e spiritual i dade

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Espiritualidade, dimenso esquecida e necessria

Espiritualidade vem de esprito. Para entendermos o que seja esprito precisamos desenvolver uma concepo de ser humano que seja mais fecunda do que aquela convencional, transmitida pela cultura dominante. Esta afirma que o ser humano composto de corpo e alma ou de matria e esprito. Ao invs de entender essa afirmao de uma forma integrada e globalizante, entendeu-a de forma dualista, fragmentada e justaposta. Assim surgiram os muitos saberes ligados ao corpo e matria (cincias da natureza) e os vinculados ao esprito e alma (cincias do humano). Perdeu-se a unidade sagrada do ser humano vivo que a convivncia dinmica de materia e de esprito entrelaados e inter-retro-conectados.

1. Espiritualidade concerne ao todo ou parte?

Espiritualidade, nesta segmentarizao, significa cultivar um lado do ser humano: seu esprito, pela meditao, pela interiorizao, pelo encontro consigo mesmo e com Deus. Esta diligncia implica certo distanciamento da dimenso da matria ou do corpo.

Mesmo assim espiritualidade constitui uma tarefa, seguramente importante, mas ao lado de outras mais. Temos a ver com uma parte e no com o todo.

Como vivemos numa sociedade altamente acelerada em seus processos histricos-sociais, o cultivo da espiritualidade, nesse sentido, nos obriga a buscar lugares onde encontramos condies de silncio, calma e paz, adequados para a interiorizao.

Esta compreenso no errnea. Ela contem muita verdade. Mas reducionista. No explora as riquezas presentes no ser humano quando entendido de forma mais globalizante. Ento aparece a espiritualidade como modo- de-ser da pessoa e no apenas como momento de sua vida.

Antes de mais nada importa enfatizar fato de que, tomado concretamente, o ser humano constitui uma totalidade complexa. Quando dizemos totalidade significa que nele no existem partes justapostas. Tudo nele se encontra articulado e harmonizado. Quando dizemos complexa significa que o ser humano no simples, mas a sinfonia de mltipas dimenses. Entre outras, discernimos trs dimenses fundamentais do nico ser humano: a exterioridade, a interioridade e a profundidade.

2. A exterioridade humana: a corporeidade

A exterioridade tudo o que diz respeito ao conjunto de relaes que o ser humano entretm com o universo, com a natureza, com a sociedade, com os outros e com sua prpria realidade concreta em termos de cuidado com o ar que respira, com os alimentos que consome/comunga,com a gua que bebe,com a roupas que veste e com as energias que vitalizam sua corporeidade. Normalmente se entende essa dimenso como corpo. Mas corpo no um cadver. o prprio ser humano todo inteiro mergulhado no tempo e na matria, corpo vivo, dotado de inteligncia, de sentimento,de compaixo, de amor e de xtase. Esse corpo total vive numa trama de relaes para fora e para alm de si mesmo. Tomado nessa acepo fala-se hoje de corporeidade ao invs de simplesmente corpo.

3. A interioridade: a psiqu humanaA interioridade constituda pelo universo da psiqu, to complexo quanto o mundo exterior, habitado por instintos, pelo desejo, por paixes, por imagens poderosas e por arqutipos ancestrais. O desejo constitui, possivelmente, a estrutura bsica da psiqu humana. Sua dinmica ilimitada. Como seres desejantes, no desejamos apenas isso e aquilo. Desejamos tudo e o todo. O obscuro e permanente objeto do desejo o Ser em sua totalidade. A tentao identificar o Ser com alguma de suas manifestaes, como a beleza, a posse, o dinheiro, a sade, a carreira profissional e a namorada, o namorado, os filhos, assim por diante. Quando isso ocorre, surge a fetichizao do objeto desejado. Significa a ilusria identificao do absoluto com algo relativo, do Ser ilimitado com o ente limitado. O efeito a frustrao porque a dinmica do desejo de querer o todo e no a parte se v contrariada. Da, no termo, predominar o sentimento de irrealizao e, consequentemente, o vazio existencial.

O ser humano precisa sempre cuidar e orientar seu desejo para que ao passar pelos vrios objetos de sua realizao irrenuncivel que passe - no perca a memria bemaventurada do nico grande objeto que o faz descansar, o Ser, o Absoluto, a Realidade fontal, o que se convencionou chamar de Deus. O Deus que aqui emerge no simplesmente o Deus das religies, mas o Deus da caminhada pessoal, aquela instncia de valor supremo, aquela dimenso sagrada em ns, inegocivel e intransfervel. Essas qualificaes configuram aquilo que, existencialmente, chamamos de Deus.

A interioridade denominada tambm de mente humana, entendida como a totalidade do ser humano voltada para dentro, captando todas as ressonncias que o mundo da exterioridade provoca dentro dele.

4. A profundidade: o espritoPor fim o ser humano possui profundidade. Tem a capacidade de captar o que est alm das aparncias, daquilo que se v, se escuta, se pensa e se ama. Apreende o outro lado das coisas, sua profundidade. As coisas todas no so apenas coisas. Todas elas possuem uma terceia margem. So smbolos e metforas de outra realidade que as ultrapassa e que elas recordam, trazem presente e a ela sempre remtem.

Assim a montanha no apenas montanha. Em sendo montanha, traduz o que significa majestade. O mar evoca grandiosidade; o cu estrelado, infinitude; os olhos profundos de uma criana, o mistrio da vida humana e do universo.

O ser humano capta valores e significados e no apenas fatos e acontecimentos. O que definitivamente conta no so as coisas que nos acontecem, mas o que elas significam para a nossa vida e que experincias elas nos propiciam. As coisas, ento, passam a ter carter simblico e sacramental: nos recordam o vivido e alimentam nossa interioridade. No sem razo que enchemos nossa casa ou o nosso quarto de fotos, de objetos queridos dos pais, dos avs, dos amigos, daqueles que entraram em nossa vida e significaram muito. Pode ser o ltimo toco de cigarro do pai que morreu de enfarte ou o pente de madeira da tia que morreu ou a carta emocionada do namorado que revelou seu amor. Aqueles objetos no so mais objetos. So sacramentos, pois falam, recordam, tornam presente significados, caros ao corao.

Captar, desta forma, a profundidade do mundo, de si mesmo e de cada coisa constitui o que se chamou de esprito. Esprito no uma parte do ser humano. aquele momento da conscicncia mediante o qual captamos o significado e o valor das coiss. Mais ainda, aquele estado de conscincia pelo qual apreendemos o todo e a ns mesmos como parte e parcela deste todo.

O esprito nos permite fazer uma experincia de no-dualidade. Tu s isso tudo dizem os Upanishads da India, apontando para o universo. Ou tu s o todo dizem os yogis. O Reino de Deus est dentro de vs proclama Jesus. Estas afirmaes remetem a uma experincia vivida e no a uma doutrina. A experincia que estamos ligados e re-ligados uns aos outros e todos Fonte Originante. Uma fio de energia, de vida e de sentido perpassa a todos os seres, constituindo-os em cosmos e no em caos, em sinfonia e no disfonia.

A planta no est apenas diante de mim. Ela est como ressonncia, smbolo e valor dentro de mim. H em mim uma dimenso montanha, vegetal, animal, humana e divina. Espiritualidade no consiste em saber disso, mas em vivenciar e fazer disso tudo contedo de experincia. Bem dizia Blaise Pascal: crer em Deus no pensar em Deus mas sentir Deus. A partir da experincia tudo se transfigura. Tudo vem carregado de venerao e de sacralidade.

A singularidade do ser humano consiste em experimentar a sua prpria profundidade. Auscultando a si mesmo percebe que emergem de seu profundo apelos de compaixo, de amorizao e de identificao com os outros e com o grande Outro, Deus. D-se conta de uma Presena que sempre o acampanha, de um Centro ao redor do qual se organiza a vida interior e a partir do qual se elaboram os grandes sonhos e as significaes ltimas da vida. Trata-se de uma energia originria, com o mesmo direito de cidadania que outras energias como a sexual, a emocional e a intelectual.

Pertence ao processo de individuao acolher esta energia, criar espao para esse Centro e auscultar estes apelos, integrando-os no projeto de vida. a espiritualidade no seu sentido antropolgico de base. Para ter e alimentar espiritualidade a pessoa no precisa professar um credo ou aderir a uma instituio religiosa. A espiritualidade no monoplio de ningum, mas se encontra em cada pessoa e em todas as fases da vida. Essa profundidade em ns representa a condio humana espiritual, aquilo que designmos espiritualidade.

Obviamente para as pessoas religiosas, esse Centro Deus e os apelos que dele derivam sua Palavra. As religies vivem desta experincia. Articulam-na em doutrinas, em ritos, celebraes e em caminhos ticos e espirituais. Sua funo primordial reside em criar e oferecer condies para que cada pessoa humana e as comunidades possam fazer um mergulho na realidade divina e fazer a sua experincia pessoal de Deus.

Essa experincia porque experincia e no doutrina tem como efeito a irradiao de serenidade, de profunda paz e de ausncia do medo. A pessoa sente-se amada, acolhida e aconchegada num Utero divino, O que lhe acontecer, acontece no amor desta Realidade amorosa. At a morte exorcizada em seu carter de espantalho da vida. vivida como parte da vida, como o momento alqumico da grande transformao para poder estar, de fato, no Todo e no corao de Deus.

Esta espiritualidade um modo de ser, uma atitude de base a ser vivida em cada momento e em todas as circunstncias. Mesmo dentro das tarefas dirias da casa, trabalhando na fbrica, andando de carro, conversando com os amigos, vivendo a intimidade com a pessoa amada, a pessoa que criou espao para a profundidade e para o espiritual est centrado, sereno e pervadido de paz. Irradia vitalidade e entusiasmo, porque carrega Deus dentro de si. Esse Deus amor que no dizer do poeta Dante move o cu, todas as estrelas e o nosso prprio corao.

Esta espiritualidade to esquecida e to necessria condio para uma vida integrada e singelamente feliz. Ela exorciza o complexo mais dificil de ser integrado: o envelhecimento e a morte.

Para a pessoa espiritual o envelhecer e o morrer pertencem vida, no matam a vida, mas transfiguram a vida, permitindo um patamar novo para a vida. Assim como ao nascer, ns mesmos no tivemos que nos preocupar, pois, a natureza agiu sabiamente e o cuidado humano zelou para que esse curso natural acontecesse, assim analogamente com a morte: passamos para outro estado de conscincia sem nos darmos conta dessa passagem. Quando acordamos nos encontraremos nos braos aconchegantes do Pai e Me de infinita bondade, que desde sempre nos esperavam. Cairemos em seus braos. E ento nos perdemos para dentro do amor e da fonte de vida.