablume (So Paulo)- Gabriele Cornelli (Universidade de Braslia) - Jacyntho Lins Brando (Universidade Federal de Minas Gerais)- Pedro Paulo Funari (Universidade Estadual de Campinas)

    Diretor Principal (Main Editor) - Carmen Leal Soares (Universidade de Coimbra)- Maria de Ftima Silva (Universidade de Coimbra)

    Assistentes editoriais (Editorial Assistants)- Elisabete Cao- Joo Pedro Gomes- Nelson Ferreira

    Comisso Cientfica (Editorial Board)- Adriane Duarte (Universidade de So Paulo)- Aurelio Prez Jimnez (Universidad de Mlaga)- Graciela Zeccin (Universidade de La Plata)- Fernanda Brasete (Universidade de Aveiro)- Fernando Brando dos Santos (UNESP, Campus de Araraquara)- Francesc Casadess Bordoy (Universitat de les Illes Balears)- Frederico Loureno (Universidade de Coimbra)- Joaquim Pinheiro (Universidade da Madeira)- Luca Rodrguez-Noriega Guillen (Universidade de Oviedo)- Jorge Deserto (Universidade do Porto)- Maria Jos Garca Soler (Universidade do Pas Basco)- Susana Marques Pereira (Universidade de Coimbra)

    IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRACOIMBRA UNIVERSITY PRESS

    ANNABLUME

    Eurpides ter composto e produzido a Ifignia entre os Tauros entre a trilogia troiana de 415 e a Helena de 412 a.C., provavelmente em 414 ou 413 a.C., sendo, portanto, contempornea de Alcibades. Esta tragdia inclui-se naquelas que preferem os temas construdos sobre as relaes familiares, sem que delas, porm, se evidencie o factor crime ou que, pelo menos, esse no tenha o protagonismo do enredo. O argumento parte da tradio que considerava que a jovem Ifignia, afinal, no tinha morrido no altar do sacrifcio, em ulis. Uma importante inovao da tradio mitolgica introduzida por Eurpides neste texto a figura de Orestes, que no fazia propriamente parte do ciclo centrado em Ifignia e rtemis e que aqui tem um papel determinante. Assim, a pea abre com uma Ifignia exilada em terras brbaras, onde desempenha a funo de sacerdotisa de rtemis, deusa que assume o seu carcter sanguinrio, pois exige o sacrifcio dos estrangeiros que ali chegam. O dilema trgico revela-se quando, na Turica, aparecem dois estrangeiros, que a sacerdotisa deve sacrificar deusa, mas que afinal so o prprio irmo e o primo de Ifignia. A Atrida ter de escolher entre matar os familiares e assim cumprir as obrigaes religiosas a que est obrigada, ou transgredir as normas e salvar aqueles a quem est unida por sangue e afecto.

  • Srie Autores Gregos e Latinos Traduo, introduo e comentrioISSN: 2183-220X

    Apresentao: Esta srie procura apresentar em lngua portuguesa obras de autores gregos, latinos e neolatinos, em traduo feita diretamente a partir da lngua original. Alm da traduo, todos os volumes so tambm caraterizados por conterem estudos introdu-trios, bibliografia crtica e notas. Refora-se, assim, a originalidade cientfica e o alcance da srie, cumprindo o duplo objetivo de tornar acessveis textos clssicos, medievais e renascentistas a leitores que no dominam as lnguas antigas em que foram escritos. Tambm do ponto de vista da reflexo acadmica, a coleo se reveste no panorama lusfono de particular importncia, pois proporciona contributos originais numa rea de investigao cientfica fun-damental no universo geral do conhecimento e divulgao do patrimnio literrio da Humanidade.

    Periodicidade: trimestral

    Estruturas EditoriaisCoordenadores Gerais (General Editors)A. Centro de Estudos Clssicos e Humansticos (Coimbra)- Delfim Leo (Universidade de Coimbra)- Jos Ribeiro Ferreira (Universidade de Coimbra)- Lusa Portocarrero (Universidade de Coimbra) - Maria do Cu Fialho (Universidade de Coimbra)- Sebastio Pinho (Universidade de Coimbra)

    B. Annablume (So Paulo)- Gabriele Cornelli (Universidade de Braslia) - Jacyntho Lins Brando (Universidade Federal de Minas Gerais)- Pedro Paulo Funari (Universidade Estadual de Campinas)

    Diretor Principal (Main Editor) - Carmen Leal Soares (Universidade de Coimbra)- Maria de Ftima Silva (Universidade de Coimbra)

    Assistentes editoriais (Editorial Assistants)- Elisabete Cao- Joo Pedro Gomes- Nelson Ferreira

    Comisso Cientfica (Editorial Board)- Adriane Duarte (Universidade de So Paulo)- Aurelio Prez Jimnez (Universidad de Mlaga)- Graciela Zeccin (Universidade de La Plata)- Fernanda Brasete (Universidade de Aveiro)- Fernando Brando dos Santos (UNESP, Campus de Araraquara)- Francesc Casadess Bordoy (Universitat de les Illes Balears)- Frederico Loureno (Universidade de Coimbra)- Joaquim Pinheiro (Universidade da Madeira)- Luca Rodrguez-Noriega Guillen (Universidade de Oviedo)- Jorge Deserto (Universidade do Porto)- Maria Jos Garca Soler (Universidade do Pas Basco)- Susana Marques Pereira (Universidade de Coimbra)

  • Traduo do grego, introduo e comentrio

    Nuno Simes Rodrigues

    Universidade de Lisboa

    Srie Autores Gregos e Latinos

    Ifignia entre

    os tauros

    IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRACOIMBRA UNIVERSITY PRESS

    ANNABLUME

    Eurpides

  • Srie Autores Gregos e Latinos Traduo, introduo e comentrio

    POCI/2010

    Ttulo Ifignia entre os Tauros

    Autor Eurpides

    Traduo do grego, introduo e comentrio Nuno Simes Rodrigues

    Srie Autores Gregos e Latinos Traduo, introduo e comentrio

    CoedioImprensa da Universidade de CoimbraURL: http://www.uc.pt/imprensa_ucEmail: [email protected] online: http://livrariadaimprensa.uc.pt

    Annablume editora . comunicaowww.annablume.com.br

    Coordenao editorialImprensa da Universidade de Coimbra

    Concepo grfica e PaginaoRodolfo Lopes, Nelson Ferreira

    InfografiaImprensa da Universidade de Coimbra

    Impresso e Acabamento www.artipol.net

    ISSN2183220X

    ISBN9789892608365

    ISBN Digital9789892608372

    DOIhttp://dx.doi.org/10.14195/ 9789892608372

    Depsito Legal376708/14

    1 Edio: IUC 2014

    Abril 2014. Annablume editora . So PauloImprensa da Universidade de Coimbra Classica Digitalia Vniversitatis Conimbrigensis (http://classicadigitalia.uc.pt)Centro de Estudos Clssicos e Humansticos da Universidade de Coimbra

    Reservados todos os direitos. Nos termos legais fica expressamente proibida a reproduo total ou parcial por qualquer meio, em papel ou em edio electrnica, sem autorizao expressa dos titulares dos direitos. desde j excepcionada a utilizao em circuitos acadmicos fechados para apoio a leccionao ou extenso cultural por via de elearning.

    Todos os volumes desta srie so sujeitos a arbitragem cientfica independente.

    Obra realizada no mbito das actividades da UI&DCentro de Estudos Clssicos e Humansticos

  • Sumrio

    Introduo 1. A data 72. A trilogia e o tema 83. Estrutura, enredo e sentido do drama 114. As personagens 205. O texto 24

    Bibliografia selecta 25

    IfIgnIa entre os Tauros 33

    Index rervm 101

    Index locorvm 103

    Index nomInvm 105

  • (Pgina deixada propositadamente em branco)

  • Introduo

    6 76 7

    introduo

    1. A data

    Desconhecemos a datao exacta de Ifignia entre os Tauros, mas podemos conjecturla partindo de outros dados que possumos acerca da produo euripidiana. Pelo testemunho de Eliano, por exemplo, sabemos que, em 415 a.C., Eurpides ficou em segundo lugar nas Grandes Dionsias, com a trilogia troiana constituda por Alexandre, Palamedes e As Troianas (Eliano, Varia Historia 3.8). Atravs do mtodo hermenutico que se baseia na estatstica mtrica, alguns autores concluram que on, Andrmeda e Helena tero sido compostas em 412 a.C.1 O testemunho de Aristfanes permitenos confirmar essa data2. ainda o mesmo mtodo mtrico que permite concluir tambm que a Ifignia entre os Tauros teria sido escrita e produzida entre a trilogia troiana de

    1 Webster, 1967: 163.2 Cf. Aristfanes, As mulheres que celebram as Tesmofrias 10591061; e

    os esclios a Lisstrata 962 e a Rs 53.

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    415 e a Helena de 412 a.C., provavelmente em 414 ou 413 a.C.3 A nossa tragdia ter sido, portanto, contempornea de Alcibades.

    2. A trilogia e o tema

    Se as primeiras peas de Eurpides, como Medeia ou Hiplito, se centravam sobretudo em assuntos que giravam em torno dos crimes familiares, as ltimas, grupo a que pertence Ifignia entre os Tauros, preferem os temas construdos sobre as relaes familiares, sem que delas, porm, se evidencie o factor crime ou que, pelo menos, esse no tenha o protagonismo do enredo. Assim seria com os dramas que por certo constituram a trilogia em que esta Ifignia se incluiu, a saber: Antgona, Ifignia entre os Tauros, naturalmente, e Hracles Furioso4. Nem todos os autores concordam com esta ordem de apresentao, mas o tema da jovem herona resistente ao poder poltico institudo, que muito provavelmente daria corpo Antgona euripidiana, permitenos considerar que seria esta a pea que alinharia em primeiro lugar, seguindose o tema da Ifignia turica e a finalizar a histria protagonizada por Hracles5. Alm disso, se a Antgona de Eurpides desenvolvia o conhecido tema sofocliano, mas incidindo sobretudo nas relaes da herona com Hmon e o filho de ambos, Mon, e se o Hracles Furioso se centra nas relaes do heri titular com a mulher Mgara e com os filhos, ento faz sentido que a Ifignia entre os Tauros

    3 A tragdia inclui, por exemplo, tetrmetros trocaicos (12031233), mtrica que Eurpides usou com regularidade nos ltimos doze anos da sua vida. Sobre a datao, ver Webster, 1967: 163, 181; Cropp, 2000: 60, em que se podem ler outros argumentos em defesa desta proposta de datao.

    4 Webster, 1967: 181.5 Webster, 1967: 181.

  • Introduo

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    pertencesse a este grupo, visto que tambm o argumento desta pea se desenvolve a partir da relao entre os dois irmos, Ifignia e Orestes.

    O tema essencial da tragdia parte da Oresteia de squilo. Mas Eurpides inova, reescrevendo o mito de Ifignia e renovando o ciclo dos Atridas. Na trilogia esquiliana, Ifignia morria em ulis e o destino trgico da casa de Atreu terminava com a absolvio de Orestes no tribunal de Atenas. Quando escreveu a sua Electra, muito provavelmente alguns anos antes da Ifignia entre os Tauros, Eurpides manteve o essencial dessa histria, em que o matricdio na pessoa de Clitemnestra era apresentado no como um mal necessrio mas antes como um erro trgico, derivado da obsesso de Electra com a vingana6. Em Ifignia entre os Tauros, os factores em jogo no so j os mesmos.

    O novo argumento parte da tradio que considerava que a jovem Ifignia, afinal, no tinha morrido no altar do sacrifcio, em ulis. Essa tradio podia ser encontrada em vrias fontes. Segundo os Cantos Cprios, rtemis teria salvado a filha de Agammnon, precisamente no momento em que o rei ia sacrificla no altar, trocandoa por uma cora e levandoa para a terra dos Tauros, onde teria atingido a imortalidade7. Esta era uma tradio que, em parte, se encontrava tambm no catlogo hesidico das mulheres, onde se lia que os Aqueus haviam sacrificado uma tal Ifimede e que rtemis a havia substitudo no ltimo momento por uma imagem (eidolon), outorgandolhe depois a imortalidade8. Tudo

    6 Cropp, 2000: 36.7 Cantos Cprios frs. 32 Davies; 41 Bernab; ver Jouan, 1966; Hulton,

    1962: 364368.8 Hesodo, fr. 23(a) MerkelbachWest. Obviamente, esta histria

    corresponde de Ifignia na tradio que encontramos na tragdia em anlise. O Catlogo das Mulheres um texto datado do sculo VI a.C.

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    teria acontecido, porm, na Grcia. Mais tarde, Herdoto identificava a deusa dos Tauros, povo que habitava nas margens do Mar Negro, com a filha do Atrida: ... os Tauros respeitam as prticas seguintes. Sacrificam deusa virgem os nufragos e os Gregos que capturam nas suas actividades martimas por este processo; depois de consagrarem a vtima, batemlhe na cabea com um mao. Segundo alguns, o corpo lanamno do promontrio c para baixo ( que o templo est edificado sobre um promontrio), e a cabea espetamna num madeiro; outros confirmam a verso anterior quanto cabea, todavia quanto ao corpo asseguram que eles o no lanam do promontrio, mas que o enterram. Esta deusa a quem sacrificam, dizem os prprios Tauros, Ifignia, a filha de Agammnon. Quanto aos inimigos que capturam, este o tratamento que lhes do: cortamlhes a cabea e levamna para casa; espetamna num pau enorme e hasteiamna bem alto por cima da habitao, sobretudo por cima da chamin9. Ter sido com base naquela tradio e nesta referncia que Eurpides retomou o ciclo troiano e o reescreveu, dandolhe um contedo que, at ento, ao que parece, era desconhecido da tragdia tica.

    Seja como for, a figura de Ifignia, alm de fazer parte da tradio pica em torno da casa dos Atridas e do ciclo de Tria, apesar de no ser mencionada na Ilada ou na Odisseia, integrava tambm o panteo helnico, associandose deusa rtemis10. Pelo que um outro facto poder ter motivado o poeta a tratar o tema de Ifignia: a reconstruo do templo de rtemis em Bruron, na tica, e a do tmulo ou Heroon

    9 Herdoto 4.103, em traduo de Maria de Ftima Silva.10 Apesar de a Ilada 9.145, 287, se referir a uma filha de Agammnon

    de nome Ifianassa, autores como Cropp defendem que esta e Ifignia seriam duas personagens distintas, tal como sugerem os Cypria (frs. 17 Davies; 24 Bernab) e Sfocles, Electra 157, 530531.

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    de Ifignia, que ter acontecido pouco antes da composio do texto11.

    Outra importante inovao da tradio mitolgica introduzida por Eurpides a figura de Orestes, que no fazia propriamente parte do ciclo centrado em Ifignia e rtemis e que aqui tem um papel determinante. Existe por parte de Eurpides, alis, uma necessidade de justificar a presena desta personagem no enredo, como provam as duas vezes em que se diz que o filho de Agammnon e Clitemnestra tinha viajado at terra dos Tauros por ordem de Apolo, com o objectivo de se apropriar da esttua de rtemis (7789, 1080). Por outro lado, no est excluda a hiptese de a figura de Orestes ter sido associada ao culto de rtemis na tradio popular de Halas.

    3. Estrutura, enredo e sentido do drama

    A pea abre com uma Ifignia exilada em terras brbaras, na sequncia do salvamento operado por rtemis. Entre os Tauros, povo que habita as costas do Mar Negro no limes da barbrie, Ifignia desempenha a funo de sacerdotisa de rtemis, deusa que ali assume um carcter sanguinrio, pois exige o sacrifcio dos estrangeiros que l chegam. Com ela esto, prisioneiras, outras mulheres de origem helnica, que constituem o coro.

    A protagonista comea por assumir o prlogo da pea (166), com um extenso monlogo em que recorda tanto o seu passado como as vicissitudes a que a sua famlia esteve sujeita: a descendncia de Atreu, a promessa de Agammnon em oferecer a rtemis as primcias do ano, a chegada a ulis

    11 Sobre esta questo, ver Larson, 1995: 15, 170.

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    e a ida para a Turica12. A essa descrio contextualizadora do argumento, Ifignia acrescenta o sonho recente que lhe sugere a morte do irmo, Orestes. Ficamos assim tambm a saber que Ifignia desconhece todos os desenvolvimentos em torno da sua famlia, desde que foi resgatada por rtemis em ulis. De igual modo, ningum da sua famlia sabe o que lhe aconteceu. Mas Ifignia interpreta o sonho de forma errada.

    A sacerdotisa retirase e ento que o jovem Orestes surge em cena, na companhia do primo Plades (67122). Os dois amigos e parentes vm na sequncia de um orculo de Apolo, que ordenou que levassem a esttua de rtemis do pas dos Tauros para o territrio ateniense. S assim Orestes conseguir a to desejada redeno, que se impe na sequncia do assassnio da prpria me. Apesar dos medos que se apoderam de Orestes, Plades convence o primo a continuar com a sua misso, sugerindo que aguardem pelo anoitecer.

    Depois da primeira interveno do coro (123142, 179202), e do reaparecimento de Ifignia em cena, que continua a lamentarse pela sorte da sua famlia (143122, 203235), chega um boieiro, que vem relatar o que acabou de presenciar na costa, junto gruta onde os dois primos se haviam refugiado e acabaram por ser encontrados (236339). A descrio que o boieiro faz do comportamento de Orestes particularmente dramtica. O jovem acometido de ataques de loucura que assustam quem os presencia e pelas suas palavras percebemos que ele se sente perseguido e assombrado pelas Ernias, deusas primordiais da punio dos crimes de sangue. Depois de evocar as vrias reaces dos tauros que o acompanhavam em tal descoberta, o boieiro considera que os jovens sero duas vtimas sacrificiais ideais para rtemis, com as quais Ifignia se vinga do que os prprios Helenos

    12 Sobre o prlogo, ver Hamilton, 1978: 277302.

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    lhe fizeram. Os estrangeiros so ento levados presena da sacerdotisa que, enquanto espera por eles, continua a lamentar a sua sorte ao mesmo tempo que questiona as vontades sanguinrias da deusa (342391).

    Depois de uma segunda interveno do coro (392466), Ifignia recebe os prisioneiros e preparase para orientar o seu sacrifcio. ento que se d incio a uma das mais extraordinrias cenas de reconhecimento da poesia trgica grega (467986)13. Ifignia concebe um plano que poder levar notcias suas aos familiares em Argos. Um dos prisioneiros seria liberto, enquanto o outro alimentaria as necessidades do sacrifcio. Depois de Plades, Orestes quem acaba por ser o escolhido para o sacrifcio. Mas o dilogo em crescendo leva ao clmax, em que o pathos se revela, as personagens se reencontram e a alterao definitiva do curso dos acontecimentos na economia da pea acontece. Orestes o primeiro a reconhecer a irm, acabando esta por reconhecer tambm o irmo que julgava morto. Depois, percebe que Plades, alm de seu primo, tambm seu cunhado, visto que est casado com Electra, irm que ela tambm no sabia viva. No espao de poucos minutos, Ifignia volta a ganhar toda uma famlia que pensava irremediavelmente perdida e a esperana de regressar a Argos, sua ptria, revitalizase. Durante a conversa, surgiu tambm a revelao da morte do pai e da me, mas que no final parece ter um peso pouco significativo no nimo recuperado de Ifignia. Para a longa cena do reconhecimento, Eurpides recorre a um estratagema que ficou clebre na literatura grega: as tabuinhas que continham a revelao de tudo e que servem de catalisador para a evoluo do enredo14.

    13 Aristteles, Potica 1452b57, 1454a7, 1454b3135, 1455a1719; ver ainda Cerbo, 1989: 3947.

    14 Aristteles, Potica 1452b57, 1454b3135, 1455a1719.

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    Feitas as revelaes, e tendo Orestes confessado as suas intenes ao viajar at Turica, cabe a Ifignia engendrar um estratagema e enganar o rei local para fugir da terra dos Tauros, juntamente com o irmo e o primo de ambos (9891074)15. A sacerdotisa decide comunicar ao rei da terra que as vtimas apanhadas para o sacrifcio esto manchadas por um crime de sangue e que, por isso, h que purificlas, antes de ofereclas deusa. Para isso, os presentes, como todos os habitantes da regio, devero levar a cabo uma srie de rituais, para que as vtimas passem pelo processo de purificao. Entre esses rituais contase o de tapar os olhos com um vu, enquanto o processo concludo. Ifignia faz do coro seu cmplice. Este intervm de novo (10891152) e seguese a entrada de Toas, rei dos Tauros, em cena.

    Perante as explicaes que lhe so apresentadas pela sacerdotisa, Toas decide que deve ser feito tudo o necessrio para erradicar a mcula da comunidade e encarrega Ifignia do processo. Esta leva o irmo e o primo para a costa, afirmando ser o mar um elemento de purificao por excelncia, mas acarreta consigo a esttua de rtemis, alegando que a mesma havia sido tocada pelas mos de quem estava manchado pelo crime de sangue. Enganado, Toas acredita em Ifignia (11531233).

    O coro volta a intervir (12341282) e ento que entra em cena um mensageiro, que no mais do que um dos homens de Toas, que acompanhara a sacerdotisa e a procisso que ela guiara costa. O mensageiro conta ao rei que tudo no passou de um estratagema de Ifignia para fugir com a imagem da deusa e os familiares. Naquele que considerado um dos discursos mais bem compostos de Eurpides, o mensageiro descreve de forma vvida e realista a tentativa de fuga dos

    15 Sobre esta questo ver Hartigan, 1986: 119125.

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    Atridas, no navio que os aguardava, secretamente ancorado nas costas turicas (13271419). Toas decide intervir e evitar a fuga, mas Atena surge em cena, qual deus ex machina, acalma o rei turico e aconselhao a desistir de perseguir Orestes, Ifignia e Plades, pois os jovens contam com a proteco dos deuses. De seguida, ordena a Orestes que funde em Halas, na costa oriental da tica, um templo, onde instalar a esttua de rtemis. Doravante, esta deusa ser a adorada e conhecida como rtemis Taurpola. Atena fornece ainda as instrues para a prtica ritual que passar a desenrolarse em Halas: sempre que o povo celebrar a festa pelo resgate da tua morte, que se ponha uma espada junto ao pescoo de um homem e se deixe correr o sangue como santificao, pois por meio dele a deusa ter as suas honras. (14351489). Deste modo, Atena confirma a verdadeira misso de Orestes ao mesmo tempo que o culto sanguinrio que rtemis conhecia entre os Tauros se suaviza e humaniza, ao ser dissociado dos sacrifcios humanos16. Quanto a Ifignia, ser consagrada sacerdotisa do santurio de Bruron, estandolhe reservadas honras de culto, aps a sua morte. Eurpides institui assim uma etiologia para os cultos de Ifignia e da prpria rtemis, nas regies de Bruron e de Halas, bem como para outras festividades atenienses17. De algum modo, estes emergem como compensao para a srie de males que afinal poderiam ter sido evitados. O facto de ser Atena, a patrona da tica, a instituir o rito confere uma maior legitimidade ao processo, como se a deusa anunciasse publicamente que recebia a irm

    16 Como nota Cropp, 2000: 40, a deusa que agora emerge com carcter helnico compatvel com a figura benevolente que surgia nos baixorelevos de Bruron, datados do sculo IV a.C., ainda que o seu potencial destrutivo primitivo continuasse a ser reconhecido tanto no mito como nos ritos. Sobre esta questo, ver Kahil, 1977: 8698.

    17 Ver Jouan, 1995: 149; Rebelo, 1996: 53104; Stevens, 1956: 8794; Wolff, 1992: 308334.

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    rtemis no seu seio, sendolhe devidos culto e devoo de igual importncia.

    A pea termina com a partida dos Atridas das terras turicas, acompanhados por Atena, ao mesmo tempo que Toas renuncia ira e permite o regresso tambm das servas do coro para a Hlade. Este final confere s personagens de Ifignia e Orestes a libertao e a redeno, i.e., destinos diferentes daqueles que o ciclo dos Atridas por norma lhes atribua18. As prprias Ernias acabaro por se juntar s suas irms, na forma de Eumnides, no santurio que lhes foi reservado em Atenas.

    O tema da brbarie, que se reflecte na figurao colectiva dos Tauros, deve ser visto com particular ateno, pois dele que se retira o sentido do drama. A oposio entre Heleno e Brbaro faz aqui toda a diferena. ao Outro/Brbaro que o poeta atribui prticas condenadas pelos Gregos do tempo de Eurpides, como os sacrifcios humanos, a ausncia da ideia de hospitalidade, a selvajaria em geral. O ambiente do territrio inspito, cujas descries resvalam o locus horrendus, adequase s vivncias que as personagens helnicas ali encontram. Notese como para chegar a esse pas h que passar as clebres e sombrias Simplgades, rochedos que esmagavam todos os navios que por entre elas tentavam atravessar o mar e que funcionam como imagem do mundo que est alm do controlvel ou do civilizado19. A parcialidade de Eurpides nesta questo alis indiscutvel, como se comprova pelo passo em que Toas se refere aos do seu prprio povo como brbaros20. Por outro lado, a simplicidade do esprito turico, como mostram os caracteres

    18 Cropp, 2000: 31.19 Vv. 244, 263, 355, 1389.20 V. 1170. Ver Silva, 2005: 194198; Sad, 1984: 2753; Sansone,

    1975: 283295.

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    do boieiro, do mensageiro e do prprio rei, tanto confirmam como contrastam com a ideia de brbarie.

    Os vrios acontecimentos so dominados pela presena da tyche, a sorte ou fortuna. Como notaram Cropp e outros autores, em Ifignia entre os Tauros, a tyche permanece obscuramente ligada ao poder e vontade dos deuses, no assumindo aqui o papel de uma divindade mas antes o do factor inesperado, da contingncia derivada de um intrincado complexo de acontecimentos, com os quais os seres humanos tm de lidar recorrendo flexibilidade e iniciativa21. Efectivamente, as personagens deste drama no s colaboram como adaptam a sua existncia s vicissitudes da tyche, procurando sempre tirar o melhor partido das contingncias.

    Em grande medida tambm a tyche a responsvel por uma sensao de optimismo que atravessa a pea a partir de determinado passo. A esperana do regresso ptria perdida, da salvao e do reencontro com os que se ama conferem essa caracterstica pouco usual em squilo ou em Sfocles, por exemplo, ou at mesmo noutros textos euripidianos. O conjunto destes factores acaba por dar origem a uma pea em que a dimenso trgica inerente ao conflito se encontra com o optimismo da redeno, atingindo o equilbrio.

    O facto de a tyche no ser entendida propriamente como uma divindade, no significa que no haja nesta Ifignia um forte sentimento de religiosidade. Antes pelo contrrio. O religioso fulcral e omnipresente nesta pea. Ideias como mcula, ritual, purificao, abluo, juramento, sacrifcio, vtima sacrificial no s so axiais como constituem um corpus de informao privilegiado para o estudo da religio no tempo de Eurpides.

    21 A presena da tykhe na pea frequente, como se pode atestar pelos versos 89, 475, 478, 489, 501, 648, 838, 867, 875, 907, 909, 1065, 1067. Ver Cropp, 2000: 37; Rebelo, 1995: 165186.

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    Mas as inovaes euripidianas vo mais longe, reflectindose nos motivos dramticos e narrativos, na forma de introduzir o tema do sonho bem como as lamentaes, ou na apresentao dos discursos que descrevem os acontecimentos fora de cena. Chegam inclusive ao ponto de oferecer ao espectador temas usualmente prximos da epopeia e do romance, mas pouco habituais na tragdia, como so os combates ou o motivo do heri que chega a uma terra longnqua e misteriosa para encontrar viva uma irm que julgava morta22. Este , alis, um elemento comum Helena: numa pea como na outra, o enredo gira em torno de uma herona exilada em terras brbaras e exticas, onde acaba por reencontrar um entequerido que acabar por salvla.

    Aristteles recorreu Ifignia entre os Tauros como exemplo para o que considerava dever ser o esboo geral de um enredo, considerandoa, eventualmente, como uma tragdia complexa23. Mais recentemente Cropp classificou esta estrutura como ingnua, uma vez que a aco se centra apenas em dois blocos, tal como acontece, alis, com outras peas tardias do poeta: em primeiro lugar, temos a srie de acontecimentos que culmina no reconhecimento ou anagnorisis; depois, a peripeteia ou alterao radical do curso dos acontecimentos para o seu reverso, derivada do reconhecimento24. Enquanto tema, este remontava Odisseia, em que grande parte do enredo se constri em torno do reencontro de Ulisses com os membros da sua casa. Por conseguinte, este era um elemento de particular agrado para

    22 Silva, 2005a: 224225; Caldwell, 19741975: 2340.23 Aristteles, Potica 1455b315, 1455b3233, onde se l que na

    tragdia complexa tudo peripcia e reconhecimento; ver White, 1992: 221240.

    24 Cropp, 2000: 33; Burnett, 1971: 4772; cf. Aristteles, Potica 1450a34, 1452a2214.

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    a audincia grega. Nesta tragdia do autor, o reconhecimento assume uma importncia de tal forma capital (talvez seja mesmo a pea de Eurpides em que este elemento tem maior relevncia) que ocupa cerca de um quarto de todo o texto.

    Inevitavelmente, os motivos enunciados trazem colao a problemtica da tragicidade de Ifignia entre os Tauros. Na verdade, tambm nesse domnio podemos afirmar que Eurpides no menos inovador. Sobre todo o argumento paira a incmoda presena da futilidade. Ifignia est viva. Como tal, a morte de Agammnon foi escusada, pois no havia necessidade de Clitemnestra se vingar. Por conseguinte, tambm a morte desta foi em vo e Orestes sofre desnecessariamente. Em resumo: tudo podia ter sido evitado, tudo no passou de um grande equvoco que, todavia, no impediu grandes sofrimentos e a destruio de praticamente todos os membros de uma grande famlia. Esta linha de desenvolvimento manterse tambm na Helena, pea em que a rainha de Esparta est no Egipto e inocente dos acontecimentos que desencadearam a Guerra de Tria. Tambm esta, portanto, no foi mais do que um grande equvoco, passando a futilidade e a vanidade a dominar toda a tragdia.

    Quanto a considerarse ou no este drama como tragdia, h que referir que essa no uma discusso inusitada no mbito do corpus euripidiano. Ela colocase igualmente para outros textos, como a Alceste, o on ou a Helena. Muitas tm sido as tentativas de classificao desta Ifignia, tendo o texto sido j rotulado de romntico, prsatrico, melodramtico, cmico e tragicmico25. Tal variedade advm tambm do facto de sabermos pouco acerca da definio absoluta de tragdia para o tempo de Eurpides. Desconhecemos, por

    25 Cropp, 2000: 42.

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    exemplo, se o tom humorstico estava totalmente excludo do que se entendia por tragdia nessa poca. O mais provvel que o texto trgico fosse muito alm das normas prescritas por Aristteles na Potica. Alm disso, para um ateniense do sculo V a.C., uma pea com as caractersticas da Ifignia entre os Tauros e apresentada no contexto das Grandes Dionsias seria, por certo, inquestionavelmente considerada uma tragdia. L continuam presentes temas como a vulnerabilidade humana e o conflito gerado por foras superiores, por exemplo, e sobretudo um mito/enredo protagonizado pelos grandes heris do patrimnio grego. Por fim, h a referir que no est fora de questo que Eurpides fosse um experimentalista, ensaiando novas formas de representar e exprimir a tragicidade.

    A terminar esta rubrica, refirase que, ainda que a chamada lei da trs unidades da tragdia no seja uma realidade teorizada de facto na Antiguidade, ou sequer comprovada nos textos que conhecemos, na Ifignia entre os Tauros existe unidade de aco e de tempo, apesar das constantes remisses para o passado. Quanto unidade de espao, ela no existe propriamente no enredo em si, uma vez que a aco passa do stio onde se localiza o templo de rtemis para a costa tarica. Mas a pragmtica faria do primeiro o espao de toda a representao, uma vez que tudo o que acontece fora dali limitase a ser narrado.

    4. As personagens

    Quanto s personagens, a protagonista sem dvida Ifignia. A melhor definio da sacerdotisa pode ser encontrada nas suas prprias palavras: solteira, sem filhos, sem ptria, sem amigos (agamos, ateknos, apolis,

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    aphilos, 220). I.e., Ifignia lamenta tudo o que e que no conseguiu ser, correspondendo a uma frmula que enuncia os opostos do cidado ideal na Atenas do sculo V a.C., das mulheres em particular: no conhecer a maternidade ou no constituir famlia, no contrair matrimnio, no ter terra ou comunidade a que pertencer. Mas Ifignia uma figura centrpeta, senhora de uma fora inegvel, uma composio ao nvel das melhores personagens femininas de Eurpides. Tambm ela, alis, pode ser evocada como contraditrio para a alegada misoginia do poeta26. A fora da mulher vse no s na forma como resiste no exlio, junto das suas compatriotas, como na inteligncia e na sagacidade. No esqueamos que a Ifignia que se deve o estratagema para enganar Toas e para a fuga, que o irmo parece incapaz de congeminar.

    Quanto a Orestes, parecenos claro que, apesar da misso que decide cumprir por ordem de Apolo, nem sempre um modelo de coragem ou de resoluo. Parte dos dilogos que mantm com a irm inserese na tipologia euripidiana de pr em cena uma mulher forte e um homem fraco, como acontece na Medeia, na Electra ou na Hcuba, por exemplo. Talvez resultado do tormento por que passa s mos das Ernias, Orestes no s no encontra a sada desejada para escapar da Turica, como chega a vacilar na sua determinao, ainda que no hesite em morrer no lugar do parente. Em contrapartida, Plades, que acima de tudo o companheiro do infortnio de Orestes, no desiste e alimenta o nimo do primo quando este parece falhar. igualmente figura de Plades que devemos alguma dose de humor. De facto, o momento em que o jovem aceita as tabuinhas das mos da sacerdotisa e as deposita, logo de imediato, nas de Orestes no nos deixa indiferentes. A philia funciona

    26 Ver e.g. Silva, 2007.

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    como o elemento unificador destas trs personagens. Como facilmente percebemos, todas elas esto dispostas ao autosacrifcio em benefcio das outras, contrastando fortemente com o ambiente de homicdio familiar que predominava em perspectivas anteriores, designadamente em squilo27.

    Como referimos, Toas caracterizase sobretudo pela simplicidade de esprito, que de algum modo contrasta com a sua condio de rei e at certo ponto de brbaro, visto que dele esperaramos alguma selvajaria ou brutalidade. Mas Toas o homem que ouve a sacerdotisa da divindade da terra, honrandoa e reconhecendolhe a autoridade de quem tem contactos privilegiados com o divino. O rei chega mesmo a dizerlhe: Sbia te criou a Hlade! Com bom discernimento (1180). Essa passividade s se altera no final, precisamente quando a ira derivada do reconhecimento do dolo toma conta do seu esprito. Mas Atena parece no ter grandes dificuldade em acalmar o rei.

    Nesta mesma linha vm o boieiro e o mensageiro, que cumprem as funes bem euripidianas de narrar acontecimentos que funcionam como catalisadores da pea. Em vez de guerreiros selvagens, todavia, encontramos um campons e um soldado, tpicas personagens annimas, que olham para o mundo sua volta com os olhos de homens rudes e rsticos, que exprimem os seus medos e ansiedades de forma adequada ao seu estatuto. Isso no impede, contudo, que Eurpides tivesse escrito para eles alguns dos seus melhores passos dramticos, designadamente a longa fala do mensageiro (13261419).

    O coro, constitudo pelas prisioneiras gregas, eventualmente mulheres de elevado estatuto social, como se sugere a determinado passo (11401150), um reflexo da

    27 Sansone, 1975: 283295.

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    prpria Ifignia. tambm pelo coro que Eurpides transmite a sua percepo da ingrata condio servil. Personagem colectiva, o coro assume um papel relevante na aco. So as servas que, apesar de conhecerem o estratagema de Ifignia, se decidem pela cumplicidade, correndo risco de vida perante o rei dos Tauros. O mensageiro, alis, acusaas disso mesmo (1299). A sua cumplicidade mantmse inaltervel quando conseguem atrasar a perseguio de Toas. Nas decises finais de Atena, tambm elas so contempladas, acabando por lhes ser autorizado o to desejado regresso Hlade. Por outro lado, o coro excludo da cena central do reconhecimento, o que parece querer dizer que o eixo da aco se faz girar em torno de Ifignia e de Orestes, secundarizando definitivamente este elemento.

    Apesar de no intervir directamente, a presena de Apolo constante nesta tragdia. Curiosamente, o resumo antigo que dela nos chegou inclua mesmo o deus de Delfos como personagem da pea, sem que, contudo, ele sequer aparea de facto em cena ou tenha direito a qualquer fala. A necessidade da sua presena justificase com o protagonismo que tivera na Oresteia, que o tinha como um dos deuses intervenientes no desenlace do processo de Orestes. Aqui, Apolo sobretudo o deus oracular e justiceiro, prximo da vontade de Zeus, que motiva o reencontro das personagens, e cuja importncia se acentua pelo facto de ser o deusirmo de rtemis, a divindade que efectivamente est no eixo do argumento. Em ltima anlise, cremos mesmo poder afirmar que Ifignia entre os Tauros sobretudo uma pea acerca de rtemis, sobre o seu mito e o seu rito28. Curiosamente, ainda que constante na pea, esta tem uma presena totalmente passiva. Atena alis quem assume o relevante papel de

    28 LloydJones, 1983: 87102; SourvinouInwood: 1997: 171175.

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    deus ex machina, o que lhe d direito a uma fala decisiva na economia do texto. O seu protagonismo deriva do facto de Atenas e os Atenienses serem as referncias de facto importantes, relativamente instituio do culto de rtemis Braurnia e de Ifignia Turica29.

    Ifignia entre os Tauros conheceu um xito significativo na Histria da Cultura Ocidental, designadamente ao nvel da recepo do tema. Em 1779, Goethe comps a sua prpria Iphigenie auf Tauris, em prosa, voltando a ela em 1786, ano em que a reescreveu em verso. No mesmo ano de 1779, Gluck comps a sua Iphignie en Tauride, pera que teve o libretto de Franois Guillard. Quer a pea de Goethe quer a pera de Gluck so obrasprimas do patrimnio ocidental.

    5. O texto

    Restanos referir que, para esta traduo, utilizmos o texto grego estabelecido e editado por J. Diggle, no segundo volume das Euripidis Fabulae, editado na Scriptorum Classicorum Bibliotheca Oxoniensis (Oxford University Press, 1981; 4 impresso, 1992)30.

    29 Rebelo, 1992; Rebelo, 1996.30 Cumprenos agradecer Senhora Professora Doutora Maria de

    Ftima Sousa e Silva a cuidada reviso desta traduo, bem como as sugestes que fez ao longo de todo o processo. Eventuais incorreces que persistam so, como evidente, da nossa inteira responsabilidade.

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  • (Pgina deixada propositadamente em branco)

  • PB 31

    Ifignia entre os Tauros

  • Eurpides

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    Resumo de IfIgnIa entre os tauros

    Depois de chegar com Plades terra dos Tauros, na Ctia, em obedincia a um orculo, Orestes tenta roubar a imagem de madeira de rtemis que era honrada no lugar. Ao sair da nau, a loucura domina-o, sendo apanhado e levado por indgenas, juntamente (5) com o amigo. De acordo com o costume, deveria ser oferecido como vtima no santurio de rtemis, pois os estrangeiros que ali desembarcavam eram sacrificados.

    A cena do drama localiza-se entre os Tauros, na Ctia. O coro composto por mulheres helnicas (10), servas de Ifignia. Ifignia diz o prlogo.

    As personagens do drama so: Ifignia, Orestes, Plades, o coro, um boieiro, Toas, um mensageiro, Atena [e Apolo]1.

    Pessoas do drama

    IfigniaOrestesPladesCoroBoieiroToasMensageiroAtena

    1 Referido no resumo, no aparece porm em cena.

  • IfIgnIa entre os Tauros

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    (Em frente ao templo de rtemis, na Turica. Ifignia sai do templo.)

    IfigniaQuando Plops, o Tantlida, veio para Pisa2 com os

    seus velozes corcis, desposou a filha de Enmao3, que deu luz Atreu. Atreu teve dois filhos, Menelau e Agammnon, de quem eu, (5) Ifignia, sou filha, e filha tambm da Tindrida4. Sou aquela a quem o prprio pai imolou, ou assim lhe pareceu, a rtemis, por causa de Helena, nos gloriosos vales de ulis,

    2 Cidade da lide.3 A filha de Enmao era Hipodamia. Apesar de dotada de grande beleza,

    o pai no a queria casar, pois um orculo havia anunciado que ele morreria s mos do genro. Segundo outra verso, o prprio pai ter-se-ia apaixonado pela filha. De modo a afastar os pretendentes, Enmao imaginara um estratagema, em que prometia a mo da filha ao vencedor de uma corrida de carros. O pretendente levaria a jovem no seu carro, enquanto o pai, correndo s, tentaria alcanar a filha e o respectivo pretendente. Alm de possuir cavalos bastante rpidos, o peso que Hipodamia provocava no carro adversrio, bem como a distraco que suscitava, levavam a que o pretendente perdesse a corrida. Uma vez vencedor, Enmao decapitava o pretendente. Foi Plops quem conseguiu subverter o estratagema, com a ajuda da prpria Hipodamia. Quando se apresentou a concurso, a jovem enamorou-se dele e decidiu ajud-lo a ganhar a corrida atravs da sabotagem do carro do pai, o que acabou por acontecer. Alm do mais, apesar de os cavalos de Enmao terem sido um presente de Ares, os de Plops haviam sido tambm um presente de Posdon. O mito de Plops acabou por se relacionar com a origem dos Jogos Olmpicos. Sobre este mito, ver Ilada 2, 104-108; Pndaro, Ode Olmpica 1, 40-90; Sfocles, Electra 504ss.; Eurpides, Orestes 988ss.; Apolodoro, Biblioteca 3, 10, 1: Ovdio, Herides 8, 70; Higino, Fbulas 84, 253; e M.J. OBrien, Pelopid History and the Plot of Iphigenia in Tauris, CQ 38, 1988, 98-115; J. Larson, Greek Heroine Cults, Madison, 1995; S. Blundell, M. Williamson, The Sacred and the Feminine in Ancient Greece, London, 1998, 20-22; W. Hansen, The Winning of Hippodameia, TAPhA 130, 2000, 19-40.

    4 Clitemnestra era filha de Tndaro.

  • Eurpides

    34 35

    junto ao mar de azul sombrio; o mar que o Euripo5 faz muitas vezes enrolar-se num turbilho de gua, por aco do vento incessante. (10) Foi nesse lugar que o soberano Agammnon reuniu a frota grega de mil naus, pois queria ganhar para os Aqueus a coroa da vitria sobre lio e agradar a Menelau, vingando assim a ofensa que Helena fez ao casamento. (15) Ventos terrveis, porm, tornaram impossvel a navegao, o que o levou a ordenar que se consultassem as vtimas. Calcas disse-lhe ento: soberano comandante da Hlade, as naus no sairo desta terra enquanto no tomares como vtima a tua filha Ifignia e no a ofereceres a rtemis. (20) Outrora, prometeste deusa portadora da luz6 o sacrifcio da mais bela primcia do ano. E eis que, em tua casa, a tua esposa Clitemnestra deu luz uma criana. - fazia assim cair sobre mim o preo da beleza - Pois essa criana que devida deusa em sacrifcio. Foi Ulisses quem maquinou separar-me da minha me, sob o pretexto de me casar com Aquiles. (25) Vim para ulis, pobre de mim, onde me puseram sobre o fogo, prontos a ferir-me com o punhal. rtemis, porm, arrebatou-me, deixando no meu lugar, aos Aqueus, uma cora; transportou-me depois pelo ter brilhante (30) e trouxe-me para esta terra dos Tauros, em que agora vivo7. Toas, o brbaro que recebeu esse nome por ter ps rpidos como asas8, governa aqui sobre brbaros. Instalou-me como sacerdotisa no templo, em que a deusa rtemis se compraz com estes costumes, (35) festividades que de belo apenas tm o nome (quanto ao resto, calo-me, por temor deusa). [Na verdade, ofereo em sacrifcio todo o grego que chega a esta

    5 Estreito da Becia, perto de ulis, onde sopravam os ventos Breas e Antibreas.

    6 rtemis.7 A Crimeia, nas margens do Mar Negro.8 O verbo thoazo significa mover-se com rapidez e o adjectivo thoos

    rpido ou gil.

  • IfIgnIa entre os Tauros

    34 35

    terra, de acordo com um antigo costume da cidade.] (40) Cabe-me cumprir as cerimnias preparatrias do sacrifcio, enquanto outros se ocupam da imolao, [em segredo, aqui dentro, no recinto sagrado da deusa]. A noite passada trouxe-me estranhos pressgios, que agora conto aos cus, pois talvez assim sinta algum alvio. No sonho, pareceu-me que vivia em Argos, (45) longe desta terra, e que dormia ao lado de outras virgens. Ento, a terra agitou-se num tremor e eu fugi. L fora, vi o entablamento do palcio desmoronar-se e o tecto inteiro desabar dos altos pilares, desfazendo-se em runas, por terra. (50) Da casa paterna, apenas uma coluna, de onde nascia um cabelo louro e de que se tinha apoderado uma voz humana, ou pelo menos assim me pareceu, ficou de p. De acordo com a prtica de matar estrangeiros, pus-me a aspergi-la, por entre lgrimas, como uma vtima que se prepara para morrer. (55) assim que interpreto este sonho: Orestes est morto e foi nele que eu cumpri os rituais preparatrios do sacrifcio, pois os filhos vares so os pilares de uma casa. Alm disso, morrem sempre aqueles que so atingidos pela minha gua lustral. [E no posso relacionar o meu sonho com nenhum amigo, (60) pois Estrfio no tinha filhos quando eu fui dada em sacrifcio.]9 Por isso, agora, ainda que ele esteja ausente, quero oferecer libaes ao meu irmo. Posso faz-lo, com a ajuda das servas gregas que o rei me atribuiu. Mas, por que razo no apareceram elas ainda? (65) Vou entrar na morada sagrada da deusa, onde vivo.

    (Ifignia entra no templo e Orestes e Plades aparecem.)

    OrestesFica atento! Mantm-te vigilante, no v aparecer

    algum no caminho!

    9 Ifignia refere-se ao tio, pai de Plades, marido de Anaxbia e cunhado de Agammnon.

  • Eurpides

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    PladesEstou atento! Mantenho-me alerta. Vou olhando em

    todas as direces.

    Orestes Achas que este o templo da deusa, Plades, para onde

    navegaram as nossas naus (70) desde que saram de Argos?

    PladesSim, acho que sim, Orestes! E no h razo para no

    concordares comigo.

    Orestes ento este o altar, de onde corre sangue helnico?

    PladesSim, e olha como est vermelho, por efeito do sangue...

    Orestes Ests a ver os trofus, pendurados nas cornijas?

    Plades(75) Vejo! Juntamente com as cabeas de estrangeiros

    mortos. Mas temos de estar atentos a tudo o que nos cerca.

    (Plades olha sua volta.)

    Orestes Febo10! Que armadilha esta a que me conduziste,

    atravs do teu orculo? Expulsos da nossa terra, temos vindo a fugir das Ernias, (80) que se revezam para me perseguir, des-de que honrei o sangue do meu pai, matando a minha me. J percorri muitos caminhos sinuosos, depois de ter ido per-guntar-te como podia terminar com esta loucura que me traz desvairado e com as penas [por que passei, s voltas pela Hla-de]. Disseste-me que viesse aos confins da terra turica, onde

    10 Apolo.

  • IfIgnIa entre os Tauros

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    rtemis, tua irm, tem altares, e que me apoderasse da esttua da deusa, a mesma que dizem que caiu do cu neste templo. Que a tomasse ou pela argcia ou pela sorte e que, depois de ter corrido esse perigo, a levasse para o territrio dos Atenien-ses. (90) (Alm disso, nada mais me revelaste). Apenas que, assim que cumprisse as tuas ordens, aliviaria as minhas penas. Obedecendo s tuas palavras, cheguei a esta terra desconhe-cida, inspita. Pergunto-te, Plades, (pois tens-me ajudado nestes trabalhos), (95) o que fazemos agora? Vs como alta a parede que muralha o recinto? Devemos subir at ao templo? E como fazer para no sermos vistos? Partimos as barras de bronze com um basto? (100) Mas no sabemos quais delas partir! E se nos apanharem a abrir a porta e a prepararmo-nos para entrar, morremos. Portanto, antes que tal acontea, fuja-mos para a nau que aqui nos trouxe.

    PladesFugir est fora de questo, no faz parte da nossa

    natureza. (105) Alm disso, no h por que duvidar do orculo do deus. Deixemos o templo e escondamo-nos longe da nau, numa gruta inundada pela gua do mar sombrio. No v algum ver a quilha do navio e informar o rei e acabarmos presos pela fora. (110) Usemos todo o nosso engenho e assim que o olho da noite sombria espreitar, avanamos e trazemos do templo essa esttua polida. Olha o espao vazio que existe entre os trglifos! Por ali pode passar uma pessoa! De facto, os corajosos enfrentam os desafios, (115) enquanto os cobardes nada so, em lado nenhum. No fizemos uma to longa navegao para agora voltarmos para trs, de regresso ao ponto de partida.

    OrestesBem dito! Convenceste-me! Temos de ir para um lugar

    onde possamos esconder-nos para no sermos vistos. (120)

  • Eurpides

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    Que no seja por minha culpa que o que foi decretado pelo deus deixe de se fazer. H que ter coragem! No h obstculo que intimide quem jovem.

    (Orestes e Plades saem. O coro de servas gregas entra a cantar. Ifignia entra tambm e dirige-se ao coro.)

    IfigniaCalai-vos, vs que habitais as duas (125) rochas que se

    juntam no mar inspito!11

    Coro filha de Leto12! Dictina das Montanhas13! Qual

    serva da chave sagrada14, conduzo os meus ps consagrados de virgem (130) para o teu ptio, para debaixo do tecto dourado do teu templo de belas portas. Eu, que deixei as torres e as muralhas da Hlade de belos cavalos (135), e a Europa de bosques frondosos, a sede da casa do meu pai. Eis-me aqui! O que h de novo? Que pensamento domina o teu esprito? Porque me trouxeste a este templo? Porque me trouxeste aqui, filha daquele que veio at s torres de Tria, com o seu afamado remo, o dos mil navios, o dos dez mil guerreiros15, ilustre Atrida?

    Ifignia servas, estou prostrada em tristes lamentos16,

    11 Ifignia refere-se s Planctas ou s Simplgades, rochedos que aparecem na Odisseia 12, 59-79, 201-231, e na Argonutica 2, 316-340, de Apolnio de Rodes, e que, segundo a tradio, se entrechocavam com o objectivo de esmagar os navios que tentavam passar por entre eles.

    12 Me de Apolo e rtemis.13 Dictina era uma divindade minica associada ao monte Dicte, em

    Cidnia (Creta), e identificada com rtemis. Cf. Herdoto 3, 59.14 O coro refere-se funo que a sacerdotisa de rtemis tem, ao

    guardar a chave do templo. O mesmo acontecia em Bruron, onde havia um importante santurio dedicado deusa.

    15 Agammnon.16 O texto grego refere trenos, cantos de lamento.

  • IfIgnIa entre os Tauros

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    (145) num canto sem msica, num lamento sem lira17! Ai, numa compaixo fnebre! As desgraas! Que desgraas se apoderaram de mim. Choro pela vida do meu irmo. Que viso esta! Que sonhos tive na noite cujas trevas agora se dissipam! Estou perdida! Estou perdida! A casa de meu pai j no existe! (155) Ai de mim! A minha famlia desapareceu! Ai! Ai! Argos passou por tantos trabalhos! destino, que me tiras o meu nico irmo e o levas para o Hades! (160) por ele que fao esta libao na face da terra, que verto a taa dos mortos e o lquido que vem das bezerras da montanha, (165) que te ofereo o vinho de Baco e o fruto do trabalho das abelhas de tom dourado, tudo o que proporciona a calma aos mortos18. D-me agora a urna de ouro para a libao de Hades. rebento de Agammnon, (170) que baixaste terra. So estas as oferendas que te fao. Aceita-as, pois sobre o teu tmulo no posso depor o meu louro cabelo, as minhas lgrimas19. Na verdade, da, de onde acreditam que jazo degolada, fui enviada para muito longe (175) da tua, e da minha, ptria. Que miservel sou!

    CoroEntoo-te cnticos responsrios e (180) hinos asiticos

    que so como rudos brbaros, senhora. Aos mortos a Musa canta lamentos fnebres20 e hinos a Hades, (185) bem

    17 A referncia a um canto sem msica ou, literalmente, que no de boa musa e sem lira, pretende mostrar a ausncia da harmonia, da alegria e da serenidade que a msica da lira proporciona a quem a ouve.

    18 Neste passo encontramos o ritual que os Gregos dedicavam aos mortos.

    19 A oferenda de anis de cabelo constitua uma prtica ritual dos Gregos em relao aos mortos. A referncia mesma nesta tragdia encontra eco nos actos de Electra e Orestes, irmos de Ifignia, em outros textos, como Coforas de squilo.

    20 Trenos.

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    diferentes dos pans21. Ai de mim! Ai da casa dos Atridas! A luz do ceptro extingue-se, ai de mim, ai da casa do meu pai. Outrora, o poder pertencia aos reis de Argos, (190) mas desgraas sucederam-se sem cessar a outras desgraas < > e os cavalos alados de Plops deram a volta, alterando a rota da sagrada luz do olho de Hlio22. (195) Mais, sobre o tecto do cordeiro de ouro caiu a desgraa, a morte sobre a morte, a dor sobre a dor23. O castigo desabou sobre a casa dos Tantlidas j mortos, (200) e a divindade precipitou sobre ti o que no procuraste.

    IfigniaDesde o incio que o destino me foi contrrio, < >

    (205) desde a barriga da minha me, desde aquela noite... No princpio, as deusas Meras, senhoras do nascimento24, as-fixiaram fortemente a minha infncia. (210) Fui do tlamo materno, da infeliz filha de Leda25, a primognita. Vi-me ofe-recida como vtima num sacrifcio triste, pelo ultraje do meu pai. Vim ao mundo e me criei para servir de vtima sacrifi-cial. Para as areias de ulis me levaram num carro puxado por cavalos, (215) como noiva, ai de mim, como noiva que nunca viria a casar-se com o filho da Nereide26! E agora, qual hspede do mar inspito, habito uma casa onde a comida no abunda, solteira, sem filhos, (220) sem ptria, sem ami-

    21 Hinos em honra de Apolo.22 Nova referncia ao mito de Plops, antepassado dos Atridas. Ver nota

    3. Este passo funciona como metfora da alterao dos acontecimentos. 23 Aluso ao cordeiro do velo de ouro, que foi encontrado por Atreu,

    av de Ifignia. Aquele tinha prometido sacrificar a rtemis o melhor produto do seu rebanho, mas acabou por reservar para si o referido animal, ofendendo a deusa e contribuindo para a maldio dos Atridas. Sobre este mito, ver Sneca, Tiestes 222-244.

    24 As Meras so as personificaes do destino de cada ser humano.25 Clitemnestra.26 Aquiles e sua me, Ttis.

  • IfIgnIa entre os Tauros

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    gos, (208) como aquela cujo noivado a apartou dos Helenos. (221) No canto a Hera, senhora de Argos, nem no tear, que to bem soa, bordo com a lanadeira a imagem da ateniense Palas e dos Tits27. Em vez disso, infeliz, (225) derramo sobre o altar, com golpes sanguinrios e imprprios para o som da lira, o sangue de estrangeiros, que lanam gritos plangentes, como plangentes so as suas lgrimas... Mas esqueamo-los. Agora, choro o meu irmo, (230) morto em Argos, a quem deixei ainda menino de leite, um beb, um rebento, criana que ainda era nos braos da me, que o apertavam contra o peito: (235) Orestes, o senhor do ceptro de Argos.

    (Aproxima-se um boieiro.)

    CoroEis que, vindo da costa, chega um boieiro, que te traz

    novidades.

    BoieiroFilha de Agammnon e de Clitemnestra, escuta as

    novas que tenho para te dar.

    Ifignia(240) O que perturba as minhas palavras neste

    momento?

    BoieiroChegaram a esta terra, depois de terem fugido num

    navio s sombrias Simplgades, dois jovens, vtimas para um sacrifcio querido deusa rtemis. (245) Apressa-te a purificar a mos e a tratar das primcias.

    27 Referncia s Panateneias, festas em honra de Atena, em que as jovens casadoiras da aristocracia ateniense apresentavam deusa um peplo novo, decorado com cenas da batalha mtica, em que a deusa Atena ajudou Zeus a derrotar os Gigantes rebeldes, mas que aqui so referidos como Tits. A tradio, porm, dizia que a Titanomaquia ocorrera antes do nascimento de Atena, como se pode confirmar em Hesodo, Teogonia 629-900.

  • Eurpides

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    IfigniaDe que pas so? De que terra aparentam os estran-

    geiros ser?

    BoieiroSo Helenos. tudo o que sei.

    IfigniaDepois de teres ouvido o nome dos estrangeiros, no

    sabes dizer-mo?

    BoieiroUm chamava ao outro Plades.

    Ifignia(250) E ele mesmo como se chamava, esse estrangeiro?

    BoieiroNingum o sabe! No o ouvimos.

    IfigniaComo foi que vocs souberam deles, os encontraram

    e os capturaram?

    BoieiroFoi no ponto mais alto do promontrio, no estreito

    inspito.

    IfigniaE o que tem o mar em comum com os boieiros?

    Boieiro(255) Fomos l para lavar os bois na gua do mar.

    IfigniaChega c e diz-me como e de que modo os apanharam.

    Quero sab-lo. [Pois h muito tempo que o altar da deusa no inundado com sangue heleno.]

  • IfIgnIa entre os Tauros

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    Boieiro(260) Assim que encaminhmos os bois, que se

    alimentam nos bosques, para o mar que corre por entre as Simplgades28, vimos uma gruta, escavada pela contnua agitao das vagas. Era um abrigo para os pescadores da prpura. (265) Um dos nossos boieiros viu a dois rapazes. Voltou ento para trs, em bicos de ps, e disse-nos: Estais a ver? So divindades, aqueles que ali esto sentados! Outro dos nossos, que temente aos deuses, ergueu as mos e, ao v-los, comeou a orar: filho da marinha Leuctea29, protector dos navios, (270) soberano Palmon30, s-nos propcio. So talvez os Dioscuros ali sentados junto ao mar, ou os belos filhos de Nereu, de quem nasceu o nobre coro das cinquenta Nereides31. (275) Um outro, que era insensato e um ousado sabotador das leis, riu-se da prece e disse que eram marinheiros naufragados, que por ouvirem dizer que aqui se oferecem os estrangeiros em sacrifcio se esconderam no fundo da falsia, com medo da lei. A maioria de ns pensou que ele tinha razo, pelo que decidimos apanh-los para serem oferecidos deusa, (280) tal como costume neste pas. Nisto, um dos estrangeiros sai da gruta e abana a cabea, soltando gemidos, ao mesmo tempo que os braos lhe tremiam. Num acesso de loucura, gritava como um caador: Ests a v-la, Plades? (285) No vs aqui a

    28 Ver nota 11.29 Deusa marinha, tambm conhecida como Ino, era filha de Cadmo

    e irm de Smele. Ainda enquanto Ino, antes de se transformar numa divindade, foi enlouquecida por Hera e por isso lanou ao mar o prprio filho. As divindades marinhas apiedaram-se da me e do filho e divinizaram ambos.

    30 Filho de Leuctea.31 As Nereides eram divindades marinhas, filhas de Nereu e de Dris,

    uma das filhas de Oceano. A tradio grega tinha ainda Nerites, heri de grande beleza, como filho de Nereu. Ver Eliano, Da natureza dos animais 14, 28.

  • Eurpides

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    serpente de Hades, que me quer matar? Tem a boca cheia de terrveis vboras! E esta aqui ao lado? Esta que, das vestes, sopra fogo e agita as asas homicidas, carregando a minha me nos braos, como se fosse de pedra, (290) para a deixar cair sobre mim! Ai infeliz! Vai matar-me! Para onde posso fugir? Quem ali estava no via aquelas figuras, mas ele entendia o balido dos bezerros e o latido dos ces como os barulhos que as Ernias32 imitam e soltam. (295) Ali ficmos, juntos, como mortos, sentados em silncio. Foi ento que ele desembainhou a espada e avanou, num mpeto, para o meio das bezerras, qual leo. Com o ferro, golpeava-lhes os flancos, feria-lhes as costelas, convicto de assim afastar as deusas Ernias, (300) at que o sangue floresceu sobre a salmoura do mar. Ento, ao vermos que, devastada, toda a manada caa, armmo-nos at aos dentes, soprmos nas conchas e reunimos a gente do pas, simples boieiros que ramos, dispostos a lutar contra estrangeiros jovens e robustos. (305) Assim, em pouco tempo, recrutmos muitos aliados. J livre do acesso de terror e de loucura, o estrangeiro caiu no cho, com a barba coberta de espuma. Era esse o momento conveniente: ao v-lo assim cado, todos os homens agarraram em pedras, lanaram-nas sobre ele, a tentarem feri-lo. (310) O companheiro limpava-lhe a espuma e procurava proteg-lo. Com a tnica de fino tecido entranado, cobria-o, atento a prevenir os arremessos que vinham de longe, como quem, qual benfeitor, cuidava de um amigo. Ao recuperar a razo, (315) o estrangeiro reergue-se e d-se conta da vaga de inimigos que sobre ele investia. Percebe a desgraa iminente. Em desespero, gritou. Mas ns no parmos de arremessar pedras, atingindo-os, ora de um lado ora do outro. (320) Foi ento que ouvimos a sua terrvel exortao: Vamos morrer, Plades! Mas ento morramos

    32 Divindades primordiais cuja funo vingar os crimes.

  • IfIgnIa entre os Tauros

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    em beleza! Desembainha a espada e segue-me! Ao vermos brandir as espadas nas mos dos inimigos, o vale rochoso foi invadido pela nossa fuga. Mas se um fugia, (325) os outros atingiam-no com arremessos. E se estes eram repelidos, era a vez dos que retrocediam lhes atirarem pedras. Mas o incrvel foi o nmero incontvel de golpes que no conseguiu atingir as vtimas da deusa. A custo, l os dominmos, (330) no graas nossa coragem, mas ao facto de os termos cercado, de lhes termos atirado pedras e de os termos desarmado. Caram ento por terra, de joelhos, exaustos. Levmo-los presena do senhor da regio. Este, ao v-los, rapidamente os encaminhou para ti, (335) para que os purificasses e sacrificasses. donzela, faz um voto para que te apaream vtimas como estas, estrangeiros. Se os matares, a Hlade expiar a tua morte, e pagar o preo justo pelo teu sacrifcio em ulis.

    Coro(340) Incrvel o que disseste desse demente, quem

    quer que seja esse heleno, que veio da sua terra at este mar inspito.

    IfigniaPois bem, vai e traz-me os estrangeiros, que ns aqui

    tratamos do ritual. (O boieiro sai.) infeliz corao! At agora foste sempre calmo e misericordioso (345) para com os estrangeiros, medindo pelas tuas as lgrimas dos teus conterrneos, de cada vez que um heleno te caa nas mos. Mas desta vez, que por estes sonhos que me inundam de ira [acredito que Orestes j no v o Sol] (350), encontram-me hostil, quem quer que sejam os que aqui chegaram. [E percebo agora, minhas amigas, que verdade que os desafortunados no tm bons sentimentos para com os mais afortunados, e que os no poupam.] Mas nunca aqui chegou

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    o sopro de Zeus ou uma nau que, (355) atravs das rochas Simplgades33, trouxesse Helena, aquela que me perdeu, e Menelau, para que me vingasse; igualaria ento esta terra a ulis, onde os Dnaos me fizeram o mesmo que a uma vitela: entregaram-me para a matana, sendo sacerdote o pai que me gerou. (360) Ai de mim! (No quero lembrar-me das desgraas que ento vivi!) Quantas vezes aproximei as minhas mos da face e dos joelhos daquele que me fez vir ao mundo?34 E agarrada a ele dizia: pai, ds-me em casamento num matrimnio vergonhoso! Enquanto me matas, a minha me e (365) as Argivas entoam cnticos a Himeneu35 e todo o palcio se enche com o som das flautas. E eu morro s tuas mos. Afinal era Hades, e no o filho de Peleu, o Aquiles que me destinavas para marido. (370) Num carro, touxeste-me ao engano para uma boda de sangue. J com um vu fino a cobrir-me os olhos, no peguei no meu irmo, que agora est morto, nem beijei a minha irm, por pudor, (375) pois ia para o palcio de Peleu. No fiz grandes despedidas, j que voltava a Argos. desgraado Orestes! Se ests morto, que tipo de benefcios ou de invejas do teu pai te vitimou? (380) Censuro os artifcios desta deusa. Se um mortal contacta com o sangue derramado ou se toca com as mos numa parturiente ou num cadver, ela expulsa-o dos altares, por o ter como impuro. No entanto, agrada-se com sacrifcios humanos. (385) Leto, a mulher de Zeus, no pode ter trazido ao mundo tamanha insensatez. Eu no acredito no banquete que Tntalo ter oferecido aos deuses, que se teriam deliciado ao comer-lhe o filho. Do mesmo modo, penso tambm que esta gente a homicida, embora atribua

    33 Ver nota 11.34 Ifignia descreve a postura do suplicante.35 Divindade que conduz o cortejo nupcial.

  • IfIgnIa entre os Tauros

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    deusa a sua maldade. (390) No posso acreditar na crueldade dos deuses

    CoroEstrofe 1Sombria, sombria a confluncia dos mares, onde o

    moscardo que voou de Argos atravessou o mar inspito < >, (395) trocando a Europa pela terra da sia36. (400) Quem so ento estes que abandonaram o Eurotas37 de abundantes guas e verdejantes canaviais, ou as correntes sagradas do Dirce38, que andaram, andaram at chegarem a esta terra hostil, onde o sangue humano ensopa os altares e o prtico sagrado (405) da filha de Zeus?

    Antstrofe 1Quem so estes que navegaram ao som do duplo

    bater dos remos de abeto, sobre as ondas do mar, (410) seu transporte naval, com a brisa a soprar-lhe as velas, em demanda de riquezas que aumentem os seus palcios? A to amada esperana, que nasce das misrias dos mortais,

    36 Numa referncia ao Bsforo, o coro relembra a histria de Io, jovem sacerdotisa de Hera. Zeus apaixonara-se por Io, tendo-se unido a ela. Hera desconfiou do sucedido e Zeus viu-se obrigado a transformar Io numa vitela branca, para escapar ira da mulher. Hera, porm, exigiu a Zeus que ele lhe oferecesse o animal e acabou por confi-lo guarda de Argo, criatura que contava com cem olhos. Io vagueou por diversas regies do mundo at que Zeus se apiedou dela e encarregou Hermes de a arrebatar ao seu guarda. Hermes adormeceu alguns dos olhos de Argo, enquanto os restantes dormiam j de sono natural. O filho de Zeus matou ento o guarda. Mas a morte deste no livrou Io dos seus tormentos, pois Hera enviou ento um moscardo para atormentar a jovem metamorfoseada. O insecto agarrou-se-lhe ao flanco e Io, desvairada, correu por toda a Grcia, chegando mesmo a atravessar o mar no estreito que separa a Europa da sia, dando-lhe assim o nome de Bsforo ou Passagem da Vaca. Io acabou por se instalar no Egipto, onde deu luz um filho de Zeus, pafo. Sobre este mito ver squilo, Suplicantes 41ss.; Ovdio, Metamorfoses 1, 583-746.

    37 Rio de Esparta.38 Rio de Tebas.

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    (415) insacivel para os homens que carregam o peso das riquezas e que erram sobre as vagas do mar, atravessando cidades brbaras, numa expectativa comum. (420) A uns, a ideia de riqueza sai frustrada, enquanto para outros, ela resulta em cheio.

    Estrofe 2De que modo atravessaram eles as rochas que se

    entrechocam39? Como passaram as costas insones dos filhos de Fineu40? Junto costa, como correram sobre o rumor das vagas de Anfitrite41, (425) onde, em crculo, as cinquenta filhas de Nereu42 < > entoam coros (430) como velas enfunadas pelo vento, enquanto o timoneiro repousa na proa, tocando siringe s hmidas brisas ou aos sopros de Zfiro43, na terra de muitas aves, (435) a costa branca, tal qual um belo estdio no mar inspito para as corridas de Aquiles?

    Antstrofe 2Queiram os deuses que, em resposta s splicas

    da minha ama, Helena, (440) a filha querida de Leda, de regresso da cidade de Tria chegue at aqui; com os cabelos coroados de sangue, h-de morrer s mos da minha senhora, degolada, (445) pagando o que fez com igual preo. Que recebamos a mais agradvel das notcias: da terra da Hlade chegou um marinheiro para acabar com as agruras da minha desgraada escravido. (450) Que eu estivesse, , em casa, nem que fosse s em sonhos, na cidade de meu pai, dormindo o sono dos justos, graa da felicidade a todos consentida.

    39 Ver nota 11.40 Rei da Trcia, cego e com poderes divinatrios, que era atormentado

    pelas Harpias. O coro refere-se s costas da Trcia, do Bsforo ao promontrio de Tnia.

    41 Nereide amada por Posdon.42 Divindade marinha.43 O vento do Ocidente, bom para a navegao da Grcia para a sia.

  • IfIgnIa entre os Tauros

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    (455) Mas eis que se aproximam os dois homens, de mos atadas, quais vtimas sacrificiais dedicadas deusa. Calai-vos, amigas, pois as primcias dos Helenos continuam a avanar e esto j perto do templo. (460) No era mentira o que o boieiro nos anunciou. senhora, se assim te agradam as oferendas que esta cidade te faz, ento, ao te entregarmos os Helenos, aceita com apreo a que fazemos (465) ainda que a nossa lei a no sancione como sagrada!

    (Orestes e Plades entram, presos e escoltados por Tauros.)

    IfigniaPois bem. Em primeiro lugar, tratarei de assegurar

    que os rituais da deusa corram bem. Desatai as mos dos estrangeiros, pois sendo sagrados no devem estar presos. (470) Ide dentro do templo e preparai o necessrio que a tradio exige para esta oferenda. Ah! Quem a me que um dia vos deu luz? E o pai? E a irm, se que a tendes, que vai perder dois irmos? (475) Quem sabe a quem caber uma sorte assim? Pois tudo o que pertence aos deuses se arrasta pelo desconhecido e ningum conhece o mal que lhe est reservado, visto que o destino apenas nos conduz ignorncia. De onde vindes, estrangeiros desgraados? (480) Foi longa, a navegao para esta terra, mas agora ficareis l em baixo, longe de casa, por muito tempo. Para sempre.

    OrestesPorque te lamentas dessa maneira e porque te

    preocupam as desgraas que nos esto para acontecer, quem quer que tu sejas, mulher? Na verdade, no creio que seja sensato que (485) quem est prestes a morrer queira vencer o medo da morte com compaixo e que algum que, estando to perto do Hades, se lamente, quando no h esperana de salvao. De um mal nascem dois: revela-se a insanidade

  • Eurpides

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    e acaba-se por morrer mesma. H que ceder sorte. (490) No te lamentes por ns, pois conhecemos e sabemos quais as oferendas deste lugar.

    IfigniaQual dos dois responde aqui pelo nome de Plades?

    isso o que quero saber em primeiro lugar.

    (Orestes aponta Plades.)

    Orestes Este, se te d algum prazer sab-lo.

    Ifignia(495) De que ptria helnica s cidado?

    Orestes E para que queres saber tudo isso, mulher?

    IfigniaSois os dois irmos, filhos de uma mesma me?

    OrestesSomos irmos mas por laos de amizade, no por

    sangue, mulher.

    IfigniaE a ti? Que nome te ps o pai que te gerou?

    Orestes (500) Em justia, deveria ter-me chamado Desgraado.

    IfigniaNo isso que te estou a perguntar. Se assim , tens

    de culpar a sorte.

    Orestes Se morrermos annimos, ningum se rir de ns.

    IfigniaPorque vs isto com malcia? Porque s assim to prudente?

  • IfIgnIa entre os Tauros

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    OrestesSer o meu corpo que oferecers em sacrifcio aos

    deuses, no o meu nome.

    Ifignia(505) E tambm no me dirs a que cidade pertences?

    OrestesProcuras o que no interessa, pois vamos morrer.

    IfigniaO que te impede de me fazer a vontade?

    OrestesOrgulho-me de ter Argos por ptria.

    IfigniaPelos deuses, estrangeiro, verdade que nasceste l?

    Orestes(510) Sou de Micenas, a outrora opulenta!

    Ifignia(515) Pois s muito bem-vindo, se vens de Argos.

    Orestes(516) No para mim. Se o sou para ti, cabe-te decidi-lo.

    Ifignia(511) Vens fugido da tua ptria? A que sorte foges tu?

    OrestesDe certo modo, fujo tanto por minha vontade como

    contra ela.

    IfigniaSer que me vais dizer alguma coisa do que quero saber?

    Orestes(514) Ser apenas um acrescento minha desgraa.

  • Eurpides

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    Ifignia(517) Tambm conheces Tria, aquela de que se fala

    por todo o lado?

    OrestesPagaria para que nunca dela tivesse ouvido falar, nem

    sequer em sonhos.

    IfigniaDizem que j no existe, que desapareceu a golpes de lana.

    Orestes(520) Assim ! Ouviste bem.

    IfigniaE Helena regressou casa de Menelau?

    OrestesRegressou, e com ela a desgraa a um dos meus.

    IfigniaE onde est ele? H muito tambm que tem uma

    dvida em aberto para comigo, pelo mal que me fez.

    OrestesVive em Esparta, com o marido de outrora.

    Ifignia(525) odiada pelos Helenos e no apenas por mim!

    OrestesTambm eu beneficiei do casamento dela44.

    IfigniaE o regresso dos Aqueus a casa, foi como se conta?

    OrestesInterrogas-me com uma nica pergunta, mas nada te

    escapa!

    44 Orestes recorre ironia.

  • IfIgnIa entre os Tauros

    52 53

    IfigniaQuero que me digas tudo antes de morreres.

    Orestes(530) Pergunta-me o que quiseres. Responder-te-ei.

    IfigniaO adivinho Calcas regressou de Tria?

    OrestesMorreu em Micenas, segundo se diz.

    Ifignia senhora, ainda bem! E o que feito do filho de

    Laertes45?

    OrestesAinda no regressou a casa, mas est vivo, ao que oio

    dizer.

    Ifignia(535) Que morra, sem regressar!

    OrestesNo h por que maldiz-lo, pois volta dele tudo

    adoece.

    IfigniaE o filho da nereide Ttis46, ainda vive?

    OrestesNo. Foi em vo que se casou em ulis.

    IfigniaE traio, como sabem os que se viram envolvidos

    no assunto.

    45 Ulisses.46 Aquiles.

  • Eurpides

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    Orestes(540) Mas quem s tu? Ests bem informada acerca

    da Hlade.

    IfigniaEu sou de l! Era ainda uma criana quando me

    perderam.

    OrestesEnto est certo que queiras saber o que l se passa,

    mulher.

    IfigniaE o que feito do comandante, a quem chamam

    afortunado?

    OrestesQuem? Aquele que eu conheo no de todo

    afortunado.

    Ifignia(545) Falo do filho de Atreu, do soberano Agamm-

    non!

    OrestesNada sei! Pra com essa conversa, mulher!

    IfigniaNo, pelos deuses! Fala, satisfaz a minha curiosidade,

    estrangeiro!

    OrestesO desgraado morreu e levou outros destruio.

    IfigniaMorreu? Em que circunstncias? Desgraada de mim!

    Orestes(550) Porque o lamentas? Por acaso era-te chegado?

  • IfIgnIa entre os Tauros

    54 55

    IfigniaLamento-o pela prosperidade de outrora.

    OrestesMorreu de uma forma horrvel, degolado por uma

    mulher.

    IfigniaDigno de d tanto quem o matou como quem

    morreu.

    OrestesFicamos por aqui, no me perguntes mais nada.

    Ifignia(555) S mais uma questo: a mulher desse infeliz

    ainda est viva?

    OrestesNo! Matou-a o filho que deu luz.

    Ifignia casa em turbilho! O que pretendeu ele com esse

    acto?

    OrestesVingar-se dela, pela morte do pai.

    IfigniaAi! Agiu bem, embora praticasse um mau acto de

    justia!

    Orestes(560) Mas que, ainda que justo, no tem a aprovao

    dos deuses.

    IfigniaE Agammnon deixou algum outro filho em casa?

    OrestesDeixou apenas uma, Electra, virgem ainda.

  • Eurpides

    56 57

    IfigniaE a filha que foi sacrificada? H algum rumor?

    OrestesNada. Apenas que morreu, que j no v a luz do dia.

    Ifignia(565) Infeliz, ela e o pai que a matou.

    OrestesMorta pela m graa de uma mulher desgraada.

    IfigniaE o filho do pai morto? Est em Argos?

    OrestesO infeliz est em todos os lados e em nenhum, ao

    mesmo tempo.

    IfigniaSonhos enganadores adeus, que de nada me valeis.

    Orestes(570) Nem as divindades, a quem chamam sbias,

    so mais verdadeiras do que os sonhos fugazes. H muita perturbao entre os deuses e entre os mortais, mas uma coisa realmente dolorosa: que algum, sem ser insensato mas por fazer f nas palavras de adivinhos, se veja perdido (575) porque est perdido aos olhos de quem sabe.

    CoroAi! Ai! E ns? E os nossos pais? Ainda vivem? Ou j

    no vivem? Quem no-lo diz?

    (Ifignia continua a dirigir-se aos prisioneiros.)

    IfigniaEscutai! Estive a pensar e tive uma ideia que vos pode-

    r ajudar, estrangeiros, (580) e ao mesmo tempo ajudar-me,

  • IfIgnIa entre os Tauros

    56 57

    a mim. Chega-se a um entendimento quando algo bom para todos. Se, por acaso, eu te salvasse, estarias disposto a ir a Argos e a levar uma mensagem minha a uns entes--queridos que tenho l? Trata-se de uma tabuinha que um prisioneiro me escreveu, com pena de mim, (585) certo de que no era a minha mo que o matava, mas que morria por causa do costume, da deusa que o tem como justo. Ainda nunca houve ningum que se salvasse, regressasse a Argos e levasse minha mensagem (590) a um dos meus paren-tes. Mas tu, que no me pareces hostil e conheces Micenas e quem eu amo, podes salvar-te a troco de um pagamento de que no te envergonhars. Aceita a tua salvao em troca de umas leves letras. E que apenas o teu amigo (595) fique e seja oferecido deusa47, uma vez que a cidade assim o exige.

    OrestesTens razo, estrangeira, excepto numa coisa: a morte

    dele para mim um grande fardo. (600) Pois sou eu o portador de desgraa e ele apenas navega comigo para partilhar os meus tormentos. No , pois, justo que seja eu a ganhar o teu favor em troca da morte dele e desse modo me livre da desgraa. Mas faremos assim: d-lhe essa tabuinha. Ele lev-la- para Argos e tudo correr bem. E que eu seja morto por quem me quiser matar. Nada mais vergonhoso do que algum (605) salvar-se a si mesmo, lanando um amigo na desgraa. E este um amigo a quem desejo que veja a luz do dia tanto como a mim prprio.

    IfigniaNobre deciso! Quo distintas so as razes de que

    nasceste (610) e quo verdadeiro amigo s dos teus amigos! Fosse assim o parente que me resta! Pois a mim, estrangeiros,

    47 Ifignia refere-se a Plades.

  • Eurpides

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    ainda me resta um irmo, ainda que no saiba dele. Uma vez que queres assim, enviamo-lo ento a ele com a tabuinha. Sers tu a morrer, (615) j que tanto o desejas.

    OrestesQuem me oferecer em sacrifcio? Quem suportar

    esse horror?

    IfigniaEu! Pois tenho a funo de apaziguar a deusa!

    OrestesNo uma tarefa feliz ou invejvel, rapariga!

    Ifignia(620) Mas vejo-me nesta necessidade e tenho de zelar

    por ela.

    OrestesSendo tu uma mulher, feres a homens com a espada?

    IfigniaNo! Eu apenas lustrarei o teu cabelo.

    OrestesE quem o carrasco? Se que devo perguntar...

    IfigniaOs que se ocupam disso esto dentro desta casa.

    Orestes(625) Que tipo de funeral me ser feito depois de

    morrer?

    IfigniaNa pedra, h uma ampla abertura e l dentro estar o

    fogo sagrado48.

    48 Cf. Diodoro Sculo 20, 14, em que se l acerca das prticas funerrias dos Cartagineses, semelhantes s descritas por Eurpides neste passo.

  • IfIgnIa entre os Tauros

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    OrestesAi! Como me amortalhariam as mos da minha irm?

    IfigniaV splica fazes, infeliz, quem quer que sejas! Ela

    vive longe desta terra brbara. Visto que s argivo, porm, (630) no deixarei de te fazer esse favor, dentro das minhas possibilidades. Muitos sero os adornos que porei sobre o teu sepulcro, azeite dourado consumir o teu corpo e sobre a tua pira lanarei o suco das (635) abelhas amarelas da mon-tanha, que brilha ao escorrer por entre as flores. Vou ento buscar a tabuinha ao templo da deusa. Trata, portanto, de no me hostilizar. Servos, vigiai-os, sem as ataduras! de for-ma inesperada que envio ao meu familiar querido de Argos, (640) quele a quem mais amo, a tabuinha com uma mensa-gem, a anunciar que esto vivos aqueles que ele acredita mor-tos. Estas so palavras que decerto lhe daro muito prazer.

    (Ifignia entra no templo. O coro dirige-se a Orestes e a Plades.)

    CoroA ti eu lamento, tu que sers a razo (645) das gotas

    sangrentas na gua lustral.

    OrestesNo h por que ter compaixo! Em vez disso, alegrai-

    vos, estrangeiras!

    Coro

    A ti, jovem, te bendizemos pela boa sorte que te coube, pois voltars a pr os ps na tua ptria.

    Plades

    No invejvel que quem amigo (650) veja morrer os seus amigos.

  • Eurpides

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    Coro cruel misso! Ai! Ai! Estais perdidos! Ai!

    Ai! E qual dos dois o estar mais? (655) Na verdade, o meu esprito debate-se entre dois contrrios: por quem devo soltar o meu primeiro lamento, por ti ou por ti?

    OrestesPensas dos deuses o mesmo que eu, Plades?

    PladesNo sei. No sei o que responder tua pergunta.

    Orestes(660) Quem esta rapariga? Foi em grego que fez o

    seu interrogatrio acerca dos nossos sofrimentos e de lio49, do regresso dos Aqueus a casa, e de Calcas, o que entendia os sinais das aves, e do nome de Aquiles. E como lamentou o infeliz Agammnon e me perguntou (665) pela mulher e pelos filhos dele. A estrangeira de l, tem ascendncia argiva. De outro modo, se ali no tivesse nenhum interesse, no enviaria a tabuinha nem quereria saber se em Argos est tudo bem.

    PladesTiraste-me as palavras da boca. Antecipaste o que

    eu tinha a dizer, excepto numa coisa: (670) todos os que as presenciaram conhecem as infelicidades por que os reis passaram. No entanto, uma outra ideia me passou pela cabea...

    OrestesQual? Ficar mais clara se a partilhares.

    49 Outra designao para Tria e sua regio.

  • IfIgnIa entre os Tauros

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    Plades vergonhoso que eu veja a luz do dia e que tu

    morras. (675) Naveguei contigo, morrerei contigo. Pois, caso contrrio, serei acusado de cobardia e maldade, em Argos e na Fcida, terra de muitos vales. maioria, pois a maioria perversa, parecer que me salvei, entregando-te, e que s por isso estou em casa. Ou que (680) te assassinei e tramei a tua destruio, juntamente com a destruio da tua casa, para ficar com a tua realeza, casando com a herdeira, a tua irm. Na verdade, disso que tenho medo e que me envergonha. Nada poder impedir que morra contigo, (685) que seja sacrificado contigo e que o meu corpo seja cremado, pois sou teu amigo e temo a censura alheia.

    OrestesNo digas isso! Tenho de suportar os meus sofrimentos.

    Mas se me possvel ficar por uma s dor, no suportarei duas. Aquilo a que chamas doloroso e censurvel tambm o ser para mim, (690) caso morras por minha culpa, por partilhares as minhas desgraas. Para mim, no ser mau de todo perder a vida, sofrendo o que estou a sofrer por determinao divina. Tu, porm, s um felizardo, pois tens um tecto limpo e no contaminado, enquanto eu sou um maldito e um infeliz. (695) Se te salvares, e se da irm que te dei como esposa tiveres filhos, o meu nome viver e a casa do meu pai no se extinguir sem descendncia. Por isso, vai, vive e habita a casa do meu pai. (700) E promete pela tua mo direita que quando chegares Hlade e hpica Argos me dars um tmulo e me erguers um monumento. A minha irm oferecer ento ao sepulcro lgrimas e cabelos50. Conta-lhe como morri s mos de uma mulher argiva, (705)

    50 A j referida prtica funerria grega de oferecer madeixas de cabelo aos mortos e s sepulturas.

  • Eurpides

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    purificado para o sacrifcio. E nunca traias a minha irm, ainda que vejas a desolao e o abandono a que est sujeita a casa do meu pai. Adeus! Tenho-te como o mais amado dos meus amigos, meu parceiro de caa e meu companheiro desde a infncia, tu que suportaste (710) o grande fardo dos meus males. Febo, apesar de adivinho, enganou-nos. Usando de artifcios, afastou-nos o mais possvel da Hlade, envergonhado dos orculos que antes me enviou. Entreguei-me todo a ele, confiei nas suas palavras e assassinei a minha me. (715) Agora, em troca, sou eu prprio que morro.

    PladesTers o teu tmulo e no atraioarei o leito da tua

    irm, infeliz! Apesar de morto, a minha amizade ser mais profunda do que quando vivias. No entanto, o orculo do deus ainda no te destruiu, (720) por muito perto que estejas da morte. Mas o certo, certo mesmo, que quando se d uma grande desgraa, a sorte traz, em determinadas ocasies, grandes mudanas.

    OrestesSilncio! As palavras de Febo no me ajudaram. Esta

    mulher vem a sair do templo.

    (Ifignia sai do templo e traz as tabuinhas.)

    Ifignia(725) Vs51, ide para dentro e preparai o que

    necessrio ao sacrifcio. Aqui est, estrangeiros, a mensagem, em vrias tabuinhas. Escutai o que quero que faais com elas, pois nenhum homem o mesmo quando est em apuros e quando se livra do medo e reconquista a coragem. Temo que aquele que desta terra regressar a casa, para levar estas

    51 Ifignia dirige-se em primeiro lugar s servas.

  • IfIgnIa entre os Tauros

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