durham_sd_sociedade vista da periferia

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    A SOCIEDADE VISTA DA PERIFERIAA SOCIEDADE VISTA DA PERIFERIAeunice ribeiro durham

    IntroduoDurante toda a ltima dcada acumulou-se, no Brasil, um material muito rico,embora heterogneo e fragmentado, sobre o modo de vida das classes trabalhadoras

    e da populao pobre que habita as grandes cidades (1). Esse material resulta degrande nmero de pesquisas, muitas das quais realizadas por antroplogos, queabordam os temas mais diversos: a migrao, a vida familiar, a situao damulher, a alimentao, as formas de trabalho, os movimentos sociais e o que seconvencionou chamar de estratgias de sobrevivncia.A essa heterogeneidade de temas e problemas acrescenta-se a diversidade daprpria populao estudada. Quase todos os trabalhos, mas especialmente os decunho mais antropolgico, que tendem a isolar como objeto de pesquisa um localou uma instituio, lidam com uma populao muito heterognea do ponto de vistade sua insero no mercado de trabalho: operrios, trabalhadores por contaprpria e biscateiros, empregadas domsticas e pequenos funcionrios pblicos,empregados de empresas de servios as mais diversas, trabalhadores domiciliares

    por tarefa e toda a imensa gama de empregos de baixo prestgio e parcaremunerao.E, entretanto, apesar dessa diversidade, a familiaridade com essas pesquisas nopode deixar de revelar, mesmo ao investigador o mais desavisado, uma grandeuniformidade no que diz respeito a valores fundamentais, hbitos, gostos easpiraes que parecem caracterizar o conjunto dessa populao. Isso no surpreendente. Podemos, com efeito, supor que as foras sociais que modelam atransformao da sociedade brasileira tendem a produzir, para os setores maispobres da populao urbana, condies de existncia muito semelhantes. Auniformizao do consumo criada pelo nvel salarial, a existncia de problemascomuns nas reas de habitao, sade, escolarizao e acesso ao mercado detrabalho deve promover, nessa populao, o desenvolvimento de tipos desociabilidade, modos de consumo e lazer, padres de avaliao do mercado de

    trabalho e formas de percepo da sociedade que lhe so prprias. Em outraspalavras, podemos supor que condies de vida semelhante dem origem acaractersticas culturais prprias.A anlise das semelhanas remete, portanto, ao universo da cultura. dessaperspectiva que a heterogeneidade inicial se dissolve. Assim, a diversidade deinsero na estrutura produtiva, se bem que fundamental quando se est aanalisar o processo de transformao da sociedade capitalista, assumesignificado muito diverso quando apreendida da perspectiva dos sujeitos quevivem esse processo. Desse ponto de vista, a imensa gama de ocupaes de baixoprestgio e parca remunerao constitui, para a populao sem escolaridade e semqualificao profissional, um mesmo conjunto de opes de trabalho que integramseu horizonte de possibilidades de emprego. A histria de vida de cada um e, com

    muito mais razo, a de diferentes membros de uma mesma famlia, se constri apartir de experincias de trabalho diversificadas que ocorrem dentro desse mesmouniverso de oportunidades ocupacionais. por isso que a anlise dessas uniformidades e semelhanas, construdas aonvel da cultura, no pode ser realizada a partir dos conceitos que remetem teoria marxista das classes sociais. O termo "classes populares", de cunhonitidamente descritivo, parece cobrir mais adequadamente esse conjuntosimultaneamente diferente e semelhante e indicar que a anlise est seprocessando num nvel diverso daquele que prprio da teoria das classessociais.Assumindo a perspectiva da cultura, este trabalho possui um duplo objetivo: deum lado, apresenta resultados de uma pesquisa especfica, realizada no CEBRAP em1982 por uma equipe de antroplogos (2), de outro, toma como pano de fundo e

    referncia constante toda a etnografia dispersa, nos diferentes trabalhosproduzidos sobre a cidade de So Paulo. Movendo-se nestes dois planos, o artigoprocura apresentar uma sntese preliminar que permita organizar com mais clareza

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    os resultados parciais e parcialmente superpostos de todas essas pesquisas quese vm acumulando ultimamente.Como o objetivo final , na verdade, analisar o contexto cultural dentro do qualse movem as classes populares, o tema e o objeto da pesquisa aqui apresentadatm um valor estratgico. Trata-se de uma investigao exploratria de trscidades mdias do Estado de So Paulo (Rio Claro, Marlia e So Jos dos Campos)(3). O fato da pesquisa no se realizar na metrpole permite o confronto e a

    comparao com o abundante material existente sobre a cidade de So Paulo eoferece uma certa garantia de estarmos lidando com orientaes culturais delarga abrangncia e ampla disseminao.A escolha da "periferia urbana" como local e tema da investigao merece umajustificao parte.A periferiaA populao pobre est em toda a parte nas grandes cidades. Habita cortios ecasas de cmodos, apropria-se das zonas deterioradas e subsiste como enclavesnos interstcios dos bairros mais ricos. Mas h um lugar onde se concentra, umespao que lhe prprio e onde se constitui a expresso mais clara de seu modode vida. a chamada periferia. A "periferia" formada pelos bairros mais

    distantes, mais pobres, menos servidos por transporte e servios pblicos.Obviamente, o fenmeno de formao das periferias urbanas no novo e nemsequer especificamente brasileiro. Em So Paulo, onde a vigorosa expanso urbanadata do sculo passado e contempornea imigrao estrangeira, a cidadecrescia desordenadamente h j um sculo. Entretanto, a partir da dcada de 50,o crescimento urbano no s aumenta de intensidade mas adquire caractersticasespecficas que distinguem as novas periferias das antigas fmbrias urbanas.Em primeiro lugar, nota-se, a partir dessa poca, os efeitos da maciasubstituio de trabalhadores estrangeiros por migrantes nacionais. Em segundolugar, ocorre uma mudana muito radical no modo de solucionar o problema dahabitao para os trabalhadores. No passado, o problema tendeu a ser resolvidopela iniciativa privada atravs das vilas operrias, da locao de cmodos ou decasas: A partir da Segunda Guerra Mundial, entretanto, que presenciou o

    congelaxnento dos aluguis e a emergncia de uma legislao que protegia oinquilino, esse tipo de investimento deixou de ser lucrativo. Abriu-se, ento,um novo negcio, a venda a prestaes de terrenos de baixo valor imobilirio,isto , aqueles distantes ou localizados em reas particularmente insalubres oude topografia desfavorvel, de difcil acesso, sem servios pblicos e,freqentemente, sem documentao legal.Vendeu-se, junto com os lotes, o sonho da casa prpria, que passou a seraspirao generalizada das classes populares. Seu resultado claramentevisvel: bairros de ruas irregulares, sem calamento nem iluminao, desprovidosde redes de gua e esgoto, sem escolas e postos de sade, com transporte difcile caro. As casas construdas aos poucos pelos prprios moradores, parecem sempreinacabadas. Todo esse processo j foi amplamente estudado em So PauloA criao desse sistema de moradia popular teve conseqncias imprevistas e nemsempre funcionais do ponto de vista da necessidade de reproduo da fora detrabalho para o capital. A maior parte dessas conseqncias prende-se a doisfenmenos inter-relacionados: a segregao e a imobilizao relativas dapopulao. A propriedade, mesmo ilusria, do terreno e o imenso esforo para aconstruo da casa constituem penosos investimentos a longo prazo - a populaose fixa assim de modo relativamente permanente no local, presa a um projetointerminvel. Por outro lado, como tende a ser semelhante o nvel de rendimentosdos que compram os terrenos, cria-se uma uniformidade relativa da populao,segregada pela distncia e pela dificuldade do transporte do resto da cidade.A uniformidade e a segregao relativas parecem favorecer o desenvolvimento deuma sociabilidade local que distingue essa populao das camadas mais abastadas.Para estas, as distncias so eliminadas pelo automvel e pelo telefone e a

    sociabilidade se exerce entre parentes e amigos dispersos pela cidade. A casa ouo apartamento, isolados e auto-suficientes, limitam um espao social que no

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    complementado pela vizinhana: Na periferia, ao contrrio, a vizinhana e obairro constituem locais privilegiados para a formao de redes desociabilidade.H ainda outras implicaes mais diretamente polticas dessa segregao efixao da populao de baixa renda. As pesquisas realizadas com segmentos osmais diferentes, indicam claramente que sua mobilidade espacial e ocupacional orientada em funo de um projeto familiar de melhoria de vida. Mas, se esse

    processo sempre pensado como de responsabilidade individual e ocorre tododentro da dimenso familiar privada, possui entretanto uma contrapartidapropriamente social. que a melhoria das condies de vida decorre tambm daurbanizao da periferia que permite o acesso, por parte da populao, aosservios pblicos urbanos: o asfaltamento e a iluminao das ruas, a guaencanada e o esgoto, a construo do centro de sade e da escola, a conduomais prxima e mais freqente. nessa esfera especfica do morar que o projetofamiliar de mobilidade social passa a ser uma referncia coletiva necessria,que provm do confinamento no bairro criado pelo investimento na casa. No s amelhoria do bairro beneficia a todos, mas no pode ser obtida atravs do esforoindividual. nesse momento e nesse contexto que a populao se torna receptivaa formas de organizao que permitam uma ao conjunta.

    Toda essa dinmica j foi amplamente estudada na cidade de So Paulo. Aproliferao das Associaes de Moradores, que reflete a especificidade dessaforma atravs da qual as classes populares se constituem como sujeitos polticosfoi ressaltada por grande nmero de pesquisadores. Entretanto, os processospropriamente culturais subjacentes a esta movimentao poltica ainda no foramsuficientemente esclarecidos. Por outro lado, a generalizao desse novo estilode urbanizao e de ao poltica nas cidades do interior do Estado est aexigir uma anlise que no se restrinja cidade de So Paulo e ao espaometropolitano, mas abranja centros urbanos menores. S assim se poder avaliar aamplitude, as caractersticas comuns e as variaes desse processo.A viso da cidadeNos ncleos urbanos pesquisados, todos de porte mdio, a viso que a populao

    mais pobre tem da cidade , no conjunto, positiva. Quando se formula umapergunta muito geral como "O senhor gosta daqui?", ou "O que acha da cidade?",as respostas so muito semelhantes e incluem um nmero limitado de padres dereferncia.As cidades mdias so consideradas boas para se morar porque so simultaneamentelimpas e tranqilas. A ausncia de violncia tambm apontada como uma dasvantagens, assim como a ausncia de correrias e atropelos. Nesse contexto, estsempre presente, implcita ou explicitamente, uma comparao com as grandescidades, cujo exemplo mais completo sempre a cidade de So Paulo. Esta caracterizada negativamente pela poluio, aglomerao, atropelo, violncia,dificuldade de locomoo.Como os depoimentos so muito semelhantes, um exemplo bastar para ilustrar otipo de resposta mais freqente. Diz um morador de Rio Claro: "Gosto daqui. Sevou numa cidade como Campinas, por exemplo, muito agitado, j no gosto. Ascidades grandes como So Paulo, Campinas, so agitadas. Em tudo, desde apoluio. Aqui tudo calmo, limpo".O conjunto de atributos mobilizados nessa viso comparativa, define avalorizao de um tipo de ordem que constituda pela superposio de trsplanos: espacial, social e moral.

    Ao lado desses atributos referentes ordem scio-espacial, encontramos um outroque diz respeito presena de "recursos". A palavra "recurso" tem um sentidoamplo e refere-se, basicamente, oferta de certos servios pblicos: em

    primeiro lugar, assistncia mdica, mas tambm escolas e transportes.Secundariamente, refere-se presena de equipamentos urbanos como gua, luz,esgoto, pavimentao. Finalmente, pode ainda incluir a existncia de um comrcio

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    rico, variado e diversificado. Quando a referncia so os "recursos", acomparao se desloca da cidade grande para a cidade pequena ou campo. Doisexemplos serviro para ilustrar este contexto: "Moramos dezesseis anos num lugardo Paran, numa fazenda de caf. Marlia melhor que l, l no tem recurso,no acha remdio de graa, a gente que pobre precisa. Aqui ganha leite eremdio no Posto (de Sade)"; "(Rio Claro) uma cidade de recurso, quando ascrianas ficam doentes fcil. Eu vou para a Santa Casa, para o Pronto-Socorro.

    Para ir para a cidade tem bastante conduo."Caracteriza-se assim uma nova oposio:

    Uma terceira referncia constante nos depoimentos diz respeito ordem econmicae se expressa na avaliao da facilidade ou dificuldade em se obter bonsempregos. Neste contexto, a comparao feita novamente com as cidades maiorese a condio desejvel de abundncia de bons empregos sempre associada grande indstria. Assim, Rio Claro e Marlia, apesar de serem consideradascidades muito boas, tm a desvantagem de oferecerem poucos empregos. Em SoJos, por outro lado, a grande oferta de empregos emerge sempre como acaracterstica mais positiva da cidade. As grandes cidades industriais como

    Campinas e So Paulo, apesar de agitadas, violentas e poludas, so valorizadaspelos empregos que oferecem. Nessa mesma linha de consideraes, as cidadespequenas esto ainda em maior desvantagem que as cidades mdias, oferecendomuito menos oportunidades de trabalho.No conjunto, essa viso da cidade que se poderia chamar de global, que semanifesta nas respostas e perguntas muito gerais, tende a se articular atravsda percepo de um eixo que dado pelo continuum rural-urbano. Este eixo, queabrange o campo, a cidade pequena, a cidade mdia e a grande metrpole, definido de forma bastante precisa porque, em geral, a populao possui umaexperincia muito prxima e recente de migraes ao longo do continuum que lhepermite, atravs da prpria histria familiar, construir os parmetros dessageografia urbana.Ao longo do continuum, as cidades so avaliadas em funo de duas dimenses ou

    duas ordens de atributos. As duas dimenses so muito ntidas e so gerais atoda a populao entrevistada. A primeira, bipartida, diz respeito qualidadedo espao urbano que deve aliar ordem e tranqilidade com a presena de"recursos" como servios mdicos, escolas, transportes, etc. A segunda se refere ordem econmica e se traduz na abundncia ou escassez de empregos bemremunerados, que so sempre associados presena ou ausncia de grandesindstrias.Em termos da primeira dimenso, a cidade mdia valorizada positivamente emrelao a ambos os plos do continuum, por combinar satisfatoriamente atranqilidade com os recursos. O campo e a cidade pequena so mais tranqilosmas no oferecem recursos. A cidade grande oferece recursos mas notranqilidade.No que diz respeito segunda dimenso, a oferta de empregos, as cidades maioresso sempre favorecidas. So Jos dos Campos aparece como a combinao ideal,pois oferece muitos empregos sem ter destrudo ainda a "tranqilidade" prpria,das cidades mdias. necessrio enfatizar um pouco a generalidade desse tipo de avaliao. Todas asentrevistas so extraordinariamente consistentes nos critrios que usam paraavaliar a cidade, embora possam variar no peso atribudo a um ou outro fator naescolha da cidade onde esto residindo ou desejariam residir. Assim, pode-sepreferir Rio Claro porque, apesar da dificuldade de emprego, apresenta avantagem de oferecer muitos recursos e ser tranqila. Ao contrrio pode-se optarpor uma cidade maior (como Campinas ou So Paulo), onde h maiores oportunidadesde emprego, apesar da ausncia de ordem e tranqilidade.Quando, por outro lado, analisamos os dados acumulados nas pesquisas realizadas

    sobre So Paulo, encontramos os mesmos tipos de referncia (Caldeira, 1984). Naavaliao da cidade, os moradores da periferia paulistana se referemconstantemente s oportunidade de emprego como a principal vantagem da cidade.

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    Aparecem tambm referncias aos "recursos", mas a valorizao menos uniforme,porque esto sempre presentes, a deficincia dos transportes e a ausncia deservios urbanos que caracterizam a periferia. A poluio e a violncia sofreqentemente citados como problemas da cidade. O que no uniforme em SoPaulo, a valorizao da calma e tranqilidade. Embora se encontre s vezes avalorizao das cidades menores em funo desses atributos, comum tambm oinverso - uma avaliao negativa das demais cidades, por serem "muito paradas"

    ou "no terem movimento". necessrio, entretanto, indicar que essas representaes a respeito da cidadeso, em geral, muito sintticas e tendem a se resumir em uma ou duas frases compoucas palavras. Ao contrrio, quando o discurso se transfere da cidade para onvel mais concreto do bairro, da casa, das perspectivas ocupacionais dosinformantes, amplia-se e se enriquece. ao nvel do vivido, das condiesespecficas de moradia e trabalho que as avaliaes da cidade adquirem seusentido prprio como orientao de vida e projeto de ascenso social.So esses, portanto, os grandes temas em torno dos quais o discurso se estende ese enriquece: o urbano, traduzido no bairro e na casa; o econmico, traduzido noemprego. So essas as questes em torno das quais se estrutura a experinciaimediata, as reas nas quais os cidados, como sujeitos", assumem posies e

    tomam decises sobre seu prprio destino e em termos das quais visualizam asforas sociais impessoais que aparecem como limites externos (criados de fora)que definem o campo no qual as decises so possveis.O bairro: a viso do progressoEm So Jos dos Campos, Marlia e Rio Claro, como em So Paulo e nas demaiscidades brasileiras em crescimento, a constituio da periferia um processoconstante. A populao mais pobre e os recm-chegados tendem a se localizar nasfmbrias da rea urbanizada, onde a ausncia de servios como luz, gua,iluminao, calamento, esgotos torna o solo mais barato e mais acessvel. A selocalizam as residncias mais modestas e os aluguis mais baratos. Com odecorrer do tempo h um aumento da densidade populacional e a Prefeitura tende aestender os servios pblicos, valorizando os terrenos. As residncias

    incompletas e precrias do incio do povoamento vo sofrendo uma srie dereformas, melhorias e ampliaes. A cidade engole a antiga periferia, que secria numa nova fmbria.Todo esse processo faz parte da experincia de vida da populao, que o assimilacomo parte das condies "dadas" dentro das quais realiza seu planejamento deuma estratgia de sobrevivncia e ascenso social. No conjunto, o processo caracterizado pela populao como "progresso da cidade", avaliado positivamentee utilizado como uma das formas de transformao da sociedade global que a podebeneficiar diretamente.A periferia, vista como processo pelos seus prprios habitantes, implicaportanto numa viso diferencial e histrica dos bairros da cidade e alocalizao dos habitantes nesse espao correlacionada com sua posio nasociedade e com sua perspectiva de melhoria progressiva dessa posio.As entrevistas so muito claras a esse respeito"Hoje tm umas casas boas, inclusive tem nego rico morando aqui. Tem umprofessor ali, outro l. No contando as casas dos pobres, tm vrias casasbonitas. Mas naquele tempo (incio do loteamento) dava vergonha. Era s maloca"(Rio Claro)."Antes no tinha luz, comprava gelo para a cerveja e ia ajeitando. Agora j temluz... Falta luz na rua, calamento, esgoto, mas pelo tempo deste loteamentoest adiantado, nos outros, demora mais. O prefeito aqui, a fiscalizao no nosatrapalhou nada. Todo mundo fez as suas casinhas e a fiscalizao noatrapalhou. O prefeito tem ateno pelos moradores" (So Jos dos Campos).Depoimentos muito semelhantes foram obtidos por diversos pesquisadores quetrabalharam em So Paulo.

    nessa avaliao do progresso que aparecem nitidamente os aspectos consideradospositivos da vida urbana."Este bairro aqui bom. Antes era mais quieto. Agora tem muita gente. Tem casa

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    boa, tem lojinha de roupa, aougue tem bastante, tem bastante casa de negcio.Antes no tinha nada. Tinha que ir comprar mais perto do centro. E no tinhanibus, no tinha luz, no tinha gua. gua at hoje, a bem dizer, no tem,porque eles desligam s 7 da manh e svai chegar s 4 da tarde, s vezes denoite... Agora deu no rdio que vai ter esgoto. Ento eu acha que vai ter quearrumar a gua. Tem que ser. Esgoto sem gua... (Rio Claro).O .processo to claro, que facilmente verbalizado e conta como investimento.

    H tambm uma clara hierarquia na avaliao desses "recursos" que corresponde,em geral, ordem em que normalmente so atendidos: em primeiro lugar, a luz,sem o que o mesmo que viver no "mato". Em seguida, a gua e o transporte.Depois a escola, o comrcio, os postos de sade. Por ltimo o esgoto, o asfaltoe a iluminao pblica.A populao conta com esse processo. Uma das famlias entrevistadas, em RioClaro, tinha acabado de construir uma casa na periferia mais distante. Mas, comol no tinha luz, alugou a casa, que era melhor, e continuou a morar pagandoaluguel numa casa pior, mas que tinha luz. Estava esperando a luz "chegar" nacasa prpria.

    O lote e a casa: a melhoria de vidaO processo se inicia pela compra do lote, prossegue com a construo parceladada casa e o mesmo que se encontra na periferia de So Paulo e j foiextensamente analisado nesta cidade.Conforme afirmou um dos donos de loteamento perifrico em Rio Claro, oimportante para vender que a prestao do lote seja menor do que o aluguel deuma casa. "A, para o sujeito j vantagem". Com o que estava gastando com oaluguel, "paga o que seu", s arranjar um dinheirinho para construir umbarraco, onde mora provisoriamente at poder ir melhorando a moradia, numinvestimento contnuo."Com o dinheirinho que trouxe de Ja paguei a entrada do terreno: Cr$ 30,00. Com

    o resto, comprei tijolo e telha. Fiz estes dois cmodos aqui e entrei dentro.Era baixinho, no tinha altura que est hoje. No tinha piso nem porta. Ganhamosuma porta e uns caixes. Com o caixo eu fiza janela. Era um barraco. De tijolo,mas era barraco. Fui trabalhando, fui melhorando. Subi a altura. Pagando na baseda amizade, da ajuda, mas sem compromisso. (Quer dizer, se algum ajudava aqui,quando eu estava folgado ia ajudar ele, mas no tinha obrigao.) Com dois anosconsegui deixar estes cmodos deste jeito. . Fiz mais um cmodo. Da ficouparecendo uma casinha". (Rio Claro.) (Destaque meu.)"Viemos, pagamos. Eu tinha umas tbuas, a gente podia morar no lote, mas nopodia construir ainda. Fiz um barraco de madeira, at que o guarda-roupa era aporta da frente. Era junho, era frio, e as paredes era s de coberta. Ficamosalie eu meti pau. Trabalhava de dia em construo e de noite e domingo era aqui Ens fomos construindo... Hoje (um ano depois) j tem tudo isso construdo (umbar e 5 cmodos). Trabalhou, tem coragem para trabalhar, consegue. Esperar quecair do alto no cai mesmo" (So Jos dos Campos)Todos os outros entrevistados, sem exceo, expressaram opinies semelhantes. Ogeral o relato da construo da casa por fases como o melhor exemplo de que ascoisas vo melhorando, devagar e sempre: h progresso, enfim.No que diz respeito casa prpria, as declaraes anteriores j indicaram queseu significado ultrapassa bastante o de um local seguro para morar. , por umlado, a prova de que possvel ascender; por outro, uma poupana e uminvestimento. Os terrenos valorizam, a casa pode ser ampliada e alguns cmodosalugados para garantir uma renda extra e, no limite, pode ser vendida para serealizar um outro projeto: comprar um stio no interior, estabelecer-se por

    conta prpria.A experincia de mais de uma casa no mesmo terreno freqente. A do fundo,normalmente a mais velha e precria, que se prolonga e melhora para a frente, ou

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    vice-versa. Nessas residncias mltiplas, os cmodos so alugados ou cedidos aparentes, geralmente, irmos ou filhos.O processo todo muito penoso e freqentemente exige o esforo prolongado detoda a famlia. Os filhos empregados ajudam o pai, vo casando e ficando,continuando a pagar, ampliando mais um ou dois cmodos separados para a novafamlia. Mas propriedade coletiva sempre cria problemas. Com a morte dos pais,os problemas de diviso da herana so fonte de muitos conflitos.

    O processo, portanto, no tem fim. Assim que termina a dolorosa via crucis dopagamento do terreno e da construo da casa dos pais, recoloca-se a necessidadede comear tudo outra vez para os filhos. A esperana que os filhos j estejammelhor de vida, tendo estudado e arrumado emprego melhor, podendo comear de umpatamar um pouco mais alto. Quem consegue realizar esta esperana, tendoempregado nela toda a sua juventude e maturidade considera que, na verdade,venceu na vida. O mesmo processo e as mesmas avaliaes so encontradas tanto emSo Paulo como nas demais cidades investigadas.H, portanto, em todo esse conjunto to consistente de avaliaes sobre acidade, o bairro e a casa, uma orientao bsica comum - o projeto de melhoriade vida. A crena na viabilidade desse projeto se apia na crena no progresso.A experincia das transformaes por que est passando a sociedade brasileira

    vista, em geral, de modo positivo, implicando numa abertura das possibilidadesde melhoria de vida da populao que pode aproveitar-se delas atravs doesforo. Essa experincia do progresso a experincia urbanizao, pensada comoum processo, concretizado na histria de vida, de acesso crescente a recursosurbanos: morar em casa prpria, em local asfaltado, iluminado, com gua, esgotoe conduo, perto de escolas e postos de sade.Toda essa construo de um modelo de vida decente e confortvel, que orienta osjulgamentos da populao sobre a sociedade e o lugar que nela ocupam est,entretanto, intimamente vinculada a uma valorizao da propriedade - no dosmeios de produo, mas do espao onde se desenrola sua vida, a casa. Nessesentido que se pode dizer que a propriedade valorizada duplamente privada:na forma jurdica e no objeto a que se refere (4).

    O empregoComo fica muito claro na exposio anterior, a populao sente que se beneficiadas vantagens da cidade no apenas na medida em que utiliza os "recursos" masprincipalmente na medida em que se torna proprietria de uma casa e o bairroonde mora "progride" e recebe melhoramentos.Mas tudo isso constitui apenas uma dimenso da cidade, porque a prpriapermanncia no local e a utilizao dos recursos urbanos depende de conseguiremum emprego. O problema do emprego est sempre presente e o discurso sobre estaquesto o mais articulado, o mais extenso e o mais uniforme. Na representaoda populao de Marlia e Rio Claro o problema do emprego aparece nitidamenteassociado ao do crescimento da populao.Os habitantes mais antigos tm uma viso "histrica" do problema:"Eu acho a cidade boa, mas acho que tem pouco emprego. Tenho um filho que teveque ir trabalhar fora por falta mesmo de emprego. Ele tem diploma, fez SENAI,tem tudo... E nem assim arranjou... " o que eu digo, nesta cidade, s faltamesmo indstria. Problemas de asfalto, de jardim, no tm no. Est tudobom".. " muita gente querendo trabalhar. A turma do stio veio toda para acidade. Por isso que falta servio. Isso de uns tempos para c. Teve uma leia que apertou muito os fazendeiros. Antes eles tinham os empregados nasfazendas e quando aposentava podia mandar embora. Agora, no, tem que ficar como empregado l dentro. Ento eles no querem mais empregados moradores. E o queaconteceu? Os empregados vieram morar na cidade e tm que tomar caminho para irtrabalhar no stio. Isto num ponto ajudou a cidade a crescer. Tiveram que fazerloteamento porque no comportava. Mas tambm, muitos que trabalharam no stio

    agora trabalham na cidade e assim o servio diminui" (Rio Claro).Estas entrevistas no so casos isolados. A noo de que em Rio Claro, emMarlia, o mercado de trabalho est saturado muito geral, aparece em quase

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    todas as entrevistas. Alm da migrao local e regional, aponta-se tambm agrande migrao interestadual do Paran, de Minas e do Nordeste ou Norte (que,na concepo popular, engloba a Bahia).V-se, portanto, que h uma ntida percepo da existncia de um mercado detrabalho. nessa compreenso do mercado de trabalho que est associada avalorizao da presena de indstrias que apontamos anteriormente. Na percepodas pessoas, apenas a grande indstria garante um mercado de trabalho favorvel

    mo-de-obra, oferecendo empregos mais bem pagos e aumentando o valor da forade trabalho. em todas as demais ocupaes."Pra ser boa para morar, uma cidade precisa ter indstria para pagar bem. E aquino tem" (Rio Claro)."Aqui em Martia a falta de emprego o que traz dificuldade." ... "Muitasindstrias que tinham servio para homem j foram embora. Temos agora, mas spara mulher" (Marlia).Tambm parece ser consenso geral que a soluo para o problema da falta deemprego seria no apenas a ampliao, mas a modernizao do parque industrial.No se valoriza igualmente qualquer indstria, mas especialmente a grandeindstria."O bom mesmo indstria, para dar mais emprego e ter um padro de vida

    melhor... Sem indstria, no tem emprego. Comrcio d emprego, mas pouco. Umaloja grande pega 15 empregados. E 15 e nada a mesma coisa. A cidade estcrescendo de todo o lado. A populao aumenta e a indstria no d trabalho(suficiente). Uma cidade para ter um bom desenvolvimento precisa ter indstriasde material pesado, como aquelas do ABC, que tm os metalrgicos. A sim.Indstria de 2.000, 3.000 empregados. Sem isso, no adianta aumentar apopulao. Aqui, h 7 anos atrs, tinha 50.000 habitantes. Hoje tem mais oumenos 130.000. No s os que vm de fora no. os que nascem tambm, quenasce muito mais do que morre. E ainda vem o pessoal do stio" (Rio Claro).Essa valorizao da grande indstria est presa percepo do mercado detrabalho estruturado em trs tipos de empregos: o de bia-fria; o emprego urbanoque paga salrio mnimo ou pouco mais e que constitudo pelas indstriastradicionais, pela construo civil e por um conjunto disperso de empregos pouco

    numerosos, como atendente de posto de gasolina, auxiliares de oficinasmecnicas, as ocupaes menos qualificadas do servio pblico e dos hospitais,alm da faixa dos biscates; e, finalmente, a indstria moderna, que paga melhor.Esse , de modo geral, o mercado de trabalho no qual a populao de baixaqualificao pode disputar empregos. Fora da, resta o caminho, em geral sonhadocomo carreira para os filhos, que passa pela escolarizao de nvel mdio ousuperior e que permitiria a passagem para o trabalho no manual ou manual dealta qualificao, ou outro, ainda mais difcil, de abrir um "negcio".A fbrica , em qualquer circunstncia, a referncia central. o critrio a seprivilegiar na procura de um emprego, mesmo para aqueles que no tm nenhumaqualificao pois, alm do salrio, oferece uma srie de garantias ou vantagens.A questo colocada com muita nitidez em So Jos dos Campos, onde o empregofabril abundante."A gente mora aqui porque depende da fbrica, o nico jeito de viver dependerda fbrica. Cidade pequena sem fbrica no d. Ele (o marido) profissional,mas depende de fbrica: se ele for trabalhar fora de fbrica, ganha a metade"(So Jos dos Campos)."Gosto mais de fbrica, j acostumei. Fbrica tem toda garantia, tem INPS,convnio, hospital... Prefervel fbrica: tem horrio pra chegar e pra sair, agente sabe que deu aquele horrio, acabou. No campo e de sapateiro no tmhorrio, tem que trabalhar de manh at de noite" (So Jos dos Campos).Como se v, para a populao das cidades mdias o problema muito claro. Osempregos urbanos mais acessveis pagam salrio mnimo, o que insuficiente parasustentar a famlia Como bia-fria ganham mais, mas o trabalho muito duro,incerto e no tem nenhuma garantia trabalhista. Por outro lado, o trabalho

    manual urbano melhor remunerado, aquele oferecido pelas indstrias modernas, pouco e exige qualificao. Agora, a soluo seria aumentar a oferta de trabalhomelhor remunerado, aumentando onmero de indstrias modernas. Isso permitiria

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    aproveitar toda a mo-de-obra com alguma escolaridade e qualificao, diminuindoa oferta de trabalho nos demais setores o que acarretaria o aumento de salriotambm nessas outras empresas e no setor rural, como ocorre em So Jos dosCampos. A soluo alternativa seria parar o aumento populacional.H inmeros depoimentos em que estas questes so colocadas com muita nitidez.Seria desnecessrio multiplicar os exemplos. Mas importante salientar que todaa discusso sobre o mercado de trabalho est integralmente permeada pela

    preocupao com o salrio Nota-se claramente que a riqueza do discurso sobreesse tema indica uma tentativa de compreender os mecanismos responsveis pelobaixo nvel salarial. Nesse contexto, aparece freqentemente uma referncia aovalor, no do trabalho, mas do trabalhador. Ela surge, por exemplo, na queixa deque "aqui o trabalhador no tem valor", ou na discusso sobre as vantagens parao mercado de trabalho que advm da presena da grande indstria, quando seafirma que "s assim o trabalhador ia ter valor". O salrio aparece assim, parao trabalhador, como expresso do valor que a sociedade lhe atribui e, portanto,como indicador objetivo da posio que ocupa na sociedade.A comparao com as pesquisas realizadas em So Paulo no pode ser direta, poiso material no equivalente. Com efeito, sobre o trabalho, as pesquisas vm seacumulando h anos e so muito mais amplas, extensas e minuciosas do que as

    informaes colhidas nas entrevistas que realizamos nas cidades mdias. Omercado de trabalho tambm muito mais amplo e complexo, o que se reflete nadiversidade das perspectivas ocupacionais e dos projetos profissionais. Masencontramos aqui tambm a valorizao da indstria moderna como elementodinamizador do mercado de trabalho (mesmo que as perspectivas ocupacionais sedirijam em outra direo) e a preocupao com o nvel salarial como expresso dovalor do trabalho. As pesquisas mais recentes, realizadas quando se anunciava aestagnao econmica, demonstram tambm a preocupao com a saturao do mercadode trabalho decorrente da continuidade do fluxo migratrio.Tanto num caso como em outro (cidades mdias e metrpole), dentro dos limitesestabelecidos pelo mercado de trabalho e o baixo nvel salarial, as solues sovariveis e, normalmente, encobrem toda uma estratgia familiar de distribuiode seus membros por diferentes tipos de ocupao, na tentativa de aumentar a

    renda da famlia para permitir o investimento na compra da casa. Paralelamente,h um esforo muito grande para garantir o "estudo" para os filhos, comomecanismo de aumentar o nvel de qualificao e assegurar uma posio maiscompetitiva no mercado de trabalho.

    O EstadoAs referncias ao Estado aparecem em contextos diferentes que dizem respeito adois nveis: o do Governo Federal e o dos poderes locais. Quando a conversaaborda os problemas do custo de vida e do nvel salarial, a questo semprereferida ao "Governo", que deveria tomar alguma providncia. No contexto, apalavra Governo sempre denota uma esfera mais distante do que os poderes locaise no h muita variao nos depoimentos colhidos em diferentes cidades: o"Governo" deveria controlar a inflao e fazer aumentar o salrio."A inflao est aumentando dia por dia. No adianta querer controlar ainflao. A situao est dura. No sei nem quem o culpado. Essa turma, unsfalam, criticam o Governo" (Rio Claro)."Para melhorar esse custo de vida, s osalrio, o salrio subindo. Porque agasolina sobe todo ms, o salrio no sobe, sobe uma vez por ano, mercadoriasobe doze vezes... A difcil. O que precisava melhorar o salrio, mas aquem d jeito o Governo... Se ele quiser pagar 10.000 ele fala, obrigado asfirmas pagar" (Marlia)."O custo de vida no tem jeito. Sempre foi assim e vai piorar mais ainda. Nstemos que consumir, no tem jeito. S se for todo mundo plantar. Mas a tambm oGoverno tinha de dar proteo" (Rio Claro).

    "O custo de vida sobe e o salrio no. Uma parte do custo de vida com oprprio morador, o dono da casa: tem que procurar comprar nos lugares maisbaratos. Aoutra parte com o Governo" (Marlia).

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    Em So Jos dos Campos, os depoimentos so semelhantes. O problema do custo devida visto no como prprio da cidade, mas geral, e da responsabilidade do"Governo".Em Rio Claro, cidade com tantos bias-frias, a questo do custo de vida tende aser relacionada com o xodo rural. "A obrigao do Governo seria fazer a turmaplantar, plantar mantimentos... O Governo devia comprar as fazendas dosfazendeiros e pr gente para plantar" (Rio Claro).

    O mesmo ocorre em Marlia: "Se o Governo resolvesse botar para produzir arroz,feijo, a no tinha esses aumentos" (Marlia).Entretanto, em nenhuma entrevista, surge qualquer expectativa de influir nesseGoverno to distante. No parece haver nenhuma mediao entre esse nvel deEstado e a populao em geral, a exterioridade completa. O discurso vago evazio.Por outro lado, no contexto que diz respeito aos rgos pblicos que atuam nonvel municipal e, especialmente, a Prefeitura, as expectativas so maisconcretas e as relaes com a populao percebidas com mais clareza. Asreferncias Prefeitura sempre aparecem na discusso dos problemas do bairro eapresentam maiores diferenas de cidade a cidade que derivam do contexto urbanoespecfico.

    O que geral nessas expectativas e na concepo dessas relaes que todosesses rgos so designados sempre como "eles". Define-se claramente aexterioridade dos rgos pblicos e nem mesmo os vereadores ou prefeitos soconcebidos como seus representantes por essa populao. Entretanto, esto maisprximos do que o distante "Governo". As pessoas conhecem o prefeito e aPrefeitura, tm uma idia do que fazem ou deixam de fazer.H, entretanto, alguma variao na concepo das atribuies da Prefeitura, edos demais rgos que atuam no nvel municipal (CESP, DRE, SABESP). Na visomais generalizada, a Prefeitura a responsvel por todos os servios urbanos.Mesmo quando se reconhece que os rgos responsveis no so da Prefeitura, oprefeito que deve providenciar os melhoramentos pblicos."Aqui no bairro falta um bocado de coisa, principalmente o esgoto. Mas a genteno pode fazer nada Depende do prefeito, dos vereadores, daquela gente de l"

    (Rio Claro)."Eu ouvi no rdio que agora vem esgoto. E tambm que vai passar asfalto na ruado nibus. Ele (oprefeito) fez essa promessa. Faz tempo que ns estamos pedindo,fazendo abaixo-assinado" (Rio Claro).Quanto crena na eficcia da presso popular, dos pedidos e dosabaixo-assinados, h muita variao:"A cidade precisa sempre de muitas coisas. Se a gente vai deixando e a cidade muito grande, tem muitas regies, no d para a Prefeitura fazer tudo. Tem guedividir. Ento a gente tem que pedir"... "Agora, o mais certo na cidade que aPrefeitura faz tudo conforme a gente pede. Veja o show do meio-dia, no rdio. Acidade pede e ele d" (Rio Claro).Por outro lado, h atitudes mais cticas ou mesmo de descrena:"O prefeito antes vinha muito aqui. Agora nem vem mais. Eu no falo que noentendo nada. Mas a turma de l, fala mal dele - que nem esse esgoto a - dizque s promessa" (Rio Claro).De qualquer modo, como a Prefeitura considerada a grande responsvel pelacidade, como a viso da cidade e do seu crescimento ordenada em termos de umaviso de progresso, a Prefeitura, de qualquer modo, adquire alguma legitimidade.

    Alm da responsabilidade pelos servios pblicos, cabe tambm Prefeitura zelarpelo bem-estar da populao. Desse modo, a crena geral, j indicada, de que asoluo do maior problema da cidade, que a falta de emprego, s poder serfeita pela instalao de indstrias modernas, tambm considerada atribuio daPrefeitura. O prefeito e os vereadores deveriam atrair indstrias.Cabe ainda ressaltar que a relao entre Prefeitura e populao definida em

    termos de dar de um lado, pedir de outro. A populao pede. O prefeito d ou nod e julgado de acordo. Cabe Prefeitura fazer. Alguns acham que est fazendobastante, outros que no est fazendo nada ou muito pouco.

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    Tambm h a noo de que o prefeito faz mais pelos bairros centrais, mas,normalmente quando avaliam a atuao dos rgos municipais, as pessoas o fazemestritamente em relao ao seu bairro e no em termos da cidade em geral. assim, indiretamente, que aparece o problema das diferenas de classe na cidade,de seus interesses divergentes e de sua separao: na estratificao espacial ena identificao do ns como aqueles que ocupam um mesmo lugar na hierarquia dosbairros e das vilas.

    Em So Jos dos Campos, por outro lado, as referncias Prefeitura so maiselogiosas. A idia que a Prefeitura est fazendo o que deve, atendendoprogressivamente as reivindicaes legtimas da populao."So Jos no uma Prefeitura rica: ela vem sendo bem administrada. A idia doprefeito a de que exista o centro e existam bairros, cada um com tudo queprecisar. Isso alis, o padro internacional. O padro que exista uma escolaem cada bairro. As vezes, quando no d para construir a escola direito, fazquebra-galho, faz modulado"... (So Jos dos Campos).Essa expectativa de atendimento gradual que parece estar sendo preenchida emSo Jos e explica o fato de no termos encontrado nessa cidade, ao contrrio deMarlia e Rio Claro, movimentos reivindicativos. Num dos bairros, um movimentoiniciado para obter luz extinguiu-se antes de se consolidar com o atendimento da

    reivindicao.Em suma, em So Jos dos Campos, a atuao da Prefeitura parece estar maisprxima daquilo que a populao considera ser seu papel.Aqui, mais uma vez, embora no seja possvel uma comparao direta com aspesquisas feitas em So Paulo, que se orientam em geral em outra direo,encontramos ntidas correspondncias com os discursos comuns na periferiapaulistana: a relao mais direta e mais reivindicativa com a Prefeitura, aoposio entre pedir e conceder (s vezes transformada num exigir e obter). "OGoverno", tambm em So Paulo, assume a posio distante e inatingvel, sendoresponsabilizado pelo aumento do custo de vida e pela diminuio do salrio.Mas, obviamente, com uma presena sindical mais forte e atuante, com a presenamais marcada da nova Igreja e, recentemente, a emergncia do PT, as situaes se

    diversificam e o discurso s vezes se altera, indicando maior politizao. Noconjunto entretanto, ainda predominam as concepes e formulaes queencontramos nas cidades do interior.

    ConclusesOs resultados de uma pesquisa exploratria como esta seriam em si muito poucosignificativos se no fosse pela extrema uniformidade dos resultados obtidos porequipes diferentes de investigadores trabalhando independentemente em cidadesdiversas. Mais ainda, os julgamentos e avaliaes dos moradores das periferiasdas cidades mdias so muito semelhantes queles revelados por pesquisas que vmsendo feitas na cidade de So Paulo nos ltimos anos.Resultados diferentes desses que obtivemos vm sendo revelados apenas pelaspesquisas mais recentes realizadas na periferia paulistana. Com efeito, nessestrabalhos, alguns dos quais ainda em andamento, tem-se notado um pessimismocrescente, uma crtica mais acerba e uma tenso que no so aparentes naspesquisas mais antigas nem nos dados que coletamos nas cidades menores. Alis, asimples observao direta das periferias de So Paulo e das outras cidadesrevela muito claramente a maior deteriorao das condies de vida da populaopobre paulistana. Os bairros perifricos de Marlia, Rio Claro e So Jos dosCampos esto longe de suscitar a mesma impresso de misria, poluio eamontoamento da populao que to visvel em So Paulo. Tambm nas cidadesmenores muito menos ntido o contraste entre os excessos de riqueza e depobreza que a cidade de So Paulo exibe acintosamente. Por isso mesmo, a crenaem que a melhoria das condies de vida pode ser conquistada atravs do esforo

    pessoal e da colaborao familiar parece estar se esvanecendo mais rapidamentena metrpole do que nas cidades menores.O estudo comparativo dos resultados de muitas investigaes parece assim

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    revelar, simultaneamente, a generalidade de uma certa representao da sociedadee o incio de sua transformao. Usando o material disponvel, possvel tentarconfigurar, de modo um pouco mais preciso, essa interpretao da realidadesocial que tem conformado a prtica popular e que parece estar em vias de sealterar.A anlise dos depoimentos mostra, de forma muito clara, que essa viso de mundose estrutura em termos de duas dimenses independentes mas articuladas - uma diz

    respeito vida privada e vista como dependente diretamente da iniciativa e dareponsabilidade de cada um; outra, que chamaremos pblica, compreende, de umlado, a sociedade propriamente e, de outro, o Estado. A articulao entre essasdimenses estabelecida pela compatibilidade entre crenas e valores quecaracterizam cada uma das dimenses: na vida privada, a crena na possibilidadede melhoria de vida; na sociedade, a crena no progresso; no Estado, a esperanade justiasocial.Ao nvel da vida privada situam-se, complementarmente, o indivduo e a famlia.O discurso que revela o indivduo , basicamente, aquele que se refere aotrabalho, ao problema do emprego. Nesse discurso, a nfase colocada sempre nanecessidade do esforo individual como instrumento indispensvel para se"melhorar de vida".

    Por outro lado, o trabalho individual remete dimenso social do mercado detrabalho, apreendido sob a categoria "ter ou no ter emprego", sempre presentede forma muito marcante no discurso dos informantes. O mercado de trabalhoconstitui-se claramente, para essa populao, como forma bsica de apreenso dasociedade, marcada pela sua exterioridade em relao capacidade de ao dostrabalhadores. O mercado de trabalho compreendido como um dado da realidadecom o qual as pessoas devem lidar, mas que no podem alterar. A natureza dessemercado de trabalho determinada pela grande indstria, cuja presena ouausncia estabelece, na viso dos trabalhadores, as oportunidades de emprego.Por outro lado, o prprio uso do termo "emprego" para caracterizar esse aspectoda realidade social muito significativo, pois como categoria, compreende,simultaneamente,tanto a quantidade como a qualidade das posies existentes nomercado de trabalho, como o nvel salarial que permitem alcanar. Desse modo,

    referindo-se estrutura impessoal do mercado, relaciona-a imediatamente,atravs do salrio, s condies de vida, expectativas e vivncias dotrabalhador.Pertence tambm dimenso da vida privada a famlia. A importncia da famliacomo elemento bsico de organizao do modo de vida das classes populares estamplamente documentada em todos os depoimentos. Nota-se tambm que asreferncias famlia esto constantemente associadas ao consumo. Ao contrriodo trabalho, que possui uma referncia individual necessria, o consumo essencialmente familiar, exigindo a reunio das contribuies de diferentesmembros do grupo domstico. A famlia aparece assim como unidade de rendimentos,unidade de consumo e lugar da diviso sexual do trabalho. A contrapartida socialdo universo privado da famlia , portanto, o mercado de consumo, isto , aoferta de bens e servios colocados disposio dos compradores. A compreensoda natureza desse mercado est contida na referncia constante ao custo de vida.Como os termos "ter emprego" e "salrio", o "custo de vida" refere-se,simultaneamente, impessoalidade do mercado e s condies de vida pessoais econcretas. Em funo do "custo de vida", a organizao privada da vida familiarse faz em termos de poupana e sacrifcio.Nessa perspectiva, asociedade, como realidade exterior vida privada, aparececomo mercado, na dupla face de mercado de trabalho e mercado de consumo.Temos assim um conjunto inicial de categorias articuladas que estruturam apercepo da realidade social. Colocando entre parnteses os termos introduzidospelo investigador para diferenci-los das categorias empregadas pela populao,podemos construir o seguinte quadro:

    Note-se que a famlia desempenha um papel-chave nessa articulao uma vez que,colocando seus diferentes membros como indivduos no mercado de trabalho e

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    reunindo os diferentes rendimentos assim obtidos para o consumo comum, constituia instncia na qual so mutuamente referidos o salrio (obtido individualmente)e o custo de vida (que condiciona o consumo coletivo). Alm disso famliapropriamente que se aplica o projeto de "melhoria de vida", pensado comoprocesso intergeracional e que exige a qualificao crescente dos trabalhadores.Note-se que essa qualificao sempre apresentada como sendo de

    responsabilidade privada do trabalhador e de sua famlia. na famlia,portanto, que se articulam as referncias ao mercado de trabalho e ao mercado deconsumo, a dimenso privada e a social na relao necessria entre salrio ecusto de vida.O projeto de melhoria de vida que organiza a atividade individual e familiarparece se concretizar de modo muito marcante na casa prpria. Resultado dotrabalho e dos esforos dos indivduos, do sacrifcio e da poupana de toda afamlia a casa prpria constitui, por assim dizer, a sntese da dimenso privadada vida social. Mais ainda, a casa, momento muito rico do discurso, aparece comoobjetivao do nvel de melhoria de vida atingido. Sendo espao privilegiado davida privada, a casa tem como contrapartida, na dimenso da sociedade, os

    servios urbanos: gua, luz, asfalto, iluminao pblica, transporte, escolas epostos de sade. O envolvimento da casa pela urbanizao do bairro constituiassim a face social da melhoria de vida concretizada na casa. A "melhoria devida" se realiza portanto atravs de dois modo complementares. De um lado, peloacesso dos indivduos, graas ao seu esforo, a bons empregos que permitem, coma poupana (sacrifcio) da famlia, a construo da casa prpria. De outro, peloacesso crescente aos benefcios urbanos. O progresso da sociedade que garante apossibilidade de melhoria da vida privada consiste no processo de ampliao domercado de trabalho e no acesso ao mercado de consumo determinados pelaindustrializao e na oferta crescente de servios urbanos populao.Nosso quadro inicial pode ser agora ampliado:

    Algumas observaes adicionais podem ser feitas em relao a esse esquema. Em

    primeiro lugar, deve-se considerar que a apreenso da sociedade (em oposio vida privada) dominada pela percepo do mercado em sua dupla dimenso de"oportunidades de emprego - custo de vida". Trata-se, portanto, propriamente, da"sociedade civil" na sua acepo clssica, concebida aqui como exterior aoindividual, como "dado" que configura os parmetros dentro dos quais as pessoas(nas famlias) devem procurar suas possibilidades de melhorar de vida. Emsegundo lugar necessrio mostrar que a importncia crucial da crena na"melhoria de vida" e no "progresso" como elementos estruturantes da percepo dasociedade e da prtica indica menos uma viso esttica da morfologia social quea apreenso de um processo. Esse processo corresponde sntese do modo peloqual as pessoas viveram as transformaes da sociedade brasileira, centradas nobinmio industrializao urbanizao.Finalmente, devemos observar que a insatisfao crescente que se vem observandoultimamente na periferia paulistana decorre, basicamente, da inviabilidadecrescente da realizao da sonhada melhoria de vida, dada a estagnao doprocesso. A crise econmica com seus corolrios de desemprego, diminuio darenda familiar e aumento do custo de vida esto desestruturando todo o esquemaem funo do qual as classes populares organizaram sua prtica social nasltimas dcadas.Resta ainda analisar, dentro deste esquema, o lugar e as funes atribudas aoEstado. Os poderes pblicos aparecem no discurso popular em dois momentosbastante distintos e de modo bastante diverso.O primeiro momento, e o mais ntido, est associado ao discurso sobre o bairro ea cidade. Nesse contexto so mencionados sempre os poderes locais (basicamente a

    Prefeitura, mas tambm o governo estadual), como responsveis pela oferta dosservios pblicos: gua, luz, asfalto, iluminao pblica, transporte, escola,posto de sade, posto policial. Nas cidades menores os detentores do poder local

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    so conhecidos e identificados. Existe tambm uma percepo definida dapossibilidade de presso e reivindicao popular. Os mecanismos conhecidos eaceitos de reivindicao coletiva so o abaixo-assinado e a concentrao demoradores no prdio da Prefeitura ou o contacto direto de pessoas ou comissescom o prefeito.Note-se que esse tipo de ao coletiva, embora no dispense lderes,organizadores e mediadores, embora tanto possa surgir espontaneamente como ser

    suscitado por grupos polticos organizados de fora, implica sempre numaconfrontao direta da populao em seu conjunto com os detentores dos poderespblicos. Em outras palavras, admite antes organizadores e porta-vozes do que,propriamente, representantes. Trata-se portanto de uma ao poltica de tipomuito primrio que, confrontando "o povo" de um lado e "as autoridades" deoutro, afirma a exterioridade destas em relao quele.O outro momento no qual o discurso popular se refere ao Estado aquele no qualse menciona uma entidade vaga e mal definida denominada "Governo". A entidade"Governo" muito mais nebulosa que os poderes locais - no tem uma facediscernvel, embora s vezes se personifique na figura do Presidente daRepblica. A palavra Governo refere-se basicamente aos poderes pblicos federaise, dentre esses, especialmente ao Executivo As consideraes sobre o Governo

    surgem no contexto das consideraes sobre o emprego e o custo de vida,esperando-se dele que aumente um e diminua outro Sua funo parece portanto serconcebida, essencialmente, como a de controle dos interesses privados na esferado mercado, de modo a coibir a explorao excessiva dos pobres ou "fracos" pelosricos e poderosos. Essa concepo de Governo o constitui como uma entidade acimadas classes e fora da sociedade e que possui uma funo de justiasocial. Dessemodo, se a esfera do mercado aparece na independncia da sociedade civil, elapode e deve ser controlada pelo Estado no interesse do bem comum. Essa concepo certamente reforada pelo fato de que os momentos nos quais a populao sentea ao direta do Estado (ou sua omisso) referem-se fixao do salrio mnimoe ao estabelecimento do controle dos preos. Por outro lado, a relaoinstitucional com os poderes pblicos federais se d quase que exclusivamenteatravs do INPS e remete noo dos "direitos" dos trabalhadores.

    O que cabe ressaltar nessa imagem do Governo exatamente sua completaexterioridade face populao Em primeiro lugar, como se ignoram os mecanismosinstitucionais de ao governamental na esfera do controle do mercado, essa aoaparece sempre como um ato puro de vontade e poder. Acredita-se apenas que oGoverno pode e sabe como faz-lo. Por vezes a presso resultante do excesso deoferta de mo-de-obra no mercado de trabalho resulta na concepo de que ainterferncia governamental deve se dar no sentido de conter o fluxo migratriopara as cidades, facilitando o acesso do trabalhador rural terra. Desse modose conseguiria, simultaneamente, diminuir a oferta de mo-de-obra no mercado detrabalho e aumentar a oferta de alimentos, diminuindo o custo de vida. Outrasvezes, exige-se do Governo uma ao puramente repressiva, coibindo "abusos". Deum modo ou de outro, pensa-se como funo do Governo o controle, o estmulo e oplanejamento das atividades produtivas no interesse do bem-estar coletivo;paralelamente, cabe ao Governo contrabalanar as diferenas sociais, assistindoa populao pobre e assegurando-lhe direitos ( assistncia mdica e aposentadoria, especialmente).A exterioridade do Governo se manifesta tambm na ausncia de mecanismosinstitucionais reconhecidos de ao ou presso, sobre o mesmo. Os recursospolticos que a populao costuma utilizar, o abaixo-assinado e a concentraopopular na presena de autoridade, teis ao nvel local, so inaplicveis einoperantes face a esse Governo to distante, como o atesta sobejamente omovimento do custo de vida. No existem concepes referentes a um sistema derepresentao que estabelecesse a mediao entre o povo e esse nvel do Estado.Nesse sentido, pode-se dizer que o desmantelamento do sistema de eleies paraos cargos executivos, promovido pela revoluo de 64, destruiu efetivamente os

    mecanismos atravs dos quais as classes trabalhadoras podiam conceber umarelao poltica com o poder central que ficou, dessa forma, fora do alcancetanto do saber quanto do poder popular. Nessa anlise, centrada no morador, no

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    bairro e na cidade, omitiu-se uma relao importante com a sociedade e o Governoque se efetiva atravs do sindicato. H que observar, entretanto, que asconsideraes sobre as oportunidades de emprego, surgiram espontaneamente nasentrevistas, mas o mesmo no ocorreu com o movimento sindical. De qualquerforma, seria importante complementar essa reflexo, em outro momento, com umaanlise mais aprofundada das concepes acerca do sindicato.O esquema anterior, montado em funo da dicotomia vida privada-sociedade, pode

    ser agora completado com uma nova dimenso : a do Estado.

    Para concluir, convm indicar que, se a exterioridade e inacessibilidade doGoverno no destruiu sua legitimidade enquanto se manteve a crena no progressoe na viabilidade de projeto de melhoria de vida, a crise econmica que ameaaesse projeto parece levar a populao a buscar mecanismos de manifestao de seudescontentamento e desespero A crescente agitao poltica incentivada peloprocesso eleitoral constitui ocasio privilegiada para a manifestao dodescontentamento e, portanto, para a emergncia de novas formas de ao polticacuja necessidade parece ser difusamente sentida por todos.O esquema interpretativo preliminar que apresentamos certamente demasiadosimplificado para dar conta de todas as nuances e contradies da imagem da

    sociedade construda pelas classes populares. Alm de no incluir a dimensosindical e partidria, que no aparecem espontaneamente no discurso, mascertamente fazem parte do universo de referncia dessa populao, haveria aindaque analisar as referncias ao INPS, que estabelecem outra conexo entre a vidaprivada e o Governo. Tambm bvio, no inclumos outras dimenses importantesda vida privada e pblica, como o lazer e a religio. Mas acreditamos que, mesmoassim, esta tentativa de uma anlise mais global dos pressupostos que informam aprtica poltica das classes populares oferece um ponto de partida para areflexo mais globalizante, que supere o particularismo das monografias.

    Texto recebido para publicao em abril de 1986

    NOTAS1 - A bibliografia contm principais trabalhos utilizados sobre a cidade de SoPaulo. H tambm uma rica etnografia sobre a cidade do Rio de Janeiro, que noexaminamos sistematicamente e que, por isso mesmo, citada na bibliografiaapenas de forma indicativa. Por outro lado, muito do conhecimento sobre aperiferia de So Paulo provm de pesquisas no publicadas, ou publicadasparcialmente, que foram ou esto sendo realizadas por alunos sob a orientao deRuth C.L. Cardoso ou minha.2 - O grupo de pesquisadores, coordenado por Ruth C. L. Cardoso incluiu TeresaP. do Rio Caldeira, Jos Guilherme Cantor Magnani, Elizabeth Bilac e eu mesma.Agradeo a todos a permisso de utilizar o material da pesquisa para esteartigo, assim como a contribuio que deram, nos inmeros seminrios querealizamos, para a sistematizao das idias aqui expostas.3 - A seleo das cidades foi feita de modo a incluir regies diferentes doEstado e tipos diversos de urbanizao. Optou-se, nesse processo, por trscidades:So Jos dos Campos, por representar um ncleo urbano em expanso aceleradaprovocada pela concentrao de grandes indstrias.Rio Claro, como cidade de antiga tradio operria, ligada presena dasoficinas da Cia. Paulista de Estradas de Ferro e a pequenas indstrias de tipotradicional. Essa cidade apresenta, alm disso, a caracterstica de se localizarnuma das regies agrcolas mais desenvolvidas e produtivas do Estado, reunindoaprecivel contingente de bias-frias.Marlia constitui, ao contrrio das outras cidades, um ncleo urbano deformao muito recente, tendo sido uma das mais clebres cidades pioneiras na

    dcada de 30. A indstria que se formou na cidade, presa transformao diretade produtos agrcolas regionais, est sendo desativada e a populao estdiminuindo. So Jos e Marlia foram pesquisados por uma equipe,Rio Claro por

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    outra. Nas trs cidades o procedimento foi o mesmo: levantamento sucinto da histria do desenvolvimento da cidade, a partir defontes secundrias;entrevistas com informantes qualificados (socilogos e pesquisadores quetrabalham na cidade, lideres polticos e sindicais, habitantes consideradosconhecedores da cidade);mapeamento do crescimento recente da cidade e localizao da nova periferia;

    reconhecimento de toda a zona perifrica para identificao visual dascaractersticas espaciais aparentes;seleo de bairros diferenciados para a realizao de entrevistas;entrevistas informais com lderes locais e habitantes contatados em postos desade, bares, etc.; entrevistas formais gravadas nas residncias com habitantes do bairro.Em So Jos foram estudados 4 bairros e realizadas 28 entrevistas gravadas. EmRio Claro, foram feitas 14 entrevistas gravadas em 3 bairros. Em Marlia, oestudo abrangeu 3 bairros e 24 entrevistas. (As. entrevistas informais no estoincludas nesta relao.)Foram elaborados relatrios de pesquisa sobre cada uma das cidades estudadas eum trabalho especial foi preparado por Teresa Caldeira a partir da pesquisa

    bibliogrfica da cidade de So Paulo.4 - H ainda uma observao que se faz necessria sobre os conjuntoshabitacionais do BNH. O ingresso nesse sistema no altera radicalmente odiscurso. Em primeiro lugar porque, construdos geralmente em local distante,implicam igualmente na expectativa de que o progresso chegue ao bairro, com aurbanizao dos vazios e o aumento da oferta de servios pblicos. Depois,porque todo o discurso sobre o esforo e o sacrifcio se alteram muito pouco -referem-se prestao da casa, em vez da do lote, e reforma, em vez daconstruo inicial. Com efeito, a necessidade de fazer o muro que cerca oterreno aparece para a populao como uma primeira necessidade que se segue mudana. Depois, comea o processo de ampliao (que se inicia sempre pelacozinha) e embelezamento das fachadas. Com isso, nos conjuntos mais antigos, auniformidade original desapareceu quase que totalmente, o que a populao

    valoriza muito (aqui j no parece BNH).

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  • 8/7/2019 Durham_sd_sociedade Vista Da Periferia

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