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Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VIII – Número VII – Janeiro a Dezembro de 2012
Duração e Sucessão: as Dimensões do Tempo no Romance de Marcel Proust
Duration and Succession: The Dimensions of Time in the Novel by Marcel Proust
André Paes Leme
1 – Universidade de São Paulo
Resumo: O presente artigo tem por escopo analisar as relações entre a redescoberta do tempo
perdido e a criação estética no romance proustiano. A imagem da morte de Bergotte nos
servirá de ponto de partida para a reflexão sobre o papel da arte na concepção temporal de
Proust. A partir da teoria dos signos, proposta por Gilles Deleuze, buscaremos reconstituir a
história da vocação do narrador à literatura. Tal reconstituição nos permitirá iniciar uma
discussão sobre as relações entre o tempo perdido e a realização artística. Entreveremos como
apenas uma concepção renovada de temporalidade é capaz de inserir o herói na “experiência
da narrativa”. Essa concepção renovada do tempo, que, na Recherche, identificaremos a
partir dos episódios da memória involuntária em O Tempo Redescoberto, tentaremos associar
à idéia bergsoniana de duração. Se a duração é o tempo proustiano da narrativa, esse artigo
caracteriza-se pelo esforço em mostrar como a realização da obra de arte, ainda assim, só
pode se efetivar através de um poderoso embate contra a potência trágica de nossa concepção
inicial do tempo, isto é, o tempo devastador, em que a sucessão dos instantes subsume sua
própria duração.
Palavras-chave: Arte, Duração, Memória, Tempo.
Abstract: The scope of this paper is to analyze the relationship between the rediscovery of
lost time and the aesthetic creation in proustian novel. The image of Bergotte’s death will be
the start point for a reflection about the role of art in temporal conception of Proust. The
theory of signs, proposed by Gilles Deleuze, is the way to reconstruct the history of the
narrator’s vocation to literature. This reconstruction will allow start a discussion about the
relationship between the lost time and the artistic achievement. This will make it clear as
only a renewed conception of temporality is able to insert the hero in “experience of
storytelling.” This renewed conception of time appears in the Recherche at the episodes of
involuntary memory in The Time Regained. Our attempt is identify it with the Bergon’s
concept of duration. If the duration is the Proust’s time of narrative, this paper is characterized
by the endeavor to show how the realization of the artwork, yet can only be effective through
a powerful struggle against the tragic power of our initial conception of time, the
time devastating in that the succession of moments subsumes its own duration.
Keywords: Art, Duration, Memory, Time.
Vê como nasce para ti o tempo e verás como nasce tudo.
Fichte
1 Graduando – Filosofia/ USP – E-mail: [email protected] / Orientador: Profº Dr. Ricardo Nascimento
Fabbrini
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á pelo menos uma intuição que certamente não escaparia ao leitor atento
do monumental ciclo romanesco que compõe Em Busca do Tempo Perdido. O herói-narrador2
se vê diante dela e a coloca para si como uma questão - muitas vezes dolorosamente - durante
praticamente todo o seu percurso. Essa intuição, de acordo com Bergson, pode ser descrita
como uma espécie de percepção direta e profunda de si mesmo, pois “há uma realidade, ao
menos, que todos apreendemos de dentro. É nossa própria pessoa em seu fluir através do
tempo. É nosso eu que dura”. (SILVA, 1994, p.117). No caso do herói-narrador da
Recherche3 essa intuição se apresentará durante muito tempo sob as vestes de um desejo: “o
desejo de escrever. O desejo de ser um escritor. A grande obra proustiana é antes de tudo o
desejo de escrever um livro”, conforme nota Leda Tenório da Motta (MOTTA, 1990, p.439).
Há uma passagem da Recherche que nos parece essencial para introduzir a discussão sobre o
papel da obra de arte na redescoberta do tempo perdido. Trata-se do trecho em que o herói-
narrador descreve a morte de Bergotte, personagem-escritor que de alguma forma influencia o
caminho do herói-narrador até a feitura de seu livro:
Morreu nas circunstâncias seguintes. Por causa de uma crise de uremia sem maior
gravidade lhe haviam prescrito o repouso. Lendo, porém, num crítico, que na Vista
de Delft de Vermeer (emprestado pelo museu de Haia para uma exposição
holandesa), quadro que ele apreciava muitíssimo e julgava conhecer em todos os
pormenores, havia um panozinho de muro amarelo (de que não se lembrava) tão
bem pintado que era como uma preciosa obra de arte chinesa, de uma beleza
completa em si mesma, Bergotte comeu umas batatas, saiu de casa e entrou na
exposição. Logo nos primeiros degraus que teve de subir sentiu umas tonteiras.
Passou em frente de alguns quadros e teve a impressão de secura e da inutilidade de
uma arte tão factícia que não valia as correntes de ar e de sol de um palazzo de
Veneza, ou de uma simples casa à beira-mar. Enfim chegou diante do Vermeer, de
que se lembrava como sendo mais luminoso, mais diferente de tudo o que conhecia,
mas onde, graças ao artigo do crítico, reparou pela primeira vez numas figurinhas
vestidas de azul, na tonalidade cor-de-rosa da areia e finalmente na preciosa matéria
do pequenino pano de muro amarelo. As tonteiras aumentavam; não tirava os olhos,
como faz o menino com a borboleta amarela que quer pegar, do preciso panozinho
de muro. ‘Assim é que eu deveria ter escrito, dizia consigo. Meus últimos livros são
demasiado secos, teria sido preciso passar várias camadas de tinta, tornar a minha
frase preciosa em si mesma, como este panozinho de muro’. Não lhe passava, porém
despercebida a gravidade das tonteiras. Em celestial balança lhe aparecia, num prato
a sua própria vida, no outro o panozinho de muro tão bem pintado de amarelo.
2 É praticamente consensuada entre os mais diversos intérpretes da obra proustiana a existências de, ao menos,
três vozes que se alternariam no interior da Recherche: a do herói que vive suas desventuras, a do narrador que
as relata em um momento posterior, além da do próprio Proust, cujo estilo está impresso em toda a extensão do
ciclo de romances. 3 À la recherche du temps perdu (título original em francês).
H
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Sentia Bergotte que imprudentemente arriscara o primeiro pelo segundo. ‘Não
gostaria nada, disse consigo, de vir a ser para os jornais da tarde a nota sensacional
desta exposição’.
Repetia para si mesmo: ‘Panozinho de muro amarelo com alpendre suspenso,
panozinho de muro amarelo’. Nisso deixou-se cair subitamente, num canapé
circular; subitamente também, cessou de pensar que estava em jogo a sua vida e,
recobrando o otimismo, disse consigo: ‘É uma simples indigestão causada por
aquelas batatas mal cozidas, não há de ser nada’. Nova crise prostrou-o, ele rolou do
canapé ao chão, acorreram todos os visitantes e guardas. Estava morto. Morto para
sempre? Quem o poderá dizer? (PROUST, 2009, p. 172).
Que tipo de significado, ao mesmo tempo sutil e desconcertante, haveria por trás
daquele “panozinho de muro amarelo” que tanto encantara Bergotte em seus momentos
derradeiros? Mais que isso, qual a relação que poderia se esboçar entre o efusivo
encantamento provocado por aquele pequeno pedaço de muro presente no quadro de Vermeer
e a morte do escritor? Essas certamente são questões bastante complexas que se colocam ao
leitor da Recherche. A vantagem delas, porém, é a de abrangerem praticamente todo o rol
central de problemas que envolvem a reflexão estética proustiana. Para compreendermos o
que, nessa última contemplação, encantara Bergotte naquele pequeno detalhe do quadro, que
sempre fora um de seus mais diletos, nos será necessário reconstituir o caminho que leva da
verdadeira percepção da arte à sua criação. O estudo clássico de Gilles Deleuze, Proust e os
Signos, será indispensável para que possamos traçar as relações estabelecidas na Recherche
entre arte, amor e tempo perdido. A hipótese deleuzeana, segundo a qual, a Recherche se
constitui a partir de um aprendizado - o aprendizado do homem de letras, que se dá mais pela
contínua decifração de signos do que por uma desencantada busca pelo passado - deixa claro
que se a obra de Proust é a Busca do Tempo Perdido, isso se dá na medida em que há uma
relação essencial entre tempo e verdade. Essa relação se mostra claramente no episódio da
morte de Bergotte. Afinal, como pôde o escritor manter-se por tanto tempo alheio ao detalhe
do Vermeer, que era também a verdade sobre sua própria escrita, sobre o ínfimo detalhe que
se constitui em projeto de vida?
Nossa tentativa de dar resposta a essa questão acabará nos carregando de imediato para
outra, ou seja, ficará claro, no decorrer deste artigo, que a apreensão da verdadeira obra de
arte passa por um encontro bastante peculiar com certas aspirações estéticas, as quais, porém,
também se encontram delimitadas por pelo menos uma das dimensões da potência temporal;
isto é, a iminência da morte. Não é por acaso que Bergotte apenas reconhece aquilo que
realmente deveria ter sido sua arte quando está prestes a cair morto em frente ao Vermeer que
tanto adorava: “é assim que eu deveria ter escrito”, diz o escritor, contemplando, inebriado, o
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fugídio pormenor da tela. A obra de arte, em Proust, aparecerá, portanto, sempre sob o signo
do detalhe, do menor de todos os detalhes, como se nele residisse o núcleo duro da verdade
que a obra exprime, quer dizer, é na busca infinita pelo pormenor que se revela a intuição do
artista; a arte como realização da vida, ela mesma entremeada pela ameaça iminente da morte.
Em Proust e os signos, Deleuze defende o surgimento no interior Recheche de um
sistema de pensamento oposto ao da filosofia enquanto via de mediação com o mundo real.
Ao arrepio da via metódica, aquilo que pauta qualquer construto filosófico respeitável, a obra
de arte apresenta-se como um modelo aberto de conhecimento e explicação da vida em
constante transformação. Antes da gélida superioridade daquele que se propõe a examinar e,
assim, conhecer seu objeto, o combustível da atividade do artista é o sofrimento que lhe é
imposto por aquilo que deve ser conhecido; coisa ou evento que é mister apreender
justamente para que o tormento cesse. E tal conhecimento alcança-se apenas pela violência do
acaso, pelo acaso que, muito mais (e melhor!) que o método, nos leva a pensar; a enfrentar
questões de vida e morte; questões que só apreendemos por aquilo que, conforme notamos,
juntos de Franklin Leopoldo e Silva, Bergson denominou a intuição de nossa realidade
interior.
"Só procuramos a verdade quando determinados a fazê-lo em função de uma situação
concreta, quando sofremos uma espécie de violência que nos obriga a essa busca.”
(DELEUZE, 2003, p. 23). É nessa medida que a Recheche consiste em um imenso sistema de
signos. Signos que podem ser tomados, de acordo com Deleuze, como eventos do
pensamento, ou eventos que nos carregam ao trabalho da inteligência. Esse trabalho é o que
caracteriza o aprendizado dos signos. Pois se a Recherche é a história de um aprendizado, ela
o é na justa medida em que os acontecimentos de sua vida forçam o herói-narrador a um
trabalho de desvelamento da verdade sobre si mesmo.
Segundo Deleuze, a diversidade dos caminhos percorridos pelo herói-narrador ao
longo da obra encontra pelo menos um ponto de convergência. Todos eles apontam para uma
tarefa única: a decifração de quatro diferentes tipos de signos. E para tal tarefa não se pode
contar com um aparato lógico-racional de dissecação e classificação dos conteúdos, mas
apenas com o fluir de experiências que, apesar de serem muitas vezes tão necessárias quanto
fortuitas, revelam-se a chave do longo caminho deste “aprendizado do homem de letras”. O
filósofo dirige então seus esforços para a compreensão desses quatro tipos distintos de signos,
a saber: signos da mundanidade, signos do amor, signos sensíveis e os signos da arte.
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“O primeiro mundo da Recherche é a mundanidade.” Por meio de seus signos, Proust
oferece uma descrição pormenorizada do funcionamento da sociedade. Esses signos relatam
as experiências do herói em meio aos salões da aristocracia e da alta burguesia. Eles
escondem o aterrador vazio da vida mundana e a frivolidade de suas regras. Esta classe de
signos,
surge como o substituto de uma ação ou de um pensamento, ocupando-lhes o lugar.
Trata-se, portanto, de um [grupo de] signo[s] que não remete a nenhuma outra coisa,
significação transcendente ou conteúdo ideal, mas que usurpou o valor de seu
sentido (...) Não se pensa, não se age, mas emitem-se signos (DELEUZE, 2003,
p.06).
Os signos da mundanidade, constituem, por assim dizer, uma das facetas do tempo
perdido, como na expressão perder tempo.
“O segundo círculo é o do amor.” Os signos amorosos, tal como os mundanos, não
podem ainda ser classificados como verdadeiros, mas, ao contrário destes (que são vazios)
eles atingem um maior grau de profundidade. Os signos do amor saltam aos olhos de Swann
perante a falsidade de Odette e, mais tarde, aos do narrador frente ao vertiginoso desfile de
mentiras promovido por Albertine. Não se tratam, portanto, de signos vazios, mas enganosos.
“O ser amado aparece como um signo, uma ‘alma’: exprime um mundo possível
desconhecido de nós. O amado implica envolve, aprisiona um mundo, que é preciso decifrar,
isto é, interpretar (...) Amar é procurar explicar, desenvolver esses mundos desconhecidos que
permanecem envolvidos no amado” (DELEUZE, 2003, p. 7).
A partir dessa caracterização inicial do amor, Deleuze conclui sua realização como
impossível, pois haveria no seio da condição daquele que ama uma contradição
irreconciliável: “Não podemos interpretar os signos de um ser amado sem desembocar em
mundos que se formaram sem nós, que se formaram com outras pessoas, onde não somos, de
início, senão um objeto como os outros”(DELEUZE, 2003, p. 9) Assim, a atividade mesma de
amar (interpretar signos) requer que respondamos por mundos que se formaram à nossa
completa revelia, como nos ensina o narrador:
E compreendia a impossibilidade onde esbarra o amor. Imaginamos ter ele por
objeto um ente que pode estar deitado diante de nós, encerrado num corpo. Ai de
nós, ele é a extensão desse ente a todos os pontos do espaço e do tempo que esse
ente já ocupou e ainda ocupará. Se não possuímos o seu contato com tal lugar, tal
hora não o possuímos. Ora, nós não podemos tocar todos esses pontos. Ainda se nos
fossem designados, talvez pudéssemos estender-nos até eles. Mas tateamos sem os
encontrar. Daí a desconfiança, o ciúme, as perseguições. Perdemos um tempo
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precioso numa pista absurda e passamos ao lado da verdade sem suspeitá-la
(PROUST, 2009, p. 92).
A ânsia do amante em ser o centro de preferência do amado esbarra nesse mundo de
signos, isto é, exatamente na razão pela qual estamos apaixonados. O mundo de signos, que é
anterior ao amante, é também o que singulariza o ser amado, objeto de seu amor. Eis a
contradição: aquilo que personaliza o ser amado, ou seja, que faz com que nos apaixonemos
por ele (os signos por ele emitidos) é exatamente a mesma coisa que não nos permite realizar
o amor cultivado, o que se daria por um movimento de completa e impossível identificação
entre o ser amado e o amante.“Os meios de que dispomos para preservar-nos do ciúme são os
mesmos que desenvolvem esse ciúme, dando-lhe uma espécie de autonomia, de
independência, com relação ao nosso amor” (DELEUZE, 2003, p. 8). A decifração dos signos
emitidos pelo amado (o ato mesmo de amar) revela-nos sempre mundos, situações, eventos
que nos excluem, que se formaram sem nós, de modo que é exercendo a atividade plena de
amar que somos inevitavelmente levados aos tormentos do ciúme. Os meios para escapar a
esses tormentos descobrem-se, por ironia, os mesmos que os produzem. “As mentiras do
amado são os hieróglifos do amor. O intérprete dos signos amorosos é necessariamente um
intérprete de mentiras. O seu destino está contido no lema ‘Amar sem ser amado”
(DELEUZE, 2003, p. 10).
“O terceiro mundo é o das impressões ou das qualidades sensíveis”. A sensibilidade
habita uma região privilegiada no espectro geral da teoria do aprendizado dos signos proposta
pela leitura de Deleuze. Esses signos surgem através de uma experiência bastante peculiar e
que também atravessa grande parte do percurso do herói-narrador: a memória involuntária.
Descrita pela primeira vez no emblemático (e tão famoso!) episódio da Madeleine, a memória
involuntária é um fenômeno que evidencia uma completa fratura entre o sujeito e a
temporalidade de sua experiência. Sua ação se dá por meio do estabelecimento de uma relação
de identidade com um passado que já se tornara opaco, quando buscado pela memória
voluntária, ou que já se encontra definitivamente perdido quando acessado por nossa
consciência, tão embotada pelos poderes do hábito. Tal fenômeno consiste em um esfuziante
deslumbre que nos permite entrever, com olhos renovados, algo de infinitamente grande e que
diz respeito à essência não apenas de seu objeto, mas também lança luz sobre os mais
obscuros abismos de nós mesmos. Vejamos como nesse episódio bastante comentado, a velha
e esquecida Combray ressurgirá para o herói já adulto:
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E de súbito a lembrança me apareceu. Aquele gosto era do pedacinho de madeleine
que minha tia Lèonie me dava aos domingos pela manhã em Combray (porque nesse
dia eu não saía antes da hora da missa) quando ia lhe dar bom-dia no seu quarto,
depois de mergulha-la em sua infusão de chá de tília. E logo que reconheci o gosto
do pedaço de madeleine mergulhada no chá que me dava minha tia, logo a velha
casa cinzenta que dava para a rua, onde estava o quarto dela, veio um cenário de
teatro se colar ao pequeno pavilhão, que dava para o jardim, construído pela família
nos fundos... E com a casa, a cidade, da manhã à noite e em todos os tempos, a praça
para onde me mandavam antes do almoço, as ruas aonde eu ia correr, os caminhos
por onde se passeava quando fazia bom tempo. E todas as flores do nosso jardim e
as do parque do Sr.Swann, e as ninféias do Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas
pequenas residências, e a igreja, e toda Combray e suas redondezas, tudo isso que
toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, de minha taça de chá (PROUST, 2006,
p.74).
Ao tomar os primeiros goles do chá de Tília e embeber a nele a Madeleine oferecida
por sua mãe, num ponto posterior do tempo, o narrador é tomado pela subitaneidade de uma
alegria intensa. Segue-se a isso a partida de um verdadeiro trabalho do pensamento, o qual
chega, também de súbito, à Combray, a pequena cidade da infância do herói, onde Swann
visitava seus pais e a Tia Léonie vivia espionando a vida da vizinhança através de sua janela,
etc... Mas não é apenas a Combray conhecida que é revivida; trata-se de recuperar uma cidade
em essência, em seu mais profundo contato com a eternidade, isto é, de um modo único, que o
exercício habitual da sensibilidade jamais seria capaz de captar.
(...) ela [a memória involuntária] reaparece, [como] uma neuralgia mais do que um
tema, persistente e monótona; desaparece sob a superfície para emergir como uma
estrutura ainda mais sutil e mais nervosa, enriquecida de insólitas e necessárias
incrustações ornamentais, uma exposição mais essencial e confiante da realidade,
elevando-se através de uma série de ajustamentos e purificações ao cimo de onde
dirige e esclarece o mais humilde incidente de sua ascenção e pronuncia seu ultimato
triunfante (BECKETT, 2008, p.36).
Cremos que a vigorosa descrição da memória involuntária oferecida por Proust na
narrativa da Madeleine e depois pelo comentário de Beckett são mais que suficientes para que
cheguemos a compreensão de seu caráter fortuito e essencial; tão magnífico quanto fugídio.
Ainda não é hora de tratarmos do que Beckett denomina o “ultimato triunfante” da memória
involuntária, no entanto, já podemos vislumbrar qual o problema que se apresentará ao herói-
narrador sempre que tiver contato com essa alegria do passado, tão magnífica quanto fugaz.
Os signos da sensibilidade não são ainda a parada final do ciclo de aprendizado que se
dá na Recherche. É certo que já não se trata aqui de signos vazios, como no caso da
frivolidade mundana; signos que substituem ações e pensamentos; não se trata nem mesmo de
signos do engano, do descompasso, do desencontro, como no caso dos amorosos; os signos
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sensíveis, como se pode presumir, são prenhe de uma base material, o que lhes confere uma
segurança maior que os mundos anteriores. Ainda assim, trata-se de uma base deveras frágil
dada a espetacular fugacidade desses pequenos e luminosos pontos da rememoração. Será
preciso então alcançar um conhecimento seguro sobre a memória involuntária, uma maneira
de torná-la sólida, de compreender e edificar seu sentido. Esse empreendimento será a
resposta para a questão, tão importante para Deleuze, que o narrador se coloca em O Tempo
Redescoberto: “O gosto da Madeleine lembrava-me Combray. Mas, por que me tinham, num
como noutro momento, comunicado as imagens de Combray e de Veneza uma alegria
semelhante à da certeza e suficiente para, sem mais provas, tornar-me indiferente à ideia da
morte?” (PROUST, 2004, p. 149).
O mundo da sensibilidade não nos dará um suporte suficiente para que comecemos a
examinar a relação entre esse feérico momento da sensação, o despertar da memória
involuntária, e a nova posição do narrador, por ela precipitada, diante da ideia de sua morte.
As variações de ânimo, humor ou engenho provocadas por momentos de uma inigualável
nobreza sensível; o caminho que aponta da essência redescoberta pela sensação à própria
consciência do narrador, já não pode ser reduzido à interpretação dos signos sensíveis. Será
preciso que percebamos que o prolongamento da sensação e a possiblidade de sua edificação
se dará pelo encontro com a ordem mais elevada do aprendizado dos signos: os signos da arte.
Esses signos são os que nos permitem um conhecimento essencial sobre a verdade, que nos
oferecem a compreensão de um sentido genuíno e duradouro da vida, capaz de vencer o
contínuo fluir do tempo, a ininterrupta dissolução das existências: os signos da arte estão na
base da consciência do tempo redescoberto. São eles que transformarão a inexplicável alegria
das sensações em um obstinado projeto de vida. Vimos até aqui que os signos sensíveis se
utilizam de sua própria vocação à materialidade para revelar uma essência ideal, como no
caso da Madeleine. Para não se perder nas associações feitas no desvendamento desses signos,
porém, o herói-narrador terá de elevar sua interpretação ao nível da arte, isto é, de uma
reflexão sobre a própria temporalidade como matéria-prima das experiências proporcionadas
pela memória involuntária. “É por esta razão”, como nos indica Deleuze, “que todos os signos
convergem para a arte; todos os aprendizados, pelas mais diversas vias, são aprendizados
inconscientes da própria arte. No nível mais profundo, o essencial está nos signos da arte”
(DELUZE, 2003, p.13).
Resta ainda explicar como se dá essa elevação, ou melhor, esse aprofundamento do
herói-narrador na direção do encontro com sua própria vocação. Para tal, buscaremos analisar
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alguns episódios centrais de O Tempo Redescoberto, nos quais o narrador descreve
meticulosamente os decisivos acontecimentos que lhe permitirão compreender e buscar
superar a condição dos homens, seres tão precários, naufragados que estão, nas águas do
tempo - “esse monstro de duas cabeças, danação e salvação” (BECKETT, 2008, p. 9).
Do Aprendizado dos Signos à Redescoberta do Tempo: o Rumor das
Distâncias Atravessadas
... captar, fixar, revelar-nos a realidade longe da qual vivemos. Essa realidade que
corremos o risco de viver sem conhecer,[...] que está presente em todos os homens e
não apenas nos artistas. Mas não a vêem porque não a tentam desvendar, e assim seu
passado se entulha de clichês inúteis porque não revelados pela inteligência. Só pela
arte podemos sair de nós mesmos, saber o que vê outrem de seu universo que não é
o nosso. Graças à arte, em vez de contemplar um só mundo, o nosso, vemo-lo
multiplicar-se. Esse trabalho do artista, de buscar sob a matéria, sob a experiência, as
palavras, algo diferente, é exatamente o inverso do que realiza o hábito, amontoando
sob nossas impressões os objetos práticos a que erradamente chamamos vida
(PROUST, 2004, p.172).
Nada menos do que a verdadeira vida, é assim que a literatura se apresentará ao
narrador da Recherche. “Captar, fixar, revelar-nos...” a vida tal como corremos o risco de
nunca conhecer; tornar sólido tudo aquilo que desmancha no ar: é essa a tarefa máxima da
literatura enquanto projeto de vida de que falávamos há pouco. A arte permitirá ao narrador
um conhecimento não apenas sobre si mesmo, mas sobre a alteridade e também sobre as
coisas do mundo. Através dela ele poderá infundir novos significados não só às suas
experiências passadas, mas também às igrejas de Combray e Balbec, ao Septeto e à Sonata de
Vinteuil e (por que, não?) à secura dos últimos livros de Bergotte. O tempo da narrativa,
contudo, só lhe será revelado após um apurado e exaustivo confronto com as sensações. Esse
confronto, que se dá em O Tempo Redescoberto, revelará ao narrador, como nos diz Blanchot:
a experiência de uma estrutura original do tempo, a qual (ele [o narrador] tem, em
certo momento, plena consciência disso) se relaciona com a possibilidade de
escrever, como se essa brecha o tivesse introduzido bruscamente no tempo próprio
da narrativa, sem o qual pode escrever, e o faz, mas ainda não começou de fato a
escrever (BLANCHOT, 2005, p.18).
Se em No Caminho de Swann, livro que abre o ciclo da Recherche, a aparição da
memória involuntária, através da Madeleine, apesar de causar no herói-narrador uma profusão
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de sentimentos e sensações inexplicáveis, permaneceu completamente insondável no que diz
respeito às suas causas ou mesmo aos seus desígnios últimos, que se mantiveram num umbral
no qual se perderam também boa parte dos anos de Marcel, em O Tempo Redescoberto, a
experiência da rememoração, tão peculiar à poética proustiana, será radicalizada por uma
estratégia de múltiplas aparições dos signos sensíveis que, aliando sua profusão ao trabalho do
pensamento, finalmente darão ao narrador a plena consciência de sua vocação.
A arte se revela ao narrador como seu verdadeiro caminho em uma série de
entrecruzamentos da memória involuntária que se iniciam no momento de sua entrada no
Pátio dos Guermantes, onde duas pedras desiguais no calçamento o fazem tropeçar e remeter-
se ao Batistério de São Marcos e sua estadia em Veneza. Ali, como no episódio da Madeleine
com relação à Combray, lhe é revelada uma estrutura essencial da cidade italiana. Nos
momentos seguintes, o bater de uma colher num prato lhe restitui as viagens de trem e o
trabalho do martelo no conserto de uma das rodas da composição; um guardanapo
excessivamente engomado oferecido, junto de uma bebida, pelo mordomo dos Guermantes,
retomava a experiência da mesma dificuldade encontrada para enxugar-se com uma toalha
fornecida em seu primeiro dia em Balbec; somam-se a essas experiências, aquela do barulho
de água nos canos, além da brilhante passagem em que o narrador se reencontra com sua
infância ao folhear François Le Champi, de George Sand.
Dessa vez a causa da alegria gerada por essas experiências não permanecerá vedada
como no caso da Madeleine, ou no enigmático episódio dos campanários.
Ora, essa causa, eu a adivinhava confrontando entre si as diversas impressões bem-
aventuradas, que tinham em comum a faculdade de serem sentidas simultaneamente
no momento atual e no pretérito (...), fazendo o passado permear o presente a ponto
de me tornar hesitante, sem saber em qual dos dois me encontrava; na verdade, o ser
que em mim então gozava dessa impressão e lhe desfrutava o conteúdo
extratemporal, repartido entre o dia antigo e o atual, era um ser que só surgia
quando, por uma dessas identificações entre o passado e o presente, se conseguia
situar no único meio onde poderia viver, gozar a essência das coisas, isto é, fora do
tempo (PROUST, 2004, p.152).
Proust já não se prende aqui a recuperaçao de um passado tal qual ele fora, ou mesmo
à sua verdade essencial, como no caso da revelação de Combray, pela via da Madeleine. Já
não se trata mais de reviver um momento perdido na ordem do tempo, mas sim de vislumbrar,
através de um voo alçado pelo conjunto de “epifanias” experimentadas no Hôtel de
Guermantes, a própria ordem do tempo. A identificação tão vivaz entre passado e presente dá
ao narrador a percepção de que se ele se encontra “fora do tempo”. O que está em jogo a essa
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altura, segundo Paul Ricouer, é “em primeiro lugar, não o tempo redescoberto, no sentido do
tempo perdido redescoberto, mas a própria suspensão do tempo: a eternidade, ou, para falar
como o narrador, o ser extratemporal” (RICOEUR, 2010, pg 251). Esse “homem liberto da
ordem do tempo”, já é capaz de nos fazer antever porque então o herói-narrador, ao provar da
Madeleine, pôde por um momento abandonar as inquietações ligadas a ideia de sua morte,
afinal, se ele já se tornara, ainda que inconscientemente, um ser extratemporal, nada que se
relacionasse às contingências do porvir deveria gerar nele inquietude. Esse ser extratemporal
não será, porém, a definição final do Tempo Redescoberto, na verdade, apesar de fulminante e
avassaladora, a experiência da memória involuntária ainda permanece uma contemplação
fugidia, não mais de um passado, mas de uma estrutura, uma ordem temporal. No entanto,
nada ainda é capaz de fixar essa representação, pois essa “eternidade” vislumbrada pelo
narrador através do ser extratemporal reporta-se apenas a unidade entre o presente e um
momento passado, mas nada diz ainda sobre o provir dessas experiências, isto é, sobre o
projeto da obra de arte.
O Tempo Redescoberto guarda ainda, enquanto passado, o segredo último de seu
fundamento. Pois, se até agora o narrador alcançou um conhecimento essencial sobre o vir-a-
ser da temporalidade, nada o garante ainda a redesecoberta do tempo por ele perdido, quer
dizer, o movimento pelo qual ele compreenderia a significação de todo aquele monótono
vagar pelo tédio dos salões e o tormento dos amores, ao qual, grosso modo, resumira-se
grande parte de sua existência anterior. A essa altura a percepção de evadir as fronteiras do ser
temporal, isto é (re)descobrir a cadeia ordinária do curso do tempo, se transformará (e nisso
consiste todo o seu enigma) em um intenso mergulho na dimensão efetiva da temporalidade,
no ser em-si do passado, como se justamente no momento em que a experiência finda já se
mostrava perdida em algum lugar4 desse passado, o narrador alcançasse uma intuição que não
é menos do que o “esforço do espírito para colocar-se em movimento e ultrapassar-se a si
mesmo, seguindo neste gesto o fluxo da própria duração que constitui o tecido da
experiência” (BERGSON, 2006, pg. 197).
A Redescoberta do tempo passado se constitui como a intuição do curso da duração,
ou seja, de seu próprio inacabamento no nível da rememoração. O narrador alcança, por meio
4 Ao falar em “lugar do passado” estamos utilizando uma metáfora espacial para lidar com o tempo. Na visão de
Bergson sobre o tempo, a qual nos alinharemos, o espaço se dá apenas pelo congelamento de momentos da
duração. Georges Poulet, ao contrário, defenderá, em O espaço proustiano, a tese de que o tempo proustiano não
é a duração, mas sim um tempo espacializado.
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do trabalho da inteligência, iluminada retrospectivamente pelo signo da arte, uma
compreensão da experiência do tempo nunca antes atingida:
E eis que repentinamente se neutralizava (...) fazendo cintilar a mesma sensação (...)
tanto no passado (...) como no presente, onde o abalo efetivo dos sentidos, pelo som,
pelo contato, acrescentara aos sonhos da fantasia aquilo de que são habitualmente
desprovidos, a ideia da existência, e graças a esse subterfúgio, me fora dado obter,
isolar, imobilizar, o que nunca antes apreendera: um pouco de tempo em estado puro
(PROUST, 2004, p.153).
Insistimos que se o “Tempo Redescoberto é a história de uma vocação que deve tudo a
duração, mas só lhe deve tudo por ter a ela escapado bruscamente” (BLANCHOT, 2005, p.
22), isso se dá pela aparente contradição entre o extratemporal, daquele homem liberto da
ordem do tempo e o mergulho profundo do narrador no interior dessa ordem, que realiza-se
pela apreensão de “um pouco de tempo em estado puro”. A contradição é apenas aparente,
pois, o que se passa, nesse estar “fora do tempo” é algo como um deparar-se com o tempo
não-espacializado, sem forma delimitada, que permite o confronto do ser com a perpetuidade
do movimento, com uma vacância móvel, na expressão de Blanchot, na qual o passado nunca
passa completamente e o presente nunca se instaura para além dos limites da virtualidade,
pois “se o presente não fosse passado ao mesmo tempo que presente, se o mesmo momento
não coexistisse consigo mesmo como presente e passado, ele nunca passaria, nunca um novo
presente viria substiuí-lo. O passado tal como ele é em-si, coexiste, não sucede ao presente
que ele foi” (DELEUZE, 2003, p. 54). Ora, o que é que esse devir ininterrupto, esse tempo
que é sempre pura diferença de si mesmo, a não ser a própria duração?
O narrador finalmente toma consciência de que o passado não se representa pelos dias
idos, já que, como a memória involuntária mostrou, eles não foram a lugar algum; eles
sobrevivem em um passado que coexiste consigo mesmo enquanto presente. Assim, a
duração, que surge para Proust como o abandono da temporalidade dos quadros sucessivos,
pode ser caracterizada também como o tempo da obra de arte:
o tempo da narrativa na qual, embora ele diga ‘EU’, não é mais o Proust real nem o
Proust escritor que tem o poder de falar, mas sua metamorfose na sombra que é o
narrador tornado “personagem” do livro, o qual, na narrativa, escreve uma narrativa
que é própria a obra e produz, por sua vez, as outras metamorfoses dele mesmo que
são os diversos ‘Eus’ cujas experiências ele conta (BLANCHOT, 2005, p. 20/21).
“Por isso essa contemplação da essência das coisas, estava agora bem resolvido a retê-
la, fixá-la, mas como? Por que meios?” (PROUST, 2004, p. 156). A fixação desses momentos
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de sublime alegria da memória involuntária, o narrador explicita em seguida, não se daria por
um novo contato com a realidade dura e embotada desses lugares por ela suscitados, pois, diz
ele: “Já verificara demasiadamente a impossibilidade de atingir na realidade o que havia em
meu íntimo”. E segue: “Não seria na praça de São Marcos, como não fora na segunda viagem
a Balbec, ou a Tansonville (...) que acharia o Tempo Perdido, e a jornada, que só me daria
mais uma vez a ilusão da existência, fora de mim, no canto de uma certa praça, dessas
impressões antigas, não podia ser o meio que buscava” (PROUST, 2004, p. 157). A fixação
das impressões alcançadas só pode se se dar efetivamente por um trabalho de inspeção
interior. Um trabalho da inteligência sobre o frescor dessas impressões adquiridas é o único
caminho que, ao que parece, permitirá ao narrador resistir, ainda que precariamente, ao fluxo
cortante das horas e dos dias o qual ele volta a sentir com todo seu poder de aniquilação na
matinée da princesa de Guermantes. O reencontro com velhos amigos e conhecidos da vida
mundana é narrado sob o signo do espanto pelo desenrolar-se implacável, no tempo, de
pessoas que, vertidas em verdadeiras caricaturas, já não lembram em nada as belas e
majestosas figuras que um dia ostentaram. Tão avançado o trabalho do Tempo, só lhes resta a
morte, que já os espreita em detalhe, observa o narrador, para retirar-lhes de uma vez por
todas dessa condição humilhante em que, um a um, Cronos os fez submergir.
Se as impressões não se poderiam fixar mediante um novo contato com aqueles
lugares que, em presença do narrador, foram incapazes de lhe oferecer o mesmo gozo que ele
pode deles extrair depois de há muito ausente de suas paisagens, a única via que parece
adequada para se seguir consiste em, diz ele: “tentar conhecê-las mais completamente lá onde
se achavam, isto é, em mim mesmo, torná-las claras até suas profundezas” (PROUST, 2004,
p. 157). O exame das profundezas, no entanto, não deverá reconhecer-se como um verdadeiro
exercício reflexivo do espírito sobre si mesmo, nem sobre o resultado das impressões nele
cravadas pelos elementos materiais da experiência. A inteligência, na Recherche, vem sempre
depois. Ela é tradução, interpretação e nunca pura contemplação. Se há um platonismo em
Proust, ou fortes traços de um perigoso idealismo, como insinua Walter Benjamin5, a marca
da reminiscência que leva a uma essência/idéia não está ancorada em abstrações diferenciais
entre os mais diversos objetos da experiência, isto é, no procedimento dialético, que afastaria
da impressão justamente aquilo que ela tem de irredutivelmente sensível, para capturar ali, no
que resta, a idéia puramente abstrata do objeto. O trabalho da reminiscência, em Proust, se
5 O ensaio de Benjamin a que nos referimos: BENJAMIN, Walter. (1994) A imagem de Proust. In: _____.
Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense,
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ergue a partir do que Deleuze denomina os estados d’alma. Isso significa que a reminiscência
se prende exatamente no que há de subjetivo na experiência, isto é, na Albertine que refletia
nos olhos do herói o brilho da juventude, aquela Albertine que tomava para si os sinuosos
movimentos das águas do mar de Balbec e os contrastes daquele céu.
A verdade não pode ser alcançada então pela abstração do que haveria de
contingencial, seja em um objeto da experiência, seja em um ser, em favor de seus atributos
necessários. À dialética, em uma última palavra, à filosofia, Proust opõe o incansável
pensamento do inconstante, do transitório, que é a arte; pois sua verdade não é um
conhecimento absoluto sobre a realidade do mundo, mas sim um ponto de vista superior.6
Em suma (...) quer se tratassem de impressões como as que me provocara a vista dos
campanários de Martinville, quer de reminiscências como a da desigualdade de dois
passos ou o gosto da madeleine, era mister tentar interpretar as sensações como
signos de outras tantas leis ou ideias, procurando pensar, isto é, fazer sair da
penumbra o que sentira, convertê-lo em seu equivalente espiritual. Ora, esse meio
que se me afigurava o único, que era senão a feitura de uma obra de arte? E já as
consequências me enchiam a mente; pois, reminiscências como o ruído da colher e o
sabor da madeleine (...) privavam-me da liberdade de escolher entre elas,
obrigavam-me a aceita-las tais como me vinham. E via nisso a marca de sua
autenticidade. Não procurara as duas pedras em que tropeçara no pátio. Mas o modo
fortuito, inevitável por que surgira a sensação constituía justamente uma prova da
verdade do passado que ressuscitava, das imagens que desencadeava, pois
percebemos seu esforço para aflorar a luz, sentimos a alegria do real recapturado
(PROUST, 2004, p.158).
É por meio da revelação do tempo como duração que o narrador alcança a consciência
de que sua vida só poderia se justificar pelo trabalho da criação artística. Uma criação que,
como nos mostrou a bela citação acima, se coloca sempre como tradução daquilo que nos é
imposto pelo estonteante espetáculo da existência. O narrador chega a compreensão de que o
papel do homem de Letras não é o de criar, mas o de continuar o livro que é de toda a
humanidade e atravessa sua história. No limite, ele agora entende perfeitamente que o
trabalho do escritor, como insiste Deleuze, é antes de tudo o trabalho de recolhimento,
separação e decifração de signos. O grande papel do escritor é o de continuar a vida da
literatura, o grande livro interminável que é a sua história; pois, assim como o passado é
sempre parte deste “eu” que nos habita no presente, não há livro que se resuma aos
descaminhos perseguidos entre as tintas da primeira frase e o arremate da derradeira página.
6 “Ponto de vista irredutível que significa tanto o nascimento do mundo quanto o caráter original de um mundo.
Nesse sentido a obra de arte constitui e reconstitui sempre o começo do mundo, mas forma também um mundo
específico absolutamente diferente dos outros, e envolve uma paisagem ou lugares imateriais inteiramente
distintos do lugar em que o apreendemos” (DELEUZE, 2003, pg 104).
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A resolução do narrador pela literatura dissolve permanentemente aquela já aparente
contradição entre “estar fora do tempo” e “apreender um pouco de tempo em estado puro”,
pois se, conforme vimos, a saída da ordem do tempo é o momento seminal da intuição da
duração, grosso modo, o tempo puro de Proust; a inclinação do narrador por fixar essa
impressão do Tempo (memória involuntária) no tempo, mais uma vez dilui a oposição, já que
faz deslizar o vislumbre da estrutura original da temporalidade até o espaço imaginário da
ressurreição do tempo perdido.
Mas a obra de arte a venir ainda tem que lidar com o maior e mais intransponível dos
obstáculos: se estremecimento e sobressalto são o timbre e a nota da narração dos reencontros
ocorridos na matinée dos Guermantes é porque o assombro com o aspecto moribundo de
todos aqueles homens e mulheres, outrora tão imponentes em sua magnanimidade, revela ao
narrador que se o Tempo, que normalmente não é visível e que para tornar-se visível procura
corpos, se apoderara tão violentamente de todos ali presentes, ele próprio certamente já
deveria estar em vias de sucumbir. O narrador é atirado durante sua passagem pela matinée a
uma velha antinomia da representação e da consciência da passagem do tempo, isto é, sua
face destruidora, o Tempo mítico de Cronos, o deus que devora seus próprios filhos. Se a
intuição da duração garantiu a ele a chave para uma nova concepção de tempo e para o
inacabamento do passado, a morte, contudo, jamais deixara de rondar as esquinas de cada
boulevard percorrido nesse seu caminho. Se um conhecimento essencial do Tempo fora capaz
de provocar uma indiferença à idéia da morte, como no caso da Madeleine, quando se punha
em jogo a necessidade de fixar tais elementos, ou seja, de realizar o projeto da obra de arte, a
morte já não parecia tão inofensiva. Como nos diz Paul Ricoeur:
Não seria exagerado dizer que é a relação com a morte que estabelece a diferença
entre as duas significações do tempo redescoberto: o extratemporal que transcende
‘as inquietudes a respeito da minha morte’ e que faz com que eu não ‘me preocupe
com as vicissitudes do futuro’, e a ressureição, na obra, do tempo perdido. Embora o
destino desta última dependa, em última instância, do labor da escrita, a ameaça da
morte não é menor no tempo redescoberto do que no tempo perdido (RICOEUR,
2010, p.246).
E aqui recaímos em nosso ponto de partida: o paradigmático caso de Bergotte.
Cremos, porém, possuir agora um instrumental um tanto mais refinado para analisá-lo. O que
vira o escritor naquele “panosinho de muro amarelo” da Vista de Delft de Vermeer, a não ser
sua verdadeira e própria revelação da arte? Seria dar um passo muito além do que esclarece
Proust, dizer que o “panosinho de muro amarelo” representara para Bergotte o mesmo que as
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pedras do calçamento, a toalha engomada, e o barulho dos canos representaram para o
narrador? A morte de Bergotte interrompe seu derradeiro e talvez mais genuíno encontro com
os signos da arte. O caráter trágico que perpassa toda a Recherche assenta-se no fato de que
“todo o problema da objetividade, como o da unidade, se acha deslocado de uma maneira (...)
essencial a literatura moderna. A ordem ruiu, tanto nos estados do mundo que
presumidamente deveriam reproduzí-la quanto nas essências ou ideias que deveriam inspirá-
la. O mundo ficou reduzido a migalhas e caos” (DELEUZE, 2003, p.104).
O labor da arte já não oferece quaisquer garantias e o acaso não nos poupa de ironias
tão terríveis como a da descoberta de Bergotte: um encontro com sua verdadeira arte, mas
também um encontro com a morte. Se Bergotte reconhece no Vermeer a preciosidade, as
camadas de tinta que faltaram em sua pena, ou seja, se consegue finalmente aceder à plenitude
de sua arte, ele o faz tarde demais, pois o tempo já fazia nele brilhar as luzes de sua lanterna
mágica. Mais infeliz é a sina de Swann que jamais ultrapassaria o diletantismo, pois nunca
pôde deixar de associar a alegria intensa que lhe despertava a frase da sonata de Vinteuil aos
signos de seu malogrado (e qual não o é?) amor por Odette. Ao se deparar novamente, pelo
trabalho do pensamento, com a alegria despertada pelos signos sensíveis (memória
involuntária) que o puseram definitivamente na trilha de sua vocação, o narrador se pergunta:
Seria esta a felicidade sugerida pela frase da sonata a Swann, que errou assimilando-
a ao prazer amoroso, e não a soube encontrar na criação artística; a felicidade que,
ainda mais do que a frase da sonata, me fez pressentir supraterrestre o apelo rubro e
misterioso do septeto que Swann não chegou a conhecer, tendo morrido, como
tantos outros, antes de ser revelada a verdade para ele feita? (PROUST, 2004,
p.157).
É assim - sem a mínima garantia de que seu projeto se completaria, ou seja, de que O
Livro por Vir7 não seria suspenso pela potência devoradora do Tempo, que põe a nu a
fragilidade da existência humana - que Proust finaliza seu livro, justamente onde começa o do
narrador de Em Busca do Tempo Perdido:
Se ao menos me fosse concedido um prazo para terminar minha obra eu não deixaria
de lhe imprimir o cunho desse Tempo cuja noção se me impunha hoje com tamanho
vigor, e, ao risco de fazê-los parecer monstruosos, mostraria os homens ocupando no
Tempo um lugar muito mais considerável do que o restrito a eles no espaço, um
lugar, ao contrário, desmesurado, pois, à semelhança de gigantes, tocam
7 Referência ao comentário de Maurice Blanchot acerca da Recherche: BLANCHOT, Maurice. A experiência de
Proust. In: O Livro por Vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
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simultaneamente, imersos nos anos, todas as épocas de suas vidas, tão distantes -
entre as quais tantos dias cabem - no Tempo (PROUST, 2004, p. 292).
Todo esse intermitente sobrevoo pelos mais diversos desvãos e renitências da Busca
do Tempo Perdido não nos deixa outra alternativa a não ser endossar a exemplar conclusão de
Paul Ricouer, segundo a qual :
[se] o tempo perdido está contido no tempo redescoberto, [é porque] é o tempo que
nos contém. Não é, com efeito, um grito de triunfo que conclui a Recherche, mas um
sentimento de cansaço e de pavor. Pois o tempo redescoberto é também a morte
redescoberta. A Recherche engendrou apenas um tempo ínterim (...) o tempo de uma
obra ainda por fazer e que a morte pode aniquilar (RICOEUR, 2010, p.264).
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Referências
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São Paulo: Cia. das Letras, 1992, p. 141-154.
Submetido em: 17/05/2012
Aceito em: 12/09/2012