e fez-se a luz

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E FEZ-SE A LUZ! por Fausto Junior 18 maio 2013 Em 2011 recebi convite de Maria Carolina e Tenille Bezerra para preparar uma série de oficinas de animação a serem incluídas na programação da Mostra Lanterninha. O Projeto Lanterninha já acontece há alguns anos e tem como objetivo exibir filmes brasileiros em escolas públicas, propiciando também um bate-papo com realizadores, elenco e outros componentes da equipe de produção dos filmes. Existe ainda um trabalho de formação de monitores e incentivo à criação de cineclubes nas escolas que participam do projeto. Tendo a oficina duração de apenas um dia, como eu poderia ensinar crianças na faixa de 10 anos a produzirem suas próprias animações? O objetivo seria transmitir noções básicas do básico de como são feitas imagens em movimento. No início iria apresentar filmes de animação realizados em estilos e técnicas pouco comuns na TV aberta. A parte prática teria que ser o mais simples possível e utilizando materiais acessíveis, de modo que eles pudessem também fazer em casa. Roteiro preparado, chegou o dia da primeira oficina. A escola parecia um presídio. Grades, grades, grades, cadeados e mais grades atrás de grades. É difícil imaginar que se possa produzir boa educação em um ambiente carregado de tensão, onde salas se tornam celas de aula. Materiais e equipamentos prontos, carteiras vazias na sala, todos a postos. Três, dois, um... a porta é aberta e a meninada entra como um tsunami. Gritos, risos,

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Page 1: E FEZ-SE A LUZ

E FEZ-SE A LUZ!

por Fausto Junior

18 maio 2013

Em 2011 recebi convite de Maria Carolina e Tenille Bezerra para preparar uma série

de oficinas de animação a serem incluídas na programação da Mostra Lanterninha.

O Projeto Lanterninha já acontece há alguns anos e tem como objetivo exibir filmes

brasileiros em escolas públicas, propiciando também um bate-papo com

realizadores, elenco e outros componentes da equipe de produção dos filmes.

Existe ainda um trabalho de formação de monitores e incentivo à criação de

cineclubes nas escolas que participam do projeto.

Tendo a oficina duração de apenas um dia, como eu poderia ensinar crianças na

faixa de 10 anos a produzirem suas próprias animações? O objetivo seria transmitir

noções básicas do básico de como são feitas imagens em movimento. No início iria

apresentar filmes de animação realizados em estilos e técnicas pouco comuns na

TV aberta. A parte prática teria que ser o mais simples possível e utilizando

materiais acessíveis, de modo que eles pudessem também fazer em casa.

Roteiro preparado, chegou o dia da primeira oficina. A escola parecia um presídio.

Grades, grades, grades, cadeados e mais grades atrás de grades. É difícil imaginar

que se possa produzir boa educação em um ambiente carregado de tensão, onde

salas se tornam celas de aula.

Materiais e equipamentos prontos, carteiras vazias na sala, todos a postos. Três,

dois, um... a porta é aberta e a meninada entra como um tsunami. Gritos, risos,

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vozes agudas e um interminável arrastar de carteiras. Se tinha havido de início

alguma tentativa de ordenar espacialmente a distribuição do mobiliário, em poucos

segundos esta organização foi completamente destroçada. Formaram-se diversas

aglomerações: um grupo maior na frente, outros no fundo, alguns em dupla ou trio.

Todos sentados, olhinhos fixos em mim, aguardando o momento de começar o

“espetáculo".

Era claro, cristalino. Bastava um relance, um rápido olhar para identificar

perfeitamente quem era quem no grupo. Os líderes, os bagunceiros, os retraídos,

os que queriam desafiar e os que não tinham a menor ideia do que estavam

fazendo ali. Não era uma turma fácil, e a quantidade de alunos acabou sendo maior

do que o esperado (e tolerável). Enfim, tive que improvisar, eliminar e alterar

diversos itens do roteiro inicial. Liberei a turma mais cedo e, com o que foi possível

produzir durante o dia, passei a noite e madrugada editando o material para ser

apresentado na manhã seguinte. Pelas notícias que recebi depois, a "galera pirô", a

meninada ficou doida, especialmente ao se ver na tela.

Antes de liberar a turma tinha feito pequenas cenas em pixilation* com grupos de

dois a cinco alunos.

*Pixilation é uma técnica de animação stop motion na qual são utilizadas pessoas,

que são fotografadas quadro a quadro.

A impressão que tenho é que, ao verem o resultado, eles se deram conta de terem

perdido uma oportunidade. Por menor que tenha sido e ainda que não se saiba que

oportunidade seria essa, alguma coisa deixou de ser aproveitada.

No sábado seguinte, outra oficina e outra escola pública. Esta era grande, tinha

jardins e o aspecto de escola, não de presídio.

Desta vez vieram apenas quatro alunos (entre 6 e 11 anos). Não havia sinais de

ansiedade. Comecei com a exibição (intercalada por comentários) de animações em

diversos estilos. Consegui exibir todos, inclusive o Castelo de Areia, de Co

Hoedeman, realizado em 1977, que utiliza a técnica stop-motion com areia e tem

13 minutos de duração.

Entre as atividades práticas, gosto em especial de uma, justamente por ser muito,

muito simples e porque o resultado é imediato. Não há necessidade de fotografar e

editar. Com apenas um pedaço de papel e um lápis é possível demonstrar o

princípio básico do cinema.

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Os quatro alunos realizaram este simples exercício. Cortaram os pedacinhos de

papel, pensaram no desenho que queriam fazer, enrolaram o papel de cima numa

caneta, começaram a movimentar o papel... pra frente, pra trás, pra frente, pra

trás e... em um certo momento... PÁAA! O ESTALO! A LUZ! Eureka! A sinapse! O

brilho nos olhos! O sorriso... sem palavras. E eles se deram conta de como a

mágica acontece. Dois frames, dois desenhos... E FEZ-SE A LUZ!

Não sou professor, nem tenho vocação para tal. Lembrei naquele instante de

diversos professores que tive em escolinhas, colégios, ginásio, faculdade, cursos,

oficinas... Ao compartilhar, passar adiante, transmitir o conhecimento

daquela mágica tão simples, tive a sensação de que estava fazendo o mundo girar.