dupas; vigevani. israel-palestina - a construção da paz vista de uma perspectiva global

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IsraelPalestina A construªo da paz vista de uma perspectiva global

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Israel�PalestinaA construção da paz vista de

uma perspectiva global

FUNDAÇÃO EDITORA DA UNESP

Presidente do Conselho CuradorJosé Carlos Souza Trindade

Diretor-PresidenteJosé Castilho Marques Neto

Assessor EditorialJézio Hernani Bomfim Gutierre

Conselho Editorial AcadêmicoAlberto IkedaAntonio Carlos Carrera de SouzaAntonio de Pádua Pithon CyrinoBenedito AntunesIsabel Maria F. R. LoureiroLígia M. Vettorato TrevisanLourdes A. M. dos Santos PintoRaul Borges GuimarãesRuben AldrovandiTânia Regina de Luca

Editora ExecutivaChristine Röhrig

Israel�PalestinaA construção da paz vista de

uma perspectiva global

Organizadores

Gilberto DupasTullo Vigevani

© 2001 Editora UNESP

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Índices para catálogo sistemático:1. Conflito Israel-Palestina: Relações internacionais 327.56941. Conflito Palestina-Israel: Relações internacionais 327.5694

Isrrael-Palestina: a construção da paz vista de uma perspectiva global/organizadores Gilberto Dupas, Tullo Vigevani. � São Paulo:Editora UNESP, 2002.

Vários autores.ISBN 85-7139-377-X

1. Conflito árabe-israelense 2. Conflito árabe-israelense � Paz3. Fundamentalismo 4. Israel � História 5. Palestina � História I.Dupas, Gilberto. II. Vigevani, Tullo.

01-6340 CDD-327.5694

Editora afiliada:

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Sumário

Introdução 7

Gilberto Dupas

Parte IContextualização

1 Conflito Palestina�Israel: anacronismo,contemporaneidade e o papel do Brasil 19

Tullo Vigevani

Rodrigo Cintra

Alberto Kleinas

2 O fracasso das negociações de paz Israel�Palestina 47

Peter Demant

Parte IIAs questões substantivas

3 A questão da tecnologia no processo de paz 81

Riad Malki

6

4 O futuro das relações econômicas Israel�Palestina 133

Ephraim Kleiman

5 A importância dos direitos humanosna resolução de conflitos 151

Edward Kaufman e Ibrahim Bisharat

6 Soberania palestina: viabilidade e segurança 187

Manuel Hassassian

7 Identidades israelenses e palestinas: questões ideológicas 201

Peter Demant

Parte IIIO conflito visto do Brasil

8 Dez anos no deserto: a participação brasileira naprimeira missão de paz das Nações Unidas 263

Norma Breda dos Santos

9 O padrão de votação brasileiro na ONUe a questão do Oriente Médio 287

João Vicente Pimentel

10 A fugidia base territorial do Estado palestino 303

Amaury Porto de Oliveira

11 Ação política, ideologia e religião 313

Oliveiros S. Ferreira

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Introdução

Gilberto Dupas*

Este livro, estruturado a partir do seminário �O conflito Israel�Pales-tina: a construção da paz vista na perspectiva global� que organizamos,Tullo Vigevani e eu � como coordenador da então Área de Assuntos In-ternacionais do Instituto de Estudos Avançados da USP �, em 2000, visaaprofundar o debate sobre um dos conflitos mais importantes e brutaisque persistiram e acentuaram-se com a virada do século: o drama doOriente Médio. Com um essencial e decisivo apoio conceitual de PeterDemant, nosso atual responsável pela Área de Oriente Médio do Grupode Análise Internacional da USP, importantes intelectuais israelenses epalestinos, em conjunto com outros especialistas brasileiros, debruça-ram-se sobre as origens, a dinâmica e as perspectivas de solução do con-flito, produzindo um conjunto expressivo de textos, alguns dos quais re-centemente atualizados em razão da progressão das tensões. Dada aextrema volatilidade do quadro político e militar do Oriente Médio, osautores advertem que seus textos devem ser considerados no contextotemporal em que foram escritos.

O interesse do Brasil pelo tema vem de longe, desde o envolvimentode Oswaldo Aranha � chefe da missão brasileira junto às Nações Unidas� no encaminhamento da criação do Estado de Israel enquanto presidente

* Coordenador-geral do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional (Gacint) da Univer-sidade de São Paulo (USP).

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

das sessões da Assembléia Geral no início de 1947, quando a questão foitratada. Havia, então, duas propostas em discussão. O �plano da maio-ria�, que correspondia ao ponto de vista sionista, propunha a partilha daPalestina em um Estado árabe e outro judeu. O �plano da minoria� en-caminhava a criação de um Estado federal com duas unidades políticas,uma árabe e outra judia. Durante essas sessões, convocadas pela Ingla-terra, aprovou-se a Resolução n.181, incluindo a proteção dos lugaressantos, o estatuto internacional de Jerusalém � sob tutela da ONU � e oPlano de Partilha da Palestina. Seguiu-se a criação do Estado de Israel,proclamada em 14 de maio, oito horas antes do término do mandato bri-tânico na Palestina. O conflito iniciou logo no dia seguinte quando, aose retirarem os ingleses, tropas dos países árabes vizinhos invadiram aárea. A reação israelense foi imediata e a beligerância se estabeleceu de-finitivamente. A partir daí, com fluxos e refluxos, o conflito só fez radi-calizar-se progressivamente.

Desde a partilha da Palestina e a criação de Israel em 1947 � quandoOswaldo Aranha havia feito prevalecer um alinhamento com os EUA,tendentes às teses sionistas � até o início dos anos 70, o Brasil veio amanter em suas posições perfeita eqüidistância entre os contendores emconflito no Oriente Médio e coerência com suas manifestações a respei-to das resoluções da ONU. Em 1963, por exemplo, insistia Israel paraque o Brasil transferisse sua representação diplomática de Tel-Aviv paraJerusalém. Aceitar tal proposta significaria contribuir para uma situaçãode fato, em contradição com os reiterados votos brasileiros pela interna-cionalização de Jerusalém. Manteve-se a embaixada em Tel-Aviv. A par-tir da crise do petróleo, no entanto, o então regime militar optou por maiorrealismo, e pragmatismo, chegando a votar na Assembléia Geral da ONU

em 1975 pela caracterização do sionismo como forma de racismo e dis-criminação racial. Atualmente a posição do Brasil voltou a caracterizar-se como de grande equilíbrio, com todo o interesse em manter suas boasrelações com o mundo árabe, ampliar as ligações com o jovem Estado deIsrael e contribuir para a paz na região. Aliás, posição profundamentecoerente com a intensa harmonia existente entre os grandes contingen-tes árabes e judeus que fazem parte da cultura e da população brasileira.

Tullo Vigevani, em seu artigo, busca o entendimento de um conflitoque já dura mais de cem anos, à luz das modificações pelas quais passa o

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Introdução

sistema internacional a partir do fim do século XX. E procura discutir apossível contribuição brasileira ao encaminhamento de soluções para apaz. Mostra que a globalização e o fim da Guerra Fria criaram novas condi-ções na vida dos povos e das pessoas, abrindo novos caminhos que ele-vam as tensões sociais: o aprofundamento da permeabilidade que leva àintensificação das trocas e a pluralidade no comportamento social; e umreforço das identidades por meio do delineamento mais claro de frontei-ras e divisões. Os palestinos aceitam uma situação de permanentes difi-culdades como preço a pagar pelo que acreditam venha a ser uma possi-bilidade de independência não subalterna. E Israel aceita as conseqüênciasde suas ações policiais e militares em nome do que considera a sua segu-rança. Quanto ao Brasil, seu interesse no conflito é mais do que defen-der princípios: é lutar por sua própria concepção de ordenamento institu-cional desejável para o século XXI.

Peter Demant, em seu primeiro texto, nos lembra que ambas as re-ligiões � judaísmo e islamismo � têm programas políticos específicos enenhuma reconhece a separação entre Estado e religião. Confrontados �sob condições de modernização intensa � com humilhação, falta de po-der ou perseguição, tanto muçulmanos quanto judeus voltaram às suasorigens religiosas. Isso os levou a criar programas para reaver o podersobre seu próprio destino mediante um retorno à piedade pessoal com-binada com uma reorganização da sociedade em Estado religioso. Tantoentre os judeus quanto entre os muçulmanos as respostas tomaram for-ma modernista ou fundamentalista. A sociedade israelense que se for-mou não era nem uma Gesellschaft moderna, nem plenamente democrá-tica, tornando-se algo como um conglomerado anômalo de elementosmodernos e pré-modernos. Um dos motivos para isso foi a própria pre-sença dos árabes palestinos na região, o que forçou o sionismo a realizarseu projeto em oposição aos habitantes locais. Isso fez com que um pla-no que parecia lógico do ponto de vista da situação dos judeus na Euro-pa se transformasse em empreendimento colonialista.

Demant ressalta que a criação de uma nova nação num território jáhabitado somente poderia ser feita à força. Não era um caso de colonia-lismo clássico: o sionismo não pretendia explorar a mão-de-obra pales-tina, mas conseguir suas terras. Internamente ele desenvolveu órgãosrepresentativos; externamente, tinha que se opor à introdução da demo-

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

cracia no mandato palestino: eleições universais levariam � dado o anta-gonismo da maioria árabe ao país � a uma imediata paralisação de todo oempreendimento sionista. Para os sionistas socialistas, a facção hegemô-nica comprometida com princípios democráticos, isso estabeleceu umapesada contradição.

Jerusalém, confluência de três grandes monoteísmos � cristianismo,judaísmo e islamismo � e uma espécie de trágico umbigo do mundo, aca-bou se transformando numa espécie de grande paradigma de um conflitoinsolúvel. Edward Kaufman relata a situação de Jerusalém como o maiorobstáculo para a paz, podendo ser analisada em níveis diferentes de ex-pectativas com relação a direitos a conquistar: as pressões de membrosda comunidade internacional (judeus, cristãos e muçulmanos) pela ma-nutenção da liberdade de religião, ainda que não trazendo direitosadicionais de cidadania; o desejo de israelenses e palestinos de teremJerusalém como sua capital, apoiado pelas leis de direitos humanos in-ternacionais; e, finalmente, o direito de árabes e judeus, seculares e reli-giosos, de usufruírem de seus direitos individuais, numa situação em quea grande maioria de cada uma das populações estará vivendo na cidadesob a autoridade de seu próprio Estado soberano.

Riad Malki compara o grau de prontidão de Israel para a assimilaçãode novas tecnologias, canalizando-as em seu benefício, com as severas eprecárias condições em que se encontra o sistema educacional palestinodesde a ocupação de seus territórios. Prega a necessidade de uma mu-dança radical na percepção da imagem coletiva do outro, tanto aos olhosdos palestinos como dos israelenses: uma imagem predominante de ódio,desconfiança, demonização e animosidade construída durante mais detrinta anos numa perspectiva de dominador e dominado. E mostra quecomunicação e tecnologia podem ser um caminho de reaproximação.

Ephraim Kleiman nos remete à questão clássica das relações profun-damente assimétricas entre países �centrais� e �periféricos� aplicada aostermos do conflito na região. A �nação� palestina � economia muito pe-quena, pobre, mas com farta mão-de-obra � é posta em contato com umaeconomia relativamente grande e muito mais rica, necessitada de mão-de-obra barata. Com livre acesso ao mercado de trabalho israelense, ostrabalhadores palestinos foram rápidos em tirar vantagem disso, trocandosua típica renda de subsistência � quando não um agudo desemprego �

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Introdução

pelos salários mais altos oferecidos em Israel. Por outro lado, a severapolítica agrícola protecionista israelense impediu o livre acesso ao mer-cado israelense daquilo que seria por muito tempo o principal potencialde exportação dos territórios árabes: os produtos agrícolas. Israel usousua capacidade de controle para restringir o cultivo e, principalmente, aexportação para seu território de muitos produtos agrícolas. Ao mesmotempo, dificultou o surgimento de atividades industriais na Cisjordâniae na Faixa de Gaza que pudessem competir com as israelenses no mer-cado doméstico.

Ainda assim, a renda per capita dos palestinos quase quadruplicouentre 1969 e 1992, enquanto em Israel não chegou a dobrar. Uma vezconcluído o processo de integração, porém, aquele crescimento estag-nou. No entanto, apesar dessa rápida evolução, a economia dos territó-rios ocupados permaneceu muito pequena quando comparada à israe-lense. O PIB palestino não chega a 5% do de Israel (US$4,5 bilhões contraUS$100 bilhões). Enquanto o total das exportações de Israel chega aUS$23 bilhões, as da Palestina não passam de US$380 milhões. Nas im-portações, são US$20 bilhões comparados com US$2 bilhões. E no inves-timento em educação, trata-se de US$850 milhões contra US$30 milhões.

De fato, após o estabelecimento da Autoridade Nacional Palestina(ANP), com o protocolo econômico assinado em Paris em abril de 1994,as condições para a união econômica entre os territórios palestinos e Is-rael deveriam ter se tornado mais justas: o protocolo removia gradual-mente todas as restrições econômicas sobre as exportações para Israel;e, com a transferência de toda autoridade governamental local para a ANP,Israel não podia mais impedir o estabelecimento de fábricas palestinascapazes de competir com as israelenses. Acordos foram também estabe-lecidos para transferir para a ANP os impostos pagos pelos palestinos aoTesouro israelense. No entanto, o ano de 1994 trouxe não somente a cria-ção da ANP e a retirada de Israel da Faixa de Gaza, mas também umasérie de bombas suicidas detonadas pelos fundamentalistas muçulma-nos. A contrapartida foi uma série de medidas de segurança israelensesque restringiram seriamente o movimento de população, veículos e benspalestinos para Israel. O governo israelense se recusou a assumir qual-quer obrigação para restaurar a entrada virtualmente livre em Israel queos palestinos possuíam praticamente desde a Guerra do Golfo; e o pro-tocolo de Paris se tornou uma carta morta.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

Edward Kaufman, por sua vez, explora a conexão entre a consolida-ção da paz e a proteção dos direitos humanos. E defende que a introduçãodessa dimensão essencial, que cruza as necessidades básicas com os inte-resses que existem por trás das posições já estabelecidas, é a fórmula quemelhor garante a manutenção dos acordos de paz.

Já Manuel Hassassian nos mostra quão ingênua e auto-enganosa setorna uma aproximação do problema do conflito no Oriente Médio semantes reconhecer as diferenças e assimetrias que compõem a atual estru-tura de poder quanto à imagem que um dos lados em conflito tem do ou-tro. Quando o Acordo de Oslo abertamente declarou que nenhum ladofaria manobras para influenciar o status e as posições das etapas finais danegociação � mas, ao mesmo tempo, os palestinos presenciaram umacontínua expropriação de suas terras para construção de novos assenta-mentos e rodovias de ligação, o fechamento de Jerusalém aos não-resi-dentes e as crescentes pressões impostas aos próprios residentes da ci-dade �, tornou-se progressivamente difícil aos palestinos, tanto daoposição quanto da Autoridade Palestina, manter confiança na boa vonta-de de seus parceiros israelenses. Para Hassassian, Israel simplesmente nãopode esperar ter a terra, a segurança e a paz sem dar nada em troca. Eledefende que confidence building measures não podem conviver com a violên-cia estatal oficial israelense, o uso de munição verdadeira contra popula-ção desarmada, a tortura e os toques de recolher. Os palestinos propõemampla desmilitarização, limitação sobre certos armamentos para cons-truir a confiança entre os dois parceiros, desnuclearização e eliminaçãode armas de destruição. E, obviamente, territórios palestinos livres.Querem manter um certo volume de soldados, grupos internacionais demonitores e um Estado palestino independente. Reivindicam que a fron-teira de seu Estado seja não menos do que a linha do armistício de 1967,separando Israel dos territórios palestinos ocupados. A economia pales-tina necessitaria tempo para �encontrar seu eixo�, em vez de ser dominadapor investidores israelenses ou internacionais. Se isso não acontecer, Has-sassian acha que as mesmas estruturas que arruinaram a economia pales-tina sob a ocupação continuariam a destruí-la sob diferentes disfarces.

Finalmente, em seu segundo texto � de atualização do conflito �, PeterDemant conclui que a explosão palestina há muito profetizada por ob-servadores e críticos está acontecendo. Sob a mediação de Bill Clinton,

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Introdução

israelenses e palestinos quase tinham alcançado um acordo abrangenteque teria posto eventualmente um fim ao seu prolongado conflito. EhudBarak quebrou um antigo tabu político ao oferecer a divisão de Jerusa-lém. Por que Yasser Arafat rejeitou essa proposta israelense bastante am-pla para a causa palestina? Ambos consideravam que os Acordos de Oslofavoreciam demais o lado adversário. O processo de paz não trouxe aospalestinos os tão esperados dividendos da paz. A sociedade palestinapassou por uma infeliz polarização, com uma nova elite de novos-ricos.Em vez de criar uma densa rede de interdependência econômica, Israelabriu seu mercado interno só hesitantemente, e de certa forma optoupor uma política separacionista de longo prazo. Como resultado de umdescontentamento palestino popular de longo prazo com o processo deOslo, Arafat foi a Camp David com pouco espaço de manobra.

Demant lembra que, cada uma a seu modo, duas sociedades muitodiferentes, mutuamente hostis, mas intimamente ligadas, estão alcan-çando constelações ideológicas semelhantes. Poderia o paralelismo nasescolhas de identidade que os confronta servir como ponte para o diálo-go? Enquanto os paralelos entre a evolução cultural de ambas as socieda-des são apenas incidentais, os obstáculos permanecem formidáveis. Sedepois de Israel também os palestinos tiverem a possibilidade de cruzaro patamar de Estado, estaria armado o cenário para um declínio do nacio-nalismo. O que virá em seguida? Dois modelos mutuamente exclusivosde identidade coletiva, um baseado em religião e outro em democraciapluralista, estão lutando pela ascensão em ambas as sociedades. Essassemelhanças estruturais são precondições indispensáveis para uma apro-ximação cultural dessas comunidades. Ainda que influências culturaisglobais e regionais estejam mais fortes em todo lugar, e o verdadeiroconteúdo de cada identidade seja diferente em cada sociedade, a evolu-ção ideológica tanto de Israel quanto da Palestina será fortemente de-pendente do que acontece com seu vizinho. Segundo Demant, uma co-municação israelense-palestina baseada em autêntico diálogo só serápossível entre aquelas forças de cada sociedade que optarem por umaidentidade coletiva democrática não religiosa. A reaproximação culturalisraelense-palestina, hoje uma miragem distante, tornar-se-á uma opçãoapenas quando a identificação nacional de ambas as nações for menosfanática e menos exclusiva, e quando a opção democrática obtiver umavitória decisiva sobre o fundamentalismo religioso.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

Demant acha que, no longo prazo, Israel não será capaz de sobrevi-ver como Estado judaico. Ou manterá sua identidade oposicionista ouserá vencido num confronto com um inimigo maciçamente mais numero-so, no momento em que o mundo árabe muçulmano supere seu atrasotecnológico. Ou, alternativamente, Israel modificará internamente suaposição, transformando-se num Estado �normal� com uma maioria ju-daica e simbolismo coletivo judaico, mas sem a estrutura discriminatóriaque hoje o caracteriza. Este seria o melhor resultado para todos os en-volvidos, mas pressuporia uma sutil interação entre o processo de paz eos concorrentes ideológicos internos. Conclui que, paradoxalmente, o pós-sionismo pode ser o único modo de salvar pelo menos o núcleo moralmínimo do sionismo.

Norma Breda dos Santos analisa em detalhes o contexto internacio-nal e, nele inseridas, a política multilateral brasileira para o Oriente Médiodas décadas de 1950 e 1960, bem como as ações da diplomacia brasileiranesse período. E João Vicente Pimentel aprofunda ainda mais esse tema,investigando o padrão das votações do Brasil nas Nações Unidas desde1947, sua consistência e pragmatismo.

As análises de Amaury Porto de Oliveira permitem uma visão da iden-tidade palestina. Quem são eles? Que identidade nacional podem reivin-dicar? Sobre que território far-se-á sentir efetivamente essa reivindica-ção? E situa a Palestina, conceito geográfico e político moderno, comofruto da Primeira Guerra Mundial. Nos quatro séculos imediatamenteanteriores, essas terras haviam sido disputadas pela França e pela Grã-Bretanha, quando dos desmembramentos dos domínios otomanos. Emseguida, foram entregues ao sistema de mandatos sob a égide e supervi-são jurídica da Liga das Nações. À França, o mandato sobre a Síria e oLíbano, e à Grã-Bretanha, os mandatos sobre a Mesopotâmia e a Palesti-na, sob a hipótese de se transformarem em territórios maduros para as-cender à independência, num prazo determinado e sob orientação dapotência mandatária. A França conseguiu resguardar para os Estados doLevante alguns territórios reivindicados pela Organização Sionista Mun-dial; a Grã-Bretanha obteve, em 1921, a revisão do texto do mandatopalestino, de maneira a desobrigar-se da aplicação da Declaração Balfournas terras para além do Jordão, sobre as quais ela começara a articular acriação do Emirado da Transjordânia. Porto de Oliveira situa a popula-ção autóctone arabizada da Palestina em 1918 em 644 mil indivíduos,

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Introdução

dos quais 574 mil muçulmanos e 70 mil cristãos. A presença judia, quenunca desaparecera completamente, chegara a reduzir-se a umas pou-cas famílias. No entanto, essa parcela judia já havia alcançado 32% em1948. Usando com mais eficácia do que a comunidade palestina a mar-gem de autogoverno deixada pelo mandatário e fazendo valer ao máxi-mo os dispositivos legais ligados à criação do Lar Nacional Judeu, os sio-nistas foram se equipando de instituições administrativas e jurídicas, decaráter quase-governamental, até mesmo com progressiva capacidademilitar. A comunidade palestina inconformada com a nova situação rea-giu com a Revolta Palestina (1936-1939), mediante a greve geral urbanae a luta de guerrilhas nas montanhas. Foram necessários os esforços con-jugados dos britânicos e das forças de defesa judaicas para debelá-la. Acada surto de violência dos palestinos, Londres enviava ao local umacomissão investigadora, que produzia relatórios sem futuro. Enquantoisso, Ben-Gurion conclamava a criação do Estado judeu sobre todo o terri-tório da Palestina, conseguindo apoios nos Estados Unidos (EUA). Acomunidade palestina saíra da Revolta ainda mais fraca, política e mili-tarmente. Sua elite nacionalista fora decapitada, reduzindo-se à velha lutade clãs. Cada vez mais incapacitados de fazerem ouvir a própria voz, ospalestinos viram sua causa ser absorvida pelos regimes árabes circun-dantes, que a manipulavam para objetivos próprios.

A Segunda Guerra Mundial e a trágica perseguição aos judeus alte-raram fundamentalmente sua situação na Palestina, legitimando suasreivindicações. Em 1945 o presidente Truman enviou mensagem ao pri-meiro-ministro Clement Attlee, pedindo a admissão imediata de 100 milrefugiados judeus na Palestina. Em 1947, a Grã-Bretanha requereu aconvocação de uma assembléia geral especial onde foi aprovada a reso-lução recomendando a partilha política do território do mandato, crian-do um Estado árabe e outro judeu, associados entre si numa unidadeeconômica com Jerusalém internacionalizada. Essa foi, de fato, a verda-deira oportunidade que teve a comunidade palestina de obter um terri-tório equivalente ao destinado à comunidade judaica, e sobre ele edificarseu Estado. Para isso teria sido necessário mobilizar apoio internacio-nal. Mas os palestinos não dispunham de uma liderança capaz de perce-ber essa oportunidade e tomar decisões rápidas. A resposta árabe ao planofoi irrealista e demagógica, tornando-se claro que não haveria a partilha.A Grã-Bretanha anunciou sua decisão de dar por findo o mandato em 15

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

de maio de 1948. Incontinenti, os judeus lançaram sua Guerra de Inde-pendência e o Estado de Israel surgiu com as fronteiras ampliadas nocampo de batalha, com o Egito e a Transjordânia anexando parcelas deterritório teoricamente destinado ao Estado palestino. Com a Guerra dosSeis Dias, Israel acabou de posse de todas as áreas da Palestina não toma-das em 1948, inclusive a totalidade de Jerusalém. Em 1967, já eram cer-ca de um milhão e meio de árabes palestinos sob controle de Israel con-centrados sobretudo na Banda Oriental e na Faixa de Gaza, além daminoria incluída na população do Estado de Israel. Em conjunto, o con-tingente sob administração de Israel passou a representar, após 1967,mais da metade de todos os árabes de origem palestina que viviam noOriente Próximo.

Finalmente, completando esse conjunto de ensaios, Oliveiros S.Ferreira reflete sobre o papel da religião e das ideologias que dividem ospovos e impedem o processo de paz. E ressalta, de um lado, o que chamade �posse das almas� na concepção de mundo que leva à ação política;de outro, a visão judaica de Israel não como ponto de fuga, mas comoponto de chegada de uma caminhada pela História.

Este livro nos mostra, pois, entre outras questões críticas, que asposições que acabaram predominando na escalada do conflito � na práti-ca � são as fundamentalistas, de lado a lado, o que provoca um fechamentoprogressivo dos espaços de acomodações. Afinal, como lembra Josep Ra-moneda, �o fundamentalismo é um quarto sem janelas�. Ele contém sem-pre uma verdade não suscetível à crítica, fora da qual não há salvação;um ideal de perfeição; e uma linguagem própria e única que só seusmembros compreendem. A sociedade assim �purificada� e simplificadase transforma numa página em branco para que tiranos regeneradoresescrevam seus poemas. No caso de palestinos e israelenses, apesar desociedades muito diferentes e hostis, estão eles mutuamente ligados. Serápossível conseguir ultrapassar em ambos o estágio fundamentalista-nacionalista? A evolução ideológica tanto de Israel como da Palestina de-pende do que acontece com seu vizinho, quase como irmãos siamesesmuito diferentes � que eventualmente se odeiam �, mas onde a naturezado fluido que corre é a mesma. Se o fundamentalismo de ambos os ladospuder dar progressivamente lugar à compreensão das diferenças, haveráalguma possibilidade de manter vivos os dois irmãos. Caso contrário,ninguém sabe exatamente quem poderá se salvar.

Parte IContextualização

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1Conflito Palestina�Israel: anacronismo,

contemporaneidade e o papel do Brasil*

Tullo Vigevani**Rodrigo Cintra***

Alberto Kleinas****

O objetivo deste texto é buscar o entendimento do conflito entrepalestinos e israelenses à luz das modificações pelas quais passa o siste-ma internacional no final do século XX e início do século XXI. Portanto,não discutiremos as certamente fundamentais questões específicas queo produz, tratadas por outros autores neste mesmo livro. A discussãodos elementos de anacronismo e de contemporaneidade, que é o que pro-pomos, possibilita, eventualmente, perceber algumas das razões que fa-

* Agradecemos ao embaixador Amaury Porto de Oliveira os documentos fornecidos.** Professor de Ciências Políticas da UNESP � Câmpus de Marília e pesquisador do Centro

de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec).*** Mestrando em Ciência Política na USP.

**** Mestrando em História na USP.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

zem persistir o conflito ao longo do tempo, mais de um século, e as for-ças novas que poderiam dar suporte a um processo de paz, de convivên-cia efetiva, não apenas conjuntural. Utilizando a formulação de Nardin(1987), poderiam dar suporte, mais do que a uma associação prática, atémesmo a uma associação de objetivos.

Também discutiremos a possível participação brasileira no encami-nhamento de soluções positivas para o conflito. Trata-se de questão nãocentral para a política exterior do Brasil, visto o papel de perfil baixo queexercemos. Ainda assim, para quem defende posições e princípios uni-versalistas, situações de injustiça e de guerra, conflitos que se referem avalores importantes, nos interessam de perto.

Novas e velhas questões no contexto mundial

O sistema internacional contemporâneo é resultado de uma série dealterações estruturais ocorridas e em curso nos últimos anos, transforma-ções estas simbolizadas pela queda do Muro de Berlim e o posterior des-moronamento do bloco que havia sido liderado pela União Soviética. Paracompreender esses desenvolvimentos, não basta nos prendermos a es-ses momentos-símbolos, é preciso que entendamos a lógica que os produ-ziu. Em outras palavras, é preciso que não nos esqueçamos das forças pro-fundas, conforme a sugestão de Cox:

Em seu nível de maior abstração, a noção de um quadro de referênciaou de uma estrutura histórica é um retrato de uma particular configuraçãode forças. Essa configuração não determina ações em nenhuma direção oude forma mecânica, mas impõe pressões e constrangimentos. Os indivíduosou grupos podem-se mover de acordo com as pressões ou resistir e opor-sea elas, mas não podem ignorá-las. Na medida em que resistem com suces-so a uma estrutura histórica dominante, eles fortalecem com suas açõesuma alternativa, uma configuração de forças emergentes, uma estruturarival. Três categorias de forças (com expressão potencial) interagem numaestrutura: possibilidades materiais, idéias e instituições (1986, p.217-8).

Durante a Guerra Fria (1946-1990) as relações internacionais esta-vam estruturadas de tal forma que a confrontação entre dois blocos depaíses � um no Leste, o chamado socialista, e outro no Oeste, o chama-

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Conflito Palestina�Israel: anacronismo, contemporaneidade e o papel do Brasil

do liberal-democrático � marcava praticamente todas as demais formasde relação entre os países, incluindo as relações bilaterais e mesmo, emalguns casos, as relações internas dos países. Ainda que essa dinâmicaconflituosa tendesse a dominar todo o funcionamento das relações inter-nacionais, houve momentos nos quais foram possíveis ações que procura-vam soluções por meio de medidas diferentes daquelas que normalmentemarcavam o relacionamento principal entre as potências. Entre essesexemplos, certamente explicáveis pelas particularidades dos casos, oupela ainda prevalecente memória da recente Segunda Guerra Mundial,podemos citar a coincidência do voto dos Estados Unidos e da União So-viética na ONU, em novembro de 1947, no tocante à partilha da Palesti-na, tendo Grã-Bretanha e China, aliados do primeiro, se abstido. Aindaem relação ao Oriente Médio, por ocasião da Guerra de Suez, em 1956,em que a lógica da Guerra Fria teve papel significativo, ainda assim nãodeterminou de forma direta e mecânica as posições. Os Estados Unidosapresentaram-se, ao menos em parte, como mediadores do conflito, afim de evitar a aceleração da aproximação entre o Egito e a União Soviéti-ca, algo que o país árabe já vinha implementando e que certamente seriafortalecido pela ação da Grã-Bretanha e da França, de fato, ao lado de Israel.Como em outros casos, a política norte-americana daquele período � su-peração do colonialismo político e tentativa de fortalecimento dos seto-res favoráveis ao Ocidente no Egito � determinou o posicionamento.

A estrutura bipolar criou uma configuração internacional na qual osdois países mais poderosos, particularmente pelo ângulo militar, Esta-dos Unidos e União Soviética, não podiam ver-se envolvidos em confli-tos militares diretos sob pena de não haver ganhadores, isso por causa dodesenvolvimento das armas nucleares e dos vetores balísticos em ambosos lados. Em qualquer hipótese de conflito, o resultado final previsto seriade soma negativa. Além da competição econômica, tecnológica, culturale política, no plano militar e nos casos de conflitos políticos insuperá-veis, o atrito entre os dois blocos dava-se por meio de conflitos localiza-dos, transformando o sistema internacional num todo integrado e comum equilíbrio complexo e delicado. No caso do conflito do Oriente Mé-dio, entre os países árabes, particularmente Egito, Jordânia, Síria e Líba-no, e Israel, pode-se afirmar que não existiu como resultante da tensãoLeste-Oeste, mas acabou cruzando intensamente com ela.

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Quando a Guerra Fria acabou, esperava-se que a estrutura bipolarfosse rapidamente suplantada por outra na qual o sistema internacionalfuncionasse sobre premissas mais universalistas e menos presas a equilí-brios militares entre potências. De acordo com Lafer & Fonseca Jr.,

os dois acontecimentos que marcaram o pós-Guerra Fria são a queda domuro de Berlim e a guerra do Golfo. Não é preciso avançar muito na conside-ração desses fatos, que criaram uma atmosfera de otimismo no sistemainternacional, inclusive porque, especialmente em relação ao primeiro, aperspectiva era a de que se formavam, no mundo dos valores, grandesunanimidades ... As afinidades entre a vida interna das nações e o mundodas relações internacionais passariam a ser naturais e amplas. As diferen-ças do nacional e do internacional se diluíram e, ao invés de fonte de atrito,se converteriam em novas pontes de aproximação e conciliação entre osEstados. As democracias se entendem naturalmente; os mercados abertosfavorecem a riqueza de todos; afinal, eis, vitorioso, o credo liberal em suapureza original. (1994, p.55-6)

Sem dúvida, essa perspectiva teve influência nos esforços desenvolvi-dos pela Organização para a Libertação da Palestina, dirigida por Arafat,e pelo governo de Israel, dirigido por Itzhak Rabin, sendo Shimon Pereso ministro das Relações Exteriores. A perspectiva do que Lafer & FonsecaJr. chamam o pós-Guerra Fria não se referia apenas aos valores que haviamprevalecido ao final da Guerra Fria, mas certamente a valores de que am-plos setores da humanidade acreditavam poder apropriar-se em benefíciopróprio, exatamente por serem ou parecer serem universais. Para algunsparecia surgir a tendência a valores compartilhados. Ao mesmo tempo, pa-recia abrir-se o caminho a situações onde os riscos de sobrevivência au-mentavam. Provavelmente sejam esses elementos explicativos da decisãode uma parte da elite de Israel de negociar. No lado palestino, pareceuevaporar-se definitivamente a idéia de alcançar a soberania sobre toda aPalestina e, ao mesmo tempo, o contexto internacional sugeria uma cre-dibilidade mínima que viabilizaria alcançar parte dos direitos desejados,até mesmo a autodeterminação, ainda que limitada. É dentro dessas refe-rências universais mais gerais que houve condições para o amadurecimentode um processo que alcançou grande profundidade, não apenas em sua agen-da política, nas negociações de Oslo e nos Acordos de Madri, mas tambémem grupos importantes da sociedade nos dois povos: significativos setores

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da burocracia estatal, grupos empresariais, intelectuais passaram a refletirsobre as causas de uma história, certamente explicável, de ódio recíproco.

A visão, provavelmente idealista, que acreditou na viabilidade de va-lores universais sem condicionamentos assimétricos, sem a milenar tradi-ção de vantagens para o mais poderoso, acabou sucumbindo sob o pesodos acontecimentos. Não se trata de juízos definitivos nem inarredáveis,mas do reconhecimento de situações de estagnação em muitos camposdas relações internacionais: comércio e desenvolvimento econômico,meio ambiente, direitos humanos, militar, tecnologia. A visão ideal-uni-versalista foi substituída num segundo momento do pós-Guerra Fria,ainda na década de 1990, em face de acontecimentos que acentuaramperplexidades e falta de esperança. Um ponto marcante foi o fim da UniãoSoviética e da Iugoslávia. O que importa aqui assinalar é que o fim dostalinismo e desses Estados supranacionais não se deu pela vertente dasupremacia de valores humanistas ou social-democráticos, nem pelo cami-nho da implantação de um sistema econômico que resolvesse o atrasoimposto pelo autoritarismo. Diferentemente, esse fim deu-se pela via dorenascimento, com força, dos particularismos nacionais, muitas vezesxenófobos, e de sistemas econômicos anacrônicos, às vezes até parecen-do restauracionistas. Não se pense que esses processos não tenham aomenos indiretamente tido seu papel no Oriente Médio, debilitando a cren-ça em valores solidários, reanimando particularismos também anacrôni-cos, reanimando sobretudo a idéia de que apenas a força e, até mesmo, alimpeza étnica são os caminhos do interesse nacional, muitas vezes identi-ficado com fundamentalismo. Portanto, paradoxalmente, o anacronismotem forte viés de contemporaneidade.

O que significam esses fatos? Em primeiro lugar, a prevalência de for-ças centrífugas, de desagregação. Em contraposição à lógica iluminista quese anunciava no primeiro momento do pós-Guerra Fria, desenham-se, agora,forças nacionalistas, cuja origem filosófica é o Romantismo. Mais do queintegração e modos concertados de ação internacional, é fundamental lu-tar pela liberdade de autodeterminação das novas identidades nacionais.Essas tendências espraiam-se, os fundamentalismos ganham nova vida, osriscos de secessão parecem multiplicar-se. A lógica da fragmentação prevale-ce ou, melhor, anuncia que ainda tem força suficiente para qualificar emesmo reverter o otimismo iluminista de 1989 ... Uma segunda observa-ção necessária é a de que, diante desses movimentos, a comunidade interna-cional tem instrumentos limitados. (Lafer & Fonseca Jr., 1994, p.60)

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No caso do Oriente Médio, numa demonstração das raízes profun-das do conflito, não se trata de origens românticas, certamente fortes naEuropa, nas culturas germânicas e eslavas, mas da identificação entre re-ligião por um lado e Estado e política por outro. A racionalidade comoelemento constitutivo básico da fundamentação do Estado, a idéia de pac-to e de soberania reconhecida pela comunidade internacional, tão aprecia-das pelos nacionalistas árabes, sobretudo egípcios e iraquianos, nos anos20 e 30 do século XX (Abdel-Malek, 1970; Hussein, 1971), e pelo sionis-mo político, assimilada por boa parte da inteligentzia palestina, particular-mente a partir da guerra de 1967, parece nas ondas do processo históricoalternadamente fortalecer-se e debilitar-se.

No momento inicial do pós-Guerra Fria vimos os debates em tornodos assuntos econômicos e os relativos aos temas da integração políticaganharem peso sobre aqueles ligados aos assuntos militar-estratégicos.Houve uma forte ilusão na prevalência dos valores cooperativos. No en-tanto, logo, ainda na década de 1990 e nestes primeiros anos do séculoXXI, alguns conflitos marcam o cenário internacional de tal forma que secomeçou a rever a idéia do fim das questões militares. Entre esses confli-tos estão a Guerra do Golfo, os da ex-Iugoslávia e o persistente entre Is-rael e Palestina. No tocante a essas questões, percebe-se o significadodos instrumentos analíticos desenvolvidos no campo das relações interna-cionais antes e durante o período da Guerra Fria, muitas vezes necessá-rios para a compreensão do mundo de hoje. Temas como nacionalismo,Estado nacional, poder, balance of power, são imprescindíveis para explicartambém esses conflitos regionais, ainda que não suficientes. Ganharamrelevância temas valorizados no debate contemporâneo da sociologia po-lítica e das relações internacionais, como cultura, etnia, grupos epistê-micos (Adler, 1997; Wendt, 1992 e 1994), além das questões própriasdos neoliberais.

O conflito Palestina�Israel teve desde o início do século a caracterís-tica de ser local. Ele o foi quando a região encontrava-se sob o domínioturco, manteve-se assim durante o mandato britânico, de 1918 a 1948, epermanece local de 1948 até hoje. O que pretendemos dizer é que ape-sar da importância internacional do tema, de ter sido o assunto mais de-batido e objeto de mais resoluções na Assembléia Geral das Nações Uni-das e no Conselho de Segurança a partir de 1945, suas implicações

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permaneceram locais, mesmo quando as grandes potências interferiramnele em razão de seus interesses globais e específicos. Provavelmenteseja essa a razão que levou o Brasil, historicamente, a manter-se em posi-ção low profile. Os representantes do Brasil nas sessões de abertura daAssembléia Geral das Nações Unidas tomam em consideração o temaPalestina�Israel pela primeira vez em 1956, pela palavra de Freitas-Valle(Funag, 1995), apesar da grande relevância do tema desde 1947. O fatode o conflito não se ter totalmente internacionalizado, no sentido de pro-vocar uma guerra mundial ou a interferência direta e militar dos maio-res países, não significa que seu significado e suas conseqüências nãosejam do interesse de todos, particularmente do Brasil, país cujos repre-sentantes nos fóruns internacionais há muito afirmam posições de princí-pio, por outro lado condizentes com seus próprios interesses.

Os conflitos interestatais continuam no pós-Guerra Fria, apresentan-do-se como graves problemas, ameaçando o sistema internacional comoum todo. A diferença que encontramos atualmente em relação a fasesanteriores é que o sistema internacional ainda não se encontra suficiente-mente sedimentado, de forma que o movimento de cada Estado não éinterpretado como ameaça ao equilíbrio do próprio sistema, prevalecen-do a idéia de que cada movimento reflete a busca por elevação do posi-cionamento sistêmico, isto é, modificação do próprio status. Somente osconflitos que se apresentarem como excessivamente ameaçadores alcan-çarão o status que tinha a maioria dos conflitos no período da GuerraFria, quando praticamente todos eles, mesmo quando com causas especí-ficas locais, como o próprio conflito Israel�países árabes, acabava entrela-çando-se com as tensões Leste-Oeste. O contexto de um sistema interna-cional não sedimentado, porém, não tolhe o interesse global pelaconflitualidade local. Esta passa a ser de interesse geral, ainda que partin-do de perspectivas diferentes, na medida em que afeta os valores que ofim da Guerra Fria parece tornar universais, podendo afetar a ordem exis-tente. Dessa forma, mesmo que os conflitos pareçam problemas regio-nais, a resposta que prevalece no sistema internacional atual é a da inter-venção, na suposição de evitar crise maior. Podemos citar o casoIsrael�Palestina como intermediário na atual situação. Por um lado, pa-rece não estimular uma intervenção individual ou coletiva, como acon-teceu em outros casos, como os da ex-Iugoslávia; por outro, a questão

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entrelaça-se diretamente ao interesse da comunidade internacional porestar em jogo a sobrevivência de povos como o palestino e o israelense,com capacidade de mobilização da opinião internacional de forma maisacentuada que a de outros. Finalmente, existem os casos em que não háintervenção nem mesmo significativa mobilização, como vimos naque-les que interessaram a grande parte das populações de Burundi e Rwanda.

O que pretendemos discutir, partindo da compreensão dos possíveisimpactos das mudanças do sistema internacional para o conflito Palesti-na�Israel, é que no mundo atual, altamente integrado, todas as regiõespassam a ter maiores significados e importância para os integrantes dosistema. Isto é, mesmo ao ser fraca ou inexistente a capacidade de inter-venção direta, o fortalecimento no sistema internacional dos valores dejustiça, eqüidade, do direito à preservação cultural e étnica, do direito àidentidade, são objetivos que devem interessar a todos e, de fato, interes-sam ao Brasil em particular. No caso que estamos discutindo, uma açãocom perfil mais elevado, dentro da posição tradicional do país, de reconhe-cimento do direito à existência de Israel e de um Estado árabe-palestino,corresponde ao interesse de ver consolidado um sistema internacionalcom prevalência de valores universais. Essa consolidação é a base para adiscussão de temas de interesse fundamental, como o da distribuiçãoeqüitativa de riquezas.

O sistema internacional pós-Guerra Fria, quando a idéia de globali-zação acabou estendendo-se, tornando-se para muitos elemento expli-cativo de inúmeros fenômenos, apresenta perplexidades. Ao mesmo tem-po que todos estaríamos envolvidos com interesses em qualquer cantodo globo, por afetarem nossa vida como nunca antes, o poder efetivo deintervenção concentrou-se como em nenhum outro período histórico.Ao longo dos séculos, haviam prevalecido formas de equilíbrio, ou deconcerto, ou ao menos de bipolarismo. Nessa etapa, nem mesmo países-membros do Conselho de Segurança parecem ter capacidade de açõesestratégicas. Agora o poder de intervenção estratégico global parece con-centrar-se apenas nos Estados Unidos. O Brasil, ao tentar afirmar suaposição de potência média, ou simplesmente de país interessado em vera prevalência da eqüidade e o debilitamento das assimetrias, ver-se-ia obri-gado a desenvolver uma política ativa em inúmeros campos. Entretanto,diante das óbvias incapacidades materiais e psicossociais para sustentar

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esse tipo de política, vê-se forçado a encontrar outros caminhos que possi-bilitem o exercício de uma política externa coerente com os próprios inte-resses e princípios. Essa situação não é de todo nova; cabe perguntar sea extensão de valores de fato passa a oferecer novas possibilidades. Parao Brasil, o caminho que apresenta os melhores resultados com os meno-res custos é o da defesa de princípios gerais normativos, expressos em epor organizações internacionais, notadamente as Nações Unidas. Assim,abre-se a possibilidade de criar uma proteção para si mesmo, ao mesmotempo que evita o fortalecimento de elementos que sirvam como legiti-madores de possíveis intervenções unilaterais por parte de grandes po-tências. Dessa forma, a intervenção de parte dos fóruns multilaterais e ofortalecimento da ação das Nações Unidas na defesa dos direitos legíti-mos de israelenses e palestinos deveriam ser estimulados. Ao mesmotempo, sobretudo no caso do agravamento das tensões, como sucededepois do desencadeamento da nova intifada a partir de setembro de 2000,uma ação diplomática bilateral, mesmo tendo escasso peso, poderia sinali-zar para os grupos dirigentes dos dois lados o interesse brasileiro, latino-americano e da comunidade internacional.

Uma das mudanças que podemos verificar nessa fase pós-Guerra Friaé a do tratamento dos conflitos regionais. Uma interpretação simplistado fim do confronto Leste�Oeste poderia fazer pensar em diminuiçãodas tensões locais. A realidade, já comprovada a partir de 1990, indica queos conflitos locais e regionais, até mesmo internos, com conseqüênciasinternacionais (Estados multiétnicos, por exemplo), ao contrário, pude-ram externalizar mais facilmente suas dimensões e demandas. Inicial-mente deram a impressão de que se tratava de problemas que não afeta-vam outros Estados, ou pelo menos não teriam conseqüências sistêmicas.De fato, as partes em confronto não podiam contar com o respaldo quaseautomático oriundo da estrutura internacional da Guerra Fria. Portanto,chegaram a assumir características regionais e locais, dando a impressãoda real efetivação do choque de civilizações, parafraseando a formulação deHuntington. Aparentemente não interessariam esses conflitos à comuni-dade internacional. Mesmo o Iraque, ao ocupar o Kuwait, provavelmen-te tenha feito seus cálculos sobre a base de que uma conseqüência dofim da Guerra Fria seria a redução das intervenções globais. A lógica quefinalmente prevaleceu levou a resultados diferentes. No caso de Palestina

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e Israel, o fim da Guerra Fria certamente pesou na redução das reivindica-ções, na facilitação de concessões mútuas, mas estas não foram suficien-tes em face das frustrações e do risco de subalternidade sentido por boaparte da população palestina. As negociações secretas de Oslo, ainda noinício da década de 1990, mesmo quando bem-vistas pelos Estados Uni-dos e outros países, sugerem que a percepção da necessidade de resoluçãoautogerida do conflito teve peso entre a liderança palestina e israelense.Ao mesmo tempo, as forças profundas, estruturais, não deixavam de atuare de pesar no debate. Por maiores que tenham sido as concessões de am-bos os lados, essas não surgem como suficientes. No final do governoClinton, nos últimos meses de 2000, o governo Barak chegou a admitira possibilidade de alguma forma de compartilhamento da administraçãode Jerusalém; foi aceito o princípio da volta simbólica de alguns milharesde refugiados palestinos para Israel; foi reconhecido, por parte da Autori-dade Palestina, o direito dos judeus a um Estado onde ele está. Tudo issonão parece suficiente. Misturam-se percepções da política como pacto,como fato racional, com percepções do direito nacional como autônomoem relação à política, onde ganham evidência apenas as razões de um doslados, que as teria todas. A busca de todos os direitos que cada um acreditater passa a ser decisiva.

Assim, algo da análise de Huntington parece ganhar foros de verdade.

No mundo pós-Guerra Fria, as bandeiras são importantes e o mesmoocorre com outros símbolos de identidade cultural ... porque a cultura contae a identidade cultural é o que há de mais significativo para a maioria daspessoas. As pessoas estão descobrindo identidades novas, e no entantoantigas, e desfilando sob bandeiras novas, mas freqüentemente antigas ...As culturas e as identidades culturais � que, em nível mais amplo, são asidentidades das civilizações � estão moldando os padrões de coesão, desinte-gração e conflito no mundo pós-Guerra Fria. (Huntington, 1997, p.18-9)

Desse modo, a solução desses conflitos deve passar por processosde depuração de suas razões estruturais, locais e internacionais. No caso depalestinos e israelenses, alguns autores chamaram de fenômeno de ca-tarse coletiva o que vinha acontecendo na década de 1990, em que pareciafortalecer-se o debate a respeito das razões do outro. Poderíamos chamaresse fenômeno de depuração das razões estruturais locais do conflito.

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A depuração, ao mesmo tempo, deve ser fruto do interesse de toda a socie-dade internacional, com especial destaque para as organizações interna-cionais. Insistimos sobre esse papel das organizações internacionais nãoapenas porque seja do interesse dos países mais fracos no sistema, inclusi-ve do Brasil, mas porque elas são por sua própria natureza mais capazesde expressar com alguma fidelidade as diferentes direções do sistemainternacional, os interesses divergentes dos Estados e dos povos. As orga-nizações internacionais tendem a basear-se em consensos entre os Esta-dos, ainda que refletindo as assimetrias entre eles.

Nas questões do Oriente Médio, como em outras, acreditou-se queo fim da Guerra Fria, ao desestruturar a lógica sistêmica anterior, criariaincentivos cooperativos poderosos. Oslo e Madri foram seguidos de confe-rências internacionais onde se discutiram as novas possibilidades de de-senvolvimento regional, de todos os países árabes, inclusive os do Magh-reb, e de Israel, contando com o apoio dos Estados Unidos, da UniãoEuropéia e de outros países. A participação latino-americana, inclusive abrasileira, foi de baixa intensidade. Para a região do conflito pensaram-sehipóteses cooperativas significativas, até de áreas de livre-comércio com-preendendo Jordânia, Palestina e Israel, talvez outros países. A viabili-dade de uma área com capacitação high-tech também foi considerada, comocaminho para contornar a escassez de recursos, até mesmo de água.1 Co-mo foi apontado, a dimensão militar apresentava-se como de menor im-portância na nova ordem que pareceu surgir. Os acontecimentos indi-cam não ser teórica e concretamente conveniente pensar por meio dacontraposição simples: poder militar versus poder econômico. É verdadeque parte dos neoliberais na década de 1990 sugeriu corrigir essadicotomia, mostrando que relações de poder podem conviver com for-mas cooperativas. Nessa perspectiva neoliberal, haveria uma tendência aocrescimento da importância destas últimas formas. A resolução dos con-flitos que ameaçam a estabilidade e a paz nas relações internacionaiscontemporâneas passa por uma intricada relação entre os poderes militar,econômico, político e cultural. Não é possível deixar-se iludir pela mes-ma tendência simplista encontrada na Guerra Fria, agora substituindo ofator militar pelo econômico.

1 Veja adiante artigo de Riad Malki, p.81.

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O fenômeno chamado globalização e o fim da Guerra Fria criaramna vida dos povos e das pessoas condições novas. Não que essas condi-ções sejam totalmente inesperadas e desconectadas do passado, pois oselos de continuidade são evidentes, inclusive fenômenos consideradosnovos como a interdependência, os intercâmbios e o nível de aberturadas economias, que são resultado de elos anteriores. O desenvolvimentotecnológico, especialmente aquele ligado ao transporte, seja de informa-ções, seja de mercadorias ou de pessoas, abriu espaço para que os Estadose as comunidades passem a ser mais permeáveis, compartilhando pro-dutos e valores. Não por acaso, cada vez mais, temas como direitos hu-manos e meio ambiente vêm marcando as agendas internacionais. Comisso, abrem-se dois caminhos possíveis, geralmente ambos seguidos, le-vando às tensões sociais internas. Um é aprofundar essa permeabilidade,resultando na intensificação das trocas e permitindo maior pluralidadeno comportamento social; o outro caminho possível é o de formação daidentidade por meio do delineamento mais claro de fronteiras e divisões.É importante notar que em ambos os casos percebe-se um aprofunda-mento da interdependência entre as sociedades e, portanto, entre os Es-tados. A visão otimista em relação ao conflito Palestina�Israel baseia-seexatamente na suposição de que a permeabilidade tem sido inevitável nasrelações entre os dois povos. Ainda que considerando seu lado negativo,a economia palestina está umbilicalmente vinculada a Israel. Boa parte dospalestinos conhece o hebraico e a cultura judaica. Boa parte dos israelen-ses conhece o árabe e os valores islâmicos e árabes.

A estrutura internacional de poder acaba transformada diante desseaumento da interdependência, que ocorre especialmente no campo econô-mico. De acordo com Waltz (1987), a estrutura do sistema internacio-nal é a principal determinante dos resultados sistêmicos, ao encorajarcertas ações e desencorajar outras. Partindo disso, será certamente consi-derada anacrônica a lógica de Estados ou povos que parecem não ter emconta as condições sugeridas pela comunidade internacional, aceitandoarcar com os prejuízos decorrentes. Israel aceita pagar o preço, em ter-mos políticos e econômicos, das ações policiais e militares contra os pales-tinos, que realiza em nome do que considera a sua segurança. Os palesti-nos aceitam uma situação de permanentes dificuldades como preço apagar por aquilo que acreditam ser a possibilidade de uma independência

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não subalterna. No caso dos participantes desse conflito, parece haveruma verdadeira inversão da idéia que o comportamento estatal é influen-ciado pela estrutura internacional geral, por ser referência, ainda que nãocondicionante absoluto, para as estratégias de atuação.

Na discussão sobre o Oriente Médio, tendo em conta os interessesdos povos envolvidos e a possibilidade de intervenção positiva do Brasil,não podemos deixar de considerar a necessidade de soluções compatí-veis com a consistência de poder, como ensinam os realistas. Isso nãosignifica, como sugeriremos, curvar-se às assimetrias nem à lógica do po-der. Nesse caso, o estudo do sistema internacional pós-Guerra Fria poderáajudar-nos no equacionamento do tema. O fato que os Estados calculemseus interesses em termos de poder não elimina o fato que sejam leva-dos à busca de regras e instituições internacionais consistentes com seusinteresses. Isso tem como conseqüência a necessidade de formulação deregras e normas aceitáveis pelo conjunto dos participantes, o que permitesupor certos níveis de negociação. No mundo atual, o ativismo de algu-mas potências, particularmente dos Estados Unidos, pode ser compreen-dido como busca por hegemonia que, dependendo da capacidade de atua-ção de um número significativo de países de algum peso que se interessampor colocar limites a isso, poderia ter como subproduto a possibilidadede fortalecimento de instituições internacionais, visto serem estas maislegítimas para atuar em alguns campos, especialmente os conflitos, o que,por outro lado, a longo prazo significaria maior estabilidade sistêmica.Com organizações mais fortes, tanto no campo normativo quanto no daação, o sistema internacional terá uma maior tendência à multipolaridade,ou ao menos à atenuação do excesso de poder unipolar.

O conflito Palestina�Israel e, mais em geral, os conflitos da décadade 1990 e dos primeiros anos do século XXI, indicam a necessidade demelhor reflexão sobre idéias que se tornaram senso comum. Nesse senti-do, indicam também a necessidade de melhor compreensão de temas queinteressam de perto à política exterior do Brasil. De acordo com algu-mas versões do neoliberalismo econômico, o mundo atual estaria deter-minado pela globalização do capital, em suas diversas formas de expres-são. Isso tenderia a solapar a existência de instituições políticas e formasnacionais, o que teria como conseqüência que tanto os Estados quantoos organismos internacionais estariam fadados ao desaparecimento, em

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face de sua inadequação aos novos tempos. A realidade internacional nãonos permite chegar às mesmas conclusões. Mesmo focalizando apenas adimensão econômico-produtiva, não seria possível chegar àquela con-clusão. A partir do fim da Guerra Fria, o número de Estados vem aumen-tando, chegando em 2001 a aproximadamente duzentos. Alguns conflitosmostram a força que ainda tem o valor Estado nacional: IRA, Palestina eas guerras nos Bálcãs. Se reconhecermos o significado que continua ten-do o Estado nacional, o conflito Palestina�Israel torna-se contemporâneo.

Em direção contrária, as análises neoliberais das relações internacio-nais apontam para um problema também fundamental: a crise do valorsoberania e das formas clássicas de equilíbrio de poder. O equilíbrio depoder atual não está mais baseado apenas na dimensão militar, ainda quepermaneça e seja importante; tem base também na interdependência.Com isso, a soberania estatal é forçada a adquirir novos padrões de susten-tação, diferentes daqueles que a identificavam com o monopólio do po-der dentro das fronteiras nacionais. A soberania, como vem se configuran-do, passa a estar intimamente ligada à gestão dos assuntos mundiais,sendo um instrumento dos Estados para a adequação da intensidade edo tempo de assimilação das forças contidas nesta gestão mundial. OsEstados não poderiam mais, de forma absoluta, evocar a soberania nacionalcomo um escudo protetor de toda e qualquer interferência internacional nãobem-vinda. O aumento da interdependência obriga os Estados a apre-sentar uma posição mais maleável, de acordo com os princípios reinan-tes no sistema internacional. Caso os Estados não alcancem essa posiçãomais maleável, seus custos passariam a ser maiores. No caso dos Estadosmais fracos no sistema, correriam o risco de ver-se à sua margem. Essedesenvolvimento da ordem mundial apresenta resultados paradoxais. Porum lado, sugere crescentes dificuldades para os Estados que não se apre-sentam alinhados com os valores hegemônicos. No caso de Israel, comoverifica-se no período da segunda intifada (2000-2001), a batalha pelaopinião pública internacional ganhou extraordinária relevância, podendoa longo prazo ser decisiva, ao menos no condicionamento das posições.Por outro lado, o aumento da interdependência carrega em si o potencialde hegemonia por parte de uns poucos Estados. Esses paradoxos acen-tuam a importância da busca de caminhos de democratização das relaçõesentre os Estados, nas quais os direitos dos povos possam tornar-se umapossibilidade que contemple os diferentes interesses em conflito.

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O neo-realismo considera que os fundamentos básicos do sistemainternacional não mudaram com o fim da Guerra Fria. Para eles, o sistemacontinua marcado pela anarquia. O equilíbrio e a ordem, seus temas clás-sicos, para serem garantidos geram uma contínua busca pelo aumentodo poder, o que daria uma condição competitiva e conflituosa ao sistemainternacional. O resultado principal da Guerra Fria, o declínio de um doslados da balança, representa apenas uma mudança na distribuição dascapabilities entre os Estados. Assim sendo, a sobrevivência do Estado con-tinua a ser a principal influência no momento da tomada de decisões.Sem dúvida, essa perspectiva, que tem raízes profundas e busca sua seivana realidade efetiva das coisas existentes, realimenta permanentementea crença no poder como a forma para se alcançar a segurança. Deriva dessavisão a idéia de que as organizações internacionais não têm a eficácia ne-cessária para acabar com a anarquia internacional, sendo o equilíbrio depoder ainda a principal sustentação da ordem. O Estado permanece comoator principal e destacado das relações internacionais; desse modo, os pro-cessos de cooperação seriam inviáveis e inadequados se não mantiveremo equilíbrio do status quo ante. Grieco (1991) assinala que a cooperação,para se efetivar, não deve levar à mudança do equilíbrio preexistente entreos Estados cooperantes; na mesma direção, os realistas reduzem a possi-bilidade de as organizações internacionais assumirem papel de maior des-taque nas relações internacionais. Nessa perspectiva, resulta compreensí-vel e racional a intenção de Israel de aceitar um Estado palestino, massem modificação significativa nas relações de poder regionais. Na perspec-tiva palestina, um Estado nacional com a plenitude de seus poderes, nãodependente, seria a única solução possível, resgatadora dos valores nacio-nais árabes e palestinos. Evidentemente, as duas posições são contrapos-tas e indicam a dificuldade para a solução do conflito. Enfim, a não-afirma-ção de valores cooperativos, que superem a lógica das relações internacionaisclássicas, explica a dificuldade da situação e o desconforto que causa a paí-ses como o Brasil, interessados nesses valores, de forma a integrar os te-mas do desenvolvimento e da justiça.

A superação dos paradoxos colocados pelo quadro internacional pós-Guerra Fria, com seu aparente fortalecimento de valores universais, coma persistência da hegemonia sustentada sobretudo pelo poder norte-americano, com os impasses antepostos à busca de formas cooperativas,

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sugere a necessidade de fortalecimento das instituições cujas característi-cas históricas e jurídicas podem levá-las a desempenhar papel significativona administração de conflitos, evitando a escalada de violência ou apresen-tando formas de mediação entre as partes. De fato, trata-se de uma pers-pectiva específica, onde o papel dos Estados é reconhecido, mas ao mes-mo tempo é preciso equacionar situações de conflito, insuperáveis nalógica das relações de poder em sentido estrito. Cox afirma que a

institucionalização é um meio de estabilização e perpetuação de uma or-dem específica. As instituições refletem as relações de poder prevalecentesno seu ponto de origem e tendem, pelo menos inicialmente, a encorajar asimagens coletivas consistentes com essas relações de poder. Possivelmente,as instituições controlam a sua própria vida; podem tornar-se um terrenode batalha de opostas tendências. As instituições são uma amálgama parti-cular de idéias e de poder material que por sua vez influencia o desenvolvi-mento das idéias e das capabilities materiais. (1986, p.219)

As dimensões políticas interna e externa de um Estado têm nature-zas distintas. Internamente, a formatação de uma ordem segundo os inte-resses e as vontades tem viabilidade (Maquiavel, 1983), ao passo que,na dimensão externa, os governantes são forçados a se adequar, em algu-ma medida, aos parâmetros gerais da ordem internacional vigente. Dessaforma, cabe às instituições estabelecer um sistema que assegure a autono-mia necessária à política externa em razão dos fluxos seguidos pela políti-ca interna, sem afetar a coerência indispensável entre ações internas eações externas (Vernant, 1987). Nesse sentido, o conflito Palestina�Israelpareceria anacrônico. A ação internacional parece não pesar no sentidode viabilizar uma política interna e externa coerente, na busca da estabili-dade de longo prazo para os povos envolvidos. Os governantes parecemencontrar dificuldades de monta na adequação aos aparentes parâmetrosinternacionais que sinalizariam em favor de soluções negociadas. O ana-cronismo resulta, desse ponto de vista, na permanência do conflito. Osloe Madri, assim como todo o processo positivo percorrido desde entãoaté 2000, estariam mais bem enquadrados na contemporaneidade. Daí aviabilidade histórica de sua continuidade.2

2 Veja adiante os artigos de Manuel Hassassian, p.187, e Edward Kaufman e Ibrahim Bisharat,p.151.

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Conflito Palestina�Israel: anacronismo, contemporaneidade e o papel do Brasil

Os conflitos atuais devem ser considerados, mesmo nos casos de se-rem a continuidade de anteriores, no contexto novo que se abre. O fimdo bloco soviético ocorreu sem que houvesse uma guerra ou qualqueroutra aparente forma tradicional de rompimento da ordem internacio-nal, acabando com o conflito interestatal principal, que estruturou o cená-rio desde 1946. Abriu-se espaço para o surgimento de novos padrões deorganização do sistema internacional, que poderá vir a configurar-se como1) hegemônico, 2) multilateral ou 3) anárquico. No mesmo momentoem que o sistema internacional busca adequar-se às novas tendências,ainda que permanecendo indefinidas, o mapa mundial viu-se surpreen-dentemente fragmentado. Essa surpresa levou até mesmo, em diferen-tes regiões, a romper a preservação das fronteiras políticas que vinhamsendo mantidas desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Abriu-se espaçopara novas demandas e para a emergência de antigos conflitos. Assim, nãodeve constituir nenhuma surpresa a continuidade de conflitos preexis-tentes, mesmo quando o conflito interestatal principal deixa de existir.

O desenvolvimento de estratégias de segurança que ao mesmo tempomantêm as identidades domésticas e minimizam os conflitos externos émuito difícil, mas pode ser apenas perseguida por uma compreensão dasmútuas implicações de como os Estados se pensam a si mesmos e de comoeles se relacionam com os seus vizinhos. (Careoey & Hartman, 1997, p.VIII)

Aparentemente, no Oriente Médio a manutenção da identidade é con-traditória com a minimização do conflito externo.

Segundo Keohane & Milner (1996), o Estado é uma síntese dos jo-gos de poder que ocorrem em seu interior, na sociedade. Esse jogo podealterar a sua atuação internacional, mesmo quando não há alteração nosequilíbrios políticos internos. O próprio contexto internacional pode le-var a mudanças. No caso de palestinos e israelenses, a sensação de insegu-rança, ainda que com base em razões muitas vezes opostas, acaba inci-dindo, em determinados momentos, a favor da aceleração das negociações;em outros, em favor da utilização da força ou da busca de mudanças nopoder relativo. Ou seja, a racionalidade da ação do Estado está fortementeinfluenciada pela multiplicidade de agentes internos em face das respecti-vas interpretações do contexto internacional. Além disso, o Estado podedefender posições diferentes, até mesmo contraditórias, a fim de satis-

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

fazer a demanda dos grupos de interesse que o compõem. Isso se aplicatanto para Israel quanto para a Autoridade Palestina.

Atualmente, algumas barreiras entre as políticas nacional e externavão sendo erodidas, mudando, em parte, a idéia da soberania. Com isso,os Estados passam a dividir as relações internacionais com outros atoresque são não estatais. É esse mais um paradoxo do conflito: as ações degrupos não estatais acabam condicionando a ação do Estado: o papel dofundamentalismo nesse conflito é amplamente conhecido. Mesmo quan-do não conta integralmente com o apoio da maioria da população, ao fun-dir-se com reivindicações sociais obtém significativa legitimidade. Sãoos casos do Hamas, palestino, e do Shas, israelense, ainda que nesse casoo fundamentalismo nem sempre signifique ações contrárias à negociação.No que concerne à análise das relações internacionais, essas situaçõesdemonstram, contrariamente ao que ampla parte da literatura sugere,que nem sempre a ação dos atores não estatais favorece a cooperaçãotransfronteiriça.

Sem dúvida, no conflito Palestina�Israel, como vimos, coexistem am-plamente anacronismos e contemporaneidade. Analisá-lo apenas de umponto de vista seria não apenas impossível, mas também incorreto. Essetipo de conflito parece um recuo a relações pré-modernas, quando podetambém representar um modelo de situações que poderão repetir-se, tan-to no plano internacional quanto no plano interno em países cultural esocialmente diversificados. É nesse contexto que se deve discutir a políticabrasileira e suas possibilidades.

A posição do Brasil e os princípios em jogo

Em linhas gerais, há uma diretriz histórica homogênea e contínuana posição brasileira em relação ao conflito Palestina�Israel, posição es-boçada desde 1947. Ela começou a tomar forma no momento em que oBrasil, assim como a comunidade internacional, foi chamado a se manifes-tar formalmente a respeito da questão. Diretriz histórica homogênea econtínua nem sempre significou atuação autônoma, coerente com as ne-cessidades de longo prazo do Brasil. As razões do posicionamento brasilei-ro, no final da década de 1940, fortemente condicionado pela posição dosEstados Unidos, secundariamente pela posição da Igreja e pelas relações

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Conflito Palestina�Israel: anacronismo, contemporaneidade e o papel do Brasil

com seu mais importante vizinho, a Argentina, já as discutimos (Vigevani& Kleinas, 2000). Na decisão das Nações Unidas referente à Partilha daPalestina, de novembro de 1947, o Brasil é em geral lembrado pela atua-ção de Aranha, como presidente da Assembléia da ONU, com atuaçãoconsiderada relevante para o desenrolar daqueles acontecimentos. As po-sições de Aranha nem sempre foram claramente formuladas pelo Ministé-rio das Relações Exteriores; o então ministro Fernandes dificultava umaação que tivesse em conta os interesses estratégicos do Brasil. Na formu-lação de Pimentel,

Aranha empenhou-se para facilitar a obtenção de um consenso e de-sobstruir o ardiloso curso dos trabalhos, contribuindo para aprovar umplano que ele sabia imperfeito, mas que não deixava de atender aos interes-ses ocidentais e brasileiros. O desempenho do estadista assegurou ao Bra-sil um papel essencial na adoção da Resolução n.181. O texto estabeleciaum regime territorial internacional para Jerusalém, um corpus separatum,fundamentado na singular dimensão espiritual e universal da cidade.3

A posição brasileira, ainda segundo Pimentel, baseava-se na lógicados constrangimentos, não sendo a melhor solução na opinião do gover-no e do Ministério das Relações Exteriores. Inicialmente, o Brasil acredi-tava na possibilidade de uma solução federativa.

Nos anos e décadas seguintes, a posição brasileira sempre se baseouna tentativa de preservação do princípio da defesa dos direitos de todosos Estados da região, sem deixar de apresentar perplexidades, até ambi-güidades. Em ocasião da Guerra de Suez, em 1956, o Brasil defendeu oprincípio da livre navegação pelo canal dos navios de todos os Estados, oque deveria ser compatível com a plena soberania egípcia (Freitas-Valle,in Funag, 1995). Depois disso, o Brasil participou de uma experiênciaque poderia ter sido altamente relevante tanto para o fortalecimento daposição do país em relação ao Oriente Médio e ao conflito Palestina�Israel,como para a formulação de uma doutrina brasileira para as operações depaz, para políticas de peace keeping, que passam a ser um tema central dasrelações internacionais na década de 1990 e no início do século XXI. �AUnef entrou em operação em novembro de 1957, e o Brasil dela participou

3 Veja adiante o artigo de João Vicente Pimentel, p.287.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

de janeiro de 1957 a junho de 1967, quando foi encerrada� (Breda dosSantos, 2000, p.39). A análise e a reconstrução da política brasileira nestecaso são feitas por Norma Breda dos Santos,4 que demonstra claramenteas razões da debilidade da experiência. A ação diplomática, por sua vez,mantém-se voltada para a eqüidistância. Reunião dos embaixadores brasi-leiros no Oriente Próximo, realizada em Roma em abril de 1965, reiteraas posições amadurecidas anteriormente e que não se modificaramsignificativamente com as mudanças políticas havidas no Brasil em 1964.

Recomenda a Reunião que continue a diplomacia brasileira a manter,em face do conflito árabe-israelense, a posição realista, imparcial e equâni-me já constante de instruções específicas da Secretaria de Estado e que é ade ver no Estado de Israel uma realidade do cenário internacional, com aqual, posto que ela existe, sente-se o Brasil perfeitamente livre para condu-zir relações bilaterais e legítimas, mas ressalva sendo feita de que o reconhe-cimento da realidade estatal de Israel não implica endosso total ao statusquo vigente na Palestina. (Ministério das Relações Exteriores, Circularn. 6.102, 12.5.1966)

Em geral, a manifestação concreta da posição perante as questõesdo Oriente Médio deu-se em ocasião dos debates nas Nações Unidas,particularmente nos momentos em que o Brasil tinha assento no Conse-lho de Segurança. A Resolução n.237 do Conselho, apresentada por Ar-gentina, Brasil e Etiópia, depois do conflito de junho de 1967, aprovadano dia 14 de junho, restringia-se à recomendação da defesa de princípioshumanitários. A Resolução n.242, aprovada por unanimidade no Conse-lho de Segurança em 22 de novembro de 1967, também contou com oapoio brasileiro, depois de acertada a concordância de Egito e Israel. Se-gundo Pimentel, �a Resolução n.242 permanece até hoje como elementonormativo central das negociações entre árabes e israelenses�5 e pontode partida da posição na região. Na sessão ordinária da Assembléia Geraldas Nações Unidas de 1967, Magalhães Pinto reitera a posição brasileira:

As manifestações recentes do conflito entre árabes e israelenses, comconseqüentes sacrifícios humanos e materiais, nos impõem o dever de en-

4 Veja artigo neste livro, p.263.5 Veja adiante p.287.

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Conflito Palestina�Israel: anacronismo, contemporaneidade e o papel do Brasil

contrar o caminho para negociações realistas e objetivas que levem a umasolução conciliatória entre os Estados em causa. Já tive a oportunidade,durante a Quinta Sessão Especial de Emergência, de definir a posição demeu país sobre a questão. De um lado, reconhecemos a existência do Estadode Israel, com todos os direitos e prerrogativas de uma nação soberana;por outro lado, reconhecemos a validez, conforme acentuei naquela oca-sião, de muitas e importantes reivindicações dos países árabes. O que é dese evitar é a permanência de um estado de beligerância entre membros daOrganização, com episódios militares e prejuízos substanciais para a econo-mia, tanto de Israel quanto dos Estados árabes, e riscos constantes para apaz mundial. (Magalhães Pinto, in Funag, 1995, p.223)

De acordo com as análises de Breda dos Santos (2000) e de Lessa(2000), até a guerra de 1973 a posição brasileira foi a de buscar uma saí-da negociada e capaz de comportar os anseios das partes em litígio, tendocomo premissa formal a justiça e a paz, a serem alcançadas mediante nego-ciações no seio da comunidade internacional. Em verdade, sinais de mu-danças na política brasileira já vinham se dando, particularmente as deter-minadas pelas necessidades econômicas derivadas do modelo econômicoimplantado pelo governo militar de Médici. O Brasil mudou a sua orienta-ção diplomática para a região, adotando uma postura mais pragmática, quepermitiria atender os interesses nacionais em detrimento das relaçõesde eqüidistância que dominavam a pauta de atuação brasileira nos orga-nismos internacionais até então. O peso da questão do petróleo é am-plamente conhecido, ao que deve acrescentar-se a transformação, a partirdesse momento, da questão palestina de tema retórico para tema concretode política internacional. O petróleo, que em 1972 corresponde a 9,6%das importações, passa a ter um peso crescente, alcançando em seu auge,em 1983, 53,01% do valor total das importações brasileiras.

As mudanças ganham contorno formal no governo Geisel, sendo es-pecificamente formuladas pelo discurso diplomático brasileiro a partirde 1974. No discurso pronunciado naquele ano, em ocasião da sessãoanual da Assembléia Geral das Nações Unidas, Azeredo da Silveira afirma:

A questão do Oriente Médio deveria merecer de todos nós uma aten-ção constante e real. É surpreendente � diria até chocante � verificar que oMundo parece voltar suas preocupações para o Oriente Médio apenas quan-do se produzem crises de natureza bélica nessa conturbada região. A proble-

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

mática que, há tantos anos, aflige os povos do Oriente Médio deveria im-por à comunidade internacional a preocupação de cooperação contínua ecriadora. Dentro desse contexto, o cumprimento do dispositivo na Resolu-ção 242 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, se é verdade queconstitui, possivelmente, uma das condições indispensáveis para o encami-nhamento da solução do problema, não esgota o conjunto de medidas es-senciais à consecução dos objetivos mais amplos de paz, segurança, tranqüi-lidade e desenvolvimento econômico e social dos países da região. (Funag,1995, p.306)

Nessa ocasião, o ministro das Relações Exteriores é incisivo na conde-nação da política de Israel: �A objeção à guerra de conquista é uma cons-tante na História do Brasil�. Contrapondo-se à política de Israel que sem-pre insistiu na idéia de fronteiras seguras, afirma que �tranqüilas só serãoas fronteiras negociadas e reconhecidas, por todos e para o bem de to-dos�. Enfim, a política do pragmatismo responsável indica a necessidadede adequações. A questão palestina passa a ser verbalizada como temacentral: �É impossível à comunidade nas Nações omitir-se nos seus esfor-ços inclusive junto aos povos do Oriente Médio, para que atendam, comas medidas adequadas, ao sofrimento do povo palestino� (Saraiva Guer-reiro, in Funag, 1995, p.306-7). Essa mudança de ênfase na política brasi-leira para a região não pode ser atribuída apenas aos fatores conjunturais.No caso tem a ver com a crença de que novos horizontes estariam se abrindopara os países subdesenvolvidos e com as novas possibilidades de ordemmais geral, inclusive estratégicas, para o Brasil. De todo modo, as deci-sões subseqüentes, o que inclui o voto a favor da condenação do sionismocomo forma de racismo, que será aprovado pelas Nações Unidas, não sig-nificou uma ruptura plena com a tradição anterior. Para a diplomacia bra-sileira, a orientação que deriva do pragmatismo responsável não altera-ria totalmente o princípio do reconhecimento do direito de Israel, apenastornaria mais visível o apoio aos direitos palestinos.

Para Breda dos Santos (2000), teria havido mudança no padrão brasi-leiro de ação perante o Oriente Médio a partir de 1973, padrão que semdúvida foi reconsiderado na década de 1990. Pimentel, ao resumir seusargumentos, sinaliza no sentido da coerência básica:

Uma análise serena do padrão de votação do Brasil nas Nações Unidasdesde 1947 sobre as questões do Oriente Médio revela um consistente

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Conflito Palestina�Israel: anacronismo, contemporaneidade e o papel do Brasil

pragmatismo em defesa dos interesses brasileiros, que são condicionadospor elementos da realidade tais como: a) a relevância político-diplomáticada região no contexto internacional e, em particular, para um país como oBrasil, que busca adequar sua inserção e visibilidade aos seus objetivospermanentes e imediatos; b) os meios disponíveis para uma atuação conse-qüente; c) a presença no Brasil de expressivas e influentes comunidadesárabe e judaica; d) a manifesta preferência das lideranças dessas comunida-des por um encaminhamento pacífico das pendências do Oriente Médio,uma vez que a paz providenciaria o cenário adequado à intensificação dointercâmbio, seja no âmbito familiar, seja no econômico-comercial; e) aimportância estratégico-econômica do Golfo Árabe/Pérsico, região ondese concentra cerca de metade das reservas mundiais de petróleo, e o fatode os países do Golfo, tradicionais fornecedores de petróleo ao Brasil, consti-tuírem importante mercado consumidor/reexportador, além de serem inves-tidores internacionais.6

Entendemos que as duas perspectivas não são necessariamente dis-tintas. O pragmatismo brasileiro deve-se à necessidade de adequar a pró-pria política às suas capabilities, mas também à necessidade de instrumen-talização da política exterior na perspectiva do interesse brasileiro, sempreligado às questões do desenvolvimento. Nosso argumento é que hoje,no pós-Guerra Fria, o interesse brasileiro, como sugerimos na primeiraparte deste texto, exige uma intervenção de perfil significativamente maiselevado, na perspectiva de garantir os direitos de todos os povos da re-gião, particularmente de palestinos e israelenses, como forma de dar sus-tentação à própria perspectiva no campo internacional, que visa a um or-denamento mais equilibrado, com políticas especificamente voltadas àatenuação das estruturas hegemônicas. Daí nossa argumentação a favordo fortalecimento do instituto do multilateralismo, com papel mais rele-vante de parte dos países interessados na democratização das relaçõesinternacionais.

A posição do Brasil em diferentes temas de relações internacionaistem sido interpretada, para as questões que parecem não atingir o interessenacional vital e imediato, como reativa, muitas vezes situando-se na áreado low profile. Essa situação deriva de diferentes considerações: o poderdo país, relativamente baixo; a débil ou mesmo inexistente capacidade

6 Veja adiante p.287.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

de intervenção (Lannes, 1999); a necessidade de evitar áreas adicionaisde atrito com países com os quais temos relações relevantes. De todomodo, na questão do conflito Palestina�Israel, a tendência à eqüidistância,certamente malcompreendida em diferentes ocasiões por árabes e israe-lenses, pode oferecer um capital político de alta relevância para neste iní-cio de século XXI alcançar, se não uma situação de high profile, impossí-vel, ao menos uma posição de destaque político, necessária aos interessesbrasileiros, visto que a prevalência dos direitos tende a tornar-se um temacentral no pós-Guerra Fria, ainda que com os obstáculos reconhecidos.

A experiência da década de 1990, com seus sucessos e com seus fra-cassos, quando o papel orgânico das Nações Unidas na questão Palesti-na�Israel foi relativamente reduzido, até mesmo na indução das negocia-ções, sugere a importância dos mecanismos multilaterais (Rodrigues,2000). Estes, se tornados efetivos, com os meios necessários para alcançarseus objetivos, ao assegurar os direitos, acabarão por interessar tambémaos que os consideram prejudiciais. Na atualidade pós-Guerra Fria, nãohaveria outra forma de atenuação da lógica hegemônica e unipolar. Nessecaso, ainda que de forma racional e sem ultrapassar as possibilidades doEstado, colocar-se-ia a potencialidade de maior protagonismo. O fato deo Brasil sempre ter atuado no quadro das Nações Unidas no tocante aesses conflitos fortalece essa posição, sem restringir a necessidade deações bilaterais mais adequadas.

Concluiremos apresentando alguns dados relativos ao comércio doBrasil com os países da região. Esses dados demonstram a pequena rele-vância econômica que os países árabes e Israel têm para a economia brasi-leira e, inversamente, a irrisoriedade do comércio brasileiro para todosos países da área. Esse quadro não pode ser modificado a curto prazo,tendo em vista as condições estruturais daqueles países e do Brasil. Ospaíses árabes mais ricos são sobretudo os grandes produtores de petróleo.O Brasil, por diferentes motivos, entre eles as dificuldades que a depen-dência da região provocou, reorientou suas compras de hidrocarburospara a América Latina, particularmente Argentina, Venezuela e Bolívia.O Brasil tem pequena contribuição a dar às necessidades de equipamentose serviços de alto valor agregado, e o comércio existente do Brasil para aárea compõe-se particularmente de commodities, sobretudo alimentares.Ao mesmo tempo, o incremento do papel político do Brasil na região, que

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Conflito Palestina�Israel: anacronismo, contemporaneidade e o papel do Brasil

não deve ser superestimado, poderia ser acompanhado de uma melhoriadas relações econômicas em geral, não apenas comerciais. Durante semi-nário organizado pela Fundação Alexandre de Gusmão do Ministério dasRelações Exteriores do Brasil e pelo Conselho dos Embaixadores Ára-bes em Brasília, em junho de 2000, foi sinalizada a potencialidade dasrelações entre a região e o Brasil e o Mercosul. As atitudes empresariais,expressas na ocasião por Atallah (2000) e Furlan (2000), sugerem pos-sibilidades que merecem ser exploradas, incluindo a melhor utilizaçãodos relacionamentos existentes entre brasileiros originários da região ecomunidades do Oriente Médio. Isso se aplica particularmente às relaçõescom palestinos e israelenses. O Instituto Truman da UniversidadeHebraica de Jerusalém tem desenvolvido estudos demonstrando que pe-quenos investimentos nas regiões que, segundo os acordos de Oslo e deMadri, devem constituir o novo Estado palestino, poderiam contribuir paraa criação de uma economia com razoável auto-sustentação.

De forma a visualizar o significado do comércio brasileiro com ospaíses árabes e Israel, apresentaremos alguns dados que confirmam asconsiderações acima. Para todos os países árabes, o Brasil exportou em1999 o correspondente a US$ 1.544.149.000, num universo de exporta-ções de US$ 48.011.444.000, correspondendo, portanto a 3,22% do to-tal. As importações alcançaram US$ 2.880.476.000, num total de US$55.783.342.000 importados, 5,16% do total. A porcentagem significati-vamente maior das importações resulta do fato de o Brasil continuar im-portando petróleo da região. As exportações dirigem-se pela ordem deimportância para Arábia Saudita, Egito e Emirados Árabes Unidos. As im-portações provêm sobretudo da Argélia e da Arábia Saudita, seguidospelo Iraque. Com exceção do Egito, economia de maiores dimensões, asimportações brasileiras provenientes da Síria, do Líbano e da Jordâniasão mínimas, alcançando os três países somados aproximadamente US$9 milhões em 1999. Diferente é a situação das exportações brasileiras,que alcançam para os três países aproximadamente US$ 127 milhões. Édifícil entre os números detectar o que poderia destinar-se à populaçãoadministrada pela Autoridade Palestina.

No tocante ao comércio com Israel, a situação inverte-se, tendo em vistaa competitividade tecnológica daquele país. Em 1999 o Brasil exportou US$66.116.947, correspondendo a 1,38% do total. Importou US$ 214.758.765,

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3,85% do total. Nesse caso, as importações referem-se sobretudo a produ-tos químicos; as exportações, a produtos manufaturados de baixo valor agre-gado (fios de cobre) e produtos agrícolas e derivados (Fonte: Secex, 2000).

Em relação aos países da região deve-se acrescentar um fluxo turísticode razoáveis dimensões, alimentado pelas populações de origem síria elibanesa, de origem judaica e pela diáspora palestina.

Questão importante a ser compreendida, tendo significativa relaçãocom os temas que se referem ao ordenamento internacional desejável, éa dos investimentos. Os países árabes produtores de petróleo têm capitallivre. Parte deles flui para os países pobres, inclusive para os da AméricaLatina, mas a lógica de funcionamento do sistema financeiro internacionalimpede que esse fluxo se dê de forma direta, sem a intermediação daspraças financeiras reconhecidas, em princípio menos sujeitas às instabili-dades do Terceiro Mundo.

O conflito Palestina�Israel, seu anacronismo e sua contemporanei-dade, não pode ser estudado fora de seu contexto dinâmico. Como dis-cutimos ao longo do texto, há, efetivamente, elementos de anacronismoe elementos de contemporaneidade, o conflito não é alheio ao mundocontemporâneo pós-Guerra Fria. Há terríveis dificuldades, mais que se-culares, para sua superação, as quais devem ser compreendidas não esta-ticamente, mas dinamicamente, no quadro das mudanças em curso nosistema internacional. Essas mudanças vêm alterando as característicasdesse sistema. Não é casual que na década de 1990 tenhamos assistidoao movimento simbolizado por Oslo e Madri. Seu fracasso � temporárioou permanente, ainda não sabemos � não tolhe a necessidade de descor-tinar novos horizontes. Discutir o tema no Brasil, como fizemos em abrilde 2000, no seminário organizado pela Área de Assuntos Internacionaisdo Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, tem aver com a necessidade de estudar e de analisar a questão numa perspectivaacadêmica, o quanto possível desprendida, de modo a buscar os mecanis-mos profundos, de longo prazo, que produzem as situações que conhe-cemos, que a humanidade toda conhece e acompanha. A preocupaçãono Brasil pelo tema não é neutra. Há laços que interessam a muitos. Háo interesse específico do país, cujo papel deveria ser o de participar, aindaque modestamente, de forma intensa dos movimentos pelo equaciona-mento do conflito dentro de parâmetros minimamente aceitáveis por pales-

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Conflito Palestina�Israel: anacronismo, contemporaneidade e o papel do Brasil

tinos e israelenses. O interesse do Brasil não é apenas o de defender princí-pios, mas também o de defender sua própria concepção do ordenamentointernacional desejável no século XXI.

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2O fracasso das negociações de paz

Israel�Palestina*

Peter Demant**

�Bekhiya le-dorot� � algo a lamentar por gerações...

A explosão palestina, há muito profetizada por observadores e críti-cos, está acontecendo já há mais de sete meses. A revolta popular de ou-tubro de 2000 contra a ocupação israelense da Cisjordânia, Gaza e Jerusa-lém oriental sucedeu ao colapso das conversações de paz. A questão aser explicada aqui não é o porquê do fracasso: afinal de contas as posiçõespareciam desde o começo distantes demais para serem superadas. Como

* Paper apresentado no X Congresso Internacional da Associação Latino-Americana de Es-tudos de Ásia e África (Aladaa). Universidade Cândido Mendes (Ucam). Centro de Estu-dos Afro-Asiáticos. Rio de Janeiro, 28 de outubro de 2000.

** Professor visitante do Departamento de História da FFLCH � USP; Senior Research Associatedo Harry S Truman Research Institute for the Advancement of Peace da Hebrew Universityde Jerusalém. Tradução: Eliane Maria Rosenberg Colorni.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

ponto a ser observado permanece a contradição entre uma paz quase al-cançada, cujo fracasso provocou uma deterioração tão dramática e inéditaque parece impossibilitar, por um prolongado período, qualquer paz. Essapaz quase alcançada é ainda mais marcante porque uma série de fatorespolíticos, militares, socioeconômicos e ideológicos negativos, associadaao processo de Oslo, tinha já tornado um sucesso de última hora bastanteimprovável. Ambos os líderes tinham um restrito espaço de manobra,porém Ehud Barak, na ocasião primeiro-ministro de Israel, quebrou umantigo tabu político ao oferecer a divisão de Jerusalém. Foi um risco plane-jado do líder israelense, que tinha apostado seu futuro político num acor-do de paz. Por que Yasser Arafat, politicamente menos dependente deum acordo de paz do que seu parceiro israelense, rejeitou essa propostaisraelense bastante ampla � certamente a melhor que ele poderia esperarconseguir com qualquer negociação? Uma compreensão do pensamentopolítico subjacente à negativa palestina nos ajudará a entender o atualimpasse. Será argumentado aqui que as causas para a recusa palestinadevem ser encontradas em sua cultura política: por um lado, a distânciaentre os objetivos que os palestinos poderiam esperar conseguir na realida-de, e aqueles que a própria liderança de Arafat tinha induzido o povo aconsiderar como o mínimo, forçando-o, no final, a se comprometer com isso;por outro lado, a ausência de contrapropostas palestinas flexíveis a des-peito de extensas pré-negociações, levando a um impasse. Ambos os fato-res podem na verdade ser creditados a uma falta de verdadeira democra-tização da sociedade palestina, pela qual ambas as sociedades são culpadas.

Ao encerrar as conversações sem nenhuma perspectiva de solução,as lideranças efetivamente condenaram suas nações a uma nova rodadade violência como única alternativa. Ainda que a precisão e a extensãoda �intifada de al-Aqsa�1 tenha surpreendido as lideranças palestinas, elasrapidamente exploraram a revolta e o número de vítimas causadas porIsrael. Arafat vê a revolta como uma estratégia propagandística que au-menta a pressão internacional sobre Israel. Seu objetivo parece ser o deenfraquecer Israel a ponto de poder forçar a aceitação de um acordo em

1 A revolta é chamada de intifada em honra da revolta palestina anterior de 1987-1993, e de�al-Aqsa� em honra à mesquita no Haram al-Sharif (Monte do Templo), sinalizando a cen-tralidade de Jerusalém nas demandas palestinas atuais. Recentemente foi rebatizada de �in-tifada contra a colonização�.

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termos palestinos. Olhando para quatro possíveis cenários, achamos queesse resultado, ainda que preferido pelos palestinos, é apenas um entreuma gama de possibilidades que vai desde uma retomada das conversa-ções nos termos originais até uma guerra total. Concluímos que um con-flito prolongado de baixa intensidade sem saída política, combinandorevolta palestina e auto-isolamento físico israelense, é o percurso maisprovável num futuro próximo. Isso não trará ganho político a nenhumdos dois, tornando apenas mais difícil uma solução negociada do conflito.

As falhas do processo de Oslo

A atual crise, iniciada em 28 de setembro de 2000, data da provocativavisita de Ariel Sharon ao Haram al-Sharif, e ampliada por uma ampla re-volta popular contra Israel, levou, em curto espaço de tempo, a uma com-pleta estagnação na comunicação entre Israel e Palestina. A explosão deviolência recíproca, porém, não foi totalmente inesperada para observado-res que vinham seguindo as relações israelense-palestinas nos últimosanos. Já antes do fracasso da última cúpula, tanto sinais de radicalizaçãoentre os palestinos como uma crescente impaciência do lado israelensesinalizavam problemas. O processo de paz deveria manter essas forçassob controle, mas profundas divergências entre o mínimo possível paracada um dos lados mostrava que o processo de paz tinha se enfraqueci-do há algum tempo. Entre as causas de longo prazo que afetavam os pales-tinos, algumas se destacam:

1) A percepção de unilateralidade da Declaração de Princípios de1993. Ambos consideravam que os Acordos de Oslo favoreciam demaiso lado adversário. Este era o pecado original do processo da paz. O Acordode Oslo subjacente a todas as conversações de paz era um reflexo do equi-líbrio de poder em 1991-1993, que pendia na verdade em favor de Israel:não havia garantias de que os resultados incluiriam um Estado palestinoindependente, a questão de Jerusalém foi por muito tempo um tabu etc.Quando os palestinos se tornaram mais assertivos esse desequilíbrio setornou cada vez menos aceito.2

2 A análise palestina mais compreensiva dos Acordos de Oslo é ainda a de Edward Said, �Peaceand its discontents�, de 1995. Contudo, o Acordo de Oslo era também, em alguns aspectos

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2) Contínua ocupação israelense de áreas palestinas. Nada revoltavamais os palestinos do que o contraste entre a esperança da liberdade e arealidade da ocupação. Enquanto as negociações se arrastavam sem muitaperspectiva, humilhações e violação dos direitos humanos continuavama ser perpetradas nos territórios por soldados israelenses. Durante todo oprocesso de paz, expropriações de terra continuaram inabalavelmente; adistribuição de água discriminava os palestinos; a luta contra palestinosradicais violentos levou em muitas ocasiões a fechamentos � por vezesprolongados � dos territórios palestinos, às vezes mesmo isolando umacidade da outra, transformando os palestinos em prisioneiros dentro desuas próprias casas. Isso foi acompanhado por prisões em massa, destrui-ção de casas de parentes e/ou partidários de terroristas condenados etc.

3) A contínua colonização israelense esvaziou as negociações de paz.As negociações não foram apenas longas demais mas também gradual-mente despojadas de seu conteúdo em parte como resultado da extremaavareza de Israel � particularmente sob Netanyahu (1996-1999). A maio-ria dos governos de Israel impôs aos palestinos, nos períodos de negocia-ção, mudanças forçadas e contínuas no status quo, como, por exemplo,expansão dos assentamentos e a judaização de Jerusalém oriental. A polí-tica colonizadora de Israel foi vista como uma paródia hipócrita das conver-sas de paz.

4) O �déficit democrático� do processo de paz. As estruturas autori-tárias da política palestina desenvolvidas em conseqüência dos Acordosde Oslo foram provavelmente a maior fraqueza. O Acordo de Oslo quasenão tinha sido discutido em público antes de ser oficialmente aceito porambas as lideranças. A ocupação israelense foi substituída pelo estabele-cimento do regime despótico e ineficaz de Arafat, apenas semidemocráti-co, com fortes tendências autocráticas (que Israel solenemente ignorou).A não ser pelas eleições de 1996, nunca foi submetido a um referendono lado palestino. Isso não quer dizer que a população palestina rejeitouo processo de Oslo. Enquanto as negociações traziam resultados concre-tos, tais como retiradas israelenses limitadas dos territórios palestinos,relaxamento de tensões militares com o mundo árabe etc., ele foi aceito

críticos, desfavorável a Israel, o que o torna vulnerável à crítica aguda da direita israelense.Segundo ela, Israel concordou em retiradas territoriais limitadas e em armar as forças desegurança palestinas � em troca de pouco mais do que garantias verbais.

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em virtude de seus resultados, especialmente no período 1994-1995. Poroutro lado, quanto mais claras ficavam a fragilidade e a instabilidadedestes resultados, mais o apoio popular diminuía.

5) Fracasso no progresso econômico e interdependência econômicaIsrael�Palestina. O processo de paz não trouxe aos palestinos o tão espe-rado �dividendo da paz�. Ao contrário, a sociedade palestina passou poruma infeliz polarização estreitamente relacionada ao processo de Oslo.Uma nova elite de novos-ricos surgiu, com poder baseado em clientelismoe intimidação e cuja limitada legitimidade se baseava na habilidade deobter para sua clientela uma continuada série de avanços no processo depaz. A maioria palestina, contudo, sentia pouco progresso em sua miserá-vel situação socioeconômica: nem na Cisjordânia nem em Gaza houvemelhoras. Alem disso, a infra-estrutura econômica para a paz permane-ceu fraca. Enquanto a comunidade internacional ajudou muito menosdo que o prometido, o principal erro foi de Israel. Houve pouco investi-mento israelense nos territórios palestinos, algumas joint ventures. Emvez de criar uma densa rede de interdependência econômica (por exem-plo, abrindo o mercado israelense para produtos manufaturados e agríco-las palestinos), Israel abriu seu mercado interno só hesitantemente, ede certa forma optou por uma política separacionista de longo prazo. Poroutro lado, os produtos agrícolas dos colonos israelenses são amplamente,e com sucesso, vendidos em Israel. Essencialmente, o único lucro foiobtido por companhias israelenses que produziam sapatos �italianos�baratos e tecidos mediante subcontratação barata de mão-de-obra pales-tina. A exploração trabalhista daí resultante, ainda que trouxesse rendaàs famílias palestinas, pouco fez para que Israel fosse vista com bons olhospelos árabes e somente reforçou o medo do imperialismo econômico is-raelense. Desse modo mesmo os pequenos investimentos feitos milita-vam contra uma aproximação! Enquanto investidores privados não po-dem ser obrigados a colocar seu dinheiro no que aparenta ser um territórioinstável, perigoso e falido, o governo israelense poderia ter criado, se qui-sesse, laços mais estreitos. Resumindo, o processo de paz e suas conse-qüências sociais pioravam as desigualdades econômicas ao invés demelhorá-las.

Ao lado desses fatores de longo prazo que afetavam o apoio ao proces-so de paz do lado palestino, podemos revelar mais duas fraquezas queinfluenciaram o campo israelense.

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6) A deslegitimização do processo de paz em seguida à violência fun-damentalista muçulmana. Do lado israelense somente os mais esquerdis-tas aceitariam o argumento palestino de que os Acordos de Oslo eramdesequilibrados. Uma parte substancial da população judaica se opunhaa esses acordos por razões ideológicas. Porém, insidiosamente, o processoperdeu sua legitimidade mesmo entre os que o apoiavam. Isso aconte-ceu em conseqüência da violência dos islamistas fundamentalistas, quefoi somente em parte denunciada e reprimida pela liderança palestina,alimentando assim a falta de confiança de Israel nesse parceiro.

7) Fragilidade da educação para a paz. O processo de paz permane-ceu sempre um evento entre duas lideranças em vez de se transformarnum processo de aproximação entre dois povos. Tentativas de criar recon-ciliação entre os povos � nas esferas de educação, imprensa, encontrosde base � permaneceram superficiais e se restringiam ao grupo dos �jáconvertidos�. Não surpreendentemente, isso incluía mais israelenses doque palestinos. Do lado palestino a participação e as iniciativas �do povopara povo�, chamadas �P2P” (people-to-people) freqüentemente se enca-deavam com as carreiras daqueles grupos de elite que dependiam doprocesso de paz.

Como resultado dos fatores acima, a revolta popular contra o proces-so de Oslo já espreitava antes de Barak e Arafat irem a Camp David. Nocomeço de 2000 e mesmo antes, a cooperação israelense-palestina tinhase tornado mais tênue, e a �normalização de relacionamentos� nos aspec-tos econômicos e culturais estava sob pressão dos palestinos. O pessimis-mo reinava quanto à possibilidade de uma virada nas negociações. A insa-tisfação, principalmente entre os palestinos, era tão grande que o fracassofinal de negociações significativas � como as de agosto de 2000 � fatalmentetrouxe de volta os confrontos violentos.

O poder remanescente das forças extremistas

À fragilidade inerente ao processo deve ser acrescentada a força dasoposições, que apresentam interessantes paralelos. Em ambos os lados,a maioria da oposição é constituída por uma substancial minoria da popu-lação; está centrada nos elementos mais conservadores e religiosos; é

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unida por uma ideologia fundamentalista coerente que rejeita os acor-dos territoriais contidos no modelo de Oslo, e na verdade nega qualquerdireito coletivo ao outro lado. Em ambos os casos, só os extremistas daoposição estavam originalmente dispostos a usar de violência, mas com aescalada os seguidores moderados se tornam cada vez menos numerosos.

Do lado israelense, os colonos são somente a cabeça de lança da extre-ma direita. Mesmo que os partidos ultranacionalistas tenham se saídomal nas eleições de 1999, até a erupção da nova intifada, os dois maioresgrupos da sociedade israelense � os direitistas-orientais-tradicionalistas-religiosos contra os esquerdistas-asquenazes-seculares � permaneciamnumérica e politicamente equilibrados. Calculando por baixo, a direitaexpansionista sionista podia presumivelmente ainda contar com um terçoda população israelense judaica. Isso incluía quase todos os colonos eparte de seus familiares que moravam em outras partes de Israel, a gran-de maioria do eleitorado religioso e boa parte da direita secular. O Likudestá em crise ideológica desde que aceitou o Acordo de Oslo mas aindamantém bastante força. Entre os colonos, só um grupo de fanáticos, esti-mado pela Inteligência de Israel em cerca de cinco mil, era conhecido porseus planos extremos para evitar a evacuação. Eles planejavam violentosincidentes contra palestinos, para forçar o exército israelense a vir emsua ajuda, e aceitavam mesmo o uso da violência contra seus companheirossoldados judeus.3

A direita israelense permaneceu suficientemente forte para evitar,após as eleições de 1999, um governo de caráter claramente esquerdistaque perseguisse um programa de paz. Em vez disso, o vencedor Barakfoi constrangido a aceitar uma coalizão que incluía a direita religiosa, queminava as negociações com os palestinos. Ao mesmo tempo o lobby dos

3 Isso mostra uma receita muito usada: os extremistas se colocam expressamente em situaçõesem que podem causar danos físicos a si mesmos com a finalidade de manipular interven-ções a seu favor � intervenções que em seguida ameaçam o processo de paz. Se o resultadoprovocar acusações internacionais contra Israel e/ou gerar incidentes de anti-semitismo,�tanto melhor�. Isso serviria, em primeiro lugar, para confirmar sua cosmovisão de que �omundo inteiro é contra nós�, minando a hipótese universalista da esquerda de uma coexis-tência possível entre judeus e gentis (o que arrisca assimilação). Em segundo lugar, estan-do em perigo no exterior, judeus não teriam outra escolha a não ser imigrar para Israel, oque reforçaria o �Ingathering of the Exiles� e o Estado judaico. Sobre a ideologia dos colo-nos, cf. Lustick (1988).

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colonos permanecia forte o bastante para impedir qualquer interrupçãoda colonização nos territórios palestinos. O resultado foi uma situaçãona qual os palestinos desconfiavam de Barak, mas Barak tinha as mãosatadas pela direita. Portanto, suas últimas propostas, ainda que tenhamido muito além do aceito no seu próprio governo, vieram tarde e fracassa-ram. Eventualmente, o efeito bumerangue disso levou à derrota dos tra-balhistas e à ascensão de Ariel Sharon nas eleições de fevereiro de 2001.

Uma força remanescente semelhante à direita rejeicionista israelensepode ser encontrada do lado palestino. O apoio a grupos muçulmanostais como Hamas e Jihad Islâmico nunca superou 30% � e mesmo essenúmero parece ser baseado mais em sua rede de instituições educacio-nais, sociais e de saúde, além de uma preocupação geral com os efeitoscorrosivos da ocidentalização nos costumes tradicionais, do que numaverdadeira militância antiisraelense. Com sua coerente ideologia de luta,sacrifício e eventual redenção, além de uma incessante rejeição a Israel,ao processo de paz e ao regime de Arafat, a oposição islamista obtém sórelativo sucesso. Porém, suas ações aparentemente se tornaram um pólode atração e influenciaram um recente maior extremismo de seu maiorconcorrente, os quadros locais do Fatah. Essa extremização contribuiupara atar as mãos de Arafat nas negociações com Israel.

Por que Arafat abandonou as negociaçõesde Camp David?

Tendo estabelecido que o espaço político para um acordo sobre asquestões do status permanente já estava muito restrito, ainda é surpreen-dente � em face do crescente desencanto e oposição populares � que oslíderes israelenses e palestinos não somente tenham continuado a nego-ciar com grande teimosia, mas também tenham conseguido chegar muitoperto de um acordo de paz abrangente antes do fracasso das conversa-ções. De acordo com o mediador norte-americano, o ônus para o fracassode última hora das negociações é mais dos palestinos do que dos israelen-ses. Em razão da severa ausência de notícias durante as conversações, eenquanto os documentos relevantes não foram abertos, a exata proporçãodas responsabilidades permanece uma questão aberta. Todavia não hádúvidas de que foi Arafat quem encerrou as conversações, sobre a questão

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de Jerusalém de acordo com a maioria dos relatos. Como devemos inter-pretar, depois de todos os esforços feitos, sua abrupta interrupção dasnegociações � da qual uma linha direta levou à eclosão das lutas do Montedo Templo menos de dois meses mais tarde?

Em primeiro lugar, parece correto aceitar que Israel propôs muitomais acordos do que os palestinos. Enquanto um Estado independentepalestino em algumas partes da Cisjordânia e da Faixa de Gaza já tinhasido mais ou menos aceito por Israel, a questão de seu tamanho e localiza-ção permanecia altamente controvertida; a volta para Israel dos refugia-dos de 1948 e o controle irrestrito de Israel sobre toda Jerusalém eramfatores não negociáveis nem pelos políticos israelenses nem pelos palesti-nos. Fontes israelenses e palestinas mostram que Israel se distanciou sig-nificativamente de sua posição original, particularmente na questão deJerusalém, enquanto os palestinos essencialmente ficaram irredutíveis.4

Barak parece ter preparado o que ele acreditava ser �uma oferta que Arafatnão poderia recusar�. Porém ele recusou. Se os relatos israelenses dasamplas concessões propostas por Barak em Camp David são verdadeiras(e elas não foram negadas), é difícil entender a insistente recusa palesti-na, particularmente na questão de Jerusalém. Por que eles prefeririaminterromper as negociações em vez de aceitar uma oferta que teria lhesdado 90% do que eles exigiam: um Estado palestino em 92% da Cisjor-dânia; o direito de absorver os refugiados de 1948 e 1967 nesse Estado,e um compromisso israelense de aceitar de volta 150 mil refugiados de

4 Haaretz, 22 set. 2000: Daniel Sobelman descreve a publicação por Nawaf Massalha da propostade Barak; e outras reportagens do mesmo período. O relatório político lido por MahmoudAbbas, secretário do Comitê Executivo da OLP ao Conselho Central Palestino na sua sessãode 9 de setembro de 2000, relatando uma atualização do status final no Jerusalem Mediaand Communication Centre, reflete uma posição israelense bem menos avançada ainda queindo muito além da Palestina. Não parece haver dúvidas de que a posição de Barak em CampDavid o envolveu numa aposta de alto risco. Ao oferecer aos palestinos a partilha de Jerusa-lém, Barak quebrou um tabu israelense enraizado, consternando e enfurecendo não só adireita mas um bom número dos próprios trabalhistas. Não sabemos com certeza se Barakespeculou que um convênio pacífico com os palestinos, baseado num �compromisso histó-rico�, provocaria novas eleições, e que ele as ganharia. Tradicionalmente o eleitorado israe-lense tende a seguir e aprovar as iniciativas de seus líderes políticos. Depois de ter perdidosua aposta, todavia, Barak foi visto como um mau negociador, que pôs a descoberto o jogode Israel e estava disposto a entregar um território �sagrado�. Por isso sua queda foi somenteuma questão de tempo. Cf. Maariv, 20 out. 2000.

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1948; soberania e controle palestino sobre quase todos os bairros ára-bes de Jerusalém oriental assim como sobre os bairros cristão e muçulma-no da Cidade Velha, e um controle de fato sobre o Haram al-Sharif? Issoé tão mais esquisito porque Arafat sabia ser o máximo que ele poderiajamais conseguir. O líder palestino deveria saber que essa proposta repre-sentava uma virada importante na posição israelense, e certamente cria-ria profundas divisões dentro de Israel. Ele também devia saber que Barakconseguiria um apoio doméstico somente com dificuldade, e, mesmoassim, se o acordo de paz fosse realmente muito firme e conseguisse pôrum ponto final em um século de lutas. Arafat devia saber também que écompletamente impossível conseguir outro primeiro-ministro israelenseque concordasse com mais do que isso, a não ser que Israel sofresse an-tes uma importante derrota militar ou política. Mesmo os políticos israe-lenses dispostos a dar amplos direitos políticos aos palestinos dentro esobre Jerusalém (uma minoria) não concordariam jamais com a exigên-cia palestina de que Israel desistisse da soberania sobre o bairro judeu esobre o Muro das Lamentações. A perda dessa área é inconcebível semcriar um colapso interno provavelmente letal ao Estado judeu. Palestinospodem talvez ficar satisfeitos com a idéia de um colapso israelense, maseles não podem esperar conscientemente que um primeiro-ministro israe-lense cometa suicídio político.

Poderia Arafat ter aceitado a oferta israelense? Enquanto os resulta-dos descritos acima teriam sido menos do que ideais para os palestinos,Arafat certamente poderia tê-la apresentado a seu povo como um enormeavanço e um acordo honesto. Uma vez que ambos os lados recusavam aidéia de uma soberania compartilhada sobre a Cidade Sagrada, tal divi-são seria a saída mais racional. Ela deixaria aos palestinos a grande maioriados lugares sagrados muçulmanos e cristãos de Jerusalém. É verdade queArafat estava sob pressão da opinião pública palestina para não concor-dar com qualquer concessão adicional. Porém, em vista do pacote total, édifícil ver como ele poderia ter perdido o apoio da opinião pública se tives-se aceitado o acordo proposto por Barak. Em vista dos pontos acima cita-dos, essa rejeição palestina ao acordo e a volta à violência se tornam umenigma. Em vez de colocar Israel na defensiva fazendo uma contra-oferta,Arafat manteve sua posição inicial de �tudo ou nada�: completa sobera-nia palestina sobre a totalidade da Cidade Velha � preferindo abortar asconversas em vez de concordar com uma saída intermediária.

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Arafat pode ter chegado à conclusão de que o processo de Oslo nãopoderia trazer nem um mínimo do que ele precisaria oferecer ao seu pró-prio povo. Sua saída zangada das negociações realçou a irredutibilidadedas exigências palestinas. Essa atitude estagnou o processo de paz masrestaurou, ao menos temporariamente, seu prestígio no mundo árabe.Se isso foi de fato a causa para o fracasso da cúpula de Camp David, aquestão a ser respondida é: o que fez Arafat acreditar que ele não pode-ria apresentar o pacote oferecido por Barak como um mínimo aceitávelpara seu povo? Há provavelmente duas respostas, uma relacionada à con-tradição entre a diplomacia e a propaganda doméstica de Arafat, e a outra,ao seu fracasso em apresentar contrapropostas aceitáveis.

Arafat � prisioneiro de sua própria propaganda?

Observadores hostis encontraram evidência ao longo dos anos � lar-gamente ignorada pelo lado israelense � de um jogo duplo por parte daliderança palestina. Mediante incessante propaganda, Arafat manteve altasas expectativas sobre o que seria obtido nos acordos de status final. Críti-cos da liderança palestina há tempos documentaram a concomitanteinteração diplomática com Israel e uma violenta propaganda anti-Israel.Militarismo, contínua propaganda antiisraelense em textos escolares, eofuscamento da diferença entre a luta política legítima e uma guerramilitar sob a égide do �Jihad por Jerusalém�.5 Ao apresentar o processode paz como subtipo de uma luta mais ampla para resgatar a Palestina,Arafat e Fatah ostensivamente misturaram categorias político-nacionaiscom religiosas.6 A mesma abordagem também permitia subentender quea escolha pelo caminho da paz era oportunista, mais do que baseada emprincípios, e haveria possibilidade, se necessário, de voltar atrás. Seja qual

5 A palavra jihad é um termo muçulmano religioso que implica tanto �se esforçar para dissemi-nar a fé� quanto uma �guerra santa para expandir a �casa� do Islã�. Cf. Peters (1996).

6 O amálgama de conceitos políticos seculares e religiosos da Autoridade Nacional Palestinaé semelhante a práticas paralelas do Partido Religioso Nacional (Mafdal) em Israel e (àsvezes) do Likud. Não há equivalente palestino imediato do Partido Trabalhista e do �campode paz� secular israelense (com exceção dos minúsculos Fida e Partido do Povo Palestino(ex-comunistas), hoje quase esquecidos. Os fatos apontam para uma realidade palestinaem grande parte não secular.

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for a interpretação, a liderança palestina falhou em deslegitimizar a lutaarmada.7 A críticos pró-israelenses essa dualidade cheirava a hipocrisia;ativistas palestinos, porém, a defendiam como estratégia inevitável paraaproximar o público palestino do processo de paz: a corrente principalpalestina a favor da paz tem que lutar com uma oposição islamista ativaà paz com Israel e muitos líderes Fatah são pessoalmente religiosos. Emvez de educar seu povo para a coexistência, Arafat, permanentementesob a mira de seus próprios radicais, optou por ganhar tempo para jogarsua carta diplomática como mais uma opção entre outras, por exemplo, umacontínua guerra política e diplomática contra Israel, terrorismo, e agora,possivelmente, uma guerra regional. O resultado foi uma situação ideoló-gica na qual o apoio palestino ao processo de paz foi amplo porém super-ficial.8 Nesse sentido a direita israelense tem razão quando clama por�baixar as expectativas palestinas� � eles somente esquecem que isso po-deria ser feito apenas por palestinos falando a outros palestinos, e nãopor ��tratores� israelenses! Portanto essa propaganda otimista de Arafatquanto aos palestinos eventualmente conseguirem seu Estado indepen-dente foi talvez uma estratégia inevitável, tanto para salvaguardar suaprópria legitimidade � incessantemente atacada pelos islamistas rejei-cionistas da direita � quanto para manter o moral palestino com suficientecredibilidade para depois torná-lo um elemento de barganha. Os deta-lhes de sua propaganda, contudo, não estavam estabelecidos, e aqui aliderança palestina pode ter colocado uma armadilha da qual não conse-guiu mais se desvencilhar. Um elemento-chave da propaganda de Arafatera sua freqüentemente reiterada promessa de um �retorno a Jerusalém,capital do Estado palestino independente�. Enquanto as negociações con-tinuavam, era possível jogar ambas as cartas simultaneamente: uma pazbaseada em concessões mútuas (na qual ambos os lados conseguem con-vencer seus seguidores ) � ou uma propaganda de vitória que deixasseas vacas sagradas ideológicas intactas, mas falhasse em alcançar a paz.Contudo, em determinado ponto, ao final do jogo, ele tinha que escolher

7 No começo da intifada, Arafat declarou que uma guerra contra Israel era uma opção nãoexcluída.

8 De acordo com o Center for Palestine Research and Studies (CPRS) em Nablus, que desde1993 realizava pesquisas de opinião mensais, o apoio popular oscilava sempre ao redor dos60% Cf. http://www.cprs-palestine.org.

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uma. Parece possível (quer ele mesmo acredite em suas mentiras ou não)que Arafat simplesmente tenha se tornado prisioneiro de sua própria pro-paganda. Talvez ele não tenha visto outra saída �honrosa� a não ser estra-gar o jogo. Isso deixa sem resposta, porém, a questão por que ele teveque passar por essas prolongadas sessões de barganha com o governoisraelense, já que sabia de antemão que nunca obteria dele o que tinhaprometido a seu povo. Talvez ele estivesse tentando conseguir tempo parapostergar o máximo possível o momento da verdade.

A liderança palestina � fracasso na estratégiade negociações?

Um fator mais estrutural parece ser o próprio conceito de negocia-ção usado pela liderança palestina. Isso se torna claro se compararmos omodus operandi israelense com o palestino. Se comparamos o método decada um estudar seu adversário e preparar seu jogo, veremos que a lide-rança palestina falhou em preparar contrapropostas sérias que teriam co-locado Israel na defensiva. No melhor dos casos isso teria trazido umacordo mais satisfatório para os palestinos; no pior, os israelenses seriamacusados de ser o lado responsável pelo fracasso das negociações. A posiçãonorte-americana daí resultante teria sido diferente e poderia ter sido evi-tada a necessidade da intifada. Tergiversação foi a estratégia constantede Israel enquanto mudava dados básicos através da colonização. Porém,pelo menos alguns governos israelenses estiveram abertos a uma variedadede respostas sempre que os modelos propostos não ultrapassassem cer-tas �linhas vermelhas�. Basicamente essas linhas vermelhas tinham aver com a necessidade percebida por Israel como o mínimo para se de-fender. Ao longo dos anos alguns outros princípios ideológicos foramacrescentados à lista � particularmente a inviolabilidade do controle unila-teral sobre Jerusalém.9 Quanto mais uma certa exigência se ancorava na

9 Nos anos 20, o então líder sionista Chaim Weizmann ainda se recusou a incluir Jerusalémno mapa das reivindicações sionistas; entre 1949 e 1967, governos israelenses sucessivosteriam concordado em assinar a paz com seus vizinhos árabes com base nos acordos doArmistício de 1949, que deixaram toda a Cidade Velha nas mãos dos jordanenses; e em1967, Moshe Dayan, ministro da Defesa e organizador da vitória na Guerra de Junho (dosSeis Dias), se opunha a sua conquista. Porém após 1967 a cidade foi �reunificada� à força e

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imaginação popular como vital, mais se tornava também parte do �con-senso nacional� que políticos poderiam somente transpor por sua pró-pria conta e risco. Porém, houve sempre alguns políticos israelenses quenão temiam isso. Historicamente a extrema esquerda tinha o papel dedizer o �não-dizível� no discurso político israelense. Além disso, algumasidéias da extrema esquerda ganharam legitimidade quando membrosseniores da elite político-militar de Israel as adotaram publicamente. Issoaconteceu por exemplo quando Moshe Dayan aceitou (e forçou MenahemBegin) a uma retirada israelense do Sinai em troca de paz com o Egito, equando Rabin e Peres aceitaram negociar com a OLP. Pela força de seuprestígio pessoal e aura de experiência com segurança, esses líderes persua-diram a opinião pública israelense, que tradicionalmente tende a seguiro líder eleito. A proposta de Barak sobre Jerusalém é do mesmo calibre.

Como isso se aplica ao lado palestino? Não se pode negar que a OLP

passou por uma evolução ideológica profunda desde seu modelo origi-nal de um Estado secular multirreligioso para a solução de dois Estados.A aceitação dos palestinos de perder três quartos da Palestina histórica éo que tornou possível o Acordo de Oslo e representa uma importanteconcessão. Assim é compreensível que os palestinos fossem totalmentecontra endossar concessões ainda maiores. Todavia essa concessão ini-cial nasceu da fraqueza palestina e de uma falta de alternativas realistas.O Acordo de Oslo prescrevia negociações sobre um grupo de aspectosdo status permanente: fronteiras, colônias, refugiados e Jerusalém. Nãocogitou seus resultados antecipadamente. Embutido no contexto de Oslohavia portanto a necessidade de mais concessões bilaterais. Nesse pontoisraelenses e palestinos discordavam. Os israelenses viam os acordoscomo uma base para mais negociações baseados em �dar-e-receber�. Ospalestinos consideravam ter feito já todas as concessões ao aceitar Israelentre as suas fronteiras pré-1967 e viam o acordo somente como umparâmetro para um gradual retorno à situação anterior a 4 de junho de

anexada a Israel, e a colonização em massa decolou. Desde então, o mito de Jerusalém temsido gradualmente usado como um elemento central da identidade israelense � até ter sidoefetivamente internalizado enquanto ingrediente imprescindível da identidade coletiva israe-lense. Por anos a direita tem manipulado com eficiência o tabu de Jerusalém contra o cam-po de paz, conseguindo deslegitimizar qualquer discussão sobre sua futura disposição aodebate público. Isso mostra a originalidade e significado do passo de Barak. Cf. por exem-plo Dumper, (1997); Friedland & Hecht, (1996); Cheshin et al. (1999).

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O fracasso das negociações de paz Israel�Palestina

1967. Essa diferença conceitual levou a incessantes desacordos nas mesasde negociação e impediu os palestinos de criar contrapropostas práticas.

Intelectuais e políticos palestinos participaram com colegas israelen-ses de uma série de �jogos� preparatórios: grupos de discussão, workshops

de resolução de problemas e pré-negociações etc. para pensar juntos numambiente seguro e neutro sobre as possíveis conseqüências e pacotes debarganha. Os participantes usaram esses contextos para desenvolver todauma gama de opções políticas.10 Esses encontros eram uma abertura adi-cional que tornava os palestinos plenamente conscientes de que qual-quer resultado final das negociações poderia somente ser baseado emconcessões provavelmente sob forma de pacotes negociados mutuamente.

Eu participei pessoalmente em diversos encontros acadêmicos dessetipo, assim como em outros diálogos. Esses diálogos, na realidade umformato atualizado de encontros anteriores que tinham sido base para osurgimento do processo de paz, foram um aprendizado para ambos oslados, e ambos certamente cometeram seus erros.11 Com base em minhasobservações, eu questionaria se os participantes palestinos em geral fize-ram um tão bom uso dessas oportunidades quanto os israelenses paradesenvolver modelos mais flexíveis de pensamento e conhecer seu adver-sário, e particularmente sobre as restrições sob as quais o adversário ope-ra. Freqüentemente os participantes palestinos se sentiam compelidos amanter uma �frente comum� diante de seus colegas israelenses, e essemínimo denominador comum era geralmente de natureza extremista.Esse não era sempre o caso mas era a regra.12 Contudo, ocasionalmente,participantes palestinos mostraram � assim como seus parceiros israelen-ses � muito mais flexibilidade nesses jogos do que suas lideranças mostra-ram depois nas verdadeiras mesas de negociação. Os participantes pales-tinos sabiam (e o transmitiam às suas lideranças) que uma propostaisraelense mais ou menos abrangente estava provavelmente em jogo aténa questão de Jerusalém. Eles não poderiam jamais esperar que Israel

10 Esses exercícios eram geralmente financiados e facilitados por forasteiros bem-intenciona-dos tal como a União Européia, a United States Institute of Peace (USIP), a Universidadede Harvard etc.

11 Cf. Demant, 1996.12 As exceções incluem o apelo de Rashid Khalidi da Universidade de Chicago em favor da

volta de um número limitado de refugiados de 1948 em contrapartida a uma aceitação israe-lense do princípio do direito à volta (Khalidi, 1992).

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

abrisse mão de toda Jerusalém oriental, incluindo o bairro judeu e o Murodas Lamentações. As ligações entre os acadêmicos palestinos que parti-cipavam dessas �pré-negociações� informais e seus líderes eram prova-velmente mais diretas do que aquelas de seus parceiros israelenses. Poroutro lado, a discussão entre a sociedade civil e as lideranças políticas quecaracterizava as modernas democracias pluralistas tais como Israel é algoainda completamente ausente da vida política palestina. Sem uma im-prensa livre e na ausência de um debate público, associados a uma am-pla aceitação e institucionalização na formação da vontade coletiva demaneira democrática e não violenta, os políticos palestinos têm uma pos-sibilidade muito menor de se afastar do consenso geral, podendo mes-mo arriscar sua vida se o fizerem. Como resultado, desvios e mudançasa partir da �linha vermelha� palestina e um consenso nacional foram antesimpostos do que aceitos. O melhor exemplo é a frágil legitimidade dopróprio regime de Arafat, que sofreu por conta de suas �capitulações�não menos do que por sua corrupção, autoritarismo e ineficiência. Nofinal, a fraqueza da sociedade civil palestina, mantida submissa pelo pró-prio regime de Arafat, acabou tendo conseqüências negativas. Apesar detodos os �preliminares� entre os intelectuais palestinos ocidentalizadose israelenses, Arafat teve no final que levar em consideração a inflexibili-dade da opinião popular que ele próprio intensamente criou. Podemosimaginar que houve muito menos preparação para os vários possíveisresultados das negociações entre Arafat e seus conselheiros do que en-tre os israelenses. Isso pode tê-lo levado a não estar suficientemente pre-parado, durante o �jogo final�, para aceitar as propostas israelenses ouentão confrontá-los com contrapropostas plausíveis. Durante a cúpulade Camp David, os palestinos fizeram demonstrações contra eventuaisconcessões pelas lideranças. Já sob pressão das ruas ele pode ter entradoem pânico e não ter visto outra saída honrosa a não ser a rejeição total.

Conseqüência: a nova intifada. Espontânea?

O fracasso de Camp David enfraqueceu a posição internacional dospalestinos, vistos como o lado mais inflexível. Internamente isso somenteos frustrou mais e tornou a situação de Israel mais volátil. Nessa conjun-tura, uma provocação relativamente menor, como a visita de Sharon ao

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O fracasso das negociações de paz Israel�Palestina

Haram al-Sharif, teve resultados dramáticos � provavelmente inespera-dos para o próprio� Assim como o começo da primeira intifada em no-vembro de 1987, a seqüência de revoltas foi provavelmente espontânea,mas Arafat e seus tenentes imediatamente se apropriaram dela. A lideran-ça palestina certamente percebeu seu potencial para virar de cabeça parabaixo uma conjuntura internacional desfavorável. Arafat percebeu queao deixar solta a raiva popular contra Israel, ele poderia (a) afastar críticascontra sua pessoa e sobre como a liderança palestina tinha conduzido asnegociações de Camp David; (b) ao provocar perdas palestinas, colocarIsrael no papel de agressor, reforçar a imagem palestina (tanto sua auto-imagem quanto a imagem internacional) de vítima.13

Desde o começo da nova revolta houve especulações constantes so-bre o quanto Arafat �controla� a situação que vem num crescendo diário.Observadores israelenses (antes o próprio Barak e comandantes do exércitoe dos serviços de segurança, e agora o porta-voz do governo Sharon) repe-tidamente dizem que a violência poderia parar com um gesto de Arafat.14

De fato, Israel baseou sua resposta totalmente nessa hipótese � ameaçan-do Arafat com sanções se as revoltas não parassem, negociando com elee seus chefes de segurança sobre como fazer isso etc. Por outro lado, ospalestinos sistematicamente apresentaram os protestos como sendo es-pontâneos e incontroláveis � e basicamente não violentos � feitos poruma população que Arafat não pode �desligar� por controle remoto.Observadores externos e jornalistas se inclinam para esta última interpre-tação. Em apoio à visão palestina vem o fato de que os funerais das víti-mas, que se transformam em ponto de partida para novos protestos, pa-recem responder a uma incontrolável raiva popular; o fato de que Hamaschama por �dias de fúria� parece influenciar a situação mais do que osapelos de Arafat.

13 Cf. as advertências proferidas pelo negociador sênior palestino Saeb Erekat de que Israelestá preparando um �genocídio�. Tais declarações refletem um mecanismo que existe tantono campo palestino quanto no israelense: a identidade coletiva de cada lado gira em tornode uma mitologia de vitimização e redenção. É mais fácil permanecer neste pensamento doque esforçar-se com dilemas reais cuja resolução implica criar um consenso para dolorosasconcessões políticas mútuas.

14 A posição israelense foi articulada por Amos Harel em Haaretz, 3 out. 2000. Para uma visãoisraelense divergente, cf. Danny Rubinstein, ibidem.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

Em favor do ponto de vista israelense há: o papel ambíguo das for-ças de segurança palestinas que, em vez de controlar as massas, lutamao lado destas ou são dominadas, ocasionalmente até mesmo atirandoem soldados israelenses e colonos; os apelos fracos e ambíguos à calmaemitidos pela Autoridade Nacional Palestina (ANP); o fato de que em cer-tos dias as demonstrações parecem diminuir simultaneamente na Cis-jordânia e em Gaza; e a gradual transição, nos primeiros meses de 2001,das demonstrações de rua para combates de artilharia entre forças israe-lenses e palestinas. A realidade é provavelmente mais complexa. Coman-dantes do Fatah locais, tais como Marwan Barghuti, que do dia para anoite ganharam um certo perfil internacional, parecem ser relativamenteindependentes de Arafat, que por sua vez claramente depende deles, alémde não poder afastar uma população furiosa sem o risco de perder o con-trole para a oposição islamista. Uma visão mais sofisticada descreve Arafatcomo �montado em um tigre que ele quase não controla�.15 Isso descreveuma situação mais indefinida na qual Arafat e seu grupo de líderes teriamum certo interesse de não ter um total controle sobre a situação. Em vistado que se sabe quanto às críticas feitas a Arafat antes de Camp Davidnão é provável que ele tenha um controle total. Ele parece estar dirigindoum carro que se precipita por uma encosta ainda segurando a direção,mas já sem freios. Precisamente por causa desse limitado controle que aliderança parece exercer sobre essa revolta popular, temos que elaborarcenários que abranjam todas as eventualidades � desde uma retomadade controle por Arafat e um domínio sobre a revolta a uma perda total depoder sobre ela e outros elementos mais radicais.

Quatro cenários

Na esteira do atual fracasso do processo de paz há basicamente qua-tro cenários para o futuro próximo: (1) a volta das conversações de pazde acordo com a fórmula de Oslo; (2) uma volta à situação �nem paz nemguerra� anterior a Oslo com um conflito contínuo de baixo nível de inten-sidade; (3) um aumento da violência sem guerra imediata levando a uma

15 Shlomo Ben-Ami, ministro das Relações Exteriores no governo de Barak.

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O fracasso das negociações de paz Israel�Palestina

internacionalização do conflito; (4) uma escalada da violência levando auma guerra internacional envolvendo os países árabes.

(Uma quinta possibilidade, a de negociações baseadas em outra fór-mula, diferente daquela dos Acordos de Oslo � presumivelmente maisfavorável aos palestinos �, não parece possível neste ponto, como seráexplicado em seguida.)

A volta das conversações de paz de acordocom a fórmula de Oslo

A imprensa tem nos bombardeado sistematicamente com a afirma-ção de que �o processo de paz está morto�. De fato, a atual onda de hosti-lidades parece prima facie tornar impossível aos parceiros a volta ao status

quo ante. Porém, ainda que altamente improvável neste momento, esseresultado � o preferido pela esquerda israelense � não é totalmente impos-sível. Enquanto a opinião pública palestina e israelense neste momentoparecem implacável e mutuamente hostis, mudanças bruscas no humorpúblico palestino e israelense nos são familiares.16 Sob quais circunstân-cias poderia se esperar uma volta às mesas de negociação? Responden-do à amplificação de ataques terroristas palestinos por grupos muçulma-nos fundamentalistas contra civis israelenses, o presente governo de uniãonacional, liderado por Ariel Sharon e dominado pela direita, está aumen-tando o nível de violência e punições coletivas contra os palestinos emgeral. É quase uma conclusão automática que essa política reativa provo-cará a raiva palestina e uma violência �em reação à reação� ainda maior.

Portanto, parece mais provável que a violência aumente ao invés dediminuir. Porém, as seguintes possibilidades não estão excluídas:

1) Há ainda uma pequena possibilidade � ainda que menor a cadarodada de vitimização mútua � de convencer a opinião pública e as lideran-ças a suavizar o nível de violência militar. Isso poderia acontecer mediante

16 Tem precedentes das relações israelense-palestinas �voltando da morte�, por exemplo apósa identificação em massa dos palestinos com Saddam Hussein durante a crise e Guerra doGolfo em 1990-1991. Os aplausos palestinos para os mísseis iraquianos que atingiam tetosisraelenses foram seguidos, alguns meses depois, pelo Congresso de Madri, que marcouum avanço significativo onde pela primeira vez negociadores israelenses e palestinos aperta-ram as mãos; desde então o episódio do Golfo é mantido numa conveniente amnésia.

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de debates públicos iniciados pela esquerda, pela pressão das manifesta-ções de rua, por maciça pressão diplomática externa, ou por uma mudançainterna no equilíbrio político do governo. Todas essas eventualidades sãotodavia bastante improváveis.

2) Ligeiramente menos improvável, poderia ocorrer uma explosãode violência dos colonos ilegais contra palestinos e, se isso acontecer,ocasionará uma rejeição por parte dos israelenses. Isso poderia então levarIsrael a colocar os colonos sob maior controle para proteger os civis pales-tinos, podendo mesmo causar significativas repercussões na opinião pú-blica israelense � de acordo com as linhas de mobilização pública israelen-se contra o governo Begin-Sharon em 1982 após os massacres de Sabrae Chatila. Tal cenário poderia mesmo alterar a dinâmica política atualque aponta na direção de um sentimento antiárabe que ganha espaço entrea maioria dos israelenses judeus. Deveríamos lembrar que, desde o come-ço das negociações de paz em 1993, maiorias substanciais e contínuastanto entre israelenses como entre palestinos sempre estiveram a favorde uma solução baseada em acordos territoriais negociados. O problema éque tanto a opinião pública israelense como analistas da questão responsa-bilizam os palestinos pela atual deterioração. Um caso de clara respon-sabilidade israelense pela violência contra civis tem o potencial de trazeruma mudança nessa percepção.

3) A violência palestina poderia gradualmente se reduzir em conse-qüência da exaustão � causada por uma diminuição da violência israelenseou (menos provável) um excessivo uso de força da parte de Israel. Nestemomento há pouquíssimos sinais de erosão da motivação palestina. His-toricamente, revoltas palestinas anteriores (como a de 1936-1939 e a in-tifada de 1987-1993) começaram a se enfraquecer e implodir após umperíodo de entusiasmo inicial de dois ou três anos. Se o fechamento serestabelecer de maneira mais dramática, terá conseqüências para a subsis-tência palestina, e isso poderia forçá-los a maior moderação.

4) Ao longo dos anos uma rede de diálogos israelense-palestinos,bastante densos, ainda que não muito eficientes, foi estabelecida; aindaque estejam agora paralisados, eles também podem ser úteis em trazeros oponentes de volta à mesa de negociações.17

17 Um grupo de acadêmicos e ativistas palestinos proeminentes publicaram um apelo ao públicoisraelense, pedindo uma genuína paz baseada num acordo que reconhece plena soberania

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O fracasso das negociações de paz Israel�Palestina

5) Como última hipótese, não é excluído que ambos os lados concor-dem, in extremis, em renovar sua cooperação e por razões egoístas permi-tam uma expansão dessa cooperação para negociações mais substantivas.Em Sharm al-Sheikh ambos os lados, na verdade, concordaram em reto-mar as negociações. Arafat pode achar que ele agora mostrou a que veioe concluir que, uma vez que as esperadas vantagens a obter com lutascontínuas não se materializam, uma escalada maior pode colocar em peri-go seu próprio cargo (isso poderia acontecer por exemplo se elementosmilitantes da base do Fatah começarem a se organizar como uma alterna-tiva a Arafat). Isto é, tanto israelenses como palestinos podem em algummomento perceber que têm mais a ganhar retomando as negociações.Enquanto ambos os líderes agora enfrentam obstáculos domésticos gran-des, não é impensável que venham a superá-los.

Cada uma das conjunturas anteriores poderia trazer uma renovaçãodas conversações de paz. Uma vez retomadas, porém, elas vão �fatalmente�reverter à linha de Oslo. A despeito de profundas desconfianças de ladoa lado, é difícil ver sobre qual outra linha de princípios eles poderiamconcordar. Porém, mesmo no cenário otimista de uma retomada das nego-ciações, nenhum governo israelense hoje concebível � se não fosse umaimprevista virada à esquerda � proporá a Arafat o que ele recusara emagosto de 2000. De sua parte, o próprio Arafat terá mesmo menor liberda-de do que teve em Camp David para aceitar o que então foi recusado.

A volta à situação pré-Oslo: �nem guerra nem paz�

Uma continuação ou aumento da violência mútua, sem negociaçõessérias e sem também uma possante e eficaz interferência árabe ou interna-cional, parece neste ponto o resultado mais provável. A diplomacia israe-lense-palestina, tal como existia até há alguns meses, está completamente

palestina em todos os territórios ocupados, incluindo Jerusalém oriental. Disseminado pelaAlliance of Middle Eastern Scientists and Physicians (Amesp). Para uma avaliação maispessimista de como ativistas de paz palestinos suspenderam suas atividades com parceirosisraelenses, veja Danny Rubinstein em Haaretz, 25 out. 2000. Hanan Asfour, um dos negocia-dores palestinos dos originais Acordos de Oslo, clamou para que as ONGs palestinas que-brassem seus vínculos com parceiros israelenses tais como o Centro Peres pela Paz: Jerusalem

Post, 24 out. 2000. Listas negras daquelas ONGs palestinas que colaboram com israelensesestão circulando ainda.

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morta. Ódio e raiva mútuos acumularam-se em ambos os lados e são cons-tantemente alimentados por novas vítimas. Ambos os lados vivem sufi-cientemente perto um do outro para que manifestantes palestinos, colo-nos israelenses, terroristas e extremistas paramilitares possam infligirdanos substanciais, mas nenhum é suficientemente forte para definitiva-mente acabar com o outro � exceto em caso de violência militar maciçaisraelense. Se as coisas ficarem mesmo pretas, o poder de fogo ampla-mente superior de Israel poderia facilmente vencer os palestinos, que nãotêm nenhum exército. O preço político, porém, poderia ser mais alto doque Israel está pronto a pagar. Essa decisão somente pode ser tomada nonível político mais alto, e eles só farão isso se não houver nenhuma ou-tra opção.

A atual situação estratégica parece não favorecer Israel, mas nãocoloca sérios riscos, forçando-o a manter uma postura reativa � enquantoquiserem evitar censura internacional prejudicial. Os palestinos podemtentar ganhar pontos e território adicional destruindo pela força os fecha-mentos e bloqueios israelenses. Por outro lado, as tropas israelenses po-dem tentar estabelecer corredores mais permanentes para colônias locali-zadas em áreas mais isoladas. Tal consolidação territorial já está acontecendomas vai apenas marginalmente afetar a situação geral. Basicamente asforças de segurança israelenses estão se preparando para um prolongadoperíodo de violência, que será talvez temperado por cessar-fogos ocasio-nais durante hipotéticas futuras negociações.

Nesse confronto Israel tem em suas mãos � excluindo a opção daviolência maciça � um bom número de fichas ainda não usadas: poderiasignificativamente prejudicar a mobilidade palestina ao isolar uma áreada outra, prendendo ou liquidando os principais líderes dos protestosetc. Mais prática é a opção que vem sendo chamada de �separação unilate-ral�. Esse cenário de separação física é uma idéia que já existe há algumtempo,18 e tornou-se mais popular entre o público israelense depois daonda de bombas suicidas de 1994-1996. Um apartheid forçado se tornouem 1999 uma plataforma oficial do Partido Trabalhista contra o Likud,acusado de estimular uma mistura permanente e perigosa das populaçõespor meio de sua política de colonização da �Grande Israel�. Em épocas

18 Foi retomada por Barak em outubro de 2000; Haaretz, 10 out. 2000.

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diversas esses planos incluíam: cercas eletrônicas entre Israel e os territó-rios palestinos; um muro de concreto; proibição de entrada para os traba-lhadores palestinos, substituindo-os pelos mais dóceis tailandeses, tur-cos e romenos; um túnel ou uma ferrovia isolada ou uma estrada elevadaque conectasse a Cisjordânia e Gaza etc. De fato, essa opção significa me-nos um isolacionismo em estilo israelense do que um ativo antiarabismo.Israel foi criada como um porto seguro para judeus perseguidos e conti-nua a acalentar o sonho de estar em um planeta isolado onde possa viversem ameaças por parte de anti-semitas ou outros inimigos. Infelizmenteo sionismo escolheu realizar essa utopia no meio de um entroncamentoeconômico-religioso e étnico tanto do ponto de vista global quanto regio-nal, onde as chances de alcançar tal paraíso são tão plausíveis quantoconstruir uma cabana tropical no meio de um importante cruzamentoem São Paulo. Pouco realista em sua variante extrema, uma separaçãofísica judaico-árabe relativa é mais possível e seria a melhor aposta se umretorno às negociações falhar.

A �separação unilateral� é uma variante de �nem guerra nem paz�,mas que irá proteger melhor Israel contra a violência palestina, porém aum custo mais alto, ainda que menos dramático, para os palestinos. Aseparação unilateral poderia transformar a atual guerra civil não declaradaem vantagem para Israel se os combates diários com força e perdas mode-radas se tornarem tão rotineiros a ponto de não serem mais interessan-tes para a mídia mundial. Apesar das objeções norte-americanas, Israelcontinuaria com o fechamento da Cisjordânia e de Gaza, introduzindogradualmente mais obstáculos físicos e militares para a mobilidade pales-tina. Isso efetivamente tornaria os palestinos prisioneiros dentro de suaspróprias zonas e lhes permitiria apenas revoltas nos postos de fronteirae os ocasionais ataques terroristas, que levantariam o seu moral mas nãoos tornariam benquistos aos observadores estrangeiros.19

Qualquer que seja sua forma, o cenário de �nem guerra nem paz� ésem dúvida o que a direita israelense preferiria. Poderia ser associado auma limitada reocupação de algumas posições estratégicas anteriormentetransferidas à ANP. Anexações parciais pouco mudariam o status quo militar

19 Aluf Benn (Haaretz, 23 out. 2000) detalha os planos diferentes de Barak e Sharon para isolaros palestinos, assim como as implicações para a política de colonização israelense.

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ainda que possam ter um certo significado político. Menos provável éuma reconquista direta das áreas A, inclusive cidades palestinas. MesmoSharon hesitaria em fazer isso, a não ser num contexto de guerra total.Os tanques israelenses em Nablus e Gaza teriam poucas vantagens mili-tares para Israel e muitas desvantagens internacionais. Incidentalmente,uma separação unilateral forçada por Israel sobre os palestinos tornariapossível a Israel continuar sua colonização nos territórios palestinos enesse sentido continuar mudando o equilíbrio demográfico naqueles ter-ritórios que pretende eventualmente anexar ao Estado judaico. O Likudpode mesmo tornar as colonizações em massa uma prioridade para evitarque sejam um dia devolvidas aos palestinos.

Aumento da violência sem guerra, levando a umainternacionalização do conflito

Se o conflito ficar fora de controle de forma a requerer uma interven-ção externa, o equilíbrio de poder, que atualmente ainda favorece Israel,poderia mudar drasticamente. Tal intervenção não seria necessariamentemilitar mas diplomática e/ou econômica, ainda que o resultado preferidopela maioria dos palestinos seja uma intervenção das Nações Unidas ouuma missão de paz que force Israel a obedecer às resoluções das NaçõesUnidas, exigindo a total retirada dos territórios ocupados e protegendoos palestinos de Israel. Como lado mais fraco, os palestinos em suas decla-rações oficiais têm há anos clamado por obediência mais estrita das leisinternacionais e um papel mais ativo da comunidade internacional. Defato, o que a liderança palestina parece tentar planejar é precisamenteum envolvimento internacional maior, levando a uma retirada total deIsrael em cumprimento às resoluções das Nações Unidas mais do quecom base em decisões unilaterais de Israel.20 Na Assembléia Geral da ONU,os palestinos há tempos têm vantagem sobre Israel, com o apoio de quasetodos os países árabes e muçulmanos e a maioria dos países do TerceiroMundo. No Conselho de Segurança, contudo, a solidariedade norte-ame-

20 Amos Harel em Haaretz, 20 out. 2000. Entrevista de Amira Hass com Jibril Rajoub, chefedas forças de segurança palestinas na Cisjordânia: Haaretz, 24 out. 2000. A casa de Rajoubfoi atacada por Israel em maio de 2001, sinalizando uma significativa escalada do conflito.

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ricana com Israel coloca um obstáculo mais substantivo a qualquer formade sanções efetivas contra Israel � para não falar numa ação militar. Essecenário não parece nem muito provável nem completamente impossível.Uma reviravolta das posições que enfraquecesse Israel e permitisse oestabelecimento de um Estado palestino sob condições aceitáveis a estes(isto é, incluindo o desmantelamento de todas as colônias e a desistênciatotal de Jerusalém oriental) é improvável sem sanções e/ou uma ameaçade guerra contra Israel. Isso somente poderia ocorrer com uma exacerba-ção radical da situação atual.

Entre a elite palestina muitos devem estar conscientes de que mesmouma guerra popular limitada contra Israel é uma proposta extremamen-te arriscada, que poderia se voltar contra eles próprios. É extremamenteimprovável que Israel � seja qual for seu governo � aceitasse qualquer inter-venção militar externa. Israel nunca tolerou intervenções militares, e acomunidade internacional sabe disso. Além disso haveria um imediatoveto dos Estados Unidos contra tais ações.

Contudo, medidas menos drásticas por meio das quais a comunidadeinternacional mostre sua posição � não são impossíveis, e podem obtercerto efeito. Isso já aconteceu sob forma de uma comissão de inquéritodas Nações Unidas, e poderia no futuro incluir maior isolamento interna-cional e/ou sanções internacionais econômicas ou outras. Israel é extre-mamente dependente do comércio exterior, principalmente com a Europa,que geralmente tende aos palestinos mais do que os Estados Unidos. Boaparte da população israelense já está muito globalizada e não aceitariafacilmente restrições de viagem, embargos comerciais, falta de combustí-veis e comida, para não falar de uma exclusão generalizada da vida interna-cional. Uma maior radicalização da luta, levando a uma ação externa maisséria, é portanto não necessariamente um fato sem dividendos futuros(do ponto de vista dos palestinos).

Da perspectiva palestina, a melhor possibilidade de conseguir umaefetiva intervenção internacional seria uma batalha particularmente le-tal, uma retaliação especialmente sangrenta, ou uma atrocidade maciçacometida por extremistas israelenses, conseguindo ampla cobertura damídia e uma onda de simpatia internacional para as vítimas. Não é muitoprovável que o exército israelense se preste a isso, mas Arafat sabe que elepode contar com alguns colonos mais fanáticos. Seu problema é que

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Israel também sabe disso. Assim, os colonos mais extremistas são hojeem dia os melhores amigos de Arafat e os piores inimigos de Israel. Umponto crítico para o governo israelense será conseguir que o exército oscontrole efetivamente.

Isso não vai ser uma tarefa fácil.21 Seu resultado vai provavelmentedepender � na falta de outra iniciativa diplomática bem-sucedida ou algu-ma surpresa internacional � de Arafat conseguir a intervenção internacio-nal que ele deseja ou de o governo israelense conseguir impor uma separa-ção unilateral aos palestinos. Como é comum nesses tipos de luta, o fatortempo é essencial. Cada dia de lutas aumenta as possibilidades para ummassacre que, ao exigir uma intervenção internacional, pode decisiva-mente mudar o equilíbrio em favor dos palestinos. Se Israel conseguirconter-se por tempo suficiente os palestinos vão perder. Eles já afasta-ram definitivamente os israelenses, seus supostos parceiros na paz. Agorapodem perder ainda mais ao cansar o mundo. Se cometerem atrocida-des, será Israel a ganhar pontos na mídia. Uma vez que o afastamentomútuo se torne um fato, a chance para que atos sangrentos tragam man-chetes na mídia vai diminuir.

Na improvável hipótese de os palestinos conseguirem uma interven-ção internacional a seu favor, e de essa intervenção na verdade trazer comosua conseqüência um Estado palestino, isso não necessariamente elimina-ria uma paz israelense-palestina e uma coexistência posterior. O objetivooficial palestino, assim como o proposto pela maioria dos intelectuaispalestinos (e pela maioria dos países árabes), ainda é o de paz e coexistên-cia. Não há ainda indicações de uma volta a posições anteriores e maisradicais.22 Contudo, essa nova situação seria presumivelmente baseadanum relacionamento israelense-palestino completamente novo � muitomais igualitário do que o atual. Isso implica um enfraquecimento estrutu-ral da posição de Israel.

21 Sobre a infiltração da estrutura de comando militar israelense em Samaria por colonos extre-mistas e a colaboração de oficiais do exército com eles, veja os artigos de Amos Harel e AmiraHass; Haaretz, 20 out. 2000.

22 Por exemplo, Yasser Abd Rabbo louvou a resolução da Liga Árabe de 21-22 de outubro de2000 em favor de uma intifada �pacífica� contra Israel; porta-vozes palestinos publicamentese dissociaram do uso de armas de fogo por palestinos contra Israel. Haaretz, 23 out. 2000.

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Aumento de violência levando à guerra

Guerra internacional é neste momento o resultado menos provável,porém não impossível. Uma situação revolucionária forçando países ára-bes muçulmanos a uma guerra contra Israel é, sem dúvida, o resultadopreferido da direita religiosa palestina; seria provavelmente bem-vindatambém pela �ala lunática� da extrema direita israelense. Para a maioriados líderes árabes, porém, esta não é uma opção desejável. A despeitodo apoio verbal aos irmãos palestinos, a portas fechadas a maioria encarao conflito entre eles e Israel como um problema que atrapalha seus pró-prios projetos de desenvolvimento econômico e nacional num mundoglobalizado. Além disso, Israel é atualmente mais forte do que qualquercoalizão árabe. Guerra entre Estados, portanto, significa forçar atuais líde-res, principalmente Egito e Síria, a um curso de ação que eles rejeitampor razões óbvias, ou destituí-los, substituindo-os por uma liderança maisbelicosa. Os palestinos têm um certo poder de cativar as massas árabes.Por exemplo, em outubro de 2000 milhares de estudantes egípcios pedi-ram que exércitos árabes fossem �soltos� contra Israel. Estados radicaiscomo Iraque e Iêmen (apoiados pelo Hizbullah libanês) clamam por umaguerra santa contra Israel. O Irã criticou a Liga Árabe por suas lamúriase reiterou seu desejo de erradicar Israel. Contudo, enquanto identifica-ções emocionais com os palestinos colocam uma arma propagandísticanas mãos dos revolucionários, será difícil para eles traduzir isso em umprograma concreto. Mesmo que a opinião popular árabe pareça apoiarum desejo por maior confrontação, nenhuma dessas opções parece plausí-vel num futuro próximo.

Entre as possíveis situações de conflito, o Egito vive há quase vinteanos em uma situação de paz fria, mas estável, com Israel. Seu regime,ainda que pouco popular, suprimiu a onda islamita, pelo menos por ora,e é fortemente apoiado e armado pelos Estados Unidos, podendo prova-velmente sobreviver por um longo tempo se não houver uma crise econô-mica extrema. O regime da Síria tem uma base social mais estreita, mastanto a oposição quanto a população em geral estão divididas ao longode linhas sectárias; o regime Ba�ath alawita tem mantido a estabilidadeao longo do Golã e está agora em busca de paz como precondição para amodernização. A fronteira libanesa continua não pacificada mas não tem

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

o potencial de lançar o mundo árabe num confronto militar, enquantoIsrael resiste à tentação de uma nova invasão em larga escala. Isso deixaa Jordânia como o elo mais fraco dessa cadeia. Formalmente em paz comIsrael, sua maioria palestina se tornou progressivamente descrente dasposições do regime hachemita.

Instabilidade política associada a graves problemas econômicos pode-riam potencialmente desestabilizar este país, como ficou claro na recen-te �caminhada de volta� de refugiados palestinos da Jordânia. Tudo issoé porém altamente hipotético. De uma revolta na Jordânia a uma guerraárabe contra Israel há ainda uma grande distância. Também não é prová-vel que Israel ficará esperando passivamente os acontecimentos. Semdúvida existe um potencial revolucionário, e a maioria dos regimes noOriente Médio tem somente uma frágil base de legitimidade, porématé agora o descontentamento foi bastante disperso e desorganizado.Uma razão adicional pela qual a guerra é mais plausível hoje do que hádez ou mesmo quinze anos está no decrescente perfil de dissuasão deIsrael. Não somente os ataques dos rejeicionistas árabes, tais como Hiz-bullah no sul do Líbano, se tornaram mais audaciosos e eficientes, mashá também o fato de a vantagem estratégica militar de Israel estar gra-dualmente diminuindo, seu exército estar menos eficiente e com o moralbaixo. Israel se tornou um poder literalmente liderado por civis, alémde previsível e evanescente. Enquanto se comportava como o brigão davizinhança amparado pelo Ocidente, em outras palavras, quando agiatambém um pouco de forma terrorista, impressionava seus inimigos.Agora é o contrário. Pressões civis causadas por mortes de soldados for-çaram Israel para fora do Líbano sem nenhuma garantia ou acordo � navã esperança de que isso encerraria os ataques às colônias do Norte.Quando a milícia xiita seqüestrou três soldados israelenses, a maioriados israelenses consultados optou por um tratamento tipo �luvas depelica�, em vez de reagir violentamente contra o Hizbullah, para salva-guardar a vida dos soldados.23 Isto vai estimular o Hizbullah e talvez outros

23 A aversão popular em Israel contra assumir riscos não resulta de conceder um valor maisalto à vida humana pelo judaísmo do que pelo Islã, mas da pós-modernização mais avançadada sociedade israelense em comparação com sociedades árabes. Uma relutância semelhantepara endossar perdas humanas é hoje regra nos Estados Unidos e nos países da Europaocidental, dificultando intervenções para manutenção da paz e contra ditaduras.

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O fracasso das negociações de paz Israel�Palestina

grupos de resistência palestina a seqüestrar indivíduos com o objetivode extorsão.24

Ainda que a possibilidade de guerra seja baixa neste momento, umavez iniciada ela pode levar a uma seqüência de resultados imprevisíveise que hoje parecem fantasiosos: retomada parcial ou total dos territóriospalestinos; colapso do regime de Arafat e da autoridade palestina local, oque levaria a uma revitalização da guerrilha e do terrorismo contra Israel;desestabilização regional; crise financeira e econômica internacional; in-tervenção armada dos Estados Unidos e da ONU; uso de armas químicasou biológicas por árabes muçulmanos; uma decisiva derrota de Israel; eaté o uso de armas nucleares por Israel; limpeza étnica nos territóriospalestinos, com conseqüente desestabilização da Jordânia e/ou outrosEstados árabes. Quanto mais apocalíptica a visão, menos provável é suaocorrência. A mais improvável conseqüência de uma guerra, porém, é queela seria o início de um relacionamento estável entre Israel e Palestina.

Há mais um possível resultado para a atual crise: conversações de pazde acordo com uma nova fórmula que irá suplantar os Acordos de Oslo.Esta é a opção preferida pela esquerda palestina e foi entre outras propostapor um manifesto assinado por intelectuais palestinos.25 A idéia dessemanifesto é de que o Acordo de Oslo é muito favorável a Israel paraque possa ser aceitável aos palestinos: enquanto a paz permanecer oobjetivo, acredita-se que ela deva ser baseada numa aplicação mais estri-ta das Resoluções n.242 e 338 da ONU, completa retirada de todos osterritórios ocupados em 1967, incluindo todas as colônias e toda a Je-rusalém oriental. Há uma certa lógica nessa posição mas o problema écomo traduzir isso em ação. Uma vez que tentar convencer Israel doacerto dessa posição já não foi bem-sucedido antes da intifada de al-Aqsa, agora as chances serão menores, e a única possibilidade seria ade forçar Israel a aceitar isso contra sua vontade, o que somente seriapossível após um severo enfraquecimento de Israel, ou seja, após umaguerra ou forte pressão internacional sobre Israel. Querendo ou não, isso

24 Tirawi, responsável regional pela segurança palestina, queria trocar presos palestinos pe-los dois reservistas israelenses em Ramallah, posteriormente linchados. Haaretz, 27 out.2000.

25 A idéia é também apoiada por Edward Said in The Nation, 30 out. 2000.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

coloca os proponentes dessa opção no grupo daqueles que gostariam defazer uma guerra contra Israel.

Conclusão

Como resultado de um descontentamento palestino popular de longoprazo com o processo de Oslo, Arafat foi a Camp David com pouco espaçode manobra. Foi provavelmente por causa de sua própria incessante pro-paganda sobre o futuro de Jerusalém que ele se sentiu obrigado a encer-rar as negociações quanto a esse tópico � a despeito das propostas israe-lenses que em outras circunstâncias teriam fornecido uma saída mutuamenteaceitável. Juntos, o fracasso das negociações do status permanente e a pos-sibilidade de uma perpetuação do status quo, visto como intolerável, forne-ceram o combustível para uma violenta explosão popular que vem se auto-alimentando, sendo só parcialmente controlada pela liderança palestina.Esse confronto destruiu em tempo recorde quase todas as pontes entreisraelenses e palestinos.

Resumindo, o conflito pode se desenvolver de quatro formas diferen-tes: para Israel, a mais vantajosa seria retomar as conversações com baseem Oslo; uma segunda possibilidade seria fechar os territórios e entre-gar os custos humanitários à comunidade internacional. Em qualquerdos casos a colonização na Cisjordânia continuará. Para a liderança pales-tina, o resultado mais positivo seria provocar uma intervenção internacio-nal que colocaria Israel sob pressão irresistível. Contínua intifada, incluindoseu simbolismo militarístico destinado a irritar e assustar os israelenses �machados e armas, máscaras, bandeiras queimando, slogans anti-se-míticos... �, poderia levantar o moral palestino temporariamente, aindamais porque esses atos se acompanham com crescente unidade nacio-nal, intensa atenção internacional ao seu sofrimento e solidariedade pelomenos verbal por parte dos outros árabes. Essa constelação é, porém,precária e pode se dissipar. Como segunda opção, uma volta às negocia-ções seria provavelmente preferível a Arafat sobre uma revolta exaustivamas vazia de perspectivas, e que vai eventualmente se apagar. Na verdade,se o cenário �nem guerra nem paz� com crescente separação física se mate-

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O fracasso das negociações de paz Israel�Palestina

rializar, poderá deixar os palestinos sem muito mais vantagens tangíveisdo que eles tinham há oito meses. Uma guerra internacional, ainda quenão totalmente excluída, seria para qualquer israelense e para a atual lide-rança palestina o mais perigoso, e portanto o resultado menos provável �já porque pressupõe uma transformação revolucionária em pelo menosparte do mundo árabe. Enquanto uma revolta palestina de baixa intensi-dade dificilmente afetará a posição de Israel, a calma superficial daí resul-tante também não irá restaurar a sua força. Em outro texto neste livro,argumento que a longo prazo Israel não será capaz de sobreviver comoEstado judaico: ou manterá sua identidade oposicionista ou será vencidonum confronto com um inimigo maciçamente mais numeroso, no mo-mento em que o mundo árabe muçulmano supere seu atraso tecnológico.Ou, alternativamente, Israel modificará internamente sua posição, trans-formando-se num Estado �normal� com uma maioria judaica e simbolis-mo coletivo judaico, mas sem a estrutura discriminatória, favorecendoapenas uma população e que hoje caracteriza Israel. Esse seria o melhorresultado para todos os envolvidos, mas pressupõe uma sutil interaçãoentre o processo de paz e os concorrentes ideológicos internos. Paradoxal-mente, o pós-sionismo pode ser o único modo de salvar pelo menos onúcleo moral mínimo do sionismo: segurança para o povo judeu, e a pos-sibilidade de desenvolver sua cultura num território protegido. Infeliz-mente isso agora parece mais distante do que nunca.

Maio de 2001

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Parte IIAs questões substantivas

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3A questão da tecnologia no processo de paz

Riad Malki*

Introdução

De modo geral, a tecnologia é um serviço acessível. Seu empregodetermina o grau de contribuição imediata ao progresso e à humanidade.Embora certas inovações tecnológicas tenham uso restrito ou limitado,não resta dúvida de que a nova onda de conquistas tecnológicas que hojese oferece aos usuários abre novas portas para o desenvolvimento, alémde tornar o conhecimento acessível ao público em geral. Os dias dos segre-dos tecnológicos e conhecimento tecnológico restrito já não cabem maisna vida moderna. Ao mesmo tempo que a tecnologia se torna um artigodisponível, seu uso, bem como as formas de usufruir de suas aplicações,são variáveis determinadas pelo usuário. No nosso caso, o conflito Pales-

* Membro do Panorama Center for the Dissemination of Democracy and CommunityDevelopment (Palestina). Tradução: Klauss Brandini Gerhardt.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

tina�Israel, a tecnologia começa a atrair uma atenção cada vez maiorno lado palestino, ao passo que Israel já está bem mais adiantado emaplicações tecnológicas, diversidade tecnológica, e também em alternati-vas e aplicativos inovadores. O grau de prontidão de Israel para assimilarnovas tecnologias em seu próprio meio, e de canalizá-las em seu própriobenefício, faz uma enorme diferença para a compreensão da situação atualem todos os níveis e setores. O consolo palestino no que concerne à supe-rioridade israelita no campo de avanços tecnológicos reside no princípioda não-exclusividade de acesso à tecnologia disponível. A tecnologia des-tinada aos mais diferentes usos em âmbito global também está à mão noplano individual, o que oferece a melhor das oportunidades aos palesti-nos para demonstrarem-se mais competitivos na defesa e divulgação desua causa da forma mais simples e direta possível. O conhecimento neces-sário para se trabalhar com a tecnologia disponível é mínimo, o que propi-cia um valor agregado aos palestinos ao introduzi-la na frente de batalha.

Contexto histórico

Para iniciar a abordagem deste tópico e descrever a situação existentedo lado dos palestinos, parece-nos importante, se não um pré-requisito,voltar um pouco no tempo e no espaço, a fim de compreender os motivose condições impostos aos palestinos durante um longo período, especial-mente desde a ocupação, em 1967. A ocupação continuada dos israelen-ses furtou aos palestinos a vivência de um processo de desenvolvimentonormal e natural, em todos os campos e áreas, quando comparado aosisraelenses ou a qualquer outro povo ou país na região.

É importante compreender e ter em mente que, embora estejamosfalando a respeito de palestinos e israelenses de modo descritivo, nãodevemos cometer o erro de considerar simplesmente que ambos os ladossão iguais. Não são, jamais foram, e os palestinos ainda estão sofrendoas conseqüências dos agravos que lhes foram impingidos no passado.

Para termos uma noção mais adequada desse quadro, vale embre-nharmo-nos no passado recente e identificar algumas das questões rela-cionadas ao tópico aqui tratado. A mais relevante de todas diz respeito àeducação. A educação, em sua forma mais simples, representa a formaçãode novas gerações, preparando-as para participar ativamente no desenvol-

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A questão da tecnologia no processo de paz

vimento de seu próprio país, melhorar o padrão de vida e lutar por novasoportunidades. A educação consiste em um investimento nas pessoas enuma opção por melhores condições.

Os números e dados indicados abaixo procuram ilustrar as severascondições em que se encontra o sistema educacional desde a ocupaçãodos territórios palestinos por Israel em 1967:

1. O número de matrículas nos doze primeiros anos letivos nos terri-tórios palestinos da Cisjordânia e na Faixa de Gaza aumentou de cercade 218 mil alunos em 1967 para aproximadamente 526 mil alunos1 em1992. No período de 1967 a 1977, o governo da ocupação israelense nãoconstruiu nenhuma escola. Apenas umas poucas escolas foram cons-truídas mais tarde. Em 1990, somente 1 milhão de dólares foi destinadoà construção de escolas, enquanto em 1989 foram alocados apenas 20mil dólares2 para esse fim.

2. Cerca de 73% das escolas públicas não dispõem de bibliotecas.3

As 27% restantes estão muito mal equipadas.3. No período letivo de 1990-1991, aproximadamente 75% das esco-

las públicas e 60% das escolas particulares não contavam com laborató-rios de ciências.4

4. Todas as escolas situadas nos territórios ocupados por Israel fo-ram fechadas por ordem do governo militar por no mínimo dezesseis me-ses entre 1989 e 1990.5 Todas as universidades e outras instituições deensino superior nos Territórios Palestinos Ocupados (TPO) receberam aordem de fechar durante o início da revolta em 1987, permanecendo fe-chadas até o final de 1989. Assim, os moradores dos TPO tiveram acessonegado à educação superior durante boa parte de três períodos acadêmi-cos: 1987-1988, 1988-1989 e 1989-1990. O fechamento de universida-des, por exemplo, não significou apenas o fim das aulas nos campi. Todasas instalações universitárias, inclusive bibliotecas, laboratórios e salas e

1 Dr. Sufian Kamal, Some of the major needs of school education in the Occupied Palestinian Territories.Conferência ECCP-NENGOOT 1992. Bruxelas.

2 Ibidem.3 Ibidem.4 Ibidem.5 Relatório Anual Al-Haq sobre Direitos Humanos nos Territórios Palestinos Ocupados. A

Nation Under Siege. 1989. Capítulo 13, sobre Educação. Al-Haq.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

escritórios de uso particular, foram completamente fechadas, tendo suautilização proibida até mesmo por professores e administradores de campi

universitários.5. Quando as escolas foram reabertas, o ano letivo foi reduzido, por

ordem militar, em pelo menos um terço, tal como ocorreu em 1989. Em1990, todas as escolas foram fechadas novamente por outra ordem militar.6

6. Toques de recolher por períodos prolongados e greves gerais tam-bém impediram escolas de funcionar, mesmo aquelas com permissão parareabrir. A imposição maciça de toques de recolher tem causado gravesinterrupções no processo educacional, uma vez que as escolas em áreassubmetidas ao toque de recolher são efetivamente fechadas sem a neces-sidade de uma ordem formal.7

7. Ocupação militar e destruição (vandalismo) do patrimônio dasescolas. A ocupação de escolas por tropas israelenses foi uma constantedurante as revoltas ocorridas entre 1987 e 1992. Durante o ano de 1989,pelo menos 36 escolas foram ocupadas para serem utilizadas pelos milita-res israelenses, servindo como centros de detenção adaptados, basesmilitares temporárias, ou ambas as coisas. Ataques militares tambémforam desferidos contra escolas.8

8. Limitação da livre circulação da população civil, impedindo alu-nos de irem a escolas localizadas em outras áreas dos TPO.

9. Ordens de militares israelenses foram expedidas com o objetivode interferir no conteúdo da grade curricular das universidades.

10. Os militares israelenses tinham a última palavra e poder de vetosobre a nomeação de professores e outros profissionais nas universidadespalestinas. Professores visitantes estiveram sujeitos à aprovação préviade Israel.9

11. Prisão de professores, alunos e funcionários ao longo do ano aca-dêmico: uma política que se repetiu a cada ano de ocupação. Essa políti-ca de detenções teve por objetivo impor obstáculos ao bom andamentodo processo acadêmico nas faculdades e universidades palestinas.

6 Protection Denied. Continuing Israeli Human Rights Violations in the OPT. 1990. Al-Haq 1991.7 Marianne Heiberg e Gein Ovensen. Palestine Society in Gaza, West Bank and the Arab Jerusalem.

A Survey of Living Conditions. Fafo, 1994.8 Anexos 13-A e 13-E. Relatório Anual Al-Haq. 1989.9 Anexo 13-C. Relatório Anual Al-Haq. 1989.

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A questão da tecnologia no processo de paz

12. Os israelenses impuseram normas restritas ao desenvolvimentonatural das universidades palestinas. Expansão do ensino universitário,construção de novas instalações, número total de alunos, opções de cur-sos superiores e departamentos, novas unidades a serem inauguradas oua receberem um alvará de funcionamento dos israelenses constituemapenas um exemplo dos tipos de restrições impostas às universidadespalestinas.

13. Equipamentos de laboratório destinados a universidades palesti-nas foram retidos nos portos israelenses por um longo período de tempopor motivos de segurança. Computadores foram mantidos nas docas porperíodos prolongados e livros para as bibliotecas, apreendidos, o que obri-gava as universidades a pagar elevadas taxas para liberá-los.10

14. Com as autorizações de viagem negadas pelas autoridades israe-lenses, professores universitários foram impedidos de ir a outros paísespara participar de conferências acadêmicas ou beneficiar-se de descobertasou aplicações tecnológicas que contribuem para o desenvolvimento daciência.11

15. Os militares israelenses expediram uma ordem que impediu acirculação, venda e manutenção como bens de uso pessoal, de nada me-nos do que 6 mil títulos de obras, livros didáticos, referências acadêmicase outras publicações.12

Essas medidas são apenas um exemplo da forma coletiva de puni-ção impingida à população palestina durante os anos de ocupação is-raelense. Essas medidas provocaram forte reação na população dos TPO

por conta da especial importância atribuída à educação na sociedadepalestina.

Embora a educação seja considerada um fator de suma importâncianesse período, há ainda vários outros aspectos não menos relevantes quecontribuem para deixar uma profunda marca na sociedade palestina pelospróximos anos.

10 Entrevista com o vice-presidente da Universidade Birzeit, Dr. Gabi Baramki, realizada nocampus em 1992 com representantes da imprensa internacional.

11 Casos dessa natureza foram documentados no Conselho Palestino de Educação Superiordurante o controle israelense dos TPO.

12 Relatórios recebidos pelas bibliotecas palestinas locais das autoridades militares israelen-ses durante os anos de ocupação.

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Uma breve listagem desses fatores e subfatores ajudará a compreen-der com maior clareza a atual conjuntura:13 o uso de força pelos milita-res; tortura e morte nas prisões; o sistema judicial militar; prisões admi-nistrativas; métodos administrativos de controle: cédulas de identidade,restrições a viagens; demolições e lacrações de casas; toques de recolhere outras formas de isolamento; sanções fiscais e econômicas; a questãoreligiosa.

Ao mesmo tempo que essas medidas pretendiam punir a populaçãopalestina enquanto coletividade, outras medidas foram introduzidas comoforma de punição ou privilégio. Uma simples ligação elétrica e linhas tele-fônicas eram tidas como um privilégio para quem quer que usufruíssedesses bens. Uma espera de nada menos que dez anos era o mínimo neces-sário para um requisitante conseguir uma linha telefônica, o que excluiutotalmente as pessoas enquadradas como ameaça nacional ou ex-detentose presos políticos.

Todas essas sanções, medidas e políticas adotadas pelos israelensescontribuíram de forma contundente para a inibição do potencial naturalde desenvolvimento palestino. A situação existente nos territórios pales-tinos é resultado direto dessas sanções, medidas e políticas deliberadas.

Quadro comparativo

Este tópico tem por objetivo traçar um paralelo entre a realidade atualna Palestina e em Israel. Essa comparação nos ajudará a entender, porum lado, o que efetivamente se encontra disponível e, por outro, reo-rientar-nos acerca de possíveis expectativas. Embora todos os itens pos-sam ser considerados para efeito de comparação, procuraremos nos limi-tar a alguns deles, os quais, de acordo com nossa análise, representamgrande impacto na questão aqui discutida.

13 Relatório Anual Al-Haq sobre Direitos Humanos nos Territórios Palestinos Ocupados. ANation Under Siege. 1989. Capítulo 13, sobre Educação. Al-Haq.

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Quadro 1 � Comparação Israel�Palestina.

Item Israel14 Palestina15

Nº total de computadores 16.096 (4%) em 1997

Nº total de linhas 1.804.000 em 1992 167.261 em 1999telefônicas

Nº total de conexões 500.000 em 1999à Internet

Nº total de empresas de 9, dos quais 2 controlam 4 em 2000Internet (apenas quase 80% do totalprovedores de acesso à de internautasrede)

Total das exportações US$22,5 bilhões em 1997 US$381 milhões(US$358 para Israel) em1997

Total das importações US$29 bilhões em 1997 US$2,164 bilhões(US$2,052 de Israel) em1997

PNB Cerca de US$100 bilhões US$4,484 bilhões emem 1997 1999

Média de custo de vida US$1.800 em 1993 US$846 em 1999mensal por família

Taxa de desemprego 9,3% 15,2%

Gastos da universidade US$500 milhões >US$100,000em P&D

Despesas com educação US$846 em 198816 US$23 a 46 em 1988por aluno (média)

Nº total de computadores 1.109 (sua utilização?)17

disponíveis nas escolas

Nº total de livros nas 621,17618

bibliotecas

14 Dados estatísticos sobre Israel, 1999. Agência Central de Estatística.15 Agência Central de Estatística da Palestina, 1998. Relatório Anual.16 Oportunidades de Desenvolvimento nos Territórios Ocupados. Seção de Educação. Outu-

bro de 1992. Policy Research Incorporated.17 Agência Central de Estatística da Palestina. Relatório sobre Educação, 1997-1998.18 Ibidem.

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Um rápido exame dos dados e números do Quadro 1, a título de exem-plo, logo nos leva a compreender a preocupação apresentada pelos pales-tinos sobre as futuras tendências no campo da tecnologia da informaçãoem ambos os casos, e como Israel se encontra em posição de superiorida-de, se não de total controle, nesse sentido. Se tomarmos esses indicado-res como base para futuros planejamentos, jamais pode haver simetria eigualdade em qualquer tipo de relação que se possa imaginar entre osdois lados.

Nenhum dos indicadores palestinos apresentados no Quadro 1 repre-senta alguma forma de estímulo para o futuro quando comparados aosindicadores correspondentes de Israel. A enorme diferença existente entreos dois lados não nos ajuda a traçar nenhum tipo de comparação, porquantonão há parâmetro cabível para um exercício comparativo entre Israel e aPalestina. Essa questão não diz respeito apenas ao fato de que a Palestinanão vive uma condição de independência que Israel logrou obter há maisde cinqüenta anos, mas também de que Israel atuou como uma força deocupação sobre a Palestina por mais de trinta anos. Durante esse período,enquanto Israel levava adiante seu processo de desenvolvimento sob to-dos os aspectos, particularmente na área de informática, impedia a Pales-tina até mesmo de ter um ano acadêmico regular. Universidades e esco-las mantiveram-se fechadas durante um período equivalente a mais desete anos durante a ocupação dos territórios palestinos por Israel, de 1967a 1995. O mais longo período ininterrupto de fechamento ocorreu noauge da intifada (revolta) palestina, em 1988-1989, por quase dois anosconsecutivos.19 As escolas e universidades israelenses somente eram fe-chadas quando os professores ou alunos decidiam entrar em greve, nor-malmente por breves períodos. À época, quando Israel detinha controletanto sobre suas próprias escolas como sobre as dos palestinos, as esco-las israelenses receberam investimentos da ordem de 1,1 bilhão de dóla-res em 1988, ou uma média de 846 dólares por estudante, ao passo quea destinação de verbas às escolas palestinas nesse mesmo ano observouum orçamento de apenas 10 a 20 milhões de dólares, ou seja, uma mé-dia de 23 a 46 dólares por estudante.20

19 Oportunidades de Desenvolvimento nos Territórios Ocupados. Seção de Educação. Outu-bro de 1992. Policy Research Incorporated.

20 Ibidem.

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A questão da tecnologia no processo de paz

Enquanto as escolas israelenses dispunham de um moderno laborató-rio de informática, entre outras instalações voltadas à tecnologia da infor-mação, algumas poucas escolas palestinas, escolhidas a dedo, podiam go-zar do privilégio de dispor de um único computador para ser utilizadopelo setor administrativo. Apenas recentemente escolas também sele-cionadas tiveram autorização para ministrar cursos de introdução à in-formática da maneira mais teórica que se possa imaginar, sem ofereceraos alunos a possibilidade de tomar contato e trabalhar diretamente comum computador.

As universidades palestinas receberam respostas negativas ao solici-tarem autorização para abrir e colocar em funcionamento um departa-mento de ciência da computação e tecnologia aplicada, ou quando as uni-versidades procuraram trazer especialistas do exterior para ministrarcursos. Tais negativas foram apresentadas sob a justificativa de motivosde segurança, aplicando-se ainda aos casos em que estudantes tentavamdeixar o país com o objetivo de adquirir no exterior a educação que nãoestava disponível em sua própria pátria. Essas medidas foram dirigidasexclusivamente aos palestinos e às suas instituições educacionais. Duran-te um período de trinta anos de ocupação israelense ininterrupta, o desen-volvimento na área de recursos humanos na Palestina foi totalmenteprejudicado. Estratégias de desenvolvimento de recursos humanos, o que,na prática, correspondem a educação e treinamento da população, exigi-ram investimentos substanciais e alto grau de comprometimento em âm-bito nacional. Comprometimento este a ser compartilhado por todos osinteressados, o que inclui governo, empresas, trabalhadores e todos osdemais segmentos da sociedade. Quando o governo foi deposto e substi-tuído por forças de ocupação, e quando os interesses desse novo poderentraram em choque com os verdadeiros interesses da população local,já era de esperar o comportamento apresentado pelos palestinos em rela-ção às forças de ocupação israelenses. O que absolutamente não se espe-rava é a contradição entre o fato de Israel ser uma força de ocupação queexerce controle sobre outra nação e a luta da mesma Israel por ser reco-nhecida entre o grupo de nações democráticas e de vertente liberal.

O governo de Israel atuou deliberadamente para manter o povo pales-tino sob condições de vida inferiores, isto é, praticamente sem nenhumtipo de investimento que viabilizasse um processo de desenvolvimento

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

natural. Aos olhos das forças de ocupação de Israel, esse processo sem-pre pareceu uma ameaça direta à própria segurança dos israelenses, umdesafio ao controle e à superioridade do país, e um risco imposto à vanta-gem competitiva de Israel no campo da informática, e em todos os de-mais. Viam nos palestinos os únicos árabes capazes de desafiá-los emtodas as áreas, como já sabiam há muito. Evitar que os palestinos repre-sentassem tal risco foi uma das principais prioridades nas decisões à épocatomadas pelas autoridades israelenses.

Hoje em dia, à medida que, lentamente, a paz se instaura no lugarda guerra, as mentalidades estão passando por mudanças, de modo a assi-milar novas realidades que permitam um desenvolvimento palestino con-trolado e restrito, nas linhas decididas pelos israelenses, sempre de umaforma que não constitua nenhuma ameaça, seja qual for o porte de talameaça, aos interesses israelenses e suas vantagens de mercado.

Se hoje Israel acredita que um Estado palestino independente é imi-nente, entendem que precisam fazer certos ajustes para se adaptar a es-sas mudanças ao mínimo custo possível para sua população, em termoseconômicos e de segurança. Algumas dessas mudanças requerem a presta-ção de auxílio à economia palestina, com o objetivo de fazer que a crescenteforça de trabalho palestina seja absorvida dentro dos próprios limites dorecém-instaurado Estado palestino. Exigem, ainda, que a pobreza dê lu-gar a certo grau de prosperidade econômica, suprimindo a violência namedida em que se permite manter interesses econômicos pessoais. Amaior parte dessas mudanças e providências adotadas por Israel procuradefender, acima e antes de tudo, os interesses de Israel.

O que se faz necessário nos tempos atuais é uma mudança na percep-ção do outro, a imagem coletiva do outro, tanto aos olhos dos palestinoscomo dos israelenses. Durante um período de mais de trinta anos, criou-seuma imagem predominante entre o dominador e o dominado, feita dedesconfiança, ódio, demonização do outro, e até mesmo animosidade.A comunicação e a nova tecnologia constituem aspectos de potencial rea-proximação entre os dois povos. A Palestina conta com políticas liberaisde comunicação e uso de tecnologias semelhantes às adotadas por Israel,o que portanto proporciona a ambos os lados o uso de comunicação enovas tecnologias como um instrumento de aprendizagem e compreen-são do outro, em que se aprende como respeitar e aceitar os direitos ereivindicações de cada um. Uma segunda etapa seria buscar oportunidades

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A questão da tecnologia no processo de paz

de cooperação no campo da informática, por meio das quais seria pos-sível beneficiar-se das conquistas já alcançadas por Israel nessa área edeterminar de que maneira a Palestina poderia adquirir sua própria par-cela de conhecimento no ramo da tecnologia da informação.

Antes e depois de Oslo

Com base em tudo que foi apresentado anteriormente, podemos inferirque, ao longo do tempo, hegemonia e controle manifestam-se de modosdiferentes. O que já foi considerado aceitável em determinado momentopode não ser viável hoje. Portanto, são necessárias certas mudanças de abor-dagem e atitudes para se manter o mesmo controle, porém seguindo for-mas de expressão diferentes. A situação existente entre Israel como do-minador e Palestina como dominado passou por estágios distintos, desdereconhecimento mútuo e negociações até o advento de uma nova conjun-tura política, sem que fossem alterados os componentes básicos que de-terminam o resultado dessa relação.

Se examinarmos mais de perto as transformações ocorridas nessarelação específica, em razão de que, por diferentes motivos, Israel nãoconseguiu manter seu caráter democrático e, ao mesmo tempo, condu-ziu o processo de ocupação de outro povo contra o próprio bem dessepovo, não há como ignorar o fato de que o controle e a hegemonia aindapermanecem ali, menos manifestos do que antes, mas inculcados na es-sência da relação que atua como determinante para o desdobramento doseventos, e a decisão final que efetivamente tem voz ativa nessa relação.

O Quadro 2 procura ilustrar essa relação em constante transformação,com base em mudanças em denominações atribuídas, na interpretaçãode interesses e em novos papéis consignados aos diferentes protagonistas.

Quadro 2 � Antes e depois de Oslo.

Antes de OsloIsrael Palestina

Depois de OsloIsrael Palestina

Fronteiras Nãodefinidas

Ameaçadaso tempotodo peloconfisco deterras eassentamentode colônias

Ajustadas pormeio deanexações

Reduzidas namedida daexpansão deIsrael

Aspectosconsiderados

92

Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

Aspectosconsiderados

Antes de OsloIsrael Palestina

Depois de OsloIsrael Palestina

Segurança Reforçada Inexistente Reforçada Sujeita àsnecessidadesde Israel

Exportações Plenas Inexistentes Plenas Controladas,dependendoda benevolên-cia de Israel

Importações Plenas Somenteprodutosisraelenses

Irrestritas De acordocom cotaspreviamenteaprovadas porIsrael epassandopelos portosisraelenses

Nível de renda Padrõeseuropeus

Padrões depaíses de 3ºmundo

Padrõeseuropeus

Padrões depaíses de 3ºmundo

Educação Acessível Acessorestrito

Acessível Algumasrestrições

Locomoção Totalmentelivre

Controlada Totalmentelivre

Restrita,medianteaprovação dosisraelenses

Linhastelefônicas

Disponíveis Limitadas erestritas

Disponíveis Disponíveisde acordocom o ritmode expansãoda infra-estrutura

Pesquisaacadêmica

US$500milhões

Menos deUS$100 mil

Mais deUS$700milhões

Não excedeuUS$100 mil

Condições parainvestimento

Atraentes Inexistentes,territóriosobocupação

Muitoatraentes

Aindapendente,nenhumaestabilidadepolítica. Israelainda controlatotalmente oacesso e aentrada noterritóriopalestino

continuação

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A questão da tecnologia no processo de paz

O Quadro 2 demonstra que certas relações básicas ainda permane-cem inalteradas, tal como eram antes de Oslo, enquanto se permitiu queoutras relações passassem por modificações de acordo com as novas rea-lidades existentes. Essas novas realidades, contudo, jamais entram emcontradição com a visão israelense que objetiva manter a superioridade,controle total e clara vantagem em segurança, economia e tecnologia dainformação. Em nenhuma circunstância Israel é capaz de tolerar ou aceitaruma situação em que sua superioridade nas áreas consideradas básicasestiver sendo ameaçada por seus vizinhos árabes.

O que significa tecnologia da informação

Espera-se que a revolução da informação predomine no cenário mun-dial do próximo quarto de século. Depois das especiarias, do ouro e dopetróleo, a revolução da informação impõe-se, na esteira da revoluçãoindustrial, como o novo dínamo de desenvolvimento econômico das socie-dades. Proclama-se que a revolução da informação vem mudando nossomundo da mesma forma que, no século XVIII, a revolução industrial trans-formou nossa economia, até então calcada na agricultura. Nesse tipo deconfiguração econômica, o conhecimento e a informação tornam-se o in-grediente básico.

No tocante à tecnologia da informação, destacam-se três importan-tes componentes que se prestam a demonstrar sua relevância. São eles adescentralização, a globalização e a transferência de poder a indivíduos.

Em curto espaço de tempo, a informação transformar-se-á no melhorinstrumento para se acumular riqueza, substituindo terras, energia, traba-lho e capital. Países que restringirem o fluxo e a utilização de informaçõesestarão fadados ao atraso econômico. O uso da Internet por empresascomo um meio de realizar transações comerciais oferecerá novas oportu-nidades, proporcionando-lhes aumento nos lucros. Um estudo recente-mente realizado pela agência de notícias Reuters21 comprovou que aInternet contribui para ajudar as pessoas a lidar de forma bem-sucedidacom o avassalador volume de informações disponíveis em todo o mundo.Outro estudo, desenvolvido pela International Data Corp. (IDC),22 previu

21 Agência de Notícias Reuters, distribuição eletrônica em março de 2000.22 Arab Internet Magazine. Edição de janeiro de 2000.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

que a realização de atividades comerciais via Internet constituirá fatordeterminante na concorrência entre empresas ao longo da próxima déca-da. As empresas que vincularem seu desempenho comercial à Internetobterão maiores sucessos com maior rapidez. A esfera de influência daInternet não se limitará à concorrência entre empresas, pois abrangeráuma concorrência entre economias nacionais e blocos econômicos regio-nais. Podemos atribuir esse fenômeno ao fato de que a incorporação deatividades econômicas terá um impacto melhor e mais profundo em socie-dades com forte tradição no uso da rede internacional. Segundo o relató-rio, estima-se que a economia mundial ruma para um momento de pro-fundas transformações, em que áreas com maior índice de utilização daInternet apresentarão taxas mais elevadas de crescimento. Os EstadosUnidos manterão sua hegemonia sobre o comércio eletrônico (e-commerce)no curso do ano 2001, muito embora sua participação global nessa ativida-de diminuirá dos 80% atuais para menos de 70% em 2001. Vale obser-var as atividades de comércio eletrônico cada vez mais intensas na Ásiae no Pacífico, região que vem ultrapassando a Europa, tomando-lhe a se-gunda posição.

O presidente do Tesouro norte-americano (FED), Alan Greenspan,23

admitiu que o crescimento acelerado que se verifica na nova tecnologiada informação (computadores, telefones celulares, satélites e Internet)provocou mudanças estruturais na economia norte-americana. Nos últi-mos quatro anos, a produção cresceu mais de 2,5%, comparado à taxade 1% registrada nos anos 70. O analista econômico Robert Gordon, daNorth Western University, atribuiu esse elevado crescimento à produ-ção de computadores e semicondutores, que tiveram aumento de 42%no período compreendido entre 1995 e 1999. Greenspan declarou que,nos últimos 5-7 anos, os Estados Unidos registraram o melhor desempe-nho econômico de toda a sua história.

Por outro lado, a criação de espaço(s) virtual(ais) se desdobrará emuma nova forma de dependência, compelindo as pessoas a se afastaremde suas responsabilidades profissionais e familiares para se refugiaremem um novo mundo virtual. A futura dependência, em larga escala, docomércio eletrônico acabará promovendo uma verdadeira revolução em

23 Al-Ayyam (jornal). Edição n.1438, segunda-feira, 20.12.1999. Volume 4.

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A questão da tecnologia no processo de paz

nossa mente. Na nova geografia apresentada pelo comércio eletrônico,as distâncias desaparecem, o que nos força a reconhecer uma única econo-mia, um só mercado. A concorrência deixa de ser local; o reconhecimentode fronteiras passa a inexistir. A nova mão-de-obra imigrante, a eletrônica,aceita trabalhar a longa distância a troco de uma remuneração mais baixa,ignorando fronteiras. É ela a real preocupação no âmbito do comércioeletrônico. Esses trabalhadores farão concorrência real e direta com traba-lhadores mais bem remunerados que exercem funções idênticas nos paí-ses desenvolvidos. As diferenças entre os hemisférios norte e sul perma-necerão, e a distância entre ricos e pobres aumentará.

Existem diferentes aplicações pessoais de informática disponíveis aosusuários em troca de tarifas e/ou taxas determinadas. A família Interneté a mais popular e a mais pessoal de todas as aplicações informáticas.Todos os dias, novos aplicativos são oferecidos aos possíveis usuários,relegando os fatores tempo e espaço a um papel marginal, e confirmandoa tese de que o mundo foi reduzido a uma aldeia global com uma base deinformações compartilhadas. Embora os sites mantidos na web usufruamde maior popularidade, o serviço de e-mail conserva sua força, e o comér-cio eletrônico está deixando para trás todos os demais itens, conquistandoum espaço cada vez maior em relação às aplicações da Internet. Os vídeose telefonemas via Internet, as salas de bate-papo (chats) da Web, a mul-timídia, a imprensa e as publicações eletrônicas, a universidade Internet,o Internet Car e os cafés com acesso à Internet (cibercafés) estão entre asdiferentes aplicações de informática e produtos derivados da Internet.

A tecnologia da informação no mundo

Haidar Abad já foi uma pacata cidade indiana com inúmeros mina-retes antes de se tornar um dos mais desenvolvidos centros de tecnologiada informação do mundo. O presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton,sentiu a necessidade de visitar a cidade, em reconhecimento à sua impor-tância cada vez maior.

Atualmente, cerca de trezentas24 empresas de software funcionamna cidade, e a previsão é de que, em breve, surjam outras 170. Somente

24 Relatório da Agência de Notícias Reuters. Março de 2000.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

no último ano, suas exportações de programas de software atingiram amarca de US$ 275 milhões. A cidade também é conhecida pelo nome de�Cyber Abad�, com trinta mil assinantes de provedores de acesso àInternet (Internet Service Providers � ISP), cerca de mil cibercafés e dezoitoISP. A visita de Clinton a Haidar Abad é mais uma forma de reconhecimentoda importância da cidade no ramo da informática, e de seu desejo de atrairempresas de informática internacionais após ser escolhida pela MicrosoftCorp. para ser o primeiro centro completo de desenvolvimento da indús-tria de informática fora dos EUA. A estratégia da cidade consiste em disse-minar conhecimentos de inglês e de informática entre os seus residentes.

Pesquisa realizada em 1999 pela empresa canadense Angus Reed con-cluiu que o número total de usuários da Internet em todo o mundo ultra-passou a marca de trezentos milhões de pessoas. De acordo com a mes-ma empresa, em 1996, o número total de usuários de Internet em todo oplaneta era de apenas quarenta milhões. Espera-se que, dentro de umano, outros 150 milhões de usuários passem a ter acesso à Internet. Osnorte-americanos são os principais usuários da rede, com um total de108 milhões de pessoas (39%). Segundo a IDC,25 os EUA respondiam por56% dos usuários da Internet no mundo em 1997; contudo, por volta de2002, a participação dos EUA estará reduzida a apenas 42%. Nos EUA,59% da população pode acessar a Internet, comparados a 33% no Japão.Na Europa, o número total de conexões à Internet em 1999 era de 14,2milhões, e a previsão é de que atinja 58 milhões no final de 2001, o querepresenta apenas 4,3% do total da população. A proporção interna donúmero de usuários varia de país para país, com maior incidência nospaíses da Europa setentrional em relação ao restante do continente.A Alemanha e o Reino Unido encabeçam a lista com quatro milhões deusuários cada. Na China, onde se permitiu o acesso à Internet há apenasdois anos, o total de usuários ultrapassou sete milhões em 1999, o querepresenta um aumento de 319% em relação ao primeiro ano de instala-ção. Prevê-se que, por volta de 2003, o número total de pessoas conectadasna China atinja 33 milhões, seguindo um aumento anual de 60%, e queo valor de mercado de prestação de serviços via Internet chegue a US$ 4bilhões.

25 Arab Internet Magazine. Edição de janeiro de 2000.

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A questão da tecnologia no processo de paz

Segundo outro estudo realizado pela IDC26 sobre as receitas prove-nientes do comércio eletrônico, houve um crescimento bastante acentua-do em todo o mundo no que tange à Internet e ao comércio eletrônicoentre os anos de 1997 e 2002, independentemente do total de conexões àrede. A receita total originada pelo comércio eletrônico alcançará a cifra de400 bilhões de dólares por volta de 2002. Durante esse período, estima-seque o número total de conexões à Internet ultrapasse trezentos milhões,e a parcela de usuários da Internet que adquirem produtos e serviços pelarede crescerá de 26% em 1997 para 40% no ano 2002. Em números, issorepresenta um aumento de dezoito milhões de pessoas em 1997 para 128milhões no ano 2002. Essa cifra será traduzida em um enorme volumede negócios e lucros para as empresas que vêm conduzindo operaçõesvia comércio eletrônico. O número total de computadores utilizados paraacessar a rede aumentará de 78,1 milhões de unidades em 1997 para 515milhões em 2002.

A tecnologia da informação e o Oriente Médio

É difícil olhar para o Oriente Médio como uma região homogênea,em que progresso e riqueza estão distribuídos de forma homogênea. OsEstados da região do Golfo Pérsico e os demais países ricos em petróleoencontram-se bem avançados em disponibilidade de produtos, renda per

capita, subsídios concedidos pelo Estado e nível de qualidade de serviçosprestados, quando comparados aos países não exportadores de petróleo.Embora a riqueza em alguns países se reflita em imóveis, serviços públi-cos, infra-estrutura e produtos em geral, outros países optaram por outradimensão de desenvolvimento, investindo em recursos humanos.

Atualmente são inúmeras as iniciativas voltadas à introdução da tec-nologia da informação na região, não se limitando apenas aos países ricosdo Oriente Médio. Líbano, Egito, Jordânia, Marrocos e Israel constituemexemplos claros dessa tendência. Enquanto Dubai, um dos Estados-membros dos Emirados Árabes Unidos, vem trabalhando para estabele-cer uma �Cidade Internet� em Dubai,27 que pretende se tornar um centro

26 Arab Internet Magazine. Edição de dezembro de 1999.27 PC Computers (edição em árabe). Edição de fevereiro de 2000.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

regional de atividades relacionadas à Internet no Oriente Médio, o Egitodeu início a um projeto de cidade cibernética com ênfase no desenvolvi-mento da tecnologia da informação. O Egito espera transformar-se emum dos principais centros mundiais de desenvolvimento da área de in-formática, concorrendo diretamente com a Índia, a Irlanda e, naturalmen-te, com Israel para abocanhar uma fatia do mercado mundial de infor-mática. Especialistas da IBM sentem que o Oriente Médio pode ser umforte participante da �nova� economia emergente. A IBM vem envidandoesforços para firmar-se regionalmente como líder em soluções para tran-sações entre empresas na rede (e-business) prontas para serem aplicadas(turnkey e-business solutions). Medidas incisivas da IBM na área de e-business

incluirão uma subvenção ao projeto sheikhmohammad.com, que visaampliar as atividades de aprendizagem de informática nas escolas e co-locar em rede cerca de duzentas escolas nos Emirados Árabes. Tam-bém está sendo criado um centro de inovação w-business para ensinar umpouco mais sobre e-business a parceiros comerciais e clientes. Uma ini-ciativa patrocinada pela IBM para contribuir com o ensino de informáti-ca no Egito foi anunciada por Al Gore e pelo presidente Hosni Mubarakem Washington.28

A empresa de cartões de crédito Visa International prevê29 que osgastos totais via Internet no Oriente Médio aumentarão para quase 1 bi-lhão de dólares por volta do ano 2002, o que confere à região a condiçãode uma das áreas do planeta cujo comércio eletrônico cresce com maiorvelocidade. Anne Coop, superintendente das operações da Visa no Orien-te Médio, confirmou que os países do Golfo Pérsico representam a re-gião com a mais acelerada taxa de crescimento de uso de recursos infor-máticos, software e comércio eletrônico. A Visa anunciou que algunsbancos do Golfo já começaram a implantar serviços eletrônicos e filiaisbancárias, e o primeiro cartão visa especial de uso exclusivo para comér-cio eletrônico foi emitido por um banco do Kuwait. Da mesma forma, aNetscape Communicator anunciou recentemente que irá expandir suapresença no Oriente Médio inaugurando na região um centro chamadoNetscape Distribution Middle East, nos Emirados Árabes. A Netscape

28 Coletânea de reportagens realizadas pela imprensa. Março de 2000.29 Arab Internet Magazine. Edição de fevereiro de 2000.

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A questão da tecnologia no processo de paz

espera manter relações cada vez mais estreitas com empresas locais nasáreas de Internet, Intranet e comércio eletrônico. Paralelamente, outrasgrandes empresas de informática decidiram manter sites especiais para oOriente Médio, dos quais se destacam os seguintes:

Leo Systems Oriente Médio: www.leome.comOM Middle East/Africa3: www.3com.com/meafAcer Computer (Oriente Médio) Ltd.: www.acer.co.aeNortel Networks Europa, Oriente Médio e África: www.nortelnetworks.com/corporated/global/emeaCisco EMEA: www.cisco.com/aeCompaq Oriente Médio: www.mideast.compaq.comDell: www.dell.co.aeIntergraph Middle East LLC IMEL: www.intergraph.com/middleeastLotus Oriente Médio: www.lotus.com/world/mideast/nsfMicrosoft Oriente Médio: www.microsoft.com/middleeastHome Page da Novell para o Oriente Médio: www.novell.com/corp/int/uaeHome Pages da Sun Microsystem para o Oriente Médio: www.sunsite.scu.eun.egou www.sunsite.kisr.edu.kwDTK Computer Oriente Médio: www.dtkme.comD-Link Oriente Médio: www.dlink-me.comHome Page da Motorola para o Oriente Médio: www.global.motorola.com/Egypt ou www.global.motorola.com/UAEe, por fim, o site para aApple/Arab Business Machine: www.appleme.co.ae

Nenhum desses sites utilizaram ou incorporaram o idioma árabe emsuas informações ou anúncios.

No mês de março de 2000, a III Conferência e Amostra Árabe paraDesenvolvimento da Comunicação (ArabCom) foi inaugurada em Beiru-te, capital do Líbano, com destaque especial para a informática. Minis-tros de nove países árabes compareceram ao evento.

Para fins de estudo, vale examinar algumas das atividades associa-das à tecnologia da informação realizadas no mundo árabe em 1999.Alguns exemplos dessas atividades: em 1999, dois novos países árabes(Arábia Saudita e Síria) passaram a integrar o grupo de países com aces-so à Internet. Antes que o Estado decidisse conectar esses dois países àrede mundial de computadores, os residentes da Arábia Saudita costu-mavam conectar-se à Internet por meio do servidor situado em Bahrain

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

(uma pequena ilha próxima da costa oriental da Arábia). Ao mesmo tem-po, os sírios conectavam-se por meio de um ISP estabelecido no Líbano.Atualmente, o número total de assinantes da Internet na Arábia Sauditacorresponde a 45 mil, ao passo que o número de usuários na Síria aindanão é conhecido. Os Emirados Árabes Unidos contam com o maior númerode assinantes da Internet, totalizando 82 mil. O Egito tem duzentos milusuários; a Jordânia, vinte mil; e o Kuwait, 25 mil. O número de usuárioscresceu 104%, de quase setecentos mil em 1998 para 1,5 milhão em 1999.Vale lembrar que a PC Magazine (em sua edição em árabe) e a revista Arab

Internet estimaram que a média de usuários por conexão à Internet é de2,5, com exceção do Egito, onde essa média sobe para quase quatro usuá-rios por assinatura.

Não se sabe ao certo o número total de sites da rede de computado-res árabes, contudo uma estimativa global calcula que ele gira em tornode 2% do total de sites da Internet em todo o mundo, a despeito do fatode que o porcentual da população árabe em relação à população mundialé superior a 5%.

De maneira geral, o custo da assinatura da Internet30 caiu nos paísesárabes. No Egito, por exemplo, a assinatura mensal custa 18 dólares; 11dólares no Líbano; 25 dólares na Jordânia e 30 dólares na Palestina. Aqualidade do serviço é bem inferior à oferecida nos EUA ou nos paíseseuropeus.

O comércio eletrônico atingiu 100 milhões de dólares em 1999, emque os sites estrangeiros (não árabes) responderam pela maior parte dessemontante.

O único serviço via Internet na área educacional foi oferecido pormeio do Centro Regional de Informática e Engenharia de Ciências (Regio-nal Information Technology & Science Engineering Center).31 O centro(www.ritsec.com.eg) celebrou diversos contratos com universidades eoutras instituições como a Middlesex University no Reino Unido, forne-cendo um programa piloto em Tecnologia da Informação aplicada a Ne-gócios, no site www.globalcampus.com.eg. A Execu Train começou a tra-balhar com cursos de treinamento especializado em ciência da computação

30 Arab Internet Magazine. Edição de fevereiro de 2000.31 Internet Web Sites. Pesquisa de campo para o presente estudo. Janeiro-março de 2000.

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A questão da tecnologia no processo de paz

pela Internet, oferecendo diplomas reconhecidos pela Microsoft; seu en-dereço é www.executrain.com.

A Arab Internet, revista especializada no mundo árabe, recentementeconduziu um estudo32 sobre as características dos usuários da Internet nomundo árabe, que revelou interessantes conclusões mencionadas nesteensaio. Apontou-se que a idade média do usuário é 29,9 anos, abaixo damédia mundial de 33 anos. O número de usuárias da Internet é de apenas6%, comparado à média mundial de 32% ou à média norte-americana de46%. O porcentual de usuários sem diploma universitário é de apenas27%, (17,2% em 1998), o que reflete uma clara transformação no perfildos usuários da Internet, passando de instrumento especializado a instru-mento popular. Engenheiros e técnicos em computação são as principaisprofissões para o uso da Internet, e respondem por 25% do total de usuá-rios. A residência é o local mais utilizado para se conectar à Internet nomundo árabe (72%), enquanto o ambiente de trabalho representa ape-nas 22%; somente 4% dos usuários da Internet conectam-se em universi-dades e escolas, e os 2% restantes, em cibercafés. A maior demanda pelaInternet ocorre às quintas e sextas-feiras, que representam o fim de se-mana para a maioria dos árabes, com 64,3% do total dos acessos, e ohorário preferido para conexão é entre as 22h e 0h (21%).

As salas de bate-papo árabe na Internet aumentaram tanto horizon-tal como verticalmente durante 1999. O aumento não ocorreu apenasno número dos chats, mas também no número de pessoas envolvidas.Esse incremento reflete uma nova tendência sobre o uso da Internet comoum meio de expressar opiniões pessoais, um fórum para discussão dequestões importantes, um local para contribuir com opiniões em umaépoca em que outros tipos de fóruns são limitados em número e em espa-ço. A maioria dos fóruns tradicionais já se encontra sob o controle dosregimes existentes, até mesmo jornais, revistas ou outros meios e fórunsde comunicação. Um aspecto importante em relação a esses fóruns dediscussão é que um número crescente de participantes não está apenasapresentando sua visão pessoal, mas também a visão coletiva de uma ins-tituição, sociedade ou mesmo de um partido político. Essas organiza-ções optaram por participar dos fóruns de discussão da web após reconhecer

32 Arab Internet Magazine. Edição de janeiro de 2000.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

um interesse crescente demonstrado pelos usuários da Internet em par-ticipar ativamente nesse serviço específico.

A Internet está crescendo em ritmo bastante acelerado nos paísesdesenvolvidos, prometendo um crescimento de 150% em 1999.33 De to-das as lojas virtuais, 72% estão localizadas nos EUA. Apesar desse rápidocrescimento, o comércio eletrônico ainda está engatinhando, ao passoque no mundo árabe teve um �parto difícil� e está se desenvolvendo lenta-mente. A concorrência está completamente aberta no comércio eletrôni-co, e para uma loja virtual de fora obter sucesso, precisa de muita sorte.No mundo árabe, existem poucas dessas lojas virtuais, distribuídas nosdiferentes países e especializadas em ramos distintos: Egito conta comnove lojas; Líbano com onze; Qatar com uma; Arábia Saudita com três; Síriacom três; Kuwait com uma; Bahrain com uma; Emirados Árabes com novee Jordânia com duas. De um total de quarenta lojas, apenas onze forne-cem proteção (segurança) ao cliente.

Para os usuários da Internet, a língua representa um importante me-canismo para navegar entre os diferentes sites e lojas virtuais. Segundoestatísticas mundiais, o idioma inglês34 é empregado em 80% das pági-nas da web existentes, seguido pelo alemão, em 4,5%; o japonês, em 3,2%;o francês, em 2%; o espanhol, em 1,3% etc., enquanto o uso do idiomaárabe é algo próximo de 0%. A maioria dos sites criados pelos árabes utilizao inglês. A razão entre o uso do idioma árabe e o inglês nesses sites é de1:1000. Esse tipo de atitude confirma o fato de que não só as empresasinternacionais, mas também as companhias árabes, vêm tentando des-considerar o indivíduo árabe em seus planos. A Internet não é apenasuma loja ou oficina, mas um mundo completo, paralelo ao real, que forne-ce informações, serviços, comércio, entretenimento etc.

Do ponto de vista da mídia e da comunicação, e a despeito dos esfor-ços para se migrar para a mídia eletrônica, a qualidade apresentada emilustração e apresentação encontra-se abaixo do esperado. Entretanto,42 sites estão disponíveis para os jornais árabes diários e periódicos sema-nais, quinze para estações de rádio e televisão e seis para agências denotícias.

33 Arab Internet Magazine. Edição de janeiro de 2000.34 Ibidem.

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A questão da tecnologia no processo de paz

Após esta longa apresentação acerca da situação da tecnologia da in-formação e da Internet no mundo árabe, parece evidente que certos esfor-ços individuais e por parte do Estado vêm sendo envidados buscando me-lhorar a posição árabe na acirrada concorrência por aplicações de informática.No plano individual, o príncipe saudita e grande investidor Walid BenTalal35 tem agido de modo bastante dinâmico para multiplicar seus inves-timentos diretos no ramo da informática, criando provedores e constituin-do outras empresas de comunicações. Parte de seu investimento foi aplicadona aquisição de 50% da Arabia.On.Line, em uma transação de 200 mi-lhões de dólares, que valem 16% das ações da Teledesic, que atua no de-senvolvimento, construção e lançamento de satélites para comunicaçãodigital e utilização da Internet. Em novembro de 1999, o príncipe adqui-riu 5% da News Corporation Limited, no valor de 400 milhões de dólares,um império de multimídia, além de 5% da Netscape, no valor de 146milhões de dólares, e 1% da Motorola, no valor de 300 milhões de dólares.

No plano do Estado, a �Cidade Internet� em Dubai é um reflexo dointeresse crescente demonstrado por determinados Estados árabes empromover a indústria da informática em geral, e a Internet e o comércioeletrônico, em particular. Esse interesse se reflete na criação de gigantes-cos centros especializados equipados com todos os recursos e instalaçõesnecessários, em legislação, promoção e infra-estrutura. Emirados Ára-bes, Egito, Líbano, Marrocos e, recentemente, Jordânia, têm mostradosinais cada vez mais intensos de interesse estatal em apoiar a área deinformática.

Apesar desses indícios de estímulo, é importante citar exemplos dealgumas das potenciais limitações enfrentadas pelo desenvolvimento na-tural das aplicações de informática, inclusive a Internet e o comércio ele-trônico, no mundo árabe. Tais limitações estão relacionadas conformesegue:

1. Conscientização e educação: a falta de conscientização é conside-rada uma das mais importantes limitações sobre o uso da Internet e deoutras aplicações relacionadas. O baixo grau de educação também causaum impacto negativo na aceitabilidade e na utilização da Internet e deoutras tecnologias.

35 PC Computers (edição em árabe). Edição de fevereiro de 2000.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

2. Planejamento e infra-estrutura de comunicação: no Egito, porexemplo:36 com uma população de 64 milhões de habitantes, estão dispo-níveis 4,9 milhões de linhas telefônicas em apenas 548 cidades em meioa um universo de 27 mil cidades e aldeias. O número de computadoresno país é de apenas setecentas mil unidades, há cinqüenta mil assinantesda Internet, enquanto o total de usuários é de aproximadamente duzen-tas mil pessoas, com base na taxa de 4,5 pessoas que utilizam a Internetpor assinatura. Os gastos totais per capita com tecnologia no Egito são de5 dólares por ano, enquanto na Suíça, essas despesas chegam a 995 dóla-res. A renda per capita média no Egito é de 1.100 dólares, contra 20 mildólares na Suíça. O custo da assinatura é de 60 dólares comparados a 25dólares nos Estados Unidos.

3. Serviços financeiros e respectiva infra-estrutura: o número totalde cartões de crédito no Egito é inferior a 120 mil, oferecidos por seisdos 102 bancos em operação no país. Atribui-se esse baixo número direta-mente à falta de conscientização e educação, além dos baixos limites decrédito oferecidos pelos bancos e do depósito em caução exigido do clienteantes da emissão do cartão. Uma vez que o comércio eletrônico vem sendorealizado mediante o uso de cartões de crédito, pode-se concluir que omáximo de compradores desse segmento no mercado egípcio correspon-de, na melhor das hipóteses, aos 120 mil usuários de cartões.

4. Questões governamentais de caráter oficial: a maioria dos gover-nos do Oriente Médio ainda não está pronta para legislar em prol de aplica-ções da informática e, mais especificamente, sobre a Internet. Em algunspaíses árabes, é bem recente a autorização de acesso à Internet, sem quehaja nenhuma lei de estímulo a essa política de abertura, ou que seja capazde proteger usuários e provedores. Por outro lado, a maior parte da legis-lação atual não parece adequada ao século XXI, sendo vista portanto comoum empecilho ao ingresso da tecnologia da informação e de suas aplica-ções ao respectivo país.

5. Custo da assinatura e manutenção: embora a renda per capita nospaíses árabes e em países como o Egito, a Jordânia e a Palestina estejabem aquém das cifras norte-americanas, o custo de aquisição de um com-

36 Arab Internet Magazine. Edição de novembro de 1999.

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A questão da tecnologia no processo de paz

putador completo excede o dobro do preço encontrado nos EUA; o mes-mo vale para o custo da assinatura da Internet.

6. Limitações sociais e psicológicas: essas limitações estão nas leise convenções sociais não escritas, na herança e nas tendências culturais,e nos interesses e preocupações diante do desconhecido. As questões maisrelevantes a esse respeito são as seguintes:

� Confiança no que a Internet pode oferecer, bem como dúvidas sobrese a rede pode ser considerada um fator positivo pelas mudanças queprovoca, ou negativo no que concerne à cultura, tradição e religião.

� Resistência à mudança: parece lógico observar esse tipo de reaçãoquando associada a mudanças tecnológicas que invadem a vida nor-mal do indivíduo.

� Diferença entre gerações: a maioria das pessoas considera que a tec-nologia da informação e a Internet estão associadas às novas gerações,que exigem vasto conhecimento dos recursos tecnológicos, algo alheioàs gerações anteriores.

� A barreira da língua: a Internet e outras aplicações de informática têmcomo base o uso do idioma inglês. Mais de 82% dos websites são apre-sentados em inglês, e a maioria dos árabes não domina a língua, o queos impossibilita de usufruírem dos serviços oferecidos pela Internete das demais aplicações.

As condições atuais da tecnologia dainformação em países diretamente envolvidosno processo de paz árabe-israelense

Optou-se por selecionar Egito, Jordânia, Palestina e Israel pelo queeles têm em comum em relação ao processo de paz. Tanto o Egito comoa Jordânia assinaram um acordo de paz com Israel. A Palestina está emprocesso de negociação para obter uma paz duradoura com Israel. Éimportante observar como o processo de paz tem contribuído de formapositiva para a promoção da tecnologia da informação nesses países. Emoutras seções, discutiremos a possível contribuição da informática parapromover a paz entre esses países e, particularmente, entre Israel ePalestina.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

Egito37

Informações básicas:Número de assinantes da Internet: 25 a 30.000Número de usuários da Internet: 200.000Número de computadores disponíveis: 700.000Porcentual de usuários da Internet em relação ao número de habitantes:0,15%Número de linhas telefônicas: 4,9 milhõesPortadores de cartão de crédito: 120.000Custo da assinatura da Internet: US$20/mêsComércio eletrônico (lojas virtuais): 9

A Internet Society of Egypt (ISE) vem desempenhando um papel bas-tante atuante, já há algum tempo, voltado a desenvolver um certo graude conscientização, tanto no público em geral como no Estado, sobre aimportância da informática e suas aplicações diretas à qualidade de vidano Egito e em sua economia. O Comitê de Comércio Eletrônico (E2C)também foi criado em 1997 com o propósito de fomentar o comércio ele-trônico entre a população e estimular o governo a aprovar leis especiaisde estímulo e proteção ao comércio eletrônico no Egito. O governo ousucursais de órgãos governamentais realizam 57% dos negócios existen-tes nesse segmento. Esse número faz do governo um parceiro importanteno fomento ao comércio eletrônico e em sua regulamentação por meiode leis elaboradas especialmente para esse fim.

O Egito vem tentando copiar o exemplo indiano na indústria da in-formática com base em trabalho duro, contando com o absoluto respal-do do governo, que tem oferecido alguns incentivos atraentes para queas empresas de informática internacionais invistam no país e empreguemespecialistas egípcios. Por esse motivo específico, o governo decidiu ini-ciar a criação das chamadas cibercidades dedicadas ao estímulo à indús-tria de informática. Em visita ao Estado da Virgínia (EUA), o presidentedo Egito, Hosni Mubarak, solicitou às empresas norte-americanas queatuam na Internet que incluíssem o Egito como alternativa para a demanda

37 Coletânea de reportagens e artigos publicados pela imprensa antes, durante e depois davisita de Mubarak aos EUA no final de março de 2000.

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A questão da tecnologia no processo de paz

de técnicos e engenheiros especializados. Ele convidou-as a explorar apossibilidade de investir no Egito para a construção de uma sólida infra-estrutura de informática, onde há mão-de-obra disponível a custo maisbaixo que em outros locais.

Segundo o presidente Mubarak, �o Egito tem abundância de mão-de-obra, com mais de 154 mil diplomados em universidades apenas em1999. Esses graduados são considerados alguns dos mais importantesprotagonistas na criação de uma indústria de informática de sucesso�.Mubarak reconheceu o fato de que a demanda por serviços de informáticacresce a uma taxa de 30%, e que o Egito tem dedicado especial atenção àtecnologia da informação, em geral, e aos benefícios por ela gerados aoEgito, em particular. Confirmou a existência de trezentas empresas nopaís atuando na área de serviços de informação e design de software paraexportação. Informou aos presidentes das grandes empresas norte-ameri-canas de informática que o Egito, em cooperação com empresas interna-cionais, deu início a um programa para treinamento de cinco mil universi-tários graduados por ano a serem absorvidos nas cibercidades que serãoconstruídas em todo o país, com a primeira delas projetada para o sul doCairo. No início de abril de 2000, a IBM anunciou o fechamento de umacordo com o governo egípcio para o treinamento de quinze mil novosgraduados em informática durante um período de cinco anos, com oobjetivo de atender às intenções do Egito acerca do desenvolvimentodessa indústria. Da mesma forma, a Microsoft ofereceu a cem mil alu-nos no Egito um grande desconto na compra de seus produtos.

O ministro das Comunicações e Informática do Egito divulgou umplano de ação ao governo prevendo o investimento de 300 milhões dedólares durante um prazo de três anos, que tem por objetivo treinar erecapacitar milhares de técnicos, para aumentar a capacidade da rede detransferência de tecnologia, desenvolver a indústria de software voltada àexportação e informatizar os serviços públicos e as atividades sob respon-sabilidade do governo. O ministro esclareceu que o Egito pretende estabe-lecer parcerias e pactos estratégicos com as empresas de informática demaior porte a fim de ampliar a produção e o marketing do software egíp-cio no mundo, buscando valorizá-lo dos 50 milhões de dólares atuais paracerca de 500 milhões de dólares em alguns anos.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

Jordânia38

Informações básicas:Número de empresas que trabalham na área da Internet e de serviçosrelacionados: 38Número de empresas que trabalham diretamente com desenvolvimentode software: 12Número de trabalhadores nessas (50) empresas: 1.250Número de usuários da Internet: 50.000Custo da assinatura da Internet: US$100 por mêsVolume do mercado de informática: US$60 milhõesNúmero de universitários/ano graduados nas áreas de software deinformática e tecnologia da informação: 2.300Comércio eletrônico (lojas virtuais): 2

Em março de 2000, o rei Abdallah II fez a abertura, próximo ao MarMorto, do I Fórum Internacional de Informática da Jordânia, com a parti-cipação de mais de cem empresas internacionais de informática e cin-qüenta empresas locais. Sua presença durante a abertura da conferênciae ao longo de todas as sessões foi reconhecida como a participação demaior importância em toda a região, e a primeira manifestação direta dointeresse, por parte de uma liderança, em promover na região a tecnologiada informação e outras tecnologias relacionadas à computação.

Antes da conferência, o rei participou das reuniões preparatórias comos principais programadores locais de software na Jordânia, com o propósitode avaliar as condições e o futuro dessa área, que incluiu a indicação dopresidente da Sociedade Jordaniana de Computação como membro do AltoComitê de Consultoria Econômica, o que reflete o interesse do rei empromover especificamente esse ramo de atividade.

Os estudos mais recentes realizados na Jordânia demonstram que omercado jordaniano comporta alto grau de potencial de desenvolvimentona área de informática. A indústria de informática regional, ainda emestágio um tanto incipiente, logo levou a Jordânia a considerar-se um dospotenciais centros especializados em informática no Oriente Médio, se

38 Coletânea de reportagens, artigos e pronunciamentos oficiais publicados pela imprensaantes, durante e depois da realização da conferência especial sobre tecnologia da informa-ção na Jordânia, final de março de 2000.

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A questão da tecnologia no processo de paz

não no mundo. Um analista econômico jordaniano, o dr. Abdullah al-Malki, em recente artigo publicado pelo diário Al-Dustur, afirmou que aJordânia atende aos quesitos necessários para transformar-se nesse cen-tro. Ele afirma que o sucesso da Jordânia não se fundamenta apenas nadisponibilidade de recursos humanos e no sistema econômico liberal vi-gente no país, mas também no aumento constante e acelerado na deman-da externa, quando comparada à demanda local. O autor do artigo defendeainda a tese de que o desenvolvimento do setor de informática é o me-lhor exemplo de como a Jordânia pode transformar seus cidadãos emfontes produtoras de renda.

O ministro do Comércio e Indústria da Jordânia anunciou em julhopassado que o reino construirá uma cidade especializada na indústria desoftware, na expectativa de que diferentes empresas internacionais, ára-bes e jordanianas, participem do projeto, e de que haja maior interessede investimentos por parte de muitas outras empresas.

Estima-se que o valor de mercado da produção jordaniana no setorde informática seja de aproximadamente 60 milhões de dólares, dos quaisas exportações diretas da Jordânia não passam de 7 milhões de dólares.Especialistas na área estimam um crescimento anual superior a 100%no setor.

O presidente da Jordanian Computer Society, sr. Karim Qu�war, pro-curou definir as diretrizes de uma série de medidas para ajudar a Jordâniaa reunir todas as qualificações necessárias a transformar-se em um centroregional de tecnologia da informação. Karim ressaltou a necessidade dedesenvolver essa indústria estimulando a cooperação entre as empresaslocais que atuam nesse setor, especialmente nas áreas de marketing exter-no, e na aplicação de padrões internacionais. Também solicitou a coopera-ção entre programadores e governo para fazer melhorias e desenvolveruma legislação que atenda aos interesses da indústria, melhore a infra-estrutura em geral, e a infra-estrutura relacionada à comunicação, emparticular, e, por fim, dê prioridade a essas empresas no tocante a servi-ços de comunicação.

De acordo com o mesmo estudo, caso essas recomendações sejamefetivamente colocadas em prática, a Jordânia espera atingir o mesmonível de Israel, Índia e Irlanda. O estudo identifica o fator baixo custo demão-de-obra qualificada como um elemento atraente que favorece a

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

Jordânia na concorrência contra os países citados. Estima-se que os salá-rios oferecidos na Jordânia para o setor de informática estejam entre osmais baixos do mundo, isto é, uma remuneração média diária de 12 dóla-res para iniciantes, comparada a 113-180 dólares na Irlanda, muito em-bora os salários pagos na Jordânia coincidam com os vigentes no Egito.O mais importante obstáculo para a Jordânia é o alto custo da comunica-ção. Sem uma redução drástica nesse custo, a Jordânia não teria condi-ções de competir com outros países na região, principalmente com oEgito. Na Jordânia, o custo da assinatura da Internet está em torno de100 dólares, comparado a 17 dólares na Irlanda, 35 dólares em Israel e 30dólares no Egito.

Com a recente conferência realizada próximo ao Mar Morto, a Jor-dânia espera estimular empresas como Microsoft, Sun, AOL e FranceTélécom a investir no país. A estratégia nacional da Jordânia divulgadana conferência para o setor de informática pretende incrementar os inves-timentos internacionais em informática em cerca de 150 milhões de dóla-res, aumentar as exportações anuais de programas de software da Jordâniaem 100%, gerar trinta mil novos empregos na área, e obter um retornode aproximadamente 500 milhões de dólares por volta de 2004. A FranceTélécom adquiriu 40% da Companhia Estatal de Comunicações, enquan-to a Sun manifestou seu interesse em investir na Jordânia, no setor desoftware.

Palestina39

Breve histórico:Número de conexões à Internet: aproximadamente 9.000Número de provedores de acesso e serviço à Internet: 4 palestinos, algu-mas assinaturas de provedores israelensesNúmero de computadores: 16.096 em 1997Custo da assinatura mensal da Internet: US$25Número de linhas telefônicas: 167.261 em 1999Domínio independente na Internet: PS, aprovado apenas em março de 2000

39 Coletânea de reportagens, artigos, pronunciamentos oficiais e entrevistas realizadas emmarço de 2000 sobre o desenvolvimento de tecnologia na Palestina.

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A questão da tecnologia no processo de paz

Bem poucas informações estão disponíveis sobre tecnologia da infor-mação na Palestina ou sobre o uso de aplicações da Internet. Duranteum longo tempo, a maioria dos provedores utilizou extensões .com, .eduou .org como ciberespaço em vez do domínio nacional. Outros ainda op-taram por conectar-se a provedores israelenses em busca de um serviçomelhor e mais rápido. A Autoridade Palestina (AP) tem tentado há anos,sem lograr sucesso, obter um nome de domínio de alto nível da InternetCorporation for Assigned Names and Numbers (Icann). Em 1997, a AP

entrou com um pedido de adesão à Icann, que lhe foi negado na ocasião.A Icann então ofereceu aos palestinos o código WB, acrônimo para WestBank (Cisjordânia), mas também essa oferta foi rejeitada, só que pelospalestinos. Em 1999, a AP mais uma vez solicitou à Icann o código OS,desta vez com o respaldo das recomendações da ONU e da ICO, e somenteapós constar da lista de organizações ISO 3166-1 da ONU. Foi apenas emmeados do ano passado que a ONU aceitou o pedido da AP, sob o nomede �Território Ocupado Palestino�. No final de março a Icann informoua AP de sua aprovação para o código PS, e isso ocorreu somente depoisde se obter a aprovação direta do Departamento de Comércio dos EUA.

A aprovação do código PS significa que, pela primeira vez, os palesti-nos terão um ciberespaço próprio e independente, isto é, uma conexão àInternet para os palestinos, com total autonomia. Enquanto os paísesvizinhos estão lutando por sua fatia no setor da tecnologia da informação,os palestinos ainda vêem-se obrigados a lutar pela conquista de um códigoindependente para a Internet. Prevê-se que, com o código PS independentepara a Internet, fica mais simples reorganizar e coordenar as diferentesredes de computadores na Palestina, além de servir à economia palesti-na mediante a identificação e o atendimento das empresas palestinas.

O diretor técnico do projeto Rede Computadorizada do Estado desta-cou a importância da tecnologia da informação e de seu papel na aberturade novos horizontes para os palestinos em desenvolvimento tecnológicoem todos os campos. Por outro lado, anunciou-se que o Centro de Infor-mática do Estado vinha tentando organizar as exigências técnicas e finan-ceiras necessárias a finalizar o estabelecimento de uma Unidade Especialdestinada a administrar o espaço da Internet para os palestinos, e amantê-la em funcionamento para permitir que as empresas e institui-ções interessadas a utilizem tão logo quanto possível, no intuito de

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

viabilizar a entrada da Palestina no mundo da Internet. A primeira aplica-ção direta do código PS foi o site oficial: www.gov.ps.

O Ministério das Comunicações palestino manifestou sua intençãode organizar a III Mostra de Informática e Comunicações na cidade deGaza, de 30 de março a 4 de abril de 2000. Vale mencionar que dezoitorepresentantes locais das grandes empresas de informática e ciência dacomputação irão participar da mostra, além de haver diferentes pales-tras sobre o papel e a importância da tecnologia da informação na promo-ção da economia local. Ao mesmo tempo, o Ministério do Turismo pales-tino organizou uma oficina especial que visa buscar alternativas parapromover o turismo na Palestina por meio da Internet, e para desenvolvera indústria do turismo na Palestina por meio da tecnologia da informação.

Além disso, a AP ainda vem tentando celebrar diferentes acordos compaíses com o objetivo de reconhecer e utilizar o novo código telefônicointernacional para a Palestina (970). Até o presente momento, a Palesti-na ainda utiliza o código de Israel (972) para ligações internacionais, eespera conseguir empregar diretamente o novo código palestino, comoum sinal de sua independência dos israelenses na área das comunicações.

Israel40

Informações básicas:Número total de conexões da Internet: 500.000Número total de provedores de acesso à Internet (ISP): 9Número total de linhas telefônicas: 1.804.000 em 1992Custo mensal de subscrição à Internet: US$25

A natureza das informações relacionadas a Israel é totalmente dife-rente das informações apresentadas em relação aos outros três países daregião do Oriente Médio aqui considerados. O nível das informações ésuperior e mais sofisticado sob todos os aspectos, o que impede que trace-mos qualquer tipo de comparação entre Israel e os demais países.

Bilhões de dólares são investidos em Israel pelas empresas internacio-nais que buscam os conhecimentos especializados, tecnologia e know-

40 Coletânea de reportagens e artigos publicados na imprensa sobre o desenvolvimento datecnologia da informação em Israel. Informações coletadas até março de 2000.

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A questão da tecnologia no processo de paz

how israelense. Há exemplos mais que suficientes para elucidar este pontoespecífico: a empresa de informática Forsoft Ltd. está concluindo as nego-ciações para compra de quatro empresas israelenses por 20-25 milhõesde dólares como parte de uma operação estratégica na área de e-business,e para melhorar a posição no mercado internacional. A Soros, LehmanBrothers investe cerca de 20 milhões de dólares na SFK Technologies,uma empresa israelense recém-estabelecida que se concentra no campoda alta tecnologia. O valor total da empresa está estimado em 150 mi-lhões de dólares. Os fundos norte-americanos Mayfield Fund, um dosmais respeitados fundos de capital de risco do mundo, marcaram sua en-trada no mercado israelense com a participação em um investimento de15 milhões de dólares na Banter, sediada em Jerusalém. A Banter, anterior-mente denominada Aspect Software, é uma empresa com quatro anosde existência que atua na criação de programas de gerenciamento de siste-mas de comunicação eletrônica de empresas, como chat, e-mail e telefonesvia web. Em 1999, a Intel Corps inaugurou uma unidade de tratamentode computadores por um total de 1,6 bilhão de dólares em Kiriat Gat, aosul de Israel. A Toshiba Corp. anunciou investimentos em uma nova fábricaisraelense voltada à produção de circuitos integrados (chips) de computa-dor, cujo controle será detido pela Tower Microconductors por 1,5 bi-lhão de dólares. A Terayon Communication Systems Inc. tem dado segui-mento à sua política de aquisição de empresas israelenses de alta tecnologia,comprando a sociedade de capital fechado Ultracom CommunicationsHoldings Ltd. por cerca de 32 milhões de dólares em ações. A Ultracom fabri-ca circuitos integrados usados para acelerar a velocidade de tráfego daInternet em linhas regulares (de cobre) de telefonia fixa com base em tecno-logia DSL (digital subscriber line) e proporcionar acesso à Internet por meiode serviços de telefonia sem fio. Em 14 de março, a Terayon comprou aInternet Telecom, sediada em Jerusalém, empresa desenvolvedora de tec-nologia que permite a fabricantes de equipamentos de comunicaçõestransmitirem voz e dados simultaneamente pela Internet. De acordo como presidente da empresa, a Terayon planeja adquirir de três a quatro em-presas israelenses até o final de 2000. De acordo com o vice-presidenteda America Online (AOL), a empresa tem procurado efetuar mais investi-mentos em Israel, além dos quase 100 milhões de dólares já investidosem empresas locais nos últimos meses. A AOL reconhece Israel como

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

um núcleo de talentos e, em junho de 1998, a empresa fez uma aquisi-ção recorde da empresa da Internet Mirabilis (ICQ) pelo valor de 407 mi-lhões de dólares. Ao cabo de dois meses de negociações, a alemã Siemenscomprará a Savan Communications por 130 milhões de dólares. Essa em-presa foi constituída em 1996 para desenvolver circuitos integrados decomputador para a ADSL Technologies, que viabiliza a transmissão de da-dos em alta velocidade por meio de linhas de cobre, de telefonia fixa. AYazam.com, que ajuda empresas de alta tecnologia em fase inicial a obtercapital inicial, concluirá a captação de 50 milhões de dólares no final demarço de 2000, tendo fechado um acordo no valor total de 200 milhõesde dólares. A empresa oferece assessoria a firmas de alta tecnologia emseu estágio inicial. Os interessados podem entrar em contato com a em-presa por e-mail, e recebem resposta dentro de três semanas sobre a in-tenção de a Yazam.com prestar-lhes auxílio ou não. Em caso afirmativo,a própria empresa investirá no projeto, além de ajudar a levantar fundoscaptados em outras entidades. A empresa mantém uma carteira de inves-tidores privados dispostos a investir nas firmas selecionadas pelaYazam.com. Em contraprestação a seus serviços, a Yazam.com exige 5%do capital acionário da empresa investida, mais o montante de 30 mildólares. A empresa afirma que recebe mensalmente centenas de proje-tos de empresas locais, que, em sua maioria, são rejeitados. Desde suafundação, já investiu em dezoito empresas, com valores que variam en-tre 5 milhões e 20 milhões de dólares cada. Oito dessas entidades sãoempresas estrangeiras.

Em outro campo de atuação, uma pesquisa realizada pela Bezeq Is-rael Telecom Ltd. revelou que 52,5% de todas as empresas israelensesestão conectadas à Internet, e muitas das empresas ainda não ligadas emrede planejam fazê-lo por volta do final do ano. A Universidade de Tel-Aviv recentemente elaborou um relatório mostrando que cerca de 5,4%da população adulta está envolvida na criação de novos negócios, colocan-do Israel atrás apenas do Canadá e dos EUA quanto às atividades em-preendedoras. Outro estudo desenvolvido por Jacob Richman, um consul-tor de Internet, apontou (www.jr.co.il/cgi) que 93% dos funcionários deempresas de alta tecnologia estão satisfeitos com seus empregos. Os da-dos recém-divulgados revelaram que 76% dos funcionários que atuam

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A questão da tecnologia no processo de paz

em alta tecnologia têm entre dezoito e 39 anos, que 42% exercem opçãode compra de ações da empresa, e que 44% recebem um bônus anual;mais de 25% dispõem de automóveis da empresa, enquanto 86% têmdiploma universitário. O mesmo estudo indicou que apenas 16,2% consi-deram o hebraico como seu idioma nativo, ao passo que 46,6% menciona-ram o russo como sua língua materna, com o inglês ocupando uma confor-tável segunda posição com 32%.

Já no setor de telefonia, a Barak, empresa internacional de telecomu-nicações, oferecerá, tal como informado pelo vice-presidente da empre-sa, serviços de telefonia pela Internet a seus assinantes no curso do ano2000. A Barak começou a desenvolver o serviço de voz via Internet aoassinar um acordo de cooperação com a Go2Net no início desse ano. AGo2Net é uma firma especializada em diálogos com base em protocoloda Internet. A Barak também anunciou um acordo com a empresa IBasis,especializada em ligações telefônicas internacionais e comunicações porfax via web. A Barak é responsável pela operação de 355 mil linhas interna-cionais e está trabalhando em um projeto conjunto de comunicações inter-nacionais com a Cisco. Os alunos de universidades hebraicas logo pode-rão consultar suas notas em exames e obter informações sobre cancelamentode aulas, recuperação e bolsas de estudo, bastando para isso acessar da-dos via Internet integrados aos seus telefones celulares Cellcom. O novoserviço foi desenvolvido no departamento de sistemas de informação daHU. Pela primeira vez em Israel, o vídeo streamer viabilizado pela SiliconGraphics transmitirá gravações de palestras universitárias pela Internet.As palestras podem ser ouvidas e assistidas, por enquanto, gratuitamente,no site www.tv.proj.ac.il.

Diante de todos esses avanços, alguns dos rabinos judeus israelen-ses baixaram ordens religiosas banindo o uso da Internet por seus discípu-los, estimados em cerca de quinhentas mil pessoas. A justificativa parao banimento foi o mal supostamente causado pela Internet e pela televi-são, abrindo exceção às pessoas que trabalham na área da Internet, des-de que, contudo, conectem-se à rede mundial sob total supervisão de seusrabinos, e que jamais acessem a Internet em casa. Essa proibição religiosafoi instituída em uma época em que o Knesset, o parlamento israelense,deu início a uma campanha e uma demonstração a favor da Internet.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

A cooperação existente na área de informáticaentre os países mencionados

Cooperação entre israelenses e jordanianos

Em março de 2000, o rei Abdullah da Jordânia celebrou um acordocom Dani Guildman,41 presidente da União das Câmaras de ComércioIsraelenses, com Beni Ga�on, presidente da Câmara de Comércio Jor-dano-Israelense, e com Yusi Fardi, um dos principais empresários israe-lenses na área eletrônica, que prevê a ajuda a ser prestada pelos empre-sários israelenses para estimular a cooperação com a Jordânia na área detecnologia da informação. Também foi acordado que a Jordânia receberáuma comissão especial de empresários israelenses especializados na in-dústria eletrônica que terá por objetivo examinar uma possível coopera-ção entre os dois países em um futuro próximo.

Os três empresários israelenses foram convidados pessoalmente pelorei da Jordânia durante a conferência especial sobre tecnologia da informa-ção organizada próximo ao mar Morto, na Jordânia, no mesmo mês (mar-ço de 2000). A delegação israelense reconheceu o interesse especial de-monstrado pelo rei de fortalecer os laços de cooperação na área deinformática com os empresários israelenses, acrescentando que o rei pre-tende criar um centro de tecnologia avançada na cidade de Irbid, destinadoa transformar a Jordânia em uma área de alta tecnologia no Oriente Mé-dio. Nos termos do acordo realizado entre as partes, os empresários israe-lenses comprometem-se a incentivar empresas israelenses e norte-ameri-canas a constituir centros de assistência logística na Jordânia.

Por outro lado, a Visuality Systems, uma empresa de alta tecnologiacontrolada por israelenses e jordanianos e sediada em Yoken�am,42 decla-rou que conseguiu captar 1 milhão de dólares da holding Apex Mutavimcom base no valor de 10 milhões de dólares da empresa. A maioria dosquinze funcionários da Visuality são engenheiros de software jordanianosque trabalham nos escritórios da empresa localizados em Amman. A

41 Coletânea de reportagens, artigos e pronunciamentos oficiais publicados pela imprensaantes, durante e depois da realização da conferência especial sobre tecnologia da informa-ção na Jordânia, final de março de 2000.

42 Jerusalem Post, março de 2000.

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A questão da tecnologia no processo de paz

empresa não informou o nome do sócio jordaniano, mas afirmou que asociedade possibilitou à Visuality identificar e empregar trabalhadoresjordanianos que são altamente qualificados e representam um custo maisbaixo de mão-de-obra. A empresa, constituída em 1998, desenvolve siste-mas de controle e gerenciamento e de integração em rede (networking)para pequenos negócios e escritórios residenciais. Anteriormente, já cap-tara recursos no total de 500 mil dólares do Trade Fund, um fundo deinvestimento de capital israelense, jordaniano e norte-americano.

Empresários israelenses e jordanianos estão trabalhando para a cria-ção do primeiro empreendimento conjunto de israelenses e jordanianosna área da Internet. Com o nome de Taskman.com Inc., o empreendimen-to já foi registrado nos Estados Unidos, Jordânia e Israel. Esse empreendi-mento tem por base programas de software desenvolvidos por especialis-tas jordanianos. O novo produto permite às empresas gerenciarem seuse-mails e linhas telefônicas, possibilitando a empresas e particulares oenvio de mensagens de e-mail por meio do website. As mensagens são tria-das e processadas para a atribuição de importantes tarefas a outras pes-soas. A Taskman.com emprega seis funcionários atualmente, metadedeles na Jordânia e metade em Israel. A empresa subcontratou uma firmaisraelense para cuidar da manutenção do site e elaborar a programação.

Cooperação entre israelenses e palestinos43

Em 1999, foi criado o Fórum de Negócios Israel�Palestina. No iní-cio do ano 2000, o fórum logrou realizar seu segundo encontro na cidadede Ramallah para discutir as possibilidades de se desenvolverem proje-tos conjuntos na área de informática avançada. O diretor geral palestinono Ministério do Comércio e Indústria destacou o apoio dado pela AP àcooperação existente entre a iniciativa privada de Israel e da Palestina,desde que se parta do conceito de parceria e interesses conjuntos. Ospalestinos esperam investimentos maciços de Israel em seu país na áreade tecnologia da informação. Outra área prática de cooperação esteve re-presentada no encontro na forma de dezessete robôs projetados pelas

43 Peres Center for Peace. Relatório de Atividades na Área de Tecnologia da Informação. 1998em Revisão. Peres Center.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

equipes de israelenses e palestinos para o efetivo combate a incêndio emresidências. Simultaneamente, os alunos israelenses e palestinos do ensi-no médio e superior responsáveis pelo projeto dos robôs aprenderam queo trabalho conjunto pode ajudar a apagar as chamas do conflito entre osdois povos e promover a coexistência pacífica por meio da educação. Osestudantes israelenses e palestinos, bem como um grupo do TrinityCollege nos EUA, trouxeram robôs que haviam projetado durante trêsmeses para uma feira de robótica (a Roobner 2000 International RoboticsCompetition) no Centro Esportivo Zisman em Ramat Gan, Israel. Osjuízes avaliaram a capacidade tecnológica e de inovação dos candidatos.O vice-ministro da Educação da AP declarou durante o evento que temenvidado esforços para incentivar os estudos aplicados às áreas de altatecnologia.

Fatores que influenciam a introduçãode nova tecnologia

Após essa longa introdução sobre a situação existente no OrienteMédio no que diz respeito à tecnologia da informação, as condições bas-tante distintas vivenciadas em cada um dos países inseridos nessa mes-ma região geográfica tornam-se logo evidentes. Ao partirmos de umaabordagem reversa sobre a relação entre a nova tecnologia e os fatoreslocais que representam os diferentes países e sistemas, chega-se a conclu-sões bastante objetivas, em que são identificados os fatores que influen-ciam as verdadeiras opções de desenvolvimento. Torna-se evidente que,para que a tecnologia da informação renda bons frutos, são necessáriaspolíticas e leis liberais que permitam o uso das aplicações de informáticaem todo o país. Se determinados países proíbem o emprego das aplica-ções de informática, adotam uma postura contrária à divulgação de no-vas tecnologias a seus cidadãos, destituem-lhes dos princípios fundamen-tais dos direitos mais elementares.

É óbvio que fatores como: democracia local, estabilidade política,países que dispõem de livre acesso e economia liberal e globalização cons-tituem, claramente, elementos que contribuem para a possível introdu-ção de novas tecnologias em um dado país.

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A questão da tecnologia no processo de paz

Democracia local44

Certos aspectos inerentes à nova tecnologia, principalmente aque-les que pretendem influenciar a promoção e o desenvolvimento da demo-cracia local, apresentam algumas restrições e limitações. Há necessidadede se estabelecer uma distinção entre a disponibilidade da nova tecnologiae de sua acessibilidade em uma determinada área geográfica. Embora anova tecnologia venha sendo considerada um meio que permite mudan-ças, esse meio fica impossibilitado de cumprir seus próprios objetivosse for impedido de atingir uma determinada área geográfica. Sua própriadisponibilidade no mercado, suas aplicações específicas, certamente in-fluenciam, até certo ponto, o desenvolvimento da democracia e sua pró-pria sustentabilidade. A mera utilização da nova tecnologia não quer dizerque uma mágica será operada de imediato, oferecendo resultados na hora,ou que essa tecnologia possa ser comandada por um controle remoto ecruzar fronteiras.

Os especialistas na nova tecnologia jamais tiveram em mente o obje-tivo de instaurar uma democracia local: sua principal meta sempre girouem torno da necessidade de fornecer um serviço melhor, mais fácil, acessí-vel e com toda a comodidade aos clientes, por um preço razoável. É óbvioque a relação é uni, e não bidirecional. Os militantes da democracia localprocuram se beneficiar do que existe à disposição no novo mercadotecnológico. Sem que haja um claro entendimento da potencialidade datecnologia recém-desenvolvida, torna-se-lhes inviável vislumbrar de queforma poderiam identificar tais benefícios.

Estabilidade política

A falta de estabilidade política em um país impedirá os investidoresestrangeiros de contribuir para o desenvolvimento da economia local,aumentando o risco para os capitais aplicados a investimentos. Estabilida-de política não é sinônimo de um regime forte e duradouro, independen-

44 Riad Malki, Local development and new technology. Interarts Observatory. Campus universitá-rio de verão. Barcelona, 1998.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

temente das condições sob as quais esse regime governa e é controlado,mas sim contar com um governo eleito democraticamente, que repre-sente a espontânea vontade de seus cidadãos, e que permita a realizaçãode eleições livres durante um longo período de tempo. É sabido que ocapital destinado a investimentos não tem nacionalidade, e está sempreem busca da melhor oportunidade de investimento com a mais alta taxade retorno, com o menor ciclo possível. Manifestações de cessação, con-vulsões sociais, revoltas de minorias, movimentos fundamentalistas, atosde violência e desmoralização política são alguns dos importantes fatoresque podem afetar a estabilidade de qualquer regime, tendo como resulta-do o êxito ou o fracasso de possíveis investimentos na tentativa de erguera economia nacional de qualquer país.

Livre acesso

Este fator está diretamente relacionado à estabilidade política dequalquer país. A imposição de determinados controles sobre o acesso(entrada e saída) de pessoas e mercadorias em um dado país pode levarà perda do potencial de melhoria das suas condições econômicas. Namaioria desses países, há uma necessidade premente de qualquer tipode melhora na situação econômica.

Economia liberal e globalização

Uma economia liberal não é apenas um slogan apresentado a poten-ciais investidores. Trata-se simplesmente de legislação traduzida na for-ma de leis e regulamentações, uma economia aberta que permita o livreingresso de investimentos estrangeiros mediante o estabelecimento deempreendimentos econômicos de qualquer natureza. Nos casos em quea economia do país ainda é controlada total ou parcialmente pelo Estado,e onde o setor privado inexiste ou sofre restrições a qualquer forma dedesenvolvimento, fica evidente a carência de possíveis mecanismos quepermitam o desenvolvimento. Uma economia de mercado com livre con-corrência pode garantir melhor nível de serviços, mais qualidade e maiorvariedade de artigos oferecidos a diferentes preços.

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A questão da tecnologia no processo de paz

O papel da comunicação e de outrastecnologias no conflito

Obviamente o papel da comunicação e de outros recursos tecnoló-gicos varia de uma aplicação tecnológica para outra. Independentementedo sistema que está sendo utilizado, não podemos subestimar o papel eo efeito dos diferentes meios de comunicação no conflito.

Tendo em vista que há diferentes aplicações tecnológicas e meios decomunicação, eles exercem influências variadas, que mudam de acordocom a sua classificação.

As aplicações tecnológicas e meios de comunicação classificam-seem duas categorias:45 meios de comunicação clássicos ou tradicionais; enovas aplicações tecnológicas.

Os meios de comunicação clássicos restringem-se ao rádio, à televi-são e à imprensa escrita. Encontram-se amplamente difundidos, sendoidentificados como o quarto poder. Sua influência é ilimitada, tendo acapacidade de vender histórias, despertar interesse público sobre qual-quer assunto que considerem importante e moldar a opinião pública emtodo tipo de questão. Contam com aspectos e dimensões internas e ex-ternas, ambas necessárias para se gerar e manter um conflito. Esses meiosde comunicação não só têm a pretensão de despertar a atenção da popula-ção local ou mobilizá-la em torno de questões específicas, mas tambémde serem objetivos, convincentes e gozarem de credibilidade suficientena opinião pública internacional, no sentido de que devem fazer partedas dimensões de qualquer tipo de conflito. Conflitos não são mantidosapenas pela fé e convicções locais, mas também pela alienação, impedin-do que outras forças se aliem ao lado considerado errado, do seu pontode vista.

As novas aplicações tecnológicas incluem o aparelho de fax, o com-putador, o satélite, a Internet e muitas outras, que são utilizadas por umnúmero restrito de pessoas, ou cujas aplicações diretas são igualmenterestritas. A disponibilidade de algumas das aplicações é bloqueada e ina-cessível a determinados usuários, países e regimes. O princípio da exclusi-

45 Riad Malki, Local development and new technology. Interarts Observatory. Campus universitá-rio de verão. Barcelona, 1998.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

vidade vem se refletindo no conceito da disponibilidade e/ou acessibili-dade de certas tecnologias e aplicações tecnológicas. Por outro lado, aobtenção dessas tecnologias pode exigir vultosas somas em dinheiro, oque impede que outros itens prioritários recebam a devida atenção. Afalta de conhecimentos específicos, experiência e recursos humanos podeconstituir obstáculo a esses esforços, além de reduzir tais investimentosa um caso perdido.

Possíveis elementos de cooperação

Duas limitações surgem diante de possíveis projetos de cooperação:a primeira delas, mais simples, consiste na necessidade de se introduzir aInternet e a tecnologia da informação na mentalidade das pessoas e no modus

operandi da vida cotidiana, e de fazê-las aceitar a Internet como um meiopara contato. A segunda limitação, já mais complexa, representa um obstá-culo bem maior a ser superado, pois lida com esforços voltados a alterarpercepções e formação de estereótipos acerca do outro, seja ele palestino,seja israelense. Lograr sucesso na primeira não necessariamente garanteuma transição tranqüila para a segunda, embora a superação da barreiraimposta pela segunda imediatamente transformaria a primeira em umserviço meramente mecânico, em que se passa a competir por qualidade.

Após essa descrição pormenorizada da situação existente na regiãoe das diversas possibilidades que se abrem à promoção e ao desenvolvi-mento da paz por intermédio da tecnologia da informação, deve-se traba-lhar um pouco mais sobre essas possibilidades e tentar identificá-las demaneira adequada. São elas:

Cooperação tecnológica no âmbito do Estadoe do setor privado46

O departamento de tecnologia do Peres Center for Peace (CentroPeres para a Paz) vem trabalhando para estabelecer laços e relações tec-nológicas entre Israel, Jordânia, Palestina e empresas internacionais. Essainiciativa procura dar ênfase ao desenvolvimento de programas de software

46 Peres Center for Peace. Relatório de Atividades na Área de Tecnologia da Informação. 1998em Revisão. Peres Center.

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A questão da tecnologia no processo de paz

regional e da tecnologia da informação. O Fundo de Tecnologia para aPaz foi lançado em 1998, com um capital inicial de 60 milhões de dólares(formado, paritariamente, por fundos palestinos, israelenses e internacio-nais), e destina-se ao investimento em empresas privadas palestinas.O fundo tem por objetivo estabelecer laços comerciais duradouros entreempresas palestinas e israelenses. Por volta do final de 1999, o conselhoadministrativo do fundo pretendia investir em cinco empresas de capi-tal palestino. Entre as destinações do investimento, destaca-se o treina-mento a engenheiros de programação palestinos na fábrica da Siemensem Israel antes de serem transferidos a uma empresa palestina de altatecnologia situada na Cisjordânia. O fundo pretende promover um au-mento de capital para 100 milhões de dólares. A Philips foi a primeiraempresa a contribuir com o fundo, aportando o valor de 1 milhão de dó-lares. Espera-se que outras empresas sigam o exemplo em breve.

Da mesma forma, e em parceria com empresas israelenses de altatecnologia, a Peres Informatech tem colocado em prática uma aborda-gem singular em termos de cooperação em tecnologia da informação entrepalestinos e israelenses, contando com a participação de outras empre-sas de alta tecnologia. A primeira etapa dessa abordagem consiste emdesenvolver programas personalizados de treinamento vocacional paraengenheiros de software palestinos e israelenses. Em seguida, a propostaé estabelecer um espaço virtual de tecnologia da informação por meio deum website que forneça uma relação de vagas profissionais com as respec-tivas exigências de qualificação e informações sobre centros locais de trei-namento em que essas qualificações podem ser obtidas. Ao ajudar a esta-belecer o contato certo entre o empregador e o potencial empregado, osempregadores devem arcar com os custos do curso necessário à atualiza-ção das qualificações existentes dos novos empregados de maneira quepossam atender às exigências do novo emprego. Esse enfoque contribuipara gerar novas oportunidades de emprego, aprimorar o treinamentovocacional e estimular a cooperação.

Educação pela Internet

Escolas abertas ao universo e universidades sem portões são apenasexemplos do futuro sistema eletrônico educacional. A reestruturação do

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

sistema educacional em diferentes partes do mundo, ou do que pode serchamado de novo enfoque educacional, faz parte da nova filosofia queafirma que �a educação não está limitada pelo espaço ou pelo tempo�, eque a força motriz desse princípio é a Internet.

Um campus universitário virtual poderia ser desenvolvido na Internettanto para estudantes palestinos como israelenses. A Universidade daPaz representa uma oportunidade para projetos conjuntos que se valemda tecnologia da informática para incentivar a educação para a paz para ajuventude e os estudantes. O projeto dessa universidade precisa ser reco-nhecido pelos sistemas de educação superior da Palestina e de Israel, comum possível reconhecimento de terceiros. As disciplinas seriam limita-das a Estudos para a Paz, Estudos sobre o Novo Oriente Médio, EstudosDesenvolvimentistas etc. Investimentos reais deveriam ser aplicados a essecampus virtual, aliados a uma campanha publicitária conduzida com serie-dade em ambos os países, e também em outros países árabes, islâmicose do Oriente Médio. Alunos de outras áreas em conflito poderiam matri-cular-se nessa universidade, onde aprenderiam a respeito de administra-ção de conflitos, prevenção contra crises, estabelecimento e preservaçãoda paz e reconciliações entre sociedades civis, além de outros cursos espe-cíficos e de especialização. Os alunos não teriam a necessidade de se des-locar de sua residência até o local da universidade, pois onde quer queestejam, quer em casa, quer no trabalho, poderiam conectar-se à Internetcom objetivos educacionais.

A colaboração entre diferentes escolas é mais um nível de cooperaçãoentre escolas na Palestina e em Israel. Poderiam ser lançados projetosem parceria com duas escolas voltados a trabalhos em assuntos específi-cos ou na área de pesquisa. Alunos de diferentes escolas poderiam atuarjuntos em uma espécie de competição, com o objetivo último de promo-ver a cooperação entre os estudantes. A realização de videoconferênciasé uma possibilidade para escolas devidamente conectadas em rede. Atémesmo escolas experimentais poderiam ser criadas como um piloto, comum número mínimo de alunos selecionados de forma criteriosa, para seavaliar a possibilidade de se estudar juntos na mesma escola, com umconteúdo programático desenvolvido especialmente para o experimento.Comissões pedagógicas conjuntas precisam ser constituídas para garantira supervisão do efeito do conteúdo programático especial sobre os alunos,

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A questão da tecnologia no processo de paz

do ponto de vista educativo. É possível que essa colaboração assuma dife-rentes formas e meios entre as diversas escolas que participarem do pro-grama, dependendo dos interesses distintos dessas escolas.

Poderiam ser encaminhados pedidos à Unesco para que colabore ma-ciça e diretamente nesse projeto por meio de seus programas educacio-nais para a paz. A Unesco vem sendo reconhecida e aceita por ambos oslados como uma entidade independente séria e respeitada, que poderiaoferecer seus serviços para o benefício da paz entre Israel e Palestina.Sabe-se que, atualmente, a Unesco começou a difundir programas educa-cionais em todos os níveis pela Internet, com base em um sistema quereduz os custos em dois terços.

Laboratórios de idiomas

Se a Internet foi, e ainda é, capaz de abrir caminho a escolas e univer-sidades em diferentes locais e áreas ao redor do mundo, estudos teóri-cos têm demonstrado, com base em estatísticas e outros indicadores daopinião pública, que a aprendizagem de idiomas via Internet merece aten-ção especial por dois motivos: o aprendizado de idiomas é um dos maisbem-sucedidos estudos realizados pela Internet, e a Internet é o mecanis-mo de maior sucesso no aprendizado de idiomas.

Uma parte dos benefícios diretos de se matricular na Universidadepara a Paz poderia ser concedida aos alunos na forma de aprendizado gra-tuito de idiomas, como um item do pacote a ser oferecido pela universida-de. Árabe e hebraico devem ser os principais cursos de língua oferecidosgratuitamente. Os alunos poderiam matricular-se em diferentes níveis,ou passar de um nível para outro à medida que avançarem na aprendi-zagem.

Poderiam ser desenvolvidos ainda websites especiais para oferecer esseserviço, em que diferentes empresas de informática seriam convidadas apatrociná-lo por meio de seus projetos e websites. Seriam lançados CDsde idiomas como brindes recebidos na compra de artigos diferentes, eofertas de complementos em outros níveis de aprendizado seriam dis-ponibilizadas. Outra alternativa é oferecer incentivos a estudantes quefazem seu aprendizado de forma rápida também, além de prêmios paraestimular usuários e novos alunos.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

Diálogo via Internet

Alguns membros de ambas as sociedades, a palestina e a israelense,podem julgar complicado fazer uma viagem, curta ou longa, a outra áreapara dialogar com a parte oposta. Os esforços voltados a esse encontrodireto para dialogar podem representar (em relação a tempo, disponibili-dade e trabalho) um desestímulo à maioria dos possíveis participantes.A realização de diálogos pela Internet se apresenta como resposta a es-sas dificuldades, além de proporcionar a possibilidade de economia sobmúltiplos aspectos. Essas economias potenciais se refletem em: tempo,diálogo livre sem censura, diálogo democrático, liberdade de interrom-per temporariamente o diálogo quando julgar conveniente, acesso a pes-soas interessantes além das fronteiras do país e com discrição quanto àidentidade. Esses incentivos têm o propósito de promover maior participa-ção com a entrada de novos grupos de diferentes idades e sexos, profissio-nais dos mais diversos segmentos, estudantes e as gerações de mais idade.

A Internet representa um espaço para diferentes níveis de diálogo,como os web chats e os painéis de mensagens.

Esse serviço é novo, considerado ainda nos primeiros estágios dedesenvolvimento e, no entanto, começou a despertar interesse entre deter-minadas faixas etárias. Uma conexão à Internet é tudo de que qualquerindivíduo precisa para participar, direta e discretamente, em qualquer dosassuntos cada vez mais discutidos na web. Basta selecionar o tópico deinteresse, e o usuário já estará navegando no espaço de discussão daInternet.

Cibercafés

Os cibercafés são outra faceta do espaço para diálogos na Internet,desta vez com um local físico identificado. Dentro do café com acesso àInternet, o participante poderia ser um membro de uma equipe especialde discussão que mantém contato por intermédio do cibercafé. Assim,diferentes cibercafés poderiam ser identificados com determinado grupoou tópicos específicos.

Os cibercafés são projetos simples e lucrativos que procuram garantirresultados positivos mediante a combinação de dois serviços: servir café,

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A questão da tecnologia no processo de paz

à moda tradicional, e viabilizar o acesso e o uso da Internet. Potenciaisinvestidores poderiam ser estimulados a apostar nos cibercafés, até mes-mo, por exemplo, recebendo subsídios em um determinado estágio doprojeto, desde que esses cafés façam parte da equipe de diálogo via Inter-net, tendo seu próprio espaço de diálogo e tópico(s) de discussão.

Websites conjuntos

Criar um website já não é mais nenhum problema, tampouco representatarefa difícil. Programas gratuitos apresentados em CD que auxiliam nacriação de um website já se encontram disponíveis por toda parte, e progra-mas para esse fim são desenvolvidos na própria Internet.

Uma vez que há uma facilidade de acesso cada vez maior aos websites

(e à sua criação) pelos usuários da Internet, e tendo em vista o aumentodo número de pessoas que procuram por informações na rede, a criaçãode sites especiais destinados a promover a paz entre Israel e Palestina oua expressar um posicionamento, a interpretação de determinadas ques-tões controversas, ou ainda a apresentar projetos conjuntos e grupos jáexistentes, atendem ao propósito subjacente ao uso de websites como umelemento de contribuição para o processo de paz.

Jornalismo

A maior parte da mídia escrita está se tornando também mídia eletrô-nica, apresentando suas publicações na Internet. A mídia escrita em ge-ral vem competindo por sofisticação em design, facilidade de uso e abran-gência de informações.

A região do Oriente Médio ainda é considerada fiel à mídia escrita, oque permite a introdução de novos projetos que visem à concorrência naárea.

O processo de paz deve permitir-nos usar a criatividade com relaçãoàs melhores formas de acelerar o entendimento e a reconciliação entreos dois povos. A mídia escrita e os jornais são tratados como uma dessaspossibilidades de conquistar maiores índices de aceitação das pessoassobre o que a paz pode oferecer. A validade das iniciativas nesse sentidodeve ser colocada à prova de modo a promover esse entendimento entre

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

os cidadãos palestinos e israelenses comuns. Um jornal conjunto que cir-cule na Internet, um jornal eletrônico que objetive promover a paz, estabi-lidade, cooperação, desenvolvimento e progresso, talvez seja uma tentati-va que obtenha êxito. Pode haver a necessidade de apoio financeiro,logístico e administrativo nos primeiros estágios de existência de um jor-nal eletrônico especializado como esse. Atualmente, foram formadas co-missões conjuntas de jornalistas israelenses e palestinos com a finalida-de de buscar formas de cooperação entre pessoas de uma mesma classeprofissional em ambos os países. Esses esforços não foram além da reali-zação de reuniões de periodicidade regular e da coordenação de posicio-namentos acerca de questões distintas, sem jamais ter havido uma incur-são que não se ativesse somente ao escopo dessa missão, e que produzissemediante trabalho conjunto, por exemplo, um jornal eletrônico voltadoa abordar questões relativas à paz.

Multimídia

Trata-se de mais uma idéia relacionada à anterior, porém em maiorescala. É possível considerar a hipótese de iniciar uma série de ações namídia e verificar sua relação com o estabelecimento da paz na região. Atelevisão, o rádio, o fax, o satélite, os jornais, o telefone, o e-mail, entreoutros, são os diversos elementos que constituem a série de ações na mídia.

Da mesma forma que os jornais retratam a realidade, outros compo-nentes multimídia poderiam entrar numa corrida pela paz, com possíveisresultados semelhantes, se não mais eficazes, que os obtidos pelos jornais.

A hipótese de colocar as diferentes mídias, mais um elemento da tec-nologia da informação, a serviço da paz no atribulado Oriente Médio,constitui um meio de viabilizar a reconciliação.

Bibliotecas

Bibliotecas que podem ser acessadas pela Internet contribuem paraa difusão de conhecimentos e informações ao público. Esforços serão en-vidados para ajudar as bibliotecas a desenvolver seções especiais que abor-dem o tema da paz, assim como para melhorar a visibilidade e a formade apresentação do acesso via Internet.

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A questão da tecnologia no processo de paz

No passado, as bibliotecas demonstraram a tendência de colecionarlivros que refletiam determinada época. Sem uma atualização regular econstante de seu acervo, as bibliotecas passam a perder suas vantagens.A maioria das bibliotecas tem sido vista como museu, conservando ape-nas livros antigos e referências bibliográficas. Algumas dessas bibliotecasgostam de ser vistas dessa forma, rejeitando qualquer concorrência im-posta por websites na Internet. Empréstimos entre bibliotecas palestinase israelenses na Internet são tratados como um fator positivo, e estimula-riam outras pessoas a buscar o desenvolvimento de uma biblioteca vir-tual especializada em assuntos relacionados, direta ou indiretamente, àpromoção e à consolidação da paz.

Provedores Conjuntos de Acesso à Internet (PCAI)

Empreendimentos de PCAI oferecidos a clientes de ambos os paí-ses. Atualmente, os provedores existentes são israelenses, atendendo àsnecessidades de Israel, ou palestinos, atendendo às necessidades da Pales-tina. Durante algum tempo, alguns palestinos conectavam-se a provedo-res israelenses, particularmente os palestinos residentes na porção orien-tal de Jerusalém. Essa experiência comprova que a idéia é viável, possívele exeqüível. Inicialmente, ela exige que pessoas dedicadas à paz se cadas-trem nesse novo PCAI, o que permitirá que o projeto decole e renda bonsresultados.

O PCAI proposto poderia oferecer alguns incentivos para atrair assi-nantes, e valer-se de novas tecnologias que permitam uma conexão me-lhor, mais rápida e com menor custo. O novo PCAI poderia ter um nomeespecial, diretamente relacionado ao conceito da paz que pretendepromover.

Comércio eletrônico

O comércio eletrônico é uma das aplicações diretas da Internet, re-presentando ao mesmo tempo mais uma possibilidade de promover a paz.

Apesar da inexistência de comércio eletrônico do lado palestino, essaatividade ainda carrega consigo um grande potencial de desenvolvimen-to em um futuro próximo.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

Os hábitos estão mudando, e novas realidades impõem-se à mentee ao comportamento dos diferentes indivíduos. O que se considera mis-são impossível hoje pode se revelar uma das mais atraentes conquistas.O lançamento de uma loja virtual piloto para comércio eletrônico, consti-tuída, mantida e administrada conjuntamente por palestinos e israelen-ses, e altamente especializada em artigos específicos, poderia obter al-guns resultados bastante interessantes. A aposta no comércio eletrônicoé considerada um investimento de longo prazo, cujo retorno pode demo-rar um bom tempo.

No comércio eletrônico, é possível trabalhar com grande variedadede artigos, e muitas iniciativas poderiam ser estruturadas para dar inícioàs operações com um ou mais itens para venda previamente identifica-dos. O comércio é um dos aspectos em que a cooperação é bastante viá-vel, pois reflete interesses comuns e gera benefícios mútuos.

Editora eletrônica

Avanços já conquistados de tecnologia e suas aplicações diretas nosetor de prestação de serviços estimulam os investidores a buscar outrasaplicações práticas. Uma das aplicações em alta é a editoração eletrônica.

Empreendimentos conjuntos de israelenses e palestinos na área deeditoração eletrônica poderiam dar grande impulso aos esforços realiza-dos em outras áreas de cooperação. O custo inicial para estabelecer umaeditora eletrônica virtual é mínimo quando comparado aos custos de cons-tituição de uma editora real, moderna, com todas as máquinas e equipa-mentos necessários e computadores de alta tecnologia. Esse projeto debaixo custo poderia criar um intercâmbio de obras literárias e culturaise de textos sobre pensamentos e perspectivas políticas produzidos emambos os países.

Promoção conjunta do turismo

O segmento do turismo pôde encontrar uma oportunidade de cresci-mento na Internet e nos respectivos serviços oferecidos na rede, e os fa-mosos websites foram transformados em sites de incentivo ao turismo emtodo o mundo.

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A questão da tecnologia no processo de paz

Trabalhando juntos, Israel e Palestina podem proporcionar uma dasmaiores ofertas no setor de turismo para grande variedade de grupos deturistas interessados. Até aqui, a cooperação entre as partes provou serimpossível, dado o fator da concorrência e a natureza das relações queprevaleceram entre elas ao longo dos anos. A paz poderia lhes dar a opor-tunidade de trabalhar em conjunto na apresentação de seus países, emesmo de entrar na Internet não apenas para a oferta de pacotes turísti-cos, mas também para a criação de um website especial que divulgará onovo conceito de turismo em ambos os países e fará a promoção das ofer-tas. Parece importante aqui dedicar atenção ao fato de que atividades con-juntas no segmento do turismo podem levar a outras formas de coopera-ção, não se limitando a pacotes turísticos. Empresas de turismo associadasque façam uso comum de frotas de ônibus, ou participem em conjuntode atividades de incentivo ao turismo, até mesmo linhas aéreas combina-das com o propósito de atender os desígnios de paz, trazem turistas para aregião, contribuindo para o crescimento econômico de ambos os países.

União no combate aos crimes cometidos na Internet

A sociedade Internet já ultrapassou os cem milhões de pessoas, eesse número cresce sem parar. Estima-se que o número de usuários daInternet na região da Palestina�Israel chegue perto de um milhão em 2003.

Independentemente da situação em qualquer parte do mundo, sem-pre há indivíduos que tentam violar a segurança da Internet e cometertodo tipo de crime contra outros usuários. Esse tipo de risco ficou evidentea todos os observadores e usuários de Internet durante o ano de 1999.Pouco se fez para proteger os usuários dos hackers.

Na Palestina e em Israel, durante os tempos de paz, as necessidadesreais de cooperação em todas as esferas de autoridade para se coibir possí-veis crimes contra a Internet tornam-se evidentes. Sabe-se que, até omomento, as leis e regulamentações vigentes sobre a Internet demons-tram-se incapazes de proteger o sigilo dos usuários, ou de minimizar ospossíveis danos que esses crimes podem infligir às vítimas. As chancesde que algo semelhante ocorra na Palestina e em Israel são bastante prová-veis. Para evitar que essa situação ocorra, faz-se necessário que os doispaíses participem de um processo de cooperação voltado ao combate dos

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

crimes perpetrados na Internet em sua jurisdição, além de não permitirque os hackers de um país encontrem abrigo seguro (em que estejam asalvo das penalidades legais cabíveis) no outro país. Assim, trabalhar emconjunto para proteger os usuários da Internet em ambos os países tor-na-se mais uma aplicação direta do que a paz pode proporcionar aos resi-dentes da região.

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4O futuro das relações econômicas

Israel�Palestina

Ephraim Kleiman*

Uma breve história

Quando a Cisjordânia e a Faixa de Gaza (C/FG) foram conquistadaspor Israel em 1967, ambas eram economias relativamente pequenas, po-bres e labour intensive. Ambas sofriam também de desemprego crônico,tanto oficial quanto oculto, intensificado pelo repentino rompimento com,respectivamente, Jordânia e Egito, e a derrota militar desses países.

Comparado a eles, Israel era uma economia maior, tecnologicamentemuito mais avançado, capital intensiva, à beira de um boom econômico.Sob a pressão que essas circunstâncias geravam, a idéia inicial de manteros territórios palestinos economicamente separados de Israel foi logo

* Departamento de Economia da Universidade Hebraica de Jerusalém e do Truman Institutefor Peace. Tradução: Eliane Maria Rosenberg Colorni.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

abandonada. Na prática, C/FG logo estavam unidas a Israel do ponto devista econômico. Apesar de essa união imposta a eles estar longe de sereqüitativa, seus resultados seguiram as teorias de integração econômicaquase à risca.

Esses resultados foram aquilo que as teorias econômicas nos suge-rem antecipar, quando uma economia pequena, pobre, mas com fartamão-de-obra, é posta em contato com uma economia relativamente grande,rica, mas necessitada de mão-de-obra. Com livre acesso ao mercado detrabalho israelense, os trabalhadores palestinos foram rápidos em tirar van-tagem disso, trocando sua típica renda de subsistência, quando não umagudo desemprego, pelos salários muito mais altos oferecidos em Israel.

Por volta de 1987, mais de um terço dos residentes nos territóriospalestinos tinha emprego rentável em Israel, o grosso de seus ganhoscontribuindo com quase um quarto do PIB da Cisjordânia e com dois quin-tos do da Faixa de Gaza.1

Por causa da diferença no tamanho da força de trabalho existenteentre Israel e os territórios, esses trabalhadores estrangeiros nunca forammais de 7% dos empregados totais de Israel (apesar de representarem amaioria dos trabalhadores na construção civil e uma parcela significativana agricultura). Conseqüentemente sua absorção poderia ser feita, comode fato foi, sem causar queda nos salários israelenses e sem causar oposi-ção entre os trabalhadores israelenses.

Ainda que os palestinos que trabalhavam em Israel estivessem em-pregados em empreendimentos altamente voláteis, em particular na cons-trução, essa volatilidade não foi completamente transmitida às econo-mias de Gaza e da Cisjordânia.2 Isso aconteceu pelo fato de os residentesda Cisjordânia, pelo menos, terem livre acesso aos mercados de trabalholocalizados do lado oriental. Enquanto os mercados do Golfo ofereciam

1 Ver por exemplo Israel Central Bureau of Statistics (1996), Tabela 24 e Tabelas 9 e 16, respec-tivamente. Esses números exageram um pouco a importância dos rendimentos do traba-lho em Israel para a economia palestina, porque se referem às receitas de salários brutos,enquanto impostos e outros pagamentos obrigatórios deduzidos na fonte são considera-dos, sob as convenções de contabilidade nacional, como importações de serviços governa-mentais e outras de Israel.

2 A volatilidade considerável observada no PNB da Cisjordânia (e, portanto, no conjunto dosterritórios palestinos) é devida ao ciclo bienal da safra de azeitonas que predomina na agricul-tura desse país.

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O futuro das relações econômicas Israel�Palestina

trabalho principalmente aos profissionais mais qualificados, a adjacenteJordânia oferecia um mercado para artesãos e trabalhadores da construçãocivil. Portanto, até a Guerra do Golfo os palestinos se dividiam em dois mer-cados de trabalho separados e independentes (Shaban, 1993; Kleiman, 1992).

Uma alternativa ao emprego em larga escala de trabalhadores palesti-nos em Israel, pelo menos no caso de produtos manufaturados, poderiater sido a transferência de capital israelense para a C/FG levando os equi-pamentos até os trabalhadores ao invés dos trabalhadores até as máqui-nas. Isso não aconteceu, primeiro e principalmente, por causa da incertezaem relação ao futuro político e à segurança desses territórios, o que tam-bém deteve investidores estrangeiros. Além disso, depois que acontece-ram os primeiros ajustes dos trabalhadores entre Israel e o mercado do-méstico (C/FG) os salários de palestinos em funções semelhantes setornaram praticamente equivalentes em Israel e nos territórios, desin-centivando a transferência de operações para aquela região.

A união econômica forçada com Israel também abriu o que consti-tuiu, para os padrões da C/FG, um extenso mercado na soleira de suaporta, que poderia mais do que recompensar os palestinos pela perda deseus trabalhos tradicionais na Jordânia e no resto do mundo árabe. Porémuma severa política agrícola protecionista israelense impediu o livre aces-so ao seu mercado daquilo que seria por muito tempo o principal poten-cial de exportação dos territórios: produtos agrícolas.

De fato Israel usou seu controle ali para restringir o cultivo e, principal-mente, a exportação para Israel de muitos produtos agrícolas. Ao mesmotempo, mediante a política de open bridges, Israel tentou colocar essesprodutos em mercados externos, em regiões mais a leste do rio Jordão.

Enquanto a exportação de manufaturados não era bloqueada da mes-ma forma, a política geral de Israel era prevenir o surgimento de indús-trias na C/FG que pudessem competir com as israelenses no mercadodoméstico. Apesar de nunca oficialmente admitida, essa política foi esten-dida freqüentemente, na prática, para proteger a fatia pertencente às fir-mas israelenses dentro dos próprios mercados palestinos.

Que as economias desses territórios tenham crescido de forma im-pressionante, apesar desses percalços � e de outros tantos colocados pelaJordânia �, demonstra quão impactante foi para eles a integração econômi-ca com Israel. Por ser um parceiro bastante menor, poderia se esperarum ganho bem maior para a economia palestina, certamente em termos

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

relativos, do que para Israel, mesmo com esse acesso parcial ao mercadoisraelense. De fato a proporção de crescimento econômico na C/FG porum longo tempo superou a de Israel.

Porém, uma vez acontecida a maior parte do processo de integração,o crescimento estagnou. No total, todavia, a renda per capita dos palesti-nos quase quadruplicou entre 1969 e 1992, enquanto em Israel não che-gou a dobrar.3 Apesar desse rápido crescimento, as economias da C/FGpermaneceram muito pequenas se comparadas com a israelense. Mesmoantes do retrocesso causado pelo levante popular palestino, a intifada, oPNB de ambos esses territórios conjuntamente chegava a apenas um vigé-simo do PNB de Israel.4

Apesar de não fazer parte do objetivo deste texto, deveria ser mencio-nada aqui uma conseqüência pouco discutida e quase não mencionadadessa integração forçada com a economia israelense. As oportunidadesde emprego em Israel criaram uma grande mudança nas relações entreas classes sociais palestinas. Numa sociedade onde havia praticamenteuma ausência de proletariado urbano, a maior parte dos que iam traba-lhar em Israel vinha do setor agrícola, e, no caso da FG, dos campos derefugiados. Passando a receber salários, viram-se livres de sua dependên-cia em relação ao dono da terra, ao mercador ou ao agiota local. Não foipor acaso que a primeira proclamação da intifada, que transformou o queaté então eram esporádicas manifestações/demonstrações em um levantepopular, foi composta por dois eletricistas � uma situação impensáveldentro de uma sociedade dominada por �notáveis� há apenas duas déca-das (cf. Yaari & Schiff, 1990, p.106 ss.).

Após Oslo

O acordo intermediário (interim agreement) entre Israel e a OLP, esta-belecendo a Autoridade Nacional Palestina (ANP), também especificouos acordos econômicos entre as áreas sob jurisdição destas e de Israel.

3 O crescimento do produto doméstico, isto é, exclusivo dos salários ganhos em Israel, foi umtanto mais lento. Mesmo assim, porém, quase triplicou entre 1969 e 1972. Para uma discus-são dos efeitos da integração forçada com Israel, veja Kleiman (1993) e The World Bank(1993, parte II).

4 Um montante de US$1,580 milhão no biênio 1986-1987, comparado aos US$31,390 milhõespara Israel. ICBS (1996, Tabela 1), e Statistical Abstract of Israel n.47, Tabelas 6.1 e 9.12.

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O futuro das relações econômicas Israel�Palestina

De acordo com o protocolo econômico assinado em Paris em abrilde 1994, as condições para a união econômica entre os territórios palesti-nos e Israel deveriam se tornar mais justas: o protocolo removia gradual-mente todas as restrições econômicas sobre as exportações para Israel;e, com a transferência de toda autoridade governamental local para a ANP,Israel não podia mais impedir o estabelecimento de fábricas palestinascapazes de competir com as israelenses. Acordos foram também estabele-cidos para transferir para a ANP os impostos pagos pelos palestinos aoEstado israelense.

A única esfera, mas também a mais importante, em que esse acordoretrocedeu foi aquela relativa ao fluxo de trabalhadores. Após uma sériede ataques com armas brancas contra civis israelenses, o governo israelensese recusou a assumir qualquer obrigação para restaurar a entrada virtual-mente livre em Israel que os palestinos possuíam praticamente desde aGuerra do Golfo, se não mesmo até fevereiro de 1993. Ambos os ladosesperavam que, com a eliminação de todas as restrições às exportaçõespalestinas para Israel e também sobre a industrialização palestina, a ex-portação dos produtos originários do trabalho palestino mais do quecompensariam quaisquer perdas advindas da exportação direta de ser-viços.5

Como se sabe, isso não aconteceu. O ano de 1994 trouxe consigonão somente a criação da ANP e a retirada de Israel da FG, mas tambémuma série de homens-bomba instigados pelos fundamentalistas muçul-manos. Estas trouxeram como conseqüência uma série de medidas desegurança israelenses que restringiram seriamente o movimento de popu-lação, veículos e bens da C/FG para e através de Israel.

Sob a mão estranguladora dessas restrições, o Protocolo de Paris setornou uma carta morta (ou como um comentador palestino colocou,foi seqüestrada por razões de segurança). A única exceção foi o mecanis-mo de isenção de impostos que, apesar de algumas reclamações de am-bos os lados, vem funcionando bastante bem e quase sem problemas,com os impostos de Israel financiando mais de 60% do orçamento daANP (cf. Alonso-Gamo et al., 1999, Tabelas 3.1 e 3.2).

5 Para uma descrição do Protocolo de Paris como foi concebido no tempo de sua assinatura,cf. Kleiman (1994) e El-Musa & El-Jafari (1995). Para uma avaliação de sua operação atual,cf. European Commission (1999).

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

Esses acontecimentos tiveram um efeito muito negativo na econo-mia palestina, resultando em uma severa depressão econômica nos anosimediatamente após o estabelecimento da ANP. O declínio das ativida-des terroristas contra civis israelenses fez diminuir as restrições por ra-zões de segurança, especialmente na Cisjordânia.6 Junto com medidasbilaterais para facilitar o transporte de bens, mesmo sob as restriçõesrestantes, isso trouxe um renascimento à atividade econômica palestina,tendo inclusive o PNB per capita crescido em 1998, depois de declinar nostrês anos anteriores (cf. Alonso-Gamo et al., 1999, Tabela 2.1; Office ofthe United Nations Special Co-ordinator, 1999).

Infelizmente é visível que não vamos testemunhar num futuro próxi-mo a volta de um total direito de ir e vir para pessoas, bens e veículos queos transportam, fato que caracterizava as primeiras duas décadas e meiado domínio de Israel na C/FG.

Mais importante que os efeitos imediatos dessas medidas pode serseu efeito de longo prazo nas relações entre I/P. Houve uma aceleraçãono desligamento de duas economias que já vinha acontecendo desde aprimeira intifada, processo mais bem descrito provavelmente com o ter-mo �desmisturar a omelete�.

Isso se expressou em ajustes feitos por ambos os lados, muito maisfáceis porém para Israel. Sua manifestação mais óbvia e imediata foi asubstituição dos anteriores trabalhadores palestinos que chegavam diaria-mente por migrantes temporários recrutados na Romênia, na Turquia,na Tailândia e mesmo na China, e a mudança de rota de firmas israelen-ses, indo subcontratar e terceirizando contratos em meios mais hospitalei-ros como por exemplo a Jordânia.

Mas houve também mudanças nas atitudes. Durante todo o processode paz os palestinos desejaram atributos e símbolos da soberania até entãolhes negada. Não surpreendentemente, dadas as circunstâncias históricas,

6 Na verdade, o número de palestinos empregados em Israel em 1999 foi semelhante ao de1992, o máximo jamais registrado. Cf. Palestinian Central Bureau of Statistics (PCBS), �La-bor Force Surveys, 2nd Quarter 1999� (www.pcbs.org/labor). Porém, eles constituem umaporção muito menor tanto do mercado de trabalho palestino quanto do israelense e origi-nam-se principalmente da Cisjordânia em vez da Faixa de Gaza, território mais facilmente�fechado�. Além disso, os riscos do trabalho ilegal são agora muito mais sérios do queantes de 1993.

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O futuro das relações econômicas Israel�Palestina

eles também queriam se distanciar o mais possível de Israel. Mas agorase juntou a isso um forte desejo por uma separação tembém econômica.

Fala-se especialmente da necessidade de proteger as incipientes in-dústrias da competição israelense; de estar numa posição que permitaobter concessões para exportação de produtos palestinos mediante proto-colos comerciais bilaterais, ainda muito comuns no comércio entre paí-ses árabes; de ser menos dependentes de Israel no tocante a impostosou, alternativamente, substituir os atuais mecanismos de compensaçãodos impostos através de recibos fiscais por uma fórmula macroeconômicabaseada em dados estatísticos coletados nos postos de controle da fronteira.Ao mesmo tempo, porém, os palestinos gostariam de manter, ou antes,reaver, livre acesso ao mercado de trabalho israelense, em prazo curtoou pelo menos médio. Eles também gostariam de continuar tendo livreacesso ao mercado de bens de Israel.

Do lado israelense houve sempre, desde os tempos do Acordo deOslo, vozes pedindo pelo estabelecimento de uma fronteira econômicaentre Israel e C/FG. No passado, esses pedidos vinham principalmentedos mesmos interessados em restringir a competição palestina nos anospré-Oslo. Agora as pressões por uma separação econômica também têmorigem em medidas políticas e administrativas.

Sem nenhuma fronteira normal até o tratado de paz com o Egito em1979, e para a maioria das situações, sem efeito, quase até agora, Israelestava livre, no que se referia às suas próprias políticas econômicas, paraignorar o que estava acontecendo nos países vizinhos. Como resultadoacabou desenvolvendo um certo isolacionismo e não está acostumado ater vizinhos em questões econômicas.

O fato de uma luta pelos impostos acontecer bem embaixo da janelado Ministério das Finanças, ou que uma meia hora de carro levasse osisraelenses para onde eles pudessem adquirir artigos de luxo isentos deimpostos, é muitas vezes considerado virtualmente como um ponto nega-tivo na condução da política econômica de Israel.

A isso devem-se acrescentar várias queixas, justificadas ou não, desonegação de impostos por palestinos, possivelmente com conivência ofi-cial, dificuldades em cobrar dívidas e, por último � mas longe de ser o me-nos importante �, considerações reais de segurança (ou sentidas como tais).Em particular, a percepção popular de uma presença em larga escala de

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trabalhadores palestinos em Israel, percebidos como ameaçadores paraa segurança individual da população, associada à descoberta pelos empre-gadores de trabalhadores que concordavam em trabalhar por salários maisbaixos do que os palestinos, tudo isso se tornou fonte de grande oposi-ção à livre entrada dos palestinos em Israel.

Finalmente há o desejo político de não ser considerado responsável,tanto nacional quanto internacionalmente, pelo que está acontecendo ouirá acontecer sob a ANP ou no futuro Estado palestino, tanto na esferaeconômica quanto na da liberdade civil.

Ao mesmo tempo, porém, a maioria dos israelenses percebe que, secompletamente desligados de Israel, os palestinos ficariam reduzidos aníveis de Terceiro Mundo. Ainda que suas ações por vezes sugiram o con-trário, os líderes israelenses estão bem conscientes de que a desestabili-zação da sociedade palestina daí resultante é algo que Israel deveria evi-tar em seu próprio interesse. Vizinhos famintos são maus vizinhos.

Fronteiras ou não fronteiras?

Por causa da grande diferença tanto em tamanho quanto em desen-volvimento entre C/FG e Israel o relacionamento econômico futuro en-tre eles é de vital importância para os palestinos, mas de importânciaapenas marginal para Israel. Conseqüentemente os palestinos deveriam,e muito provavelmente vão ser capazes de, escolher o tipo de relaciona-mento que lhes seria mais vantajoso, suposto que as características exter-nas deste não entrem em sério conflito com os interesses de Israel. Deve-mos lembrar, dentro desse contexto, que os principais interesses de cadaum pertencem a facetas diferentes desse relacionamento. Apesar de decla-rações palestinas recentes terem enfatizado o aspecto fiscal, sob formade um mecanismo de partilha das receitas fiscais, o principal interessepalestino está na verdade no acesso livre e desobstruído aos mercadosde trabalho e mercadorias de Israel. O principal interesse de Israel, poroutro lado, é prevenir que a economia palestina possa se tornar um condu-tor para evasão e finalmente erosão de seu regime fiscal. Portanto é aescolha do regime comercial vis-à-vis Israel que importa mais aos palesti-nos, e a escolha do correspondente regime fiscal que importa mais a Israel.

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O futuro das relações econômicas Israel�Palestina

Olhando para isso dessa maneira, a diferença básica é entre regimescomerciais que requerem uma fronteira econômica entre Israel e C/FG eaqueles que não a requerem. Na ausência de uma fronteira, diferençasnas taxas de importações vão resultar no comércio ser transferido paraaquela jurisdição fiscal onde as taxas são mais baixas, com uma correspon-dente perda para o caixa da jurisdição que tem os impostos mais altos.Isso vai prejudicar qualquer política industrial, social ou ambiental a queesses impostos pretendam servir. O mesmo é verdade, em larga escala, paraos impostos locais indiretos ou IVA. A existência de consideráveis diferençasde preço entre diferentes pontos-de-venda em uma mesma localidade suge-re que poderia ser permitida alguma maleabilidade tanto para os impostosdomésticos indiretos quanto para os de alfândega para que palestinos eisraelenses possam fazer uma diferenciação entre si. Mas a margem paraessa diferenciação é muito pequena e impostos indiretos teriam que ser,se não totalmente uniformizados, pelo menos muito bem harmonizados.

Tal regime, porém, levanta mais uma vez a questão do procedimentopelo qual o índice dessas taxas será determinado. Presume-se que, emvista de sua renda muito mais baixa, os palestinos prefeririam adotar taxasalfandegárias e indiretas mais baixas. Na verdade, porém, o oposto pode-ria acontecer, uma vez que economias pouco desenvolvidas têm proble-mas em se manter por meio de taxas diretas, como imposto de renda depessoas físicas e jurídicas.

Portanto, se de todos os palestinos optassem por um sistema, prova-velmente optariam por um nível médio de taxação indireta maior do queos israelenses. Mas a estrutura desejável para essas taxas seria diferentepara cada um, trazendo problemas de desvio de divisas de ambos os la-dos na situação sem fronteiras.

Ausência de fronteiras também exige algum mecanismo para o acertode contas relativas aos impostos. Mesmo com um porto de alto-mar ope-rando em Gaza, boa parte das importações palestinas vai continuar che-gando via portos e aeroportos israelenses. Enquanto um grande númerode palestinos continuar trabalhando em Israel, o comércio entre eles con-tinuará sendo desigual, C/FG importando muito mais do que exportan-do para Israel. Esse desequilíbrio tem um aspecto fiscal, no sentido deque as taxas de importação sobre produtos que transitam por Israel e osimpostos indiretos recolhidos pelo Estado israelense nas vendas aos pa-

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lestinos superam, em muito, os recolhidos pela ANP com impostos indire-tos sobre as vendas aos israelenses. Daí a necessidade de alguns mecanis-mos de partilha ou de acerto de contas, sem os quais os palestinos esta-rão, na verdade, subsidiando Israel.

Esses problemas podem ser consideravelmente mitigados, se nãomesmo totalmente eliminados, com a existência de fronteiras econômi-cas. Em princípio, isso permite uma completa liberdade na determinaçãodos impostos indiretos a ambos os lados, tanto para importações quantopara produção interna. Dadas as minúsculas distâncias entre os merca-dos israelense e palestino, isso, porém, não é completamente verdadeironeste caso.

Associado à extensão e ao formato irregular de qualquer fronteirafutura, a proximidade geográfica permite possibilidades quase ilimita-das para contrabando, cuja prevenção seria difícil e cara. Ambos os ladospoderiam achar aconselhável igualar seus impostos de maneira bastanteampla, seja por acordo, seja simplesmente por respostas unilaterais àsmudanças nas tabelas de impostos do outro lado.

Uma fronteira alfandegária tornaria dispensável a maioria dos meca-nismos de perdão ou divisão dos ganhos fiscais. Vendas de Israel para C/FG poderiam então ser tratadas como qualquer outra exportação, isenta-das de impostos israelenses indiretos, com os impostos palestinos sendorecolhidos na fronteira, o mesmo sendo verdadeiro para vendas palesti-nas a Israel. O atual mecanismo de impostos de importação seria cobradosomente no caso de produtos importados de outros lugares do mundovia Israel. Por outro lado, os produtos poderiam então ser transportadosem contâineres fechados, eliminando a necessidade de qualquer mecanis-mo de partilha nos impostos ou de acertos fiscais.

Não devemos nos esquecer que uma fronteira cria outro obstáculoque o comércio deverá superar, qual seja, tempo nos postos de controle,papelada burocrática associada com o transporte de mercadorias atravésde fronteiras. Também provoca pressões de vários grupos interessadosna imposição de tarifas protecionistas e facilita o estabelecimento de bar-reiras não tarifárias, como pressão sobre requisitos de qualidade para osprodutos.

Essa discussão deveria deixar claro que, do ponto de vista puramenteeconômico, a alternativa fronteira/não-fronteira envolve um trade-off.

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O futuro das relações econômicas Israel�Palestina

A situação sem fronteiras é mais favorável ao comércio, mas restringe seria-mente a liberdade de pelo menos um dos parceiros em determinar suapolítica de taxas alfandegárias e impostos indiretos. A situação com-fron-teira elimina essa restrição, mas não completamente, como apontamos.É, todavia, menos favorável ao comércio. Quanto menor uma economia,mais ela depende do comércio para prosperar. O crescimento da econo-mia palestina não vai se manter no nível do crescimento populacional, anão ser que seja capaz de expandir suas exportações em muito.

Deve ser realçado, nesse contexto, que os protocolos comerciais bila-terais com outros países árabes, possibilitados pela existência de umafronteira econômica com Israel, não poderiam compensar os palestinospela perda dos mercados israelenses. Somente Israel importou uma médiade 30 bilhões de dólares entre 1996 e 1998, contra 37 bilhões de dólarespor todos os países árabes fronteiriços com Israel juntos (e portanto prati-camente também com C/FG), sendo metade disso pelo Egito. Além dis-so, não somente a distância até esses mercados é maior do que até osisraelenses, mas estes são também geralmente mercados competidoresmais do que complementares, no caso de C/FG. Como ilustração pode-mos citar que as importações de outros mercados do Oriente Médio re-presentaram apenas cerca de 3% do total das importações do Egito (IMF,1997 e 1999).

O comércio com os palestinos traz poucas conseqüências para a eco-nomia israelense como um todo.7 O fator mais relevante são as implica-ções políticas ligadas à prosperidade palestina. Por outro lado, o sistemafiscal israelense, com sua forte dependência nos recibos IVA, é muito vul-nerável à política de impostos indiretos palestinos, pela forma como essa

7 O argumento muitas vezes ouvido de que, após os EUA, a Cisjordânia e a Faixa de Gazaconstituem o segundo maior mercado de exportações para Israel ignora o fato de que umaampla porção desse comércio na realidade só constitui comércio de trânsito. Devido ao tama-nho reduzido do mercado palestino, importações destinadas a ele são freqüentemente fei-tas como parte de consignações maiores endereçadas a importadores israelenses e, poste-riormente, revendidas por eles a comerciantes palestinos. Talvez, mais importante ainda,uma parte considerável das importações vindas de Israel consiste em mercadorias que sãosomente reembaladas ali � isto é, com um mínimo de valor adicionado (IVA) israelense.Isso não significa, claramente, que algumas empresas israelenses não seriam gravementeatingidas por uma redução nas suas vendas para o mercado palestino, como igualmente oseriam importadores israelenses, particularmente aqueles que controlam atualmente distri-buições exclusivas também cobrindo a Cisjordânia e a Faixa de Gaza.

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política é implementada na prática.8 Por fim, a questão das fronteiras eco-nômicas vai, muito provavelmente, ser decidida em bases não-econômi-cas, considerações políticas sendo prioritárias para palestinos, considera-ções de segurança para Israel.

Acordo de Área de Livre Comércio

A existência de fronteiras econômicas não impede o acesso palestinorelativamente livre ao mercado israelense, pressupondo que suas relaçõeseconômicas sejam governadas por um acordo de livre comércio. Sob talacordo bens produzidos pela economia palestina entrariam em Israel semtaxação e vice-versa. Quanto ao resto cada economia poderia ter suas pró-prias taxas alfandegárias, e seus próprios, recíprocos ou não, acordos co-merciais com o resto do mundo.

Uma área de livre comércio (ALC) tornaria possível para cada ladofazer acordos com outros parceiros. Especialmente permitiria aos palesti-nos fazer concessões bilaterais a outros países árabes, em troca de aces-so mais fácil dos bens palestinos a esses mercados.

Ao permitir livre entrada de bens produzidos em outra economia,um acordo ALC minimizaria a extensão que uma fronteira cria para o pro-tecionismo econômico. Paradoxalmente, porém, imporia um custo ex-tra a esses produtos exportados, ao exigir que se enquadrem nas regrasde origem para torná-los passíveis de isenção das taxas alfandegárias.A alta correlação entre PNB e nível de importação palestino, típico dessaseconomias pequenas, vai tornar também difícil que muitos de seus produ-tos se enquadrem na exigência de valor doméstico adicionado para isen-ção sob uma ALC.

Soluções híbridas

Como vimos antes, há, de ambos os lados, um conflito se não deinteresses pelo menos de objetivos: separar e ao mesmo tempo não negaraos palestinos (ou, do ponto de vista dos palestinos, não desistir) o acessorelativamente fácil aos mercados israelenses. Essa equação pode ser re-

8 O IVA equivale a cerca de um quarto e um terço de todas as receitas de Israel nos anos 90.Cf. Israel, Directorate of State Revenues (1999).

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O futuro das relações econômicas Israel�Palestina

solvida? Em princípio, sim. As negociações econômicas do acordo inter-mediário (interim agreement) chegaram a uma união alfandegária com algu-mas exclusões reais e algumas apenas fictícias no �pacote� geral. Essasexclusões constituem o que hoje é chamado na literatura econômica lista�positiva�, casos que são isentos da tarifa comum e na qual cada um dosparceiros dessa união tem permissão para estabelecer sua própria políticade importação. O regime comercial daí resultante pode ser consideradouma semi-união alfandegária.

A alternativa é a associação de livre comércio (ALC) descrita anterior-mente. Diferentemente de uma união alfandegária (UA), uma pura ALC

requereria uma fronteira econômica, na qual a origem dos bens � regionaisou importados � pode ser verificada para determinar se são adequados paraentrada livre na outra economia, e taxas alfandegárias recolhidas quandonecessário. Tal fronteira, com suas inevitáveis demoras etc., seria certamenteum obstáculo ao comércio, se comparada ao livre comércio sob a UA.9

Em simetria com a semi-UA poderia haver também uma semi-ALC.Isso teria a forma de listas �negativas�, isto é, listas de bens importadosde outros países que seriam excluídas da opção de fixar suas próprias tari-fas, coisa que cada uma das partes pode fazer sob o regime de simplesALC. Com suficientes �semis� de cada lado, semi-ALC = semi-UA. Alémdisso, nem todos os bens necessitam de uma fronteira física, tangível paraque leis de importação possam ser impostas por um país. Onde o regis-tro de propriedade é necessário, como no caso de veículos automotores,uma forma prática de cruzar a fronteira econômica pode ser estabelecidacom os impostos recolhidos sem apelar para o resultado de vistoria emalguma fronteira física. Se ambas as partes pudessem concordar ampla-mente com tais fronteiras conceituais, o problema causado por separa-ção parcial seria minimizado.

Uma semi-ALC, ainda mais se suficientemente �semi� para não acres-centar custos de verificação econômicos, sejam quais forem os custos dasinspeções de segurança que vão caracterizar as futuras fronteiras, vai tam-bém ajudar a não complicar mais a questão de Jerusalém. Esta é umacidade onde ambos os lados querem manter uma posição, mas que nin-

9 Devemos notar que tais impedimentos são acrescidos a outros obstáculos já existentes porcausa do requisito israelense de que cada mercadoria originada na Cisjordânia ou na Faixade Gaza seja submetida a severas inspeções de segurança.

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guém quer ver dividida fisicamente. Qualquer relação menos integrativarequereria uma fronteira física que aumentasse a complexidade ineren-te a uma solução satisfatória para essa questão.

Uma semi-ALC poderia também tornar possível a participação da Jor-dânia, país ainda longe de estar pronto, tanto econômica quanto politica-mente, para uma união alfandegária ou mesmo para um acordo exclusivode ALC com Israel. Nem os palestinos estão prontos, neste ponto, paraum acordo com a Jordânia. Um arranjo tripartite, não necessariamentecom o mesmo grau de participação de cada uma das partes, poderia facili-tar a adesão da Jordânia ao que se tornaria o núcleo da área comercialregional.

Afastando-se

Há, sem dúvida, um grande perigo de que a semi-ALC aqui sugeridapossa se revelar instável. O sucesso desse arranjo depende de a) sua obser-vância por ambas as partes; b) a facilidade com que poderá acomodarmudanças vindas de fora, situações inesperadas etc. As atuais atitudesde ambos os lados não parecem propícias a isso.

Os palestinos se consideram, em relação a Israel, tanto os injustiçadoscomo os inferiores. Conseqüentemente eles se consideram no direito deexplorar qualquer fresta em seus acordos com Israel se isso servir aosseus interesses ou, por outro lado, como eles mesmos colocam, reequi-librar a balança do poder. Israel, por sua vez, continua a desconfiar daaceitação de sua existência por parte dos palestinos. Por causa disso, epelo fato de não ter prática em possuir fronteiras, e não por último, mera-mente para exercer o poder, Israel poderá reagir excessivamnete a qual-quer infração de acordos por parte dos palestinos.

À parte tudo isso, ainda resta o problema real de como decidir a res-peito de mudanças ou interpretações em qualquer acordo econômico,dada a grande disparidade na economia das partes. Essa disparidade,assim como a história das relações entre Israel e Palestina, descarta deantemão decisões consensuais. Por outro lado, dar poderes de veto a qual-quer dos lados seria um convite a impasses; enquanto o direito a pedircompensações por decisões que um lado considere danoso a seus interes-

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O futuro das relações econômicas Israel�Palestina

ses incentiva a chantagem. Pode haver, com certeza, arbitragem. Mas aolongo de sua existência Israel evitou deixar outros terem a última pala-vra em suas disputas com vizinhos.10 E certamente evitaria isso nestecaso em que a posição inferior dos palestinos poderia fazer a decisão deum árbitro externo pender para o lado deles. Uma arbitragem por organi-zações internacionais às quais ambos pertencem, como OIT ou OMC, po-deria ser possível em assuntos menores e específicos. Mas é altamentequestionável se isso seria aceito no caso de assuntos mais importantes,como, por exemplo, harmonização dos índices de impostos indiretos.

Assim, entre os problemas reais e as tendências inerentes aos doislados, uma semi-ALC poderia ser instável. Não somente será difícil nego-ciar em primeira instância, mas ela também será objeto de demandas con-tínuas por revisões e mudanças unilaterais em sua interpretação, atra-vés das quais será gradualmente erodida. Testemunharemos então umadicional afastamento das economias israelense e palestina.

Seria uma pena se isso, de fato, acontecesse. Se os atuais padrões deglobalização e a revolução na comunicação dos últimos anos persistirem,Israel terá brevemente que se ajustar à redução que as forças do merca-do mundial impõem à soberania dos Estados e onde fronteiras econômi-cas são difíceis de manter. O que agora é visto como problemático emarranjos econômicos relativamente abertos com os palestinos pode en-tão não ser mais visto como tal.

Mas então poderá ser tarde. Pode-se esperar que uma progressivaseparação de Israel afastaria a economia palestina de uma abertura emgeral e em particular a Israel. O resultante protecionismo de mercado vaicausar o crescimento de grupos interessados em sua manutenção. Quantomenor e mais pobre em recursos naturais uma economia, mais ela dependede trocas com outros, portanto um protecionismo abrangente pode seraltamente prejudicial ao crescimento da economia palestina. E, como aprópria experiência de Israel demonstra, uma vez que o protecionismo esuas conseqüências se estabelecem, pode ser muito difícil e lento mo-dificá-los.

10 A única exceção foi o conflito sobre a demarcação da fronteira israelense-egípcia na regiãoturística de Taba (mar Vermelho), que Israel perdeu.

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Medo da globalização e da dominação econômica

O futuro das relações econômicas entre Israel e os palestinos, assimcomo entre Israel e os outros países árabes do Oriente Médio, tem comofator de complicação uma predominante falsa percepção sobre os efei-tos da integração econômica em geral e com Israel em particular. Resu-mindo, integração, e mesmo comércio internacional, são vistos por mui-tos na região como um jogo de soma zero no qual qualquer ganho de umlado aconteceria à custa de perdas para o outro. Conseqüentemente, avisão popular, que tem muitos proponentes na mídia local, é que inte-gração, e certamente a globalização, é prejudicial aos interesses econômi-cos, culturais ou políticos de seus países. Única exceção, sobre a qualmuito se fala e pouco se faz, é em relação à integração entre os própriospaíses árabes. Apesar do ocasionalmente muito alardeado estabelecimen-to deste ou daquele contexto para integração ou cooperação econômicaárabe, pouco ou quase nada foi feito na prática, como o muito baixo ní-vel de comércio dentro do Oriente Médio claramente indica.11

Muito dessa oposição à integração econômica aos mercados mundiaisé amparada por argumentos muito semelhantes aos em voga em boa parteda América Latina há duas ou três décadas. De fato, alguns defensoresparecem ter adotado a velha terminologia Prebisch-Singer. Fala-se muitoem dependência econômica e na necessidade de impedir países mais desen-volvidos de realizar uma hegemonia econômica na região.

Finalmente, há a falta de compreensão, ocasionalmente encontradatambém em Israel, da posição de investidores estrangeiros perante o go-verno do país hospedeiro.

Os exemplos geralmente usados para refutar esses argumentos sãoos da União Européia ou dos Tigres Asiáticos. Nenhum parece se aproxi-

11 A intensidade comercial é medida por um índice que compara a parcela que um país temno comércio de outro país com sua parcela no comércio mundial total. Esse índice mostraque, exceção feita aos pequenos principados do Golfo � que comerciam pesadamente entresi � os países árabes médio-orientais tendem a importar um do outro só 2,6 vezes a quanti-dade do que se poderia esperar tomando por base sua parcela no comércio mundial. Asimportações da Turquia somam � comparativamente � um número maior do que 5! VejaHalevi & Kleiman (1995, Tabela 2).

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O futuro das relações econômicas Israel�Palestina

mar do caso do Oriente Médio. Em vista de sua história, semelhança decultura e outras características sociais e econômicas, os países dessa re-gião podem, na verdade, ter uma semelhança maior com os da AméricaLatina. A experiência destes últimos com a liberalização e o estabeleci-mento da Alca-Mercosul podem conter úteis lições para o futuro do OrienteMédio.

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5A importância dos direitos humanos

na resolução de conflitos

Edward Kaufman*

Ibrahim Bisharat**

Introdução

O objetivo deste estudo conjunto1 é explorar a conexão entre a conso-lidação da paz e a proteção dos direitos humanos. O momento é oportu-no para uma melhor compreensão do assunto, não somente pela nossa

* Membro do Harry S Truman Research Institute for the Advancement of Peace, HebrewUniversity.

** Arab-Palestinian Institute for Education for Democracy and Confict Resolution (ADEL).Co-fundador dos grupos palestinos da Anistia Internacional na Cisjordânia.

1 Os autores gostariam de agradecer ao Minerva Human Rights Center e ao Harry S TrumanResearch Institute for the Advancement of Peace da Hebrew University pelo seu generosoapoio. Nossa gratidão se estende também a Karen Naimer, Heather Coppley e JonathanKlein por seu auxílio na pesquisa, assim como aos nossos colegas Mohammed Abu Hutab,Eitan Felner, Daphna Golan, Said Zaidani e Michael Ignatieff por seus valiosos comentários.Agradecimentos também a Virkkunen (Brandeis University) por partilhar conosco sua exce-lente tese de mestrado sobre este assunto. Tradução: Eliane Maria Rosenberg Colorni.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

particular preocupação com o conflito Israel�Palestina (I�P), mas tam-bém de um ponto de vista mais universal.

Com a modificação da natureza dos conflitos mundiais de predomi-nantemente internacioniais para intranacionais, a questão dos direitosdos membros das comunidades envolvidas nas lutas se torna mais re-levante.

O efeito tanto da globalização quanto da fragmentação pós-GuerraFria realçou a emergência de conflitos de identidades coletivas mais doque as anteriormente polarizadas posturas ideológicas Ocidente�Orien-te. Além disso, o fato de um número predominante das vítimas dessasguerras civis ou domésticas serem civis2 torna importante que se lide comesse intenso sofrimento, tradicionalmente não coberto pelas regras doscombatentes uniformizados, apesar de o alto custo em vidas humanasacabar criando uma espiral de violência entre os envolvidos, que se su-perpõe às próprias raízes do conflito original.

Um debate legítimo está surgindo, ponderações sobre os direitos hu-manos, consideradas tediosas, mas ainda assim um divisor de águas: deum lado, aqueles que defendem a introdução dos direitos humanos jádurante as negociações e, certamente, no corpo dos acordos de paz dosconflitos atuais; de outro, um grupo mais conservador, que considera queesses tópicos devem ser incluídos apenas, se o forem, no estágio de pós-negociações.

Enquanto há um consenso crescente de que introduzir tópicos dedireitos humanos numa etapa posterior poderia consolidar acordos de pazfrágeis e minimalistas, nós temos pesquisado em que medida haveria umavantagem adicional na introdução dos dois tópicos (paz e justiça) desdeos primeiros estágios do processo, levando a resultados mais positivos.

A luta pelos direitos humanos é freqüentemente vista como partedo problema, mas enquanto tal pode ser também um importante ingre-diente para sua solução. Neste artigo defendemos que a introdução dessadimensão, que cruza as necessidades básicas com os interesses que exis-tem por trás das posições estabelecidas, é a fórmula que melhor garante

2 O número de vítimas civis foi estimado durante a Primeira Guerra Mundial em aproximada-mente 5%, subindo para 50% na Segunda Guerra Mundial e a 90% nos anos 90 (95% emconflitos africanos). Veja Harris & Reilly (1998).

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A importância dos direitos humanos na resolução de conflitos

a manutenção dos acordos de paz. Numa etapa posterior pretendemostestar essa possibilidade nas questões que envolvem nosso próprio confli-to I�P, como um estudo de caso real-time.

De um ponto de vista mais geral, os prós e contras dessa questãoforam publicados pelo Human Rights Quarterly no contexto da antiga Iugos-lávia, tendo sido criticados por alguns (Human Rights in Peace Negotia-tions, 1996; Akhavan, 1996; Boyle, 1996; Gaer, 1997). Um volume inteirodo fórum do U.S. National Institute of Dispute Resolution (NIDR), dosEstados Unidos é dedicado a este assunto. O Centro para Direitos Hu-manos das Nações Unidas decidiu produzir um manual sobre �DireitosHumanos, Minorias e Resolução de Conflito� como parte do projeto so-bre a Década da Educação em Direitos Humanos.

Tanto o anterior secretário-geral da ONU, Boutrous Boutrous Ghali,na sua �Agenda para a Paz� como, mais recentemente, o secretário KofiAnnan, em relação à situação em Kosovo e outros locais, deixaram clara essaconexão. Nos Estados Unidos, o presidente Reagan declarou: �... apren-demos com a história que a causa da paz e da liberdade humanas sãoindivisíveis�.

O respeito aos direitos humanos é essencial para uma paz verdadeirana Terra, tendo mesmo David Scheffer (1997, p.4) sugerido a introdu-ção de tópicos de justiça e responsabilidade nos estágios iniciais da reso-lução de conflitos. Cada vez mais, a comunidade de ONGs, organizaçõesinternacionais3 e governamentais locais4 vem tentando abordar a inter-conectividade desses tópicos. Não tem sido uma tarefa fácil. Tendo mui-tas vezes associado o termo �direitos humanos� com justiça e �resolu-ção de conflito� com paz, os conceitos utilizados pelos acadêmicosacabaram associados a variados paradigmas e disciplinas (Gurr & Harff,1994a). Da mesma forma, nas sociedades civis de nações em conflito,muitas vezes houve discordâncias entre organizações de paz e de direitos

3 A decisão sobre intervenções militares do Conselho de Segurança das Nações Unidas ébaseada na regra de que conflitos armados internos são caracterizados por amplas viola-ções das leis humanitárias e dos direitos humanos, constituindo uma ameaça à paz e à segu-rança.

4 O Parlamento Europeu declarou: �Em um mundo onde todos estão cada vez mais próxi-mos, a paz global pode ser ameaçada quando a violação aos direitos humanos aumenta�. InHuman Rights in the World (1989) and Community Human Rights Policy (1990).

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

humanos, com diferentes abordagens no trabalho com as situações deconflito.5

Na América Latina, na África do Sul e em outros locais, o consensosobre a ligação entre �paz e justiça� caracterizou o movimento pela não-violência, e o fim de substantivas violações aos direitos humanos, e recon-ciliação, após guerras civis. Tanto no aspecto normativo quanto no em-pírico, a conexão entre paz e justiça foi enfatizada por entidades tãoimportantes quanto o Carnegie Commission of Preventing Deadly Con-flict (Strenlau, 1998).

Esta introdução visa mostrar a importância do assunto, a naturezado estudo de caso numa perspectiva comparativa, além de algumas preo-cupações metodológicas, seguidas por uma breve seção que trata da elu-cidação dos conceitos. Num artigo anterior (Kaufman & Bisharat, 1999),exploramos juntos as justificativas e os obstáculos para a união de direi-tos humanos e processos de paz. Aqui vamos somente realçar as princi-pais considerações para a inclusão de uma perspectiva de direitos huma-nos ao lidar com conflitos etnopolíticos.Também vamos analisar atentamenteo percurso Israel�Palestina dentro do processo de paz do Oriente Mé-dio. Enfim, conferimos a potencial contribuição da abordagem dos �di-reitos individuais� na resolução de conflito ilustrada nas páginas anterio-res. Gostaríamos de concluir com o valor agregado que tem o princípioda autodeterminação enquanto direito coletivo e discutir sua aplicabilida-de ao processo de paz I�P. Terminaremos este trabalho com uma reflexãosobre a relevância geral dos direitos humanos para a atual situação e parao peace-making em geral. Enquanto em muitos dos conflitos prolongadosespera-se uma solução por meio da convivência sob um mesmo gover-no, o nosso deve terminar na criação de dois Estados. Aqueles que enfa-tizam a peculiaridade do conflito Israel�Palestina se valem dessa com-plexidade para argumentar que ele não poderá ser resolvido num futuropróximo. Mas o raciocínio oposto é válido se aplicarmos o lateral thinking

5 A diferença entre ONGs voltadas para defesa dos direitos humanos ou da paz é que, en-quanto a primeira proclama publicamente as conseqüências dos conflitos, especificamenteabusos dos direitos humanos, a outra evita aparições públicas, procurando construir confian-ça e entendimento entre as várias facções de um conflito em silêncio. No passado isso le-vou a uma certa tensão entre ambas, pois cada uma considerava seu trabalho prejudicadopela abordagem e prioridades diferentes da outra. International Alert (1998, p.20).

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A importância dos direitos humanos na resolução de conflitos

para entender os princípios pelos quais conflitos etnopolíticos semelhan-tes foram resolvidos em outros lugares. Às vezes foram feitas referênciasa outras situações pós-coloniais; comparou-se a necessidade de retirarcolonos dos territórios palestinos ocupados ao processo de independên-cia da Algéria e à partida dos pied-noirs para a França. Enquanto a maioriados conflitos etnopolíticos lidou com essa interligação entre direitoshumanos e resolução de conflitos, assumindo que a solução do conflitomanteria as partes unidas sob um mesmo Estado soberano (África do Sul,Irlanda do Norte), o resultado previsível do nosso conflito é um bom rela-cionamento entre dois Estados separados, Israel e Palestina (como no casoda Bósnia e da Croácia na Iugoslávia).

Gostaríamos de ressaltar que, enquanto a relevância dos princípiosdos direitos humanos no caso de soluções de integração pode ser maiordo que nos casos em que se opte por uma separação, mesmo uma aborda-gem tão técnica não representa completamente as realidades às quais aspessoas permanecem interligadas, como um casal divorciado que conti-nue vivendo em casas contíguas, com os filhos de ambos tendo que ficarcom o genitor não preferido por causa de uma decisão da justiça.

Mesmo se o tópico dos direitos individuais pudesse no futuro serconsiderado como de domínio de cada um dos futuros Estados soberanos,a lembrança das violações passadas, a importância de proteger os direi-tos humanos durante o prolongado processo de paz, além da possibilidadede que cada um dos Estados incluirá um número substancial de pessoasdo �outro� Estado, tudo isso pode trazer à tona mais diferenças do quesemelhanças, que tornam mais ainda importante a análise dentro de umcorpo de conceitos mais gerais.

Colocar o conflito I�P num contexto geral, mais amplo, ajuda nossabusca por soluções baseadas em padrões universais. Não estamos sugerin-do esse ponto de vista como uma panacéia, mas sim como uma relaçãode itens a serem verificados, alguns dos quais merecem ser levados emconsideração. Além disso, parece razoável supor que, se ambos os ladostiverem entre suas obrigações princípios de direitos humanos universal-mente aceitos, esse discurso e esses princípios poderão facilitar a buscapor um elemento comum, além de fornecer soluções inovadoras e ao mes-mo tempo convencer cada grupo da obrigação de seguir os princípiosaceitos e estabelecidos.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

Neste atual processo (de paz) não houve quase nenhuma referênciaexplícita aos direitos humanos. Não encontramos um �pacote� dessesdireitos ou mecanismos desde os estágios iniciais do planejamento doscaminhos (tracks) bi e multilaterais que seguiram a abertura do MadridMiddle East Peace Conference em outubro de 1991, emblematizado pelaNova Ordem Mundial e pelas eras pós-Guerra Fria e do Golfo.6 O Acordode Oslo, de 1993, mais eclético, tem apenas uma seção a respeito de elei-ções, mas sua postura pragmática se eximiu de enquadrar mesmo essacláusula num contexto mais amplo de direitos humanos. O Acordo Oslo IIde setembro de 1995 faz uma pequena referência, e o Acordo de Wye de1998 não faz nenhuma referência às obrigações humanitárias de Israel eapenas uma vaga menção às da Autoridade Palestina.

Devemos levar em consideração o fato de a agenda de negociaçõesentre Síria e Israel ser essencialmente ligada à disputa de fronteiras nascolinas do Golã, uma disputa mais territorial do que focada na pequenapopulação dessa região (cerca de 34 mil habitantes, incluindo dezessetemil judeus e dezessete mil drusos, todos com cidadania israelense e direi-to de voto).

Já a questão prevalente na Cisjordânia e na Faixa de Gaza traz embu-tidos os direitos individuais e coletivos de 2,5 milhões de palestinos. Aprioridade pelo ser humano dentro das comunidades internacionais é evi-denciada pela sua maior preocupação com o futuro dos palestinos do quecom uma disputa de fronteiras entre Síria e Israel. A diferença entre es-ses dois conflitos ficou nebulosa; no passado, no tempo de conflitos gene-ralizados entre israelenses e palestinos, este era mesmo chamado de �OConflito do Oriente Médio�, termo que na verdade excluía outros confli-tos violentos que aconteciam na região.

Consideramos melhor separar as coisas e reconhecer que essencial-mente a disputa entre Israel e Palestina foi e permanece um indomável7

conflito intra-Estados mais do que inter-Estados e, como tal, compartilhamuitos atributos de outros conflitos etnopolíticos8 tais como Sri Lanka,

6 Diferentemente do Acordo de Helsinque, de1975, da Conference on Security and Cooperationin Europe e subseqüentes encontros, que incluiu direitos humanos em seu �Basket III�.

7 Devemos nos lembrar da visão maximalista em que ambos os lados clamam pelo direitototal sobre a �Palestina Histórica� ou a �Grande Israel�.

8 Ted R. Gurr & Barbara Harff (1994b) desenvolvem uma metodologia para a compreensãode tais conflitos da ótica das minorias em risco.

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A importância dos direitos humanos na resolução de conflitos

Irlanda do Norte, Chipre e Ngorno/Karabakh. Inserir o conflito I�P numcontexto global ajuda nossa busca por soluções baseadas em padrões uni-versais. Ao mesmo tempo precisamos nos lembrar que, enquanto as guer-ras entre Israel e outros Estados árabes já estabelecidos foi uma conse-qüência da essência mesma do conflito I�P, o ideal de solucioná-lo pormeio de um Estado judeu�palestino conjunto já foi colocado de lado, elogo os palestinos devem entrar na comunidade internacional como umnovo Estado árabe independente. Ainda que os palestinos, enquanto partedo mundo árabe, juntos tenham feito pressão para concessões israelen-ses e retiradas de territórios ocupados, o passado conjunto e as atuaisreivindicações de cunho não territorial os aproximam mais dos outrosEstados dilacerados por guerras internas.9

Por último, mas não menos importante, uma vantagem desse nossoestudo foi ter sido realizado conjuntamente por acadêmicos israelensese palestinos, estreitando dessa forma a cooperação individual e institu-cional. Como em outros conflitos ligados ao estabelecimento de identida-des e por causa do tipo de cultura política de ambos os lados, o reconheci-mento e o respeito pela dignidade humana são um componente essencialna consecução de uma paz duradoura.

Traduzir esse conceito geral para princípios mais tangíveis e reconhe-cidos deveria contribuir para o atual processo de paz. Em conflitos prolon-gados a discussão dessas reivindicações não é responsabilidade unicamen-te das lideranças políticas, mas deve ser parte dos esforços continuadose criativos de membros das sociedades civis envolvidas.

Conceitos básicos

Tentar unir os termos e advogar em causa do �direito à paz�10 nãovai trazer um �final feliz� ao tema que defendemos, pois essa aspiração

9 Oponentes do processo de Oslo freqüentemente consideram que relações de poder basea-das em violações são um combustível para ressentimentos e raiva, o que na verdade aumen-taria a violência... �Paz como o oposto de violência antes do que uma reflexão sobre justiçaterá dificuldades em transpor estas preocupações...� (Sabet, 1998, p.7).

10 Alston (1992). Apesar de ser um esforço sofisticado para dar suporte ao título da obra, Als-ton concede que �seu conteúdo não atingiu o grau de exatidão necessário para sua promo-ção como norma determinante para a natureza e direção das atividades seja da comunida-de internacional, seja dos Estados individualmente� (p.204).

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ainda não obteve o mesmo reconhecimento e proteção mundial do queos direitos humanos individuais. Analisando ambos os conceitos separa-damente, em vez de nos apegarmos a definições enciclopédicas, devería-mos deixar claras, dentro de nossas tradições culturais, nossas opiniõesconjuntas sobre esse tema.

Pode ter havido diferentes interpretações para o termo �paz�, com osignificado não somente de uma ausência de guerra ou lutas, mas tam-bém da existência de uma situação sustentável baseada na reconciliação.Estamos falando aqui mais de um processo em que deveríamos �ver avida humana como uma pacífica resolução de conflitos interrompida pormomentos de luta, em vez de seu contrário, tranformando portanto a visãonegativa de acabar com a guerra numa visão positiva de estender a paz�.11

O termo justiça foi amplamente definido para incluir o reconheci-mento de injustiças passadas, a exemplar e sistemática punição de viola-dores, compensação às vítimas, a busca da verdade e a concessão de al-guns direitos básicos derivados de padrões internacionais aos povosafetados.12

Dentro do contexto cultural do nosso conflito temos que entenderos termos em seus significados mais amplos. Em hebraico modernoshalom significa desde estar em bons termos com o �outro� até �paz� comconotações messiânicas. No sentido teológico a Bíblia menciona shalom

237 vezes em diferentes contextos com diferentes significados: uma sau-dação de boas-vindas ou despedida; um sentimento de bem-estar, tranqüi-lidade, sossego; segurança, a ausência de toda violência; verdadeira coope-ração entre as nações.

O entendimento árabe da paz se baseia numa rara distinção entredois tipos de paz: um estado minimalista de não-beligerância chamadosalaam (que inclui �segurança�, �saúde� e �bem-estar� assim como umdos nomes associados a Deus), enquanto sulh evoca também noções deharmonia, tranqüilidade e prosperidade mas do ponto de vista de um tér-mino de conflito e reconciliação final, levando em consideração também

11 Usamos o conceito desenvolvido por William Ury (1999, p.XIX).12 �O que é entendido como �justiça� na verdade varia de uma sociedade para outra. Uma socie-

dade que protege os direitos humanos requer um tipo particular de justiça, que a distingade outras sociedades nas quais a justiça não é baseada em direitos humanos� (RodhaHoward, Human Rights and the Community, p.83).

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A importância dos direitos humanos na resolução de conflitos

as causas subjacentes e os ressentimentos.13 Ao introduzir direitos esta-mos sugerindo as mais permanentes expressões de paz em ambas as civili-zações, incluindo o reconhecimento mútuo das expectativas recíprocas.

Outro esclarecimento se refere à introdução de direitos humanos nosdiferentes estágios da resolução de conflitos. Temos usado os conceitos(Rothman, 1992) amplamente aceitos de pré-negociação (trocas entremembros da sociedade civil e representantes informais abrindo o cami-nho) e negociações (normalmente conduzidas por diplomatas, líderespolíticos e seus conselheiros, muitas vezes associadas a discussões ex-tra-oficiais) seguidos pelos estágios de pós-negociação após a assinatu-ra dos tratados de paz. Aí, então, se lida com os tópicos ainda penden-tes, fator crucial para se chegar à reconciliação.

Unindo os conceitos de direitos humanose resolução de conflito

Como mencionado acima, analisamos em outro texto o quanto méto-dos de Resolução Alternativa de Conflitos [Alternative Dispute Resolution

(ADR)] podem ser úteis para realçar princípios dos direitos humanos.Fazendo um balanço geral, em vista da natureza prolongada desses confli-tos de identidades coletivas, pela expansão da violência, pelo abuso con-tra os povos envolvidos, concluímos que as vantagens superam as desvan-tagens. No presente estudo queremos resumir o equilíbrio resultante daintegração de normas relativas aos direitos humanos individuais nos dife-rentes estágios do processo de paz:

� A velha guarda �realista� tem sido cética sobre a importância dos prin-cípios de direitos humanos na política internacional14 e considera quesua introdução no processo diplomático torna mais complexo, poden-do até atrasar desnecessariamente o gerenciamento do conflito. Oparadigma dos direitos humanos insiste em padrões mínimos

13 Raymond Cohen, �Peace in English, Hebrew, Arabic and Farsi�.14 �A defesa dos direitos humanos não pode ser consistentemente aplicada em política exter-

na pois pode estar em conflito com interesses mais importantes para determinadas instân-cias� (Morgenthau & Thompson, 1985, p.119). Para a discussão sobre a formação de umnovo conceito de realismo idealista, veja Adler (1991).

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

inalienáveis para todos. Enquanto conceder direitos pode ser vistocomo uma forma de conseguir a confiança dos mais �fracos�, existemdificuldades em se transmitir essa mesma mensagem não somenteao governo mas também ao grupo dos �fortes�. Porém a natureza mu-tável das alianças pode com o tempo tornar o forte mais fraco do queuma coalizão que defenda o outro lado.15

� Não somos tão ingênuos a ponto de supor que bastará mostrar o textocerto aos governantes para fazê-los concordar. Porém a possibilidadede levar o debate a ter como ponto de partida certos princípios previa-mente aprovados pode ajudar a reduzir os pontos de atrito. A paz in-terna, prioridade da era pós-Guerra Fria, está intimamente relaciona-da aos direitos humanos. Vai desde a restrição de violência gratuita aprover direitos socioeconômicos para todos os cidadãos. Muitos confli-tos ligados às questões da identidade coletiva irrompem quando certosgrupos se percebem sub-representados na sociedade ou quando suasnecessidades básicas são negligenciadas.16 Direitos humanos univer-sais, usados como um �padrão internacional� ratificados pelo gover-no ou governos envolvidos são uma boa causa para se argumentar aocompensar casos de discriminação coletiva. O conceito de �justiça�pode ser mais bem compartilhado se argumentado do ponto de vistade princípios específicos embutidos em itens de tratados internacionais.

� Conflitos dentro de e entre nações tendem a ser predominantementeassimétricos. No esforço de reduzir a violência e alcançar acordos, aestratégia do lado mais fraco tem sido a de corrigir o status quo, invocan-do os princípios de justiça. Enquanto o ator mais poderoso pode tentaroferecer segurança ao grupo líder � muitas vezes com alto custo huma-no � ele não tem meios de silenciar uma oposição etnopolítica porsimples intimidação ou repressão. Ganhar uma guerra não é tão fac-tível quanto buscar uma solução, a não ser que as forças usadas con-tra o outro povo incluam comportamentos tão extremos (limpezaétnica, grandes massacres) que, paradoxalmente, governos democráti-cos se encontrem diante de barreiras normativas difíceis de superar.17

15 Como no caso de Kosovo, isso ficou muito claro, causando temor de atitudes semelhantespor políticos de linha dura como o então ministro das Relações Exteriores, Ariel Sharon.Raciocínio imparcial deveria conscientizar os líderes das variações que podem ocorrer emambientes mutantes, mas ainda falta muito para isso.

16 O tema dos direitos humanos foi amplamente desenvolvido por Azar (1990).17 Um importante pró-memória da liberdade irrestrita de ação de um governo representativo

é a reação israelense aos massacres de palestinos nos campos de Sabra e Shatila em 1982

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A importância dos direitos humanos na resolução de conflitos

� Uma regra imposta por uma maioria não pode formalmente imporsoluções duráveis sobre uma minoria rebelde e descredenciada; espe-rança para uma solução durável requer um genuíno endosso de ambasas partes. Consideramos esse princípio importante para o processode paz I�P, no qual vitórias militares não resultaram em submissão.E não nos esqueçamos que os fracos também podem prover os fortescom coisas muito valiosas, como por exemplo uma porta para a aceita-ção dentro do Oriente Médio árabe (mundo árabe) como um todo.

� Alcançar uma reconciliação histórica e mutuamente internalizada abrecaminho para o fechamento eventual do ciclo da violência. A finalida-de declarada do conflito pode ser incluída no acordo e o público podecompreender melhor que atos isolados de terrorismo � rejeitados pelaliderança e pela sociedade civil de ambos os lados � são um sério masinevitável preço a ser pago. Além disso, a inclusão dos direitos huma-nos também pode ser invocada como benefício dos cidadãos do gru-po dominante. Enquanto muitas vezes eles têm mais direitos do quea minoria oprimida, seu direito à vida é muitas vezes desafiado pelaoposição armada, que pode ser também responsabilizada pelo respeitoa esses padrões.

� Uma abordagem pragmática do peace-making nos ensina que incluircláusulas de direitos humanos na formulação de um acordo pode setornar um fator retardante quando o espaço para sua conclusão é rela-tivamente pequeno. Além disso, houve não poucos casos em que otexto do acordo pareceu violar explícita ou implicitamente tais padrõesuniversais.18 O contra-argumento mais plausível dirá que ver os direi-tos humanos como um paradigma não significa necessariamente quetodas as cláusulas deveriam ser conformes a esses princípios, mas éprincipalmente um pró-memória de que a expectativa é alcançar pa-drões o mais alto possíveis. A inexistência de considerações relativasaos direitos humanos pode prolongar na verdade o processo de paz porcausa da ausência de Confidence Building Measures (CBMs) desse tipo.

(cometidos pela milícia libanesa com total suporte de Ariel Sharon, então ministro da Defe-sa) trazendo o maior protesto público jamais feito por israelenses, levando a uma mudançanas atitudes em relação ao Líbano, simbolizando o começo da retirada de tropas da maiorparte do território.

18 No caso dos Acordos de Oslo, o período intermediário inclui uma melhor mas ainda desigualdistribuição de água, violando claramente o princípio de direitos iguais para os palestinos.

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� A mesma linha de pensamento oportunista poderia fazer supor queàs vezes a sobrevivência do processo de paz requer medidas severasem relação aos que a ela se opõem, inclusive deportação ou prisão delíderes de movimentos extremistas � em si medidas ilegais, mas queacabam acontecendo pela própria ausência de procedimentos legais.De novo, o medo de uma institucionalização de longo prazo dessasviolações dos direitos humanos vai enfraquecer a supremacia da leidentro e entre as nações em conflito, com um custo mais alto e tornan-do uma conciliação posterior mais difícil. O custo da democracia temsido considerado adequado na maioria dos casos, e aparentes desviosna conclusão de pactos são somente obstáculos para se chegar a umasolução final estável.

� Outro ponto crítico é que freqüentemente somos confrontados comuma situação de conflito de direitos que torna muito difícil uma avalia-ção precisa sobre qual caminho seguir. Por exemplo, quem pode deter-minar se têm mais direitos aqueles que foram expulsos da Terra Prome-tida há dois mil anos ou há apenas cinqüenta anos? Em vez de decidirquem tem mais direitos, achamos que ambas as nações têm suficientes

direitos, que árabes e judeus lutaram duramente para marcar/man-ter sua presença e que a questão é como satisfazer as mais básicasnecessidades dos indivíduos de ambas as comunidades.

� Foi também argumentado que cláusulas de direitos humanos prove-nientes de declarações e acordos são elaboradas em termos amplos esujeitos a diferentes interpretações. Essa característica particular per-mite uma certa �ambigüidade construtiva�, que não ordena, mas aju-da a conduzir a conclusão de acordos mais específicos. A forma defazer acordos em conflitos prolongados, e a necessidade de fazê-lo gra-dualmente, muitas vezes resultou em acordos parciais anteriores aoacordo final, muitas vezes instando as partes a concordar com etapasintermediárias sem saber claramente sua forma final. Nesses casos,direitos humanos enquanto política de construção da confiança (trust

building policy) são apropriados.� Para a maioria das nações, períodos de guerras foram a exceção, não a

regra. O pequeno espaço de tempo de conflitos armados convencionaisé regulamentado em geral pelos princípios das leis humanitárias. Essequadro é muito diferente no caso de conflitos etnopolíticos intra-esta-

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tais. A pressuposição de continuidade, a transformação de violaçõesde direitos humanos esporádicos em situação de massacres, e umpadrão sistemático de graves violações de direitos humanos, situa-ções de genocídio e quase-genocídio podem obscurecer qualquer di-cotomia. Períodos prolongados de luta entre grupos de opressores eoprimidos incentivam a repressão por parte dos regimes dominantesmas também os abusos por grupos violentos de oposição não governa-mentais, como os fundamentalistas do Hamas, no nosso caso. As limita-ções impostas ao tratamento das populações civis em áreas ocupadas pormilitares supõem uma situação de ocupação temporária. Porém, casosde ocupação prolongada como na Cisjordânia � e agora só minima-mente em Gaza � sugerem que o desenrolar da ocupação deveria serexplicitamente acompanhado pelo progresso nos padrões de direitoshumanos agora percebidos como �dividendos de paz� até que o proces-so esteja completo. A relutância do lado israelense em participar deum diálogo sobre a implementação de seus compromissos internacio-nais pode ser interpretada como uma fraqueza, se for percebida comouma concessão feita à pressão internacional. Além disso, a demoracaracterística dos processos de paz em conflitos comunais prolonga-dos requer a introdução de princípios de direitos humanos como osCBMs, criando uma dinâmica mais positiva para os negociadores �muitas vezes prejudicada pela violenta oposição de ambos os lados.

� Sociedades que convivem com valores democráticos e os regimes queos sustentam formulam acordos que incluem princípios universalmenteaceitos, tais como os direitos humanos. Em momentos de decisõespenosas, apelar ao compromisso com esses altos padrões do mundocivilizado pode trazer alguma legitimidade doméstica, como o muitasvezes chamado �custo da democracia�. O reconhecimento dos direitosdo Outro, ainda que num nível apenas formal e teórico, pode criarum ambiente mais favorável a posteriores negociações. Para chegar aesse objetivo, seria útil englobar os princípios básicos da dignidadehumana, declarados pelos lados como um pilar básico normativo eeducacional (Forsythe, 1993).

� Além disso, podemos ampliar a relação entre direitos humanos e pazse introduzirmos �democracia� como uma variável interveniente. Essaconexão pode ser expandida com o conceito amplamente aceito de

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que democracias tendem a não fazer guerras entre si, apesar de nãohaver um acordo sobre os princípios dessa proposição (Rothstein,1992; Singer & Small, 1982). Esse argumento foi também usado naanálise do caso Israel�Palestina (Kaufman et al., 1993). A combinaçãodessas duas premissas leva à proposição de que a defesa dos direitoshumanos fundamentais contribui para processos de democratizaçãoe que sua consolidação reforça as perspectivas para a paz (Kaufman,1994). Pode ser argumentado que a proteção internacional aos direi-tos humanos impactou fortemente a última onda, a �terceira geração�de democracias. Essa premissa parece ter sido relevante para a transi-ção à autogestão dos palestinos. Por outro lado, pode-se argumentarque a falta de respeito aos direitos humanos nos territórios ocupadosafetou negativamente a natureza dos valores democráticos dentro deIsrael (Kaufman et al., 1993). A pressuposição de que países democrá-ticos tendem a não guerrear entre si (ibidem) poderia ter sido um in-centivo para acelerar uma paz entre Israel e Palestina baseada não so-mente em fronteiras seguras, mas também na promoção de processosdemocráticos para ambos os grupos envolvidos.

� Finalmente, em algumas culturas ocidentais, há um medo de se com-prometer com princípios que poderiam trazer uma obrigação de im-plementar meticulosamente essas políticas. Por outro lado, freqüen-temente se argumentou que em high context cultures, as minorias ou olado mais fraco esperam algum reconhecimento simbólico de direi-tos, mas que isso não necessariamente significa sua total implementa-ção. O extraordinário valor que tem o reconhecimento de injustiçastem sido cada vez mais valorizado por meio dos pedidos de perdão deimportantes líderes políticos do mundo.19 Nações que foram oprimi-das por décadas ou séculos podem ver um sentido reparador nessasdeclarações que muitas vezes são uma compensação apenas simbólicae muito parcial das violações do passado. Muitas das questões acumu-ladas em conflitos prolongados estão relacionadas ao sofrimento hu-mano, e não necessariamente a bens tangíveis que podem ter sidoperdidos para sempre.

19 Raymond Cohen, �The Role of Apology in Conflict Resolution: The Israeli/Palestinian Case�,Dept. of International Relations, Hebrew University, 1997 (artigo não publicado).

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Introduzindo direitos humanosno processo de paz Israel�Palestina

Admitimos que o estágio de pré-negociações entre Israel e Palesti-na já foi completado, e enquanto o processo de Oslo20 continua a ser abase para as atuais discussões, examinar o que não foi feito seria um exer-cício bastante teórico e é apresentado a seguir de forma sucinta. As nego-ciações extra-oficiais [backchannel] começaram em 1993, e quase no finaldo ano 2000 as partes ainda estão discutindo acordos intermediários e nãoresolvendo questões do status permanente. Assim, desde os primeirosestágios de nosso projeto de pesquisa, nos preocupamos em sugerir idéiasconcretas que pudessem influir na melhora dos direitos humanos indi-viduais imediatamente. Também introduzimos algumas das iniciativasnas ONGs, onde estamos ambos ativamente envolvidos. Até agora, orga-nizações de direitos humanos estiveram dedicadas ao monitoramentode violações mais do que a influenciar com novas idéias a institucionali-zação dessas práticas no contexto de um acordo, e nosso esforço não sedirigiu exclusivamente a textos que pudessem ser expostos, mas ao en-corajamento de um diálogo sobre essa importante tarefa.21 Queremosabrir discussões sobre as modalidades do período pós-negociações jáagora e encontrar elementos comuns entre árabes e judeus, indo assimde uma paz minimalista para uma reorganização mais profunda e durá-vel. Reconhecemos que as exigências palestinas para mudança são maisfacilmente expressas em termos de justiça e direitos humanos; mas qualé o ganho de Israel com isso? Gostaríamos de ver os líderes judeus explo-rando ao máximo a riqueza dos princípios propostos, e perceber que al-guns não são necessariamente apenas benéficos ao outro lado. Além disso,tais normas podem ser necessárias para assegurar o status dos colonosjudeus deixados como uma minoria no Estado palestino. Minimizar adissonância entre as lições do judaísmo e a natureza democrática de Is-rael é um fator intangível, mas importante, que deveria ser inserido. Nãopodemos esquecer que os conceitos de �paz permanente� e �fim do con-

20 Relato em primeira-mão de um participante israelense em Savir (1998).21 Nossa experiência de trabalhar este tema em escolas secundárias, com acadêmicos de dife-

rentes disciplinas, em artigos de jornal e com ativistas de direitos humanos tem sido muitopositiva e está parcialmente descrita em Bisharat & Kaufman (1999).

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

flito� são uma necessidade premente para os israelenses e que a duraçãodos acordos vai depender não somente da força do exército israelensemas em larga escala de sua genuína aceitação pelo povo palestino. Postoesse raciocínio, vamos brevemente revisitar todo o proceso com um olharque inclui a dimensão dos direitos humanos. Para sermos abrangentesdeveríamos associar cada item aos instrumentos internacionais relevan-tes. Pelo bem da simplicidade, vamos porém nos referir somente aos arti-gos relevantes da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH).Claramente, o desenvolvimento de padrões mais específicos nas conven-ções futuras vai requerer um estudo mais aprofundado da aplicabilidadede cada um, enquanto princípio diretor nos diversos tópicos em questãona agenda Israel�Palestina.

Elementos de direitos humanos na pré-negociação

Dadas as limitações da diplomacia direta [track one] que aconteceuem Washington, DC, como conseqüência da Conferência de Paz de Ma-dri, em outubro de 1991, a fórmula criativa de Oslo foi sem dúvida vistacomo um avanço na quebra do gelo nas negociações. Pode-se argumen-tar que uma das fraquezas do Acordo de Oslo foi a falta de uma visível eexplícita referência aos padrões de direitos humanos e um foco exclusivosobre as cláusulas práticas. Pode ser que tanto a liderança do Partido Tra-balhista Israelense quanto a da OLP tenham realçado o pragmatismo econsiderado a linguagem dos direitos humanos apenas um obstáculo re-tórico. Sem dúvida, os negociadores aceitaram uma importante tarefa aotentar encontrar soluções para um grande número de tópicos concretos(Savir, 1998). O título �Colocar um fim em décadas de confrontação econflito� e o curto preâmbulo do texto nos inspira a ir na direção certa,22

mas mesmo assim não há referência à necessidade de usar padrões univer-sais como baliza. Além disso, há pouco compromisso específico com osdireitos humanos enquanto estimuladores do progresso do processo de

22 O Art. XIV do Acordo Gaza�Jericó estipula: �Israel e o Conselho [da ANP] exercerão seuspoderes e responsabilidades levando em consideração este Acordo e seguindo normas inter-nacionalmente aceitas e baseadas nos princípios que regem os direitos humanos�, e noAnexo III, Art. 2, especificamente enfatiza o tratamento a ser dado aos indivíduos transferi-dos de uma autoridade judicial a outra.

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A importância dos direitos humanos na resolução de conflitos

paz ou mesmo quando é feita referência às questões do status final.23 Com-parado com os acordos de paz da Irlanda do Norte podemos ver quãocomprometido este acordo é com cláusulas de direitos humanos (Com-mittee on the Administration of Justice, 1995, p.3), e também como in-corpora a Convenção Européia dos Direitos Humanos ao novo acordonas questões ligadas às leis nacionais.24 Não obstante a diferença no resul-tado de responsabilidades compartilhadas (tanto católicos quanto protes-tantes compartilham as provisões dos direitos humanos com a Irlandado Norte) e a esperada separação de Israel e Palestina em dois Estados,as responsabilidades sobrepostas e a necessidade de se reportar a quei-xas passadas não diminuem a importância dos direitos humanos nosacordos de paz, como mostraremos adiante.

Estamos plenamente convencidos de que tal compromisso estariacontribuindo não somente do ponto de vista semântico mas também psi-cológico para promover tanto a boa-vontade dos palestinos quanto a cons-ciência entre os israelenses da importância de se agir por parâmetros in-ternacionais existentes. Por causa da natureza profundamente enraizadade conflitos comunais prolongados não é suficiente assegurar a coopera-ção das lideranças na construção da paz, mas construir a paz é tambémum requisito entre setores da sociedade civil dos quais se espera a legiti-mização e o apoio ao compromisso histórico. Imagine-se citar no preâm-bulo do acordo Israel�Palestina a abertura da Declaração Universal dosDireitos Humanos!25

23 O Wye River Memorandum tem uma clara referência a como os palestinos devem se compor-tar �de acordo com leis internacionais de direitos humanos�, enquanto a delegação israelen-se, liderada por Netanyahu, enfaticamente recusou qualquer compromisso com padrõesde direitos humanos.

24 Numa análise do Acordo de Paz da Irlanda do Norte, de 1998, o Human Rights Watch rela-tou: �a organização está muito feliz em ver que este novo Acordo reflete uma compreensãoda relação entre proteção e promoção de direitos humanos universais e uma paz duradoura eestável�. Human Rights Watch, �Justice for All?�, Apr. 1998, cl. 10, n.3 (D), http://www.hrw.org/reports98/nireland.

25 Citando literalmente da DUDH: �Enquanto o reconhecimento da dignidade inerente e dosdireitos iguais e inalienáveis de todos os membros da família humana é a base da liberdade,justiça e paz no mundo; enquanto o desprezo pelos direitos humanos resultaram em atosbárbaros que chocaram a consciência da humanidade, e o advento de um mundo onde osseres humanos devem gozar liberdade de expressão e crença, e ausência de medo e necessi-dades foi proclamado como a mais alta aspiração do ser humano comum� ... os representan-tes da nação israelense e da palestina...

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

Elementos de direitos humanos nas negociações

Espera-se desde 1996 uma discussão sobre os tópicos de status finalpelos líderes israelenses e palestinos. Isso inclui tópicos como: Jerusa-lém, fronteiras de segurança, assentamentos, refugiados e também água.Neste ponto procura-se encontrar um acordo baseado num enfoque ge-ral, que seria mais tarde detalhado em tratados, apesar de datas finaisterem sido prorrogadas muitas vezes. O processo de negociação é parti-cularmente complexo quando um dos lados ou ambos têm estruturas par-ticipatórias onde leis da maioria interferem no processo e onde uma visívele articulada minoria se dedica a prejudicá-las. Entender o �custo da demo-cracia� e as dificuldades intrínsecas desses sistemas parlamentares no-vos é um elemento importante nas nossas discussões. Períodos assimprolongados podem requerer introdução de tópicos de direitos huma-nos para indivíduos durante o processo, o que em jargão político é chama-do de Confidence Building Measures (CBMs).

Em alguns casos, lidar com o legado do passado pode ser adiado atéo estágio de pós-negociação (isto é, o �direito à verdade�, ou a revisãodos vereditos resultantes de erros da justiça), enquanto em outros pode-remos ser obrigados a inseri-los no período de transição durante as nego-ciações (por exemplo, a libertação de presos como resultado de violentoconflito político, ou o esforço deliberado e consciente de limitar a provo-cação contra o Outro, a revisão de textos de referência). Nesse ponto, otime de pesquisa pode dar somente exemplos soltos de potenciais reco-mendações às autoridades de ambos os lados. Sabemos que os núme-ros, qualidade e precisão poderiam ser muito melhorados com um diálogocontinuado entre especialistas locais e internacionais. Primeiro vamosexplicar a parte das CBMs que visam prover maiores ímpetos de boa-vonta-de e reciprocidade à negociação dos itens mais complexos do processo.Ainda que o lado mais forte tenha mais a oferecer do que o lado maisfraco em matéria de melhorias, é essencial que a boa-vontade seja expressapor ambos os lados.

Técnicas de construção da confiança(Confidence Building Measures � CBMs)

CBMs são freqüentemente formuladas por princípios consensuais dedireitos humanos (liberdade de movimento, libertação de presos políticos,

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A importância dos direitos humanos na resolução de conflitos

liberdade de consciência etc.) que podem facilitar a transição de um está-gio de negociações a outro. Como declarou Felner: �Este ciclo de vitimi-zação tem profundos efeitos no potencial de um acordo negociado doconflito. Um processo de paz baseado na violação dos direitos humanosé frágil em sua essência. Punições coletivas, brutalidade e humilhaçãodesnecessária diminuem a boa vontade para reconciliação e concessõesrecíprocas� (1998). Além disso, não nos esqueçamos de que a maioriados palestinos ainda não viu significativos �dividendos da paz� traduzidosnos termos dos direitos acima mencionados. O conceito de �segurançahumana� desenvolvido pelas Nações Unidas enfatiza a importância desatisfação das necessidades básicas para prevenir conflitos violentos(United Nations, 1994). Privação socioeconômica incentiva a violência,somando-se à natureza etnopolítica do conflito, aquilo que Lederach cha-mou de peacejustice gap,26 ou lacuna entre paz e justiça. Por outro lado,um grande número de israelenses sente que o processo de paz lhe trarásegurança pessoal adequada. A liderança palestina e a sociedade civil �em sua maioria contrárias a bombas suicidas � deveriam encontrar manei-ras de se dissociar dessas atividades tanto na teoria quanto na prática, emesmo eliminá-las. Na Irlanda do Norte foi solicitado que a legislaçãode emergência não deveria ser usada durante o processo, e deveria sereventualmente abolida; que uma revisão da sentença para todos os pre-sos sob a legislação de emergência deveria ocorrer e que cortes especiaisdeveriam ser abolidos. No geral, exemplos de CBMs no processo de pazIsrael�Palestina podem ser resumidos em sim e não:

� Israel consente, sim, em ampliar a libertação de presos políticos, tantoos acusados de crimes violentos antes de 1993 quanto dissidentespacíficos, assim como aqueles suspeitos de atividades violentas manti-dos em prolongada detenção administrativa sem julgamento. Outrosjulgados e acusados por assassinato também contra judeus27 podem

26 Subentende-se no conceito a brecha entre uma paz minimalista que acaba com a violênciafísica mas não lida com as injustiças que causavam o que John Galtung chamava de �violênciaestrutural�.

27 A questão da libertação de presos �com sangue nas mãos� surgiu fortemente na implemen-tação dos Acordos de Wye. Em setembro de 1999 Israel concordou em pôr em liderdade osacusados de assassinar outros árabes, assim como aqueles que feriram cidadãos israelen-ses, mas ainda não aqueles acusados de ter causado a perda de vida a civis judeus. Recente-mente se observa uma constante libertação de casos individuais, ainda que abaixo das expec-tativas palestinas.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

ser soltos, sim, numa decisão consciente e conjunta da Corte de Liber-dade Condicional sempre que eles prometam não usar mais de violên-cia ou incitá-la no futuro, claramente se desassociando de organiza-ções que continuem usando esse método. A reabilitação dessesprisioneiros na sociedade, treinamento profissional, terapia pela ANP,deveriam ser vistas como parte integrante do processo.

� Ambos os lados pagam, sim, compensações para aqueles que foramvítimas de violência, do Estado ou não, sejam judeus ou árabes(DUDH, Art. 3-5). Considerações bastante medíocres sobre os cus-tos dessas operações de compensação levaram um grande número demembros do Knesset a considerar legal limitar o acesso palestino aessas prerrogativas. Isso foi feito sem levar em consideração o poten-cial ganho em confiança e boa-vontade, assim como concessões recí-procas em outros momentos. Uma questão que ainda permanece aber-ta é se a ANP se responsabilizará pelos casos hipotéticos de vítimasjudaicas da violência pelas suas forças armadas.

� O Conselho Israelense para a Água fornece, sim, uma cota maior deágua para as casas palestinas e auxilia a conexão de um substancialnúmero de cidades a redes de água.

� Os israelenses não continuarão a demolir as casas dos supostos terro-ristas, o que é considerado uma forma de punição coletiva, duranteas negociações. Da mesma forma não deveria haver destruições deconstruções ilegais. Na realidade entre os anos 1996 e 1999 houveum forte crescimento na demolição de casas sob alegação de constru-ção ilegal nas áreas de Jerusalém e Cisjordânia (DUDH, Arts. 17 e 25).Tais medidas são claramente contraproducentes e são responsáveispor fornecer o tom errado nas negociações de longo termo.

� Israelenses não confiscarão terra de indivíduos palestinos nem mesmocasas habitadas em Jerusalém, como por exemplo, em Ras al-Amud ouem Silwan, e certamente os colonos não removerão moradores palesti-nos. (O tópico de terras estatais é de outra dimensão, fonte de contesta-ções que devem ser debatidas durante as negociações.) (DUDH, Art. 17.)

� Israel toma medidas, sim, para reduzir ao mínimo o nível do sofrimentoindividual resultante do fechamento de fronteiras que seguem atosterroristas dos palestinos extremistas (DUDH, Art. 13). Torna-se cadavez mais claro que os fechamentos longos e o toque de recolher têmmais um propósito de punição do que uma maior segurança para osisraelenses, pelo menos no caso da permeável Jerusalém.

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A importância dos direitos humanos na resolução de conflitos

� A ANP segue, sim, a decisão da Suprema Corte de Justiça de Israel eproíbe o uso da tortura e outros métodos de pressão física que certa-mente podem ser considerados �tratamento desumano e degradante�(DUDH, Art. 5) e ambos os lados monitoram, sim, os interrogatóriosde supostos terroristas ou mesmo civis inocentes.28

� As lideranças israelense e palestina contribuem, sim, efetivamente paraa diminuição das ameaças de terrorismo contra civis inocentes e legal-mente punem os que o fazem para prevenir uma libertação prematuradaqueles que estiveram envolvidos em tais atos durante a conduçãodo processo de paz. Ambas as autoridades deveriam condenar, sim,massacres e tentativas de genocídio com base em princípios partilha-dos de direitos humanos (DUDH, Art. 3). Ambos os lados pedem,sim, por um cessar de assassinatos e massacres de inspiração políticafeitos por grupos muçulmanos extremistas e ocasionalmente por faná-ticos judeus. Entidades não governamentais responsáveis por atos ter-roristas também são responsáveis diante da comunidade internacio-nal. Ainda que este apelo possa cair no vazio, vale a pena incluir umareferência a padrões internacionais, e isso deveria ser transmitido pelomaior número possível de meios aos grupos envolvidos.

Direitos humanos nas questões do status definitivo

Neste breve artigo podemos somente ilustrar o potencial de se obser-var estes tópicos de uma perspectiva dos direitos humanos individuais.Devemos ter em mente que em algumas áreas, como segurança interna-cional, poderiam prevalecer outras considerações. Porém a questão dasegurança pessoal está contida no espectro da nossa abordagem. O núme-ro de tópicos de direitos humanos a serem incluídos em cada um dositens do status final requereria um grande número de especialistas. Nestaetapa vamos mencionar alguns exemplos:

28 No último ano o Supremo Tribunal de Israel atuou dessa maneira, supondo que as amea-ças à segurança nacional diminuíram em conseqüência do avanço da paz. Ordenou a des-continuidade da prática de �pressão física moderada� que considerava como equivalente atortura. Também minimizou o uso da detenção administrativa e garantiu acesso igual à com-pra de terras para árabes em Israel. A Autoridade Nacional Palestina diminuiu, em coopera-ção com os serviços de segurança israelenses, as ameaças de grupos terroristas de causarmais violência em massa. São bons exemplos de Medidas de Construção de Confiança(MCCs).

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

Refugiados

Acreditamos que uma paz estável requer em princípio o reconheci-mento do direito de retorno aos refugiados. Encontrar os mecanismospara implementar esse direito é da responsabilidade de Israel e da comu-nidade internacional também. Um reconhecimento genérico da situaçãoe direito de retorno dos refugiados poderia abrir mais caminhos para so-luções práticas.

Nossa premissa é que soluções acertadas deveriam levar em conside-ração tanto quanto possível as preferências dos próprios refugiados, reven-do as opções possíveis de acordo com os princípios de leis internacio-nais e precedentes humanitários.

Resoluções da Assembléia Geral das Nações Unidas devem ser leva-das em consideração, ainda que não venham a ter o mesmo peso de cláu-sulas em acordos relevantes. Discrepâncias locais sobre interpretaçõesdo conceito de �direito de retorno� para a �casa� ou a �terra natal� pode-riam ser resolvidas de variadas e criativas maneiras. Podem ser estabele-cidas prioridades, prevendo compensações primeiro para aqueles que têmnecessidades básicas a serem supridas. Em outras palavras, a opção dosrefugiados deveria envolver oportunidades para melhorar seu status so-cioeconômico, e seu acesso a oportunidades iguais deveria ser ampliado(DUDH, Art. 22-27). Por uma questão de princípios e em prol de umapaz sustentável, as escolhas dos refugiados deveriam ser o mais amplaspossível, e incluir: retorno como cidadãos plenos ao novo Estado palesti-no, negociação com autoridades israelenses de casos específicos de reu-nificação familiar com parentes árabes em Israel, realocação em outrospaíses que se mostrem dispostos a criar um número predeterminado decampos de refugiados, e a concessão de cidadania � se solicitada � nospaíses árabes onde residiram desde 1948 (fato já comum na Jordânia).

A volta às casas originais é problemática, pois muitas delas não exis-tem mais, após mais de cinqüenta anos, enquanto outras estão habita-das por outras famílias. Portanto uma compensação adequada deve sernegociada, bem como a volta para lugares não muito distantes das casasoriginais.

A complexidade do problema quanto aos �direitos� e às reivindica-ções adicionais de judeus que fugiram de países árabes é amplamentediscutida por Quigley (1998).

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A importância dos direitos humanos na resolução de conflitos

Jerusalém

A futura situação da cidade considerada �a pedra no sapato� da resolu-ção de nosso conflito pode ser analisada em três níveis diferentes, quantoaos direitos.

� Primeiro: a expectativa de membros da comunidade internacional(principalmente judeus, cristãos e muçulmanos) pela liberdade de re-ligião (DUDH, Art. 18) será mantida, ainda que não traga direitos adi-cionais de cidadania.

� Segundo: o desejo de israelenses e palestinos de ter Yerushalayim/al-Quds como sua capital deveria ser apoiado, porém não pode ser deter-minado com base nas leis de direitos humanos internacionais.

� E, por último mas não menos importante, o direito de árabes e ju-deus, seculares e religiosos, moradores de Jerusalém, de usufruir seusdireitos individuais na cidade (DUDH, maioria dos arts.) pode resul-tar numa situação em que a grande maioria de cada uma das popula-ções estará vivendo na cidade sob a autoridade de seu próprio Estadosoberano. A ênfase nos direitos individuais significará permitir àque-les mais diretamente afetados determinar a qualidade de vida e o fu-turo da cidade. Isso poderia gerar uma identidade jerusalemita (habi-tante de Jerusalém) compartilhada por árabes e judeus, baseada emprivilégios e direitos para residentes. Pela perspectiva dos direitos hu-manos esta última dimensão é a mais importante, tendo sido porémnegligenciada nas negociações até agora (de forma que, por exemplo,moradores palestinos de Jerusalém têm lutado para obter seus direi-tos junto às autoridades de seguridade social).

Colonos

Uma vez que esteja delineada a fronteira básica, por uma questão dedireitos individuais, deveríamos priorizar os direitos dos palestinos queforam diretamente prejudicados pelos assentamentos e pelas bypass roads,assim como os direitos individuais dos colonos. Palestinos cujos direi-tos de propriedade foram violados por amplas expropriações na Cisjor-dânia deveriam ter a possibilidade de apelar por meio de medidas legaisàquilo considerado por eles serem atos arbitrários ou fora da lei (DUDH,Art. 17). Não obstante as diferenças existentes na legitimidade dos israelen-

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

ses na Cisjordânia e das populações árabes indígenas, hoje uma minoriadentro de Israel, a questão do direito das minorias será relevante paraambos. Aqueles judeus que desejam continuar morando sob jurisdiçãopalestina também deveriam ter direitos iguais aos outros e ter um status

semelhante ao dos árabes palestinos em Israel. Para uma solução maissustentável tanto os palestinos árabes em Israel quanto os judeus israelen-ses na Palestina poderiam optar por dupla cidadania, o que os faria sesentir mais seguros, além de ter o direito de escolher onde querem mo-rar (DUDH, Arts. 13 e 15).29 Segurança adequada (DUDH, Art. 3) deveriaser dada aos colonos judeus se necessário, incluindo aí a possibilidadede patrulhas policiais mistas israelense-palestinas durante os primeirosanos após a conclusão do acordo.

Direitos da água

� Este é talvez um dos melhores exemplos de que a água não deveriamais ser vista como um recurso finito na lógica de jogo de soma zero,pois, como resultado dos atuais processos de dessalinização, esse as-sunto está mais relacionado a preço e possibilidade de aquisição. Por-tanto, neste difícil tópico das escassas provisões de água, pode ser pos-sível chegar a um consenso não somente quanto a um gerenciamentoconjunto dos mananciais, mas também quanto à determinação de prin-cípios gerais para os direitos sobre a água.30 Esses princípios pode-riam ser baseados em direitos iguais para o uso da água para todos osindivíduos e tarifas maiores para consumo extra em ambos os lados.Pouco progresso foi feito internacionalmente em outros acordos nocaso de água subterrânea. Grupos israelense-palestinos vêm há mui-to tempo trabalhando nisso e desenvolveram alguns conceitos iniciaisque podem trazer esperança de acordos futuros (DUDH, Art. 25).31

29 E. Kaufman completou o rascunho de um artigo sobre �Os direitos de colonos judeus epalestinos afetados pelos assentamentos�, para um projeto sobre os assentamentos condu-zido em comum pelo Truman Institute for the Advancement of Peace, da Hebrew University,e o Palestinian Center for Regional Studies (no prelo).

30 Seis relatórios de pesquisa foram publicados pelo time israelense-palestino. O último é deFeitelson & Haddad (1999).

31 Para uma visão que focaliza os direitos humanos, cf. B�tselem (2000).

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A importância dos direitos humanos na resolução de conflitos

Elementos dos direitos humanosnos estágios de pós-negociação

Entre os estágios analisados, este é talvez aquele que obteve maiorconsenso quanto à integração de itens relacionados a direitos humanos,como já foi visto na América Latina e na África do Sul. Esta ampla aceita-ção em lidar com tópicos passados dos direitos humanos para fechar ociclo da violência pode contribuir para a abertura de um novo capítulonuma história coletiva e cooperativa.32 É verdade que quase todos os casosse referem a questões domésticas, intra-Estado, sendo a revisão feita porum novo regime que olha criticamente sobre as violações feitas por seupredecessor. Quando o Estado palestino existir, nós ainda estaremos nosrelacionando a dois governos soberanos, cada um representando maiscontinuidade do que mudança, ambos envolvidos no passado em terroris-mo individual, de grupo e de Estado. Dada a assimetria do poder e o ní-vel da violência sancionada pelas autoridades de ambas as nações nopassado, parece improvável que o governo israelense e, em menor medi-da, a ANP, tomem essa iniciativa unilateralmente. Lederach também men-ciona a necessidade de que ambos os lados reconheçam as violações dopassado e se empenhem construtivamente no trabalho a ser realizado.Idealmente o foco deveria ser na possibilidade de lidar com nossa histó-ria e enfatizar o futuro interdependente.33

� Uma das repercussões imediatas de um acordo entre nossas lideran-ças será a submissão ao �desejo do povo�. Não obstante os perigosde um referendo, imaginamos que dar ao povo, que foi desinformadoou manipulado por oponentes ao acordo, a possibilidade de endossaressas decisões cruciais pode ser uma forma arriscada mas efetiva paraa legitimização de longo prazo. Para que seja respeitado o direito dosmembros de ambas as nações sugerimos que o plebiscito seja feito aomesmo tempo tanto em Israel como nos territórios palestinos.

� �Justiça� pode agora emergir como uma consideração prioritária. Pode-mos então transformar acordos minimalistas pragmáticos em políticas

32 Um paper sobre o assunto do �Período pós-Estado palestino� foi preparado por E. Kaufmanpara o Tami Steinmetz Peace Center da Tel Aviv University (no prelo).

33 A experiência acumulada sobre as modalidades de tal retrospectiva de pós-negociação érelatada em Kritz (1995).

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

reais e declaratórias que levem em consideração o sofrimento acumula-do. Para uma paz longa e durável, ambos os lados deverão ver reconhe-cidas suas demandas por justiça individual, e em certa medida tam-bém participar de forma prática na compensação pelo sofrimento. Éverdade que a reconciliação no contexto Israel�Palestina será mais fácilde obter por meio de �cenouras� (compensação financeira) do que de�chicotes� (punição dos violadores). Como um todo, a memória cole-tiva pode ser estimulada por relatórios sobre �paz e reconciliação�,que documentam violações aos direitos humanos no passado, onde�cenouras� intangíveis e sem um preço oficial também podem se tor-nar elementos para cura das feridas. Reconhecimento de ações pro-blemáticas no passado e a perspectiva de um futuro mais promissorsem atos discriminatórios, como a busca pela igualdade diante da lei,assim como a satisfação compassiva das necessidades básicas, pode-riam ser conjuntamente entendidos como uma escolha pragmática.Isso requer uma combinação de busca pela verdade, necessidade dedemonstrar perdão e resgate dos aspectos humanos com medidas pas-síveis de construir novos relacionamentos entre os partidos. Mode-los alternativos, nos quais ONGs se encarregariam de documentar vio-lações do passado, poderiam também ser explorados, talvez no nossocaso, ao engajar nesta tarefa organizações de direitos humanos de am-bos os lados. É provável que a impunidade de indivíduos envolvidosem atos de violência permaneça inquestionada, uma vez que seus atosforam freqüentemente sancionados, não oficialmente, por aqueles quecontinuarão no poder.

� Educação para a paz e direitos humanos é importante para o reconhe-cimento do Outro. Será também não menos importante auxiliar o de-senvolvimento de uma �cultura da paz� (Mayor, 1999) através tantoda mídia quanto de comunicações informais. Além disso, enquantona história recente temos consciência de nosso conflito e do que nossepara, voltar nos séculos nos permite também melhor estudar e en-tender nossa herança comum (linguagem, religião, filosofia, culturae prolongados períodos de coexistência).

� Mediante nossa própria experiência poderíamos fazer um apanhadoquanto a futuros cenários, quando os direitos de indivíduos palestinose israelenses terão sido dramaticamente melhorados após um acordoformal de paz. Ainda que dentro de duas entidades políticas separadas,

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A importância dos direitos humanos na resolução de conflitos

a interdependência pode fazer que os tão esperados dividendos da pazcriem um progresso nas condições sociais e econômicas, durante aimplementação dos direitos civis e políticos de todos os cidadãos.

� A implementação dos acordos baseados em direitos iguais requer queeles sejam monitorados e regulamentados. Há também a necessidadede mecanismos de mediação e procedimentos, no caso de desacordoscausados (durante a implementação) por falta de entendimento dascláusulas, ou da falta de referências específicas quando do surgimentode novos problemas. Esse esforço deveria incorporar indicadores pre-ventivos claramente formulados, assim como treinamento para açõespreventivas. Haverá então a possibilidade de se lidar com assuntosnão resolvidos do passado, quando a privação de direitos (violência,privação econômica) não recebeu a devida atenção. Claramente, quan-to mais o processo puder lidar com as causas da �violência estrutu-ral� e erradicá-las, mais duradoura a paz poderá ser.

Observações finais

Temos consciência de que um dos elos mais fracos na nossa luta pelaintegração dos princípios de direitos humanos ao processo de paz é nocomo fazer o lado mais forte incorporar �justiça� à essência de suas prio-ridades legítimas.34 Ainda assim esperamos que este nosso trabalho per-mita um melhor entendimento de que reconhecer as reivindicações justasdo �Outro� e mostrar compaixão podem ser escolhas pragmáticas. Tra-tados são uma condição necessária, mas não suficiente, para que naçõesse movam do cessar das hostilidades à paz e, mais tarde, à reconciliação �devemos lembrar que apenas 50% dos acordos são completamente im-plementados passados cinco anos.35 A confiança na superioridade militar

34 Mesmo dentro do movimento de paz israelense foi argumentado que �a resolução de confli-tos providencia um procedimento técnico para demarcar fronteiras seguras, criar novosmercados econômicos e construir uma nova ordem regional. Valores espirituais mais profun-dos e conceitos humanísticos de paz preocupam grupos de paz só minimalmente� (Newman,1997, p.422).

35 Uma pesquisa recente afirma que quase a metade dos acordos de paz é violada ou não im-plementada nos primeiros cinco anos após sua assinatura (cf. Rupasinghe, 1998).

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muitas vezes tornou difícil a compreensão de que um acordo de paz pre-cisa se apoiar em várias pernas, das quais os direitos humanos são ape-nas uma. Uma mudança no paradigma, transformando-se no vizinho com-passivo, tendo CBMs como gestos unilaterais a partir de uma posição depoder, vai eliciar dos palestinos mais flexibilidade, pois ela será vista comouma solução honrosa. A assimetria do poder permite ao mais forte a ma-nutenção do status quo por bastante tempo, mas não garante uma soluçãode longo prazo. Se os desejos mínimos do mais fraco não são acatados, aopção de irredutibilidade permanece aberta, e rebeliões podem daí resul-tar. Este trabalho explorou o lado oposto do argumento �vamos mostrara eles�; �a única linguagem que eles entendem é a força bruta�; �eles nãomerecem outra coisa, veja o que está acontecendo ao nosso redor!�. Ahabilidade de oferecer dignidade a todos permite criar uma solução honro-sa que deveria ter sido mais amplamente introduzida na fase de pré-nego-ciação e, mais tarde, em negociações que envolvem as sociedades civis,comunicando esse consenso a todas as camadas da sociedade. Um dosmaiores desafios tanto para as organizações de direitos humanos quantode paz é unir forças e informar as respectivas lideranças israelenses e pa-lestinas da relevância dos direitos humanos quanto ao seu potencial efeitono fazer a paz (Hassassian & Kaufman, 1998).

Em nossa análise, focalizamos, até agora, a relevância dos direitoshumanos internacionalmente reconhecidos, em sua maior parte criados paraa proteção do indivíduo. Reconhecimento de direitos de paz e autodeter-minação coletivos, incluindo aí o respeito ao direito de grupos, são normal-mente a principal reivindicação de minorias étnicas ou nacionais, massua legitimação universal não alcançou o estágio declaratório no regimeinternacional dos direitos humanos (Forsythe, 1993). Enquanto a prote-ção internacional dos direitos individuais foi forte e globalmente am-parada por declarações e tratados amplamente ratificados � incluindoIsrael e unilateralmente subscrito pela ANP � o progresso na proteçãodas minorias foi muito menor. Até agora, os tratados que protegem di-reitos de grupos têm sido mais limitados (mulheres, crianças) mas nãohouve progresso significativo no consenso sobre �direitos das mino-rias�, a não ser quando se atingem proporções de genocídio. Menos ain-da foi alcançado quanto ao consenso para a defesa dos direitos cole-

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tivos.36 Portanto, poderíamos levantar a hipótese de que focalizar os con-flitos comunais prolongados somente do ponto de vista dos direitos indi-viduais fortalece mais do que enfraquece as chances para uma paz pragmá-tica. Por outro lado, os textos declaratórios de organizações regionais einternacionais fazem referência significativa a essa conexão. Por exem-plo, a Assembléia Geral das Nações Unidas confirmou que: �A sujeiçãode povos à subjugação estrangeira, dominação e exploração constitui umaviolação dos princípios [de direitos iguais e autodeterminação dos po-vos] assim como uma negação dos direitos humanos fundamentais, alémde ser contrário aos princípios da Carta das Nações Unidas como incluí-do em acordos internacionais�.37 A Unesco acrescenta: �Em virtude daproclamação contida na Carta das Nações Unidas, no sentido de que osdireitos humanos e liberdades sejam respeitados, além de proibido o usoda força, um dos direitos básicos de cada indivíduo está embutido no direi-to internacional, a saber, o direito à paz�. Ainda assim, há debates sobreas diferentes abordagens no caso da aplicabilidade da autodeterminação.38

Assim, concordamos que este princípio tem ainda um longo percursoantes de ser efetivamente codificado, e talvez seria melhor considerá-locomo um �direito� em vias de se tornar um �direito� humano internacio-nalmente reconhecido.

Dentro deste paradigma também destacamos �direitos de grupos�como uma categoria intermediária, que no nosso caso se relaciona a mino-rias, uma parcela de toda a população de um Estado. Quando as necessida-des não atingem total independência (e, portanto, se tornam um padrãocoletivo distinto) a atenção a essas necessidades poderia prevenir umaexpansão em direção a reivindicações maximalistas. A partir do nível co-letivo, pode haver expressões de autodeterminação de toda uma nação,

36 Donnelly (1989). A avaliação é compartilhada por McCorquodale que afirma que �o qua-dro da lei dos direitos humanos internacionais se desenvolvia em grande parte através deuma concentração nos direitos individuais, particularmente nos direitos civis e políticos�(McCorquodale, 1994, p.872).

37 McCorquodale (1994), citando a resolução da Assembléia Geral da ONU 1514 (XV), 14dezembro 1960, reiterando parágrafo 1º da Declaração de Princípios da Lei Internacionalsobre Relações Amistosas e Cooperação entre Estados de acordo com a Carta das NaçõesUnidas, anexo à Resolução da AG 2625 (XXV).

38 Para uma discussão da aplicabilidade da abordagem �territorial� e �povos� à autodetermi-nação, cf. McCorquodale (1994, p.866-870).

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levando antes a relações associativas do que à independência (por exem-plo, Quebec/Canadá, Porto Rico/EUA). Levando em consideração quehá uma área cinzenta na definição de uma �nação� enquanto entidadeseparada ou não, há margem para critérios subjetivos (Gottlieb, 1993).Ainda assim é importante entender a validade da autodeterminação en-quanto fator contribuinte de uma paz estável, paz que poderia não seralcançada aplicando-se apenas conceitos de direitos humanos individuais �deixando de prover total igualdade e justiça para todos os envolvidos.No conflito Israel�Palestina, o objetivo de dar a todos os árabes os mes-mos direitos do que aos judeus pode ser relevante para os quase 20% deárabes israelenses que moram dentro das fronteiras pré-1967, conceden-do-lhes os atributos antes mencionados de autonomia pessoal.39 Acres-centar uma população de 2,5 milhões que mora na Cisjordânia e em Gazanão atingiria os atuais objetivos de autodeterminação seja de judeus, sejade árabes. Os judeus ficariam preocupados em manter a identidade deIsrael enquanto �Estado judeu�. O medo é que os árabes se tornariam�uma bomba demográfica�, tornando-se uma maioria dentro de Israelem poucas décadas. Para os palestinos, que foram sempre dominadospor chefes de outras nações, o princípio de autodeterminação exige inde-pendência em seu próprio Estado. Esse é um poderoso exemplo para areal necessidade de se levar em consideração tanto direitos individuaisquanto coletivos, com a prevalência, inicialmente, de uma separação,ainda que, num estágio posterior de reconciliação, associações criativase novas, baseadas na livre vontade das duas nações, possam se desenvol-ver. Consideramos que, antes do vínculo simplesmente moral, deve haverum vínculo legal. Percebemos que, ao lutar hoje por um respeito maisconsensual aos direitos humanos individuais, há razões suficientes paraforçar os lados a concordarem que a solução que permitirá uma maisampla reivindicação a todos coincide com a idéia da criação de dois Esta-dos. Esse também parece ser o desejo da predominante maioria dessaspopulações, uma vez que cada nação deseja total autodeterminação. Umparadigma pode ser usado para mostrar a interdependência que liga asvariáveis de paz e justiça, conceptualizada por meio do estabelecimentode direitos individuais e coletivos:

39 As dificuldades que enfrenta um árabe em Israel que quer plenamente gozar de seus direi-tos são elaboradas por Manna et al. (1998).

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A importância dos direitos humanos na resolução de conflitos

PAZ PAZ/JUSTIÇA

(máximo) *Autodeterminação *(Independência)+Minorias *(Autonomia Pessoal)+Direitos Humanos(DUDH) * JUSTIÇA

(mínimo) Individual + Grupo + Coletivo (máximo)

Nesse paradigma, maior respeito aos direitos levará justiça aos indi-víduos, grupos e nações. Ao mesmo tempo, mover-se de direitos indivi-duais à paz está relacionado a soluções estruturais que podem satisfazerum grupo maior de pessoas. Trabalhar em ambas as pontas levará a maisaltos níveis de paz e justiça. Tome-se o caso dos árabes palestinos emIsrael: como indivíduos eles vivem em paz com os judeus israelenses,mas enquanto minoria nacional, eles não têm esperança de uma total con-quista de direitos coletivos. Eles parecem no entanto esperar reconheci-mento de seus direitos lingüísticos e culturais. Não menos importante,sua prioridade imediata é maximizar suas reivindicações por cidadaniatotal por meio de ações afirmativas que lhes dêem oportunidades iguaisenquanto indivíduos, e a compensação pela injustiça de serem um gru-po discriminado já há anos. Sua existência enquanto minoria, próximosa um Estado palestino � predominantemente muçulmano � poderia per-mitir uma mais ampla expressão de sua identidade. Por outro lado, estaanálise poderia explicar os já mencionados níveis de conflito entre as as-pirações israelenses e palestinas na Cisjordânia e em Gaza: israelensesjudeus querem uma paz sustentável porque eles já têm expressão totalde seus direitos individuais. Eles buscam total reconhecimento regionalpara seu direito coletivo a ter um Estado, e sua aceitação pelos vizinhos.A reivindicação árabe para uma �paz justa� pode ser facilmente explicadaneste paradigma. Primeiro, pela total obtenção de direitos individuaisque podem ser verdadeiramente obtidos dentro de sua própria entidade.Pode-se também argumentar que, dentro desse Estado, prover direitos

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de minoria para um grupo remanescente de colonos judeus pode ser con-siderado parte do compromisso histórico, ainda que não lhes proporcio-ne a aspiração de morar �na Grande Israel�.

Podemos concluir dizendo que a paz não vai ser suficientemente fortese o povo palestino não tiver os direitos coletivos que levarão à criaçãodo Estado. Claramente, mesmo se o paradigma de direitos individuaisdesenvolvidos neste trabalho conseguir dar aos palestinos uma situaçãomelhor do que no passado, o resultado será melhor se for introduzido oprincípio da autodeterminação. Devemos nos lembrar do princípio deque democracias estabelecidas tendem a não lutar entre si e, se a resolu-ção de nosso conflito assegurar tanto direitos quanto democracia, essesprincípios compartilhados consolidarão a paz dentro das nossas nações.

Acima de tudo, a controvérsia no processo de paz foi caracterizadapor uma discussão do tipo �mercado árabe�, como por exemplo os argu-mentos que precederam o Acordo de Wye River no caso da porcentagemde retirada de tropas israelenses. Ao não introduzir princípios de direitoshumanos, deixamos de lado o raciocínio que poderia explicar melhorquando e onde os palestinos podem efetivamente usar seus direitosiguais enquanto cidadãos de Israel e de seu próprio Estado. Essa mudançade paradigma seria um desafio aos líderes israelenses que argumenta-ram que esse país é a única democracia no Oriente Médio � mas ao mes-mo tempo há uma geração tem mostrado má vontade de lidar aberta-mente com a questão de onde os 2,5 milhões de palestinos deveriamexercer seu direito de �cada pessoa um voto� (além do milhão de árabesem Israel). O vazio do slogan �paz pela paz�, imaginando ser possívelalcançar um acordo sem concessões territoriais, se torna óbvio pela ina-bilidade de lidar com o futuro status dos habitantes palestinos. O reconhe-cimento oficial de Israel quanto ao direito do povo palestino em ter umEstado sem maior demora pode criar uma atitude mais flexível da ANPno atual processo de negociações.

Enquanto significativo progresso foi feito durante o ano de 2000 emdireção a uma solução das questões do status final, propomos que, umavez que esteja acordada a linguagem específica do tratado palestino-israe-lense, os negociadores deveriam considerar, sempre que possível, umalinguagem internacionalmente reconhecida de direitos humanos. Tal dis-curso permitirá posterior legitimidade e sustentabilidade para os povosenvolvidos e as futuras gerações.

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A importância dos direitos humanos na resolução de conflitos

Resumindo, retrospectivamente, podemos considerar que a frágil co-nexão entre direitos humanos e paz em todas as etapas nos permitiu mos-trar as conseqüências negativas dessa fragilidade para a obtenção da paz.Concluímos também, categoricamente, que a falta de progresso no pro-cesso de paz tem um efeito negativo na qualidade da democracia israelen-se � entre os próprios judeus � e no processo de democratização dos terri-tórios palestinos. Considerações de segurança, apelos para a unidadenacional e continuada segregação entre árabes e judeus afetam negativa-mente o respeito por direitos políticos e civis em ambas as sociedades.O lado negativo desse paradigma na frente doméstica poderia ser que aoposição indubitavelmente consideraria o reconhecimento dos direitosdo Outro como um sinal de fraqueza, como se estivessem dando algoque pertence a todos os cidadãos ou a grupos específicos. Muitas conside-rações ainda exigem um aprofundamento dos estudos. Entre as ques-tões a serem exploradas há a possibilidade de conseguir feedback positivotanto dos grupos locais quanto dos Outros. O bom senso nos diz que senós, ambos os lados, simultaneamente lidarmos com os grupos inter-nos e externos, os efeitos negativos que cada um teria com a própria perda(�minha perda�) seria compensado pelo reforço positivo dado pelo outrolado. Dois negativos se tornam um positivo se ambos os lados concorda-rem reciprocamente em �desintensificar� as lutas pelo reconhecimento dedireitos, tanto na teoria quanto na prática. Redimensionar o paradigmade predominantemente territorial para um de direitos humanos não intro-duz somente novas áreas de consenso. Deveria também levar tanto israe-lenses quanto palestinos a considerar mais pragmaticamente seus ganhosindividuais, e perceber que estes direitos têm muito mais conseqüênciaspara sua vida diária do que posses abstratas e remotas. Neste momentoé difícil determinar se o processo de Oslo ainda está vivo ou se outrasvias terão de ser exploradas. Muitas vezes nos espantamos sobre a ori-gem da fé determinista daqueles que insistem que o atual processo é irre-versível. Concordamos também que o processo de paz chegou a um pontosem retorno e que a manutenção do status quo é impraticável. Reverter amodelos passados de ocupação é profundamente irrealista, mas outrosprocessos destrutivos podem ser preditos. Injetar um componente dedireitos humanos ao processo de paz pode se mostrar benéfico ao for-mar o futuro conjunto de ambas as nações.

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6Soberania palestina: viabilidade e segurança

Manuel Hassassian*

O atual processo de paz está pouco saudável. O período transitório[interim period] foi muito estendido, atrasando as negociações do status

final em muitos meses. Em vez de nos engajarmos numa propaganda epolítica agressivas de tentar apontar os responsáveis pela desmoraliza-ção do processo de paz, achamos mais construtivo tentar olhar para aqueleponto de consenso onde palestinos e israelenses podem se unir e se en-contrar como parceiros iguais na paz, com a verdadeira intenção de che-gar a um acordo pacífico em suas disputas nacionais.

Seria, todavia, ingênuo de nossa parte (palestinos e israelenses) nosaproximarmos sem antes reconhecer as diferenças e assimetrias que com-põem tanto nosso atual poder quanto a imagem que temos um do outro.Consideramos, portanto, de suma importância explicar ao outro lado a

* Reitor da Bethlehem University. Tradução: Eliane Maria Rosenberg Colorni.

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posição palestina e por que essa posição existe. Com este esforço tam-bém esperamos entender a posição de Israel e ver onde podemos nosencontrar em terreno comum: terreno criado com a intenção de fazer apaz e não baseado em táticas coercitivas ou estratégicas.

A posição palestina deriva de fatos tanto diários quanto históricos,que por sua vez afetaram a opinião pública e o status das negociações con-cernentes ao processo de paz de Oslo. Infelizmente uma grande quantidadede esperança pública positiva em relação ao processo de paz foi destruídapor causa de constantes violações israelenses, o que somente serviu paracimentar forças adversas. Quando o Acordo de Oslo abertamente declaraque nenhum lado fará manobras para influenciar o status e as posiçõesdas etapas finais da negociação mas, ao mesmo tempo, os palestinos pre-senciam uma contínua expropriação de suas terras para construção denovos assentamentos e rodovias de ligação [bypass roads], o fechamentode Jerusalém aos não-residentes e as crescentes pressões impostas aospróprios residentes de Jerusalém, torna-se muito difícil aos palestinos,tanto da oposição quanto da Autoridade Palestina, ter qualquer confiançana boa-fé de seus parceiros israelenses. Além disso, quando palestinospercebem que tais atos são parte de uma política oficial do Estado, que ésistemática, organizada e bem financiada, torna-se óbvio onde a preocupa-ção com os palestinos e a preocupação geral com a paz estão na agendaisraelense. Israel simplesmente não pode esperar ter a terra, a segurançae a paz sem dar nada em troca, com exceção, é claro, de devolver aquelasmigalhas dos territórios ocupados que têm uma alta concentração depalestinos arruaceiros e fora-da-lei.

Nós, portanto, sugerimos uma abordagem coletiva e recíproca quefocalize os processos de construção de confiança (Confidence Building

Measures � CBMs) para aumentar tanto a motivação pública quanto a boa-vontade das lideranças políticas � onde há grande necessidade de tais in-centivos. Uma dinâmica predominante da política do Oriente Médio ésua tendência para gerar desconfiança em todos os aspectos da atividadepolítica. À falta de transparência nas decisões e à quantidade de negocia-ções obscuras pelas quais a região ficou famosa, se acrescenta essa des-confiança, o que apenas aumenta a distância entre o público e os líderes.O resultado inevitável disso foi uma insatisfação pública geral compostapor uma falta básica de confiança no inimigo percebido. Nós, portanto,

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propomos CBMs como a melhor maneira de assegurar segurança regio-nal entre inimigos reais ou imaginários.

Em sua mais ampla definição, entendemos CBMs como:

um gerenciamento da segurança, que emprega medidas especificamentedesenhadas, claramente cooperativas, na tentativa de esclarecer as inten-ções militares dos Estados participantes para reduzir incertezas sobre suasatividades militares potencialmente ameaçadoras, e restringir suas oportu-nidades para ataques-surpresa ou o uso coercitivo de força militar. Alémdisso CBMs são ferramentas que Estados adversários podem usar para redu-zir tensões e afastar a possibilidade de guerra. CBMs visam eliminar oselementos de segredo na atividade militar para ajudar os Estados a distin-guir entre medos reais e infundados sobre a intenção, ou a ameaça real oupotencial, colocada por um adversário. Ao mesmo tempo, contudo, acor-dos que implementem CBMs devem tomar cuidado para preservar ou melho-rar, antes do que pôr em perigo, a segurança nacional dos Estados envolvi-dos. CBMs são ideais para o século XXI, um tempo no qual tendênciaspromissoras e desenvolvimentos perturbadores coexistem em várias partesdo mundo. Nessas circunstâncias confusas, os líderes políticos podem usarCBMs para acentuar os aspectos positivos e se precaver contra os negativos.

No que diz respeito ao conflito Palestina�Israel essa definição assu-me papéis diferentes porque questões palestinas, tais como o controlede armas, são uma matéria relativamente nova, tanto no conceito quantona prática. Isso advém da nossa posição, enquanto nação que se move nadireção da formação de um Estado, mas não ainda com a soberania ou aintegridade territorial necessária para que essas definições possam sertotalmente aplicadas. Porém, está em nosso poder transmitir muito aonosso parceiro (se percebermos nossos parceiros como parceiros inte-grais), em benefício de ambas as sociedades. Permitam-nos enfatizar queCBMs dependem de dois elementos muito importantes. Primeiro, cons-truir confiança pode somente ser efetivo enquanto processo. Isso por-que a construção da confiança não é um meio em si mesmo, mas antesum componente de um processo e um propósito político mais amplo.Quando dissociada desse propósito e/ou processo mais amplo, a constru-ção da confiança perde muito de seu significado, e se torna uma ativida-de medíocre e meramente informativa, incapaz de alterar fundamental-mente um relacionamento de segurança. Segundo, a construção da

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confiança requer atenção ao timing. Se CBMs devem ser usadas comocatalisadores para ganhar o momento público de forças inclinadas à paz,elas precisarão ser implementadas no tempo e no lugar certos. Nenhu-ma das duas sociedades aceitará propaganda de órgãos oficiais ou de rela-ções públicas de um governo se não puderem acreditar na sinceridadeda motivação ou da intenção.

Voltando à atual situação, se CBMs podem ser usadas como um im-portante recurso em potencial para o processo de paz, é com grande pe-sar que nós, enquanto palestinos, temos pouca confiança nas medidas anós impostas e nos atos unilaterais que destroem nossa confiança na boa-fé de Israel. Tais medidas incluem (mas não são limitadas a): violênciaestatal oficial israelense (sistemática e penetrante), expressa no uso demunição verdadeira e outras medidas letais contra uma população desar-mada; as ações de esquadrões da morte oficialmente formados; o regu-lar uso da tortura sancionada pelo Estado; a destruição de lares, árvorese outras propriedades e pertences; a imposição de prolongados toquesde recolher e outras formas de punição coletiva (muito visível com o atualfechamento de fronteiras), e a prática continuada de prisões arbitráriase detenções administrativas. Todos esses atos são muito eficientes paracorroer qualquer sentimento de confiança nas intenções e ações do gover-no israelense, para nem mencionar o fato de que são humilhantes, injus-tos e ilegais, como é reconhecido por todos os setores do direito interna-cional e códigos de direitos humanos. Em vez de agir como obstrução àpaz, cada uma delas poderia ser usada como adubo para a paz, dessa for-ma trazendo de volta à mente tanto de políticos quanto do público que apaz é ainda uma possibilidade. É importante mencionar que comunica-ção, obrigação, transparência e controle das decisões são as �ferramen-tas� básicas das CBMs. Essas ferramentas são desenhadas para tornar ocomportamento de Estados mais previsível, ao facilitar a comunicaçãoentre eles, e estabelecer regras ou padrões de comportamento para asforças militares estatais, como um meio de discernir e verificar o cumpri-mento desses padrões.

As posturas palestinas quanto aos quesitos de soberania, segurançae viabilidade provêm de crenças anteriormente declaradas (mas ainda nãoaplicadas). Para começar, acreditamos que a solução do conflito Israel�Palestina deveria ser baseada nos seguintes princípios gerais:

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Primeiro, requeremos a total implementação da Resolução n.242 dasNações Unidas, que é primariamente originada na solução �terra-pela-paz�. Acreditamos que isso pode ser mais bem implementado por meiode um processo gradual baseado em confiança mútua conduzida por CBMsque apóiam as forças de terra-pela-paz. Segundo, requeremos total sobe-rania palestina sobre toda a Cisjordânia e Faixa de Gaza. A Cisjordânia éuma região bem-definida (a saber, a parte do reinado hachemita da Jor-dânia, a oeste do rio Jordão, que ficou sob controle israelense como con-seqüência da Guerra de Junho de 1967) assim como o é a Faixa de Gaza.Isso, obviamente, presume a integridade territorial de ambos os trechosde terra, não se aceitando nenhuma anexação nem ações que visem à ane-xação, nem ações unilaterais que predeterminem, prejulguem ou esva-ziem o resultado ou a total implementação da Resolução n.242. Terceiro,requeremos o reconhecimento de um Estado palestino independente (queficaria ao lado do Estado de Israel), com fronteiras reconhecidas e seguraspara ambos os lados, de ambos os lados, com total paridade entre os doisEstados. Requeremos Jerusalém oriental como sua capital, e não reconhe-cemos as anexações israelenses dessa parte da cidade. Quarto, requere-mos que Israel assuma sua responsabilidade pela criação do problemados refugiados palestinos, e procure solução para esse problema por meioda Resolução n.194 das Nações Unidas, também conhecida como �o di-reito de retorno�.

Vamos agora voltar nossa atenção a alguns aspectos mais específicosdo conflito.

Controle de armas e segurança regional

A idéia do controle de armas não é estranha ao conflito árabe-israelen-se. A inclusão de um grupo de trabalho chamado Controle de Armas eSegurança Regional (CASR) como parte do processo multilateral marcao lançamento de um processo de controle regional de armas. De fato, foisomente na terceira rodada de discussões, acontecida em Washingtonem maio de 1993, que Israel concordou com a participação dos palesti-nos, e somente no encontro de Doha (Qatar, maio de 1994) os doze Esta-dos-membros da União Européia foram convidados a participar. Desde ocomeço, essas conversas foram marcadas por desacordos básicos entre

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Israel e os Estados árabes sobre procedimentos e prioridades a seremadotadas. Os Estados árabes, liderados pelo Egito, tinham como a maisalta prioridade o problema das armas de destruição em massa na região,e tentaram colocar a questão da capacitação nuclear de Israel na agenda.Israel categoricamente rejeitou esse assunto e se negou a qualquer discus-são. A abordagem israelense é diametralmente oposta à posição árabe ese concentrou na necessidade de desenvolver um grupo de CBMs taiscomo a pré-notificação de exercícios militares de larga escala, o desenvol-vimento de linhas de comunicação direta [hotlines], mecanismos de pre-venção de crise e procedimentos de verificação. Controle sobre os siste-mas estratégicos e a questão das armas nucleares são vistos como oestágio final no processo.

As conversas sobre o controle das armas adotaram uma abordagemque incorpora cada uma das agendas conflitantes ao dividir seu trabalhoe as atividades entre sessões em duas �cestas� separadas. A primeira, acesta �operacional�, lida com um grande número de assuntos operacionaismilitares e CBMs, como troca de informações entre militares, pré-notifica-ção de exercícios militares e a criação de uma rede de comunicações. Deacordo com Joel Peters, professor norte-americano, um texto preliminarfoi apresentado no encontro plenário de Doha em maio de 1994. A segundaárea de trabalho do CASR é a cesta �conceitual� onde os objetivos de longotermo do processo de controle de armas são discutidos. O objetivo dessa�cesta� é fornecer uma linha de trabalho para o acordo sobre um grupo deprincípios que irão governar as futuras relações dos Estados da região...

Além disso, ele acrescenta que o modesto progresso do grupo de tra-balho de controle de armas e segurança regional foi limitado pela ausên-cia de atores-chave regionais. Síria e Líbano boicotaram todas as sessõesdessas conversações. Não menos importante, Iraque, Irã e Líbia não fo-ram convidados a participar dessas reuniões mas deverão ser introdu-zidos neste processo em algum ponto no futuro. A ausência desses Esta-dos sublinha a natureza embrionária deste processo, e os resultadoslimitados que podem daí advir neste estágio inicial. Todavia, essas conver-sações geraram uma maior consciência dos lados sobre suas preo-cupações e medos com segurança, plantando as sementes para a aplica-ção de medidas de construção da confiança além da redução das armas noOriente Médio.

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Preocupações com segurança regional e palestina

Há muito se concorda que a resolução do conflito Palestina�Israeldará um impulso à estabilidade geral na região. Estado independente esoberania são pré-requisitos fundamentais para uma segurança existen-cial palestina, assim como o direito inalienável endossado por uma sériede resoluções internacionais e cartas universais, reconhecidas pela grandemaioria dos membros das Nações Unidas. Além disso, os palestinos vêemuma relação direta entre as necessidades mútuas e os requisitos do Estadopalestino, restauração dos recursos e território árabe, segurança tantopara palestinos quanto para israelenses. Por essa razão, consideramosmuito importante discutir situações que minem a confiança e a segurançano coração do conflito, primeiro de uma perspectiva regional e segundode uma perspectiva palestina (ainda que deva ser ressaltado que os pales-tinos estão incluídos no primeiro grupo também).

De uma perspectiva regional, os palestinos consideram importantetrabalhar em direção a um controle de armas regional, especialmentetendo em vista o maciço crescimento de forças militares convencionais,e a proliferação de armas de destruição em massa e sua distribuição. Ocontrole de armas é visto como parte integrante da consecução de acor-dos de paz viáveis, tanto bilateral quanto multilateralmente, entre todosos envolvidos no conflito. Em acréscimo aos custos humanos e materiaisdiretos do conflito, militarização e corrida às armas causaram um enor-me deslocamento econômico, social e político por todo o Oriente Mé-dio. Controle de armas na esfera convencional também deve ser levadoem consideração para se alcançar um bem-sucedido acordo de paz, e deveincluir, ainda que não seja limitado a esta, a produção local de armas etecnologia de R&D (radar e detecção), assim como o papel de potênciase fornecedores externos.

Os palestinos estão igualmente perturbados pelo efeito desestabili-zador que o programa de armas nucleares mantido por Israel traz à re-gião. A noção de que o monopólio sobre o poder nuclear pode levar a umequilíbrio no poder regional é muito perigosa e simplesmente um auto-engano. Nós achamos que isso pode somente levar a um recrudescimentodo problema ao encorajar, mais do que dissuadir, forças contrárias à paz.Os atores regionais deveriam, portanto, encontrar meios de estabelecer

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uma zona-livre-de-armas-de-destruição-em-massa (WMDFZ: Weapons-of-Mass-Destruction-Free-Zone) no Oriente Médio. Como tarefa imediatadeveríamos também conseguir a adesão dos integrantes do conflito aotratar da não-proliferação de armas nucleares em conjunto com acordossobre armas químicas e aceitar inspeções dos locais de sua produção, pro-postas abrangentes e um regime de salvaguarda. Ao mesmo tempo, for-ças regionais deveriam trabalhar na mudança de foco das doutrinas milita-res de dissuasão (especialmente as de tipo não-convencional) para a defesabásica. O impacto de tecnologias militares emergentes e o potencial usodo espaço na segurança e estabilidade regional não deveriam ser deixadosde fora em um plano geral de segurança. Isso certamente deverá incluiruma verificação dos problemas que surgirão com os acordos de controlede armas, e prever medidas específicas a serem aplicadas no ínterim, como objetivo de controlar a proliferação de armas não-convencionais alémde prevenir violações potenciais de tratados de segurança assinados.

Quanto à segurança regional, dada a precariedade da existência pales-tina desde 1948, é compreensível que os palestinos tenham demandasde segurança sinceras e definidas para assegurar seus direitos enquantoseres humanos: direitos historicamente negados. No momento, a segurançados palestinos que moram sob ocupação militar israelense é severa e dia-riamente ameaçada por uma variedade de formas, muitas das quais jámencionadas. Em adição a esses direitos humanos básicos e individuais(protegidos por uma série de leis internacionais, códigos e resoluçõesdas Nações Unidas), diretamente violados por políticas intencionais israe-lenses, gostaríamos de expressar extrema preocupação com outras ques-tões de segurança, tais como a expulsão e transferência de prisioneirospara fora dos territórios ocupados, as ativas explosões de colonos arma-dos associadas a contínuos ataques por forças armadas israelenses con-tra campos de refugiados palestinos no sul do Líbano. Se for esperadoque os palestinos tenham em algum momento uma sensação de seguran-ça, as negociações devem levar essas questões em consideração muitoseriamente.

Poderia parecer que o conceito de segurança mútua é a chave paraqualquer acordo de paz estável. Portanto, parece somente razoável que,no desejo de desenvolver confiança mútua, haja esforços nesse sentidopor períodos limitados de tempo, por meio de acordos mútuos. Devemos

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Soberania palestina: viabilidade e segurança

enfatizar, todavia, que esses esforços não devem impedir o desenvolvi-mento ou prejudicar a vida e as comunicações para os palestinos. Qual-quer coisa que prejudique a vida diária deles teria um efeito completa-mente oposto: efeito esse perfeitamente demonstrável pela atual políticaisraelense de fechamento das fronteiras com a Cisjordânia e a Faixa deGaza. A criação de acomodações/locais de segurança por um período limi-tado de tempo e por meio de acordo também parece razoável.

Os palestinos propõem também a desmilitarização (por um períodolimitado de tempo) e a limitação sobre certos armamentos (consideran-do-se neste caso um tempo adicional) para construir a confiança entreos dois parceiros. Os palestinos também reiteram a preocupação regio-nal para a desnuclearização e eliminação de armas de destruição em massade ambos os lados. Sem este último item tememos que a região estejacondenada a uma série de corrida às armas, construída sobre desconfiançamútua e que pode somente terminar em desastre.

Medidas adicionais deveriam ser tomadas durante as negociações dafase provisória, de modo a reforçar a estabilidade e a segurança, criandodessa forma condições apropriadas para as negociações do status final,nesta altura atrasadas em diversos meses. Estas incluem uma séria e subs-tancial segunda retirada das tropas israelenses para locais de segurançapredeterminados, de modo que a tarefa da segurança interna esteja soba responsabilidade da ANP. Deve ser enfatizado que essa retirada é somen-te o próximo passo no caminho que levará às negociações do status final.Os palestinos, quando analisam o resultado final do status bilateral desegurança, têm as seguintes reivindicações:

� Requeremos que os territórios palestinos estejam livres de todos ossoldados ou instalações estrangeiras. A ANP poderia ter um acordocom Israel para manter instalações ou presença militar, no entantoapenas se isso for feito de forma recíproca, em ambos os países, e comomedida temporária.

� Requeremos o poder de manter um volume de soldados, policiais epessoal de segurança proporcional à população e também em compara-ção com outros países árabes.

� Requeremos grupos internacionais de monitores fazendo visitas perió-dicas a ambos os países para controlar o compromisso com os ter-mos militares do acordo. Uma presença militar internacional poderia

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

ser permitida ao longo da fronteira entre ambos os países por umperíodo transitório de três anos, a ser substituído pelas visitas dasequipes de monitoramento internacional.

Queremos enfatizar que o estabelecimento de um Estado palestinoindependente é o eixo central do qual tanto a segurança israelense quantoa palestina dependem. Israelenses não podem esperar completa segurançaquando os direitos dos palestinos são diariamente infringidos por Israel.Garantir soberania e direito a um Estado palestino é a única maneira degarantir a segurança de Israel. Violações individuais de segurança, aindaque permaneçam uma ameaça, tanto por parte de israelenses quanto depalestinos, têm uma maior possibilidade de serem contidas se a indepen-dência e a soberania dos palestinos forem garantidas.

Fronteiras

A posição palestina concernente à questão das fronteiras é a seguinte:

� Os palestinos requerem que a fronteira de seu Estado seja não me-nos do que a linha do armistício de 1967, separando Israel dos territó-rios palestinos ocupados. As fronteiras deveriam ser supervisionadaspor soldados palestinos do lado palestino, com oficiais militares deligação de ambos os lados encontrando-se regularmente, e/ou pormeio dos comandantes de postos locais.

� Para evitar qualquer medo ou desconfiança potenciais, os arsenaismilitares de ambos os lados da fronteira deveriam ser identificados,acordados e contabilizados.

� Não vemos necessidade para cercas ao longo da linha de fronteira,porém demarcações em postos de fronteira seriam úteis. Qualquermodificação, alteração ou mudança na fronteira deve ser baseada noconsentimento do outro lado e deveria ser discutida em um processooficial de negociação ou por meio de um critério de troca por terrasde igual valor, como definido pelo direito internacional. Da mesmamaneira, comitês de fronteira deveriam ser estabelecidos para discu-tir todos os assuntos e disputas concernentes aos problemas logísticose operacionais, mas também funcionar como �ouvidores� para as quei-xas que venham a ser manifestadas, assim como para pedidos e ne-cessidades especiais de pessoas de ambos os lados.

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Soberania palestina: viabilidade e segurança

� Equipamentos especiais deveriam ser propriedade conjunta, prepara-dos para detectar e prevenir o tráfico de drogas e de armas, entre umalista de itens acordados. Além disso, equipamento militar especial paradetecção precoce de ameaças militares deveria ser instalado em am-bos os lados da fronteira para garantir a adesão de ambos aos termosmilitares do acordo.

� Zonas industriais poderiam ser estabelecidas em áreas de fronteirapara estimular a cooperação e o desenvolvimento econômico conjun-to. Todavia, deve ser notado que isso não acontecerá na ausência decertos princípios econômicos, a serem explicados adiante.

Continuidade territorial e assentamentos

Como os palestinos requerem o estabelecimento de um Estado den-tro das fronteiras de 1967 da Cisjordânia e Gaza, exigimos extensão ter-ritorial, continuidade e soberania sobre essa área. Essa extensão nãodeveria ser influenciada por nenhum delineamento topográfico, demarca-ções feitas pelo homem, ou mesmo por existente formação geofísica.Todos os locais dentro dessa área, inclusive rodovias e áreas comunitárias,devem ser abertas e acessíveis a todos os palestinos, sem restrições. AANP vai continuar a construir novas rodovias através da Cisjordânia e deGaza para melhor servir seu povo. Palestinos exigem uma passagem li-vre e segura conectando a Cisjordânia à Faixa de Gaza de modo que aatividade social, política e econômica possa ser exercida pelo Estado pales-tino com o menor número possível de obstáculos.

Tendo dito isso, temos que abordar o assunto dos assentamentosisraelenses. Definimos assentamentos como uma tentativa israelense deocupar a terra confiscada na Guerra de Junho de 1967. Assentamentossão ilegais do ponto de vista do direito internacional. Diversas organiza-ções internacionais e tratados endossam isso, inclusive o Acordo de Haia,de 1907, e a Convenção de Genebra, de 1949. Além disso, assentamentossão vistos pelos palestinos e por outros acordos internacionais como umaviolação do direito palestino à autodeterminação e também aos princí-pios de direitos humanos como definidos pelas Resoluções das NaçõesUnidas: n.637 (assegurando o direito de autodeterminação); n.2.625 (tam-

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

bém autodeterminação, porém uma versão mais nova da 637); n.3.089(igualdade de direitos à terra); e o art. 2/17 da Declaração Universal dosDireitos Humanos (declarando que ninguém deve ser despojado à forçade sua propriedade). Assentamentos estão também, no momento, sujei-tos a leis diferentes das de outras áreas, motivo que os torna sujeitos aoapartheid e à discriminação.

Parece quase redundante mencionar que a construção e a expansãodos assentamentos também violam a letra e o espírito dos acordos assina-dos pelo governo israelense e a OLP. Isso torna evidente que nenhum doslados deveria tomar atitudes que pudessem prejudicar as negociações fi-nais entre os lados. Apesar de óbvio, isso deve ser claramente dito, umavez que o momentum da atual política israelense não dá sinais de parar oumesmo diminuir a expansão dos assentamentos. Além de isso ser umelemento muito perturbador para os palestinos, é também uma das princi-pais causas de falta de confiança do povo palestino em relação às práti-cas e intenções israelenses.

Baseados nessa avaliação do status quo dos assentamentos, os palesti-nos exigem que tantos assentamentos quanto possível sejam completa-mente desmantelados ou evacuados. Terra confiscada (usada para assenta-mentos ou bypass roads) deve ser devolvida aos seus proprietáriosoriginais. Se os assentamentos não forem desmantelados ou evacuados,eles ficarão sob soberania palestina, não terão nenhuma forma de exclusi-vidade etnonacional e os residentes não palestinos serão consideradosresidentes estrangeiros. Tudo isso pode ser aplicado de forma especialpara o caso de Jerusalém.

Desenvolvimento e cooperação econômicos

Ainda que desenvolvimento e cooperação econômicos pareçam nãoter lugar numa discussão sobre soberania e segurança, nós, como palesti-nos, sentimos a necessidade de expor nossas preocupações sobre a es-treita ligação que esse assunto tem com as outras questões. Os palesti-nos operam sob uma premissa subjacente de que países que embarcamnuma cooperação econômica mútua devem nela embarcar em pé de igual-

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Soberania palestina: viabilidade e segurança

dade como conseqüência do equilíbrio advindo e embutido na soberaniade ambos os Estados. Uma vez que soberania e independência sejamrealidades �de fato�, igualdade e simetria nas relações entre ambos osEstados se tornam uma possibilidade (ainda que não necessariamenteuma certeza). Se a questão da soberania territorial estiver resolvida, aquestão da independência econômica se torna um tópico de discussão.Nós, como palestinos, estamos muito conscientes dos efeitos danososque a ocupação de Israel teve sobre a economia dos territórios ocupa-dos. Entre outros, Cisjordânia e Gaza se tornaram fontes de mão-de-obrabarata para Israel, grandes mercados para bens israelenses e um Estadoquase satélite, cuja economia é totalmente dependente de Israel por causade seu histórico controle das fronteiras e sua imposição de sistemas eco-nômicos. Portanto, não acreditamos muito nos esforços israelenses (ouinternacionais) para �desenvolver� a economia palestina por meio de em-préstimos do FMI ou do Banco Mundial ou para �torná-la acessível� auma economia livre de mercado. Portanto, quando os palestinos falamde desenvolvimento econômico e cooperação, eles o mencionam com al-gumas restrições que envolvem a história dos efeitos econômicos dano-sos da ocupação e dos fechamentos de fronteiras. Além disso, a econo-mia palestina necessitaria (uma vez atingida a independência) de umperíodo de tempo para �encontrar seu eixo�, em vez de ser dominadapor investidores israelenses ou internacionais. Se isso não acontecer, asmesmas estruturas que arruinaram a economia palestina sob a ocupa-ção continuariam a destruí-la sob diferentes disfarces. Apenas quando aindependência política e o momentum que leva à independência econômicativer começado, poderá ser levantada a questão de desenvolvimento ecooperação econômica. Antes disso, a economia palestina estaria simples-mente fraca demais, facilmente explorável, por não estar em pé de igualda-de (com os outros). Isso, por outro lado, consolidará os parâmetros deconstrução da paz. Porém só veremos com bons olhos a implementaçãode qualquer cooperação mútua quando o fim do conflito possibilitar umasituação em que soberania e independência possam ser usufruídos portodos os palestinos. Para concluir, os líderes do Oriente Médio vêemseu sistema regional como sendo anárquico, atomizado, fracionado,cheio de incertezas e desconfianças mútuas. Esse problema da insegu-

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

rança os estimula a buscar armamentos e a organizar grandes exérci-tos. Numa análise final, essas medidas militarizantes acabam aconte-cendo à custa do desenvolvimento econômico e da governabilidade de-mocrática.

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7Identidades israelenses e palestinas:

questões ideológicas*

Peter Demant

A identidade coletiva de nações, grupos étnicos e religiosos se tor-nou recentemente um tema que mereceu atenção acadêmica. Muitosautores acreditam hoje que a autodefinição de um grupo não é �natural�mas sim o resultado de complexos processos de interação com outrosgrupos, o que leva à construção social das identidades coletivas (George,1994; Kratochwill, 1989; Wendt, 1992; Linklater, 1998). Essa posiçãoconstrutivista certamente contradiz discursos religiosos e nacionalistastradicionais, que consideram identidades coletivas algo preexistente. Ofato é que identidades coletivas são mais maleáveis do que anteriormentese imaginava, e portanto poderiam também mudar no futuro. Isso pode-ria ter importantes implicações para a resolução de conflitos complexos,

* Texto apresentado no seminário �O conflito Israel�Palestina� na USP, em abril de 2000, erevisto em junho de 2001. Tradução: Eliane Maria Rosenberg Colorni.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

onde dois ou mais grupos lutam pelo mesmo território em nome de iden-tidades presumivelmente imutáveis e mutuamente exclusivas. O confli-to Israel�Palestina (I�P) claramente pertence a essa categoria. O emara-nhado de argumentações religiosas e nacionalistas em ambos os ladostorna a questão da definição e dos limites de suas identidades ainda maiscomplexa.

Este artigo não adota um ponto de vista construtivista extremo:mesmo em conflitos altamente ideologizados como o I�P, fatores objeti-vos continuam muito relevantes. Por outro lado, poucos poderiam negaro papel preponderante de fatores �subjetivos� na origem e desenvolvi-mento desse conflito, e é sobre eles que vamos focalizar nossa atenção.O desejo de mostrar que (1) as identidades coletivas de ambos os ladosvisivelmente se modificaram durante o conflito; (2) essas mudanças fo-ram causadas em larga escala por sua (principalmente antagonística)interação; (3) há paralelismos estruturais significantes entre as identida-des israelenses e palestinas. Além disso, olhando para uma evolução dasidentidade futuras, sugerimos que (4), sob certas condições favoráveis,a verificação de semelhanças nas identidades israelense e palestina pode-ria facilitar uma reconciliação e uma resolução pacífica do conflito. Defato, pode-se argumentar que, no contexto I�P, paralelismos pelo menosparciais na compreensão de si mesmo e do outro são uma condição paraque isso aconteça. Certamente não será suficiente que cada lado tenhauma definição basicamente semelhante de si mesmo e do outro. Um co-mentário muitas vezes ouvido (em ambos os lados) é: �o problema entreisraelenses e palestinos não é o �não-entendimento�: na verdade nós nosentendemos bem demais!�. Isso mostra que o espelhamento de reivindi-cações supostamente irreconciliáveis e mutuamente exclusivas pode in-centivar uma atitude �sem ilusões� que tornaria uma solução pacíficasomente mais difícil de alcançar. Para que isso aconteça, identidades cole-tivas também devem ser revistas de forma a permitir a tolerância e acomo-dações mútuas. Como veremos, a revisão dessas identidades coletivas �ainda que demande ajustes penosos � não é impossível nem improvável.

Analisaremos brevemente a questão de como se articulam, se refleteme portanto se definem as ideologias sionista/israelense e palestina/árabe.

Para tentar responder, vamos primeiro traçar as quatro principais ideo-logias que, com diversas permutações, definiram as identidades coletivas

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Identidades israelenses e palestinas: questões ideológicas

sionista/israelense e árabe/palestina: respectivamente uma definição degrupo nacionalista, religiosa, de classe, e individualista. Em seguida, va-mos brevemente verificar como essas definições surgiram, e como, emuma série de estágios mais ou menos claramente definidos, tiveram trans-formada sua importância relativa com o desenvolvimento recente des-sas comunidades. Finalmente, vamos teorizar sobre quais seriam os cená-rios mais prováveis (e mais desejáveis) quanto ao futuro desenvolvimentode ambas as identidades coletivas, do ponto de vista de uma solução justae pacífica para o conflito.

As quatro principais tendências de identidade

Tentaremos entender as questões ideológicas que envolvem israe-lenses e palestinos enquanto respostas a questões que desafiaram essascoletividades na era moderna.

Ideologias são ligadas a práticas de base socioeconômica e de poder,mas têm também uma relativa autonomia. Servem para pelo menos doispropósitos: primeiro, ideologias dão, na forma de identidades coletivas,substância e estabilidade à autocompreensão dos grupos sociais e lhespermitem diferenciar e colocar limites entre os grupos. Em segundo lu-gar, podem ser entendidas como a história legitimizante que uma socieda-de ou grupo conta a si mesma em determinado estágio de desenvolvi-mento não só para entender o mundo, mas também para articular desejos,sonhos e eventualmente programas de ação.1

Um conflito entre identidades coletivas e demandas territoriais e so-ciais de exclusividade sobre um mesmo território está no âmago do con-flito Israel�Palestina, que pode ser considerado uma conseqüência de

1 A reflexividade é uma característica da modernidade no seu estágio atual radicalizado, e comisso a sociedade fica mais e mais transparente para si mesma: Giddens (1990). Enquanto oser humano se entende melhor, ainda que não completamente, ele adquire ferramentas in-telectuais que lhe permitem intervir em seu destino social, ainda que de forma limitada.De acordo com Giddens, a modernidade �tardia� se apresenta como uma jamanta difícil decontrolar. Nossa abordagem aqui não aceita as posições epistemológicas mais radicais comoa de Althusser, de que a ideologia é um tapume que escurece para sempre nosso entendi-mento da realidade social, nem a de pós-estruturalistas como Derrida, que nos conside-ram prisioneiros de nossa linguagem e de outras infindáveis cadeias de significantes semreferencial. Cf. Roseneau (1992); Callinicos (1989).

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

processos mais amplos de expansão de poder e capitalismo ocidentaissobre áreas não ocidentais. Desde o início desse conflito, há um século emeio, as identidades coletivas dos judeus israelenses e dos árabes pa-lestinos (assim como as de muitas populações do Oriente Médio e doSudeste Asiático no mesmo período)2 giraram ao redor de quatro pólosprincipais que organizam �respostas� a questões humanas mais gerais:religião, nação, classe e a relação entre o indivíduo e o grupo. Essas quatroorientações não são as únicas possíveis, mas têm sido as mais visíveisem nossa área. Historicamente construídas, seus conteúdos mudaramconforme as circunstâncias, mas, de algum modo, cada uma delas apare-ceu repetidamente, sob forma de programas políticos, para, respectiva-mente: Estado religioso, nacionalismo, socialismo e democracia liberalou pluralista.

A evolução das culturas judaica-sionista-israelense e da árabe-palesti-na, então, pode ser entendida como uma série de permutações dessasidentidades, na qual uma é sempre dominante:

1) Religião: Enquanto busca universal, na sua forma negativa, aliviaameaças e medos existenciais: morte, catástrofes incontroláveis etc. Emsua forma positiva responde à necessidade de uma conexão com o universoou o etéreo, e fornece um enfoque para respostas às questões filosóficas.

Sociedades pré-modernas eram freqüentemente organizadas ao re-dor de um grupo de crenças e ditados religiosos. Isso é particularmenteverdadeiro no judaísmo e islamismo, ambos baseados não apenas em re-velações �históricas� transcendentais, mas constituindo também comple-tos sistemas sociais que, além das crenças específicas, organizam deta-lhadamente a vida econômica, jurídica e familiar de seus membros. Ambasas religiões têm programas políticos específicos com conseqüências paraos vizinhos �não crentes�, e nenhuma reconhece a separação entre Esta-do e religião. Confrontadas, sob condições de modernização intensa, comhumilhação, falta de poder e/ou perseguição, tanto judeus quanto muçul-manos voltaram às suas origens religiosas. Isso os levou a criar programas

2 Isto é o �arco da crise� que se estende dos Bálcãs e da África do Norte até a Índia, umavasta área que consiste de Estados formados pela desintegração, nos séculos XVIII e XIX,dos �impérios da pólvora� muçulmanos, todos tendo que lidar com a questão de como aco-modar identidades coletivas tanto muçulmanas quanto não muçulmanas. Cf. Halliday(1981). Para uma visão americana conservadora, cf. Djerejian (1995).

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Identidades israelenses e palestinas: questões ideológicas

para reaver o poder sobre seu próprio destino por meio de um retorno àpiedade pessoal combinado com uma reorganização da sociedade seguin-do os modelos religiosos codificados na halacha e shari’ah, em outras pala-vras, um Estado religioso. Tanto entre os judeus (a maioria dos atuais israe-lenses) quanto entre os muçulmanos (que formam a maioria dos atuaispalestinos árabes), as respostas tomaram uma forma modernista ou entãofundamentalista.

2) Nação: nações (ou povos) podem ser vistos como comunidadesque definem suas fronteiras por ascendência comum presumida, lingua-gem e costumes comuns, e/ou destino histórico compartilhado. Geral-mente, mas não sempre, isso acontece num território específico, mas,mesmo quando vicissitudes míticas ou históricas dispersaram a nação,ela ainda mantém uma presumida �terra-mãe� como ponto de referência.A diáspora judaica, e, mais recentemente, os refugiados palestinos, sãoum exemplo disso.

Em alguns casos, a nacionalidade está ligada a valores específicos:na Antigüidade isso era muitas vezes a religião �nacional�; em temposmodernos, conceitos de cidadania ou constituição, por exemplo na Françae nos EUA. Se todas as nações são um produto da modernidade e de Esta-dos modernos, ou, por outro lado, se alguns são anteriores a isso, é temade uma controvérsia que não cabe aqui.

Contudo, certamente o nacionalismo, a crença na peculiaridade daprópria nação, geralmente está associado à aspiração por um Estado nacio-

nal, e é um fenômeno que define a modernidade: uma reação contra adiscriminação de minorias e/ou grupos, segurança contra ataques aogrupo ao qual se pertence, mas também um desejo de restaurar a cone-xão e a participação em um grupo social definido pela linguagem, costu-mes, destino histórico comum etc.

Nacionalistas tenderam a construir um conceito essencialista de na-ção e a projetar na História sua (supostamente imutável) existência. Denovo observamos paralelismos imediatos entre nossos dois grupos. Osjudeus têm uma das mais longas histórias documentadas de identidadeprópria, chegando até o conceito de Povo Escolhido. Entre as várias for-mas culturais e territoriais por ele adotadas, o sionismo foi o único a so-breviver, marcando a sociedade que foi construída na Palestina. Já a cons-ciência nacional palestina é mais complexa, tendo adotado ao mesmo

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

tempo uma forma mais limitada regionalmente, porém mais pan-arabista.Fato é que, tanto no caso sionista quanto no palestino, a essência da comu-nidade foi vinculada à posse exclusiva de determinado território.

Nação e religião são formas arcaicas, �primordiais�, de organizaridentidades coletivas. Já as ideologias descritas a seguir � democracia esocialismo � são constructos mais recentes e racionais. Elas geraram tam-bém, por outro lado, identidades coletivas que trouxeram respostasmenos emocionais.

3) Consciência de classe: organiza diferentes grupos socioeconômi-cos dentro de uma sociedade. Isso pode se manifestar sob forma de aco-modação/paz de classes (por exemplo, castas na Índia) ou conflito/lutasde classe (por exemplo, partidos de trabalhadores no final do século XIX

e início do XX na Europa). O conceito de classe formou a base das defini-ções grupais, solidariedade, programas políticos e identidade tanto emsociedades pré-modernas quanto modernas: corporações de mercadorese artesãos, associações de diaristas etc. Compreensivelmente essa cons-ciência era mais forte entre as classes mais oprimidas, pois criava prote-ção do grupo contra a privação econômica, ajuda na rejeição da opressãodos pobres pelos ricos; criava princípios de solidariedade, cooperação,ajuda mútua e igualdade. Não tendo as pretensões totalizantes inerentesà religião e à nação enquanto princípios organizadores, porém, essa cons-ciência de classe geralmente não leva ao mesmo comprometimento emo-cional das duas outras. Exceção pode ser feita ao socialismo, que imagi-nou que os valores por ele defendidos ajudariam a sociedade, baseadaem desigualdades materiais e conceitos egoístas de mercado, a desenvol-ver conceitos de posse coletiva dos meios de produção e planejamentoracional como a melhor forma de prover as necessidades da maioria. Essaideologia, particularmente em sua forma marxista, conseguiu instilar emseus seguidores grande idealismo, além de criar formas políticas, sociaise econômicas que determinaram as identidades coletivas das classes tra-balhadoras, e, no período após 1917, de toda a União Soviética e do blococomunista. De fato o socialismo foi visto às vezes como uma nova reli-gião �secularizada�. Pode-se argumentar que foi precisamente por ter su-perado sua estreita existência enquanto ferramenta de determinada clas-se, para se tornar um programa que visava emancipar toda a humanidade,que pôde gerar essa identificação mais profunda. Com a implosão do

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Identidades israelenses e palestinas: questões ideológicas

império comunista, porém, essa experiência está rapidamente se retrain-do para um passado distante � e com ela as formas associadas de identida-de coletiva.

As duas comunidades em luta na Palestina tiveram encontros diferen-tes com o fator classe enquanto identidade. Para as massas de judeus eu-ropeus do século XIX que se afastavam da religião ao mesmo tempo quesofriam privações econômicas, isso se tornou um ponto de encontro im-portante.

O socialismo europeu do século XIX devia muito aos partidos de tra-balhadores predominantemente judeus e aos pensadores e ativistas ju-deus assimilados, que tinham se emancipado (ou se afastado) de seuscostumes religiosos. Muitos judeus � possivelmente influenciados poridéias messiânicas ou proféticas mais antigas � viam sua liberação comoparte de uma transformação revolucionária da humanidade. Sua identida-de especificamente judaica foi com isso atenuada. Ainda que o sionis-mo, como forma de nacionalismo judeu, tenha rejeitado esse percursoda emancipação judaica, suas correntes históricas mais significativas aindaeram bastante influenciadas pela orientação universalista do socialismo.O �sionismo trabalhista� europeu-asquenaze explicitamente via a emanci-pação através da concentração territorial na Palestina como uma pré-con-dição para um processo maior que levaria a um socialismo mundial.

Ainda que os judeus orientais, que hoje formam metade da popula-ção de Israel, tenham ficado imunes a essa maneira de pensar, a ligaçãosocialismo/sionismo reforçou a forma moderna do que desde o começofoi um permanente campo de tensão no judaísmo, ou seja, a discussãouniversalista versus particularista.

Para os palestinos essa questão de classe para formação da identidadecoletiva permaneceu um fator secundário, menos relevante também parao Oriente Médio em geral. As razões para isso merecem um estudo maisdetalhado, e podem ser relacionadas à estreita sobreposição, no ImpérioOtomano, das minorias religiosas e étnicas com as funções econômicas,o que �congelou� as identidades coletivas dentro de padrões religiosos enacionais mais antiquados. Apesar de a privação econômica ter tido umpapel importante na formação de uma consciência palestina específica,e muitas revoltas uma origem classista, elas eram geralmente articuladasem termos de oposição religiosa e/ou nacional ao sionismo e ao imperia-

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lismo ocidental, e não tendo como base questões de classe. O atrativodos partidos socialista e comunista também permaneceu limitado.

4) O individualismo parece, superficialmente, o mais �frágil�, e obvia-mente o menos vinculado à identidade coletiva. Derivado da tradição libe-ral européia, é, pela faceta negativa, associado aos direitos humanos, àproteção dos cidadãos contra violações arbitrárias das liberdades indivi-duais por autoridades ou por outros indivíduos. Associado com a democra-

cia como um projeto que visa garantir a maior liberdade possível paracada indivíduo dentro da vida comunitária é, no mínimo: (1) um conjuntode regras políticas formais para garantir o acesso igual de todo cidadãoao poder político (mas não aos recursos econômicos), com limitação edispersão do poder (como na teoria clássica dos três poderes), isto é, umpluralismo multipartidário ou compartilhado (federalismo); (2) uma eco-nomia de mercado que permite a cada indivíduo buscar a riqueza, cominterferência mínima do Estado, sendo o sucesso por mérito próprio enão por posições herdadas. De forma surpreendente, porém, o individua-lismo liberal, que facilmente leva ao consumismo, conseguiu se tornar aética dominante da modernidade ocidental, influenciando a maioria dassociedades capitalistas e outras que a isso aspiram. Associados à misturade valores derivados das religiões universalistas e tradições socialistas,tais como solidariedade, acesso igual aos recursos econômicos, ummodicum de justiça redistributiva e, por vezes, uma consciência ecológicaquanto à responsabilidade compartilhada pelos recursos finitos da Terra,o individualismo liberal e a democracia acabaram sendo internalizadospor milhões de cidadãos.3

Religião, nacionalismo e socialismo têm pretensões totalizantes: ten-tam dar um significado a tudo, um ponto de referência a partir do qualtoda a sociedade (ou universo), em sua evolução passada, presente e fu-tura pode ser entendida e trabalhada, freqüentemente com uma teleologiaembutida. Já a democracia, não. Se é tão frágil, por que as pessoas se iden-tificam com a democracia? Uma resposta poderia ser que a democraciaage como um denominador comum, permitindo uma série de estilos de

3 Em outras palavras, embora o liberalismo tenha falhado, até agora, em providenciar umajustiça econômica e social para os numerosos �perdedores� da globalização, consolidou sualegitimidade pela absorção, pelo menos no nível retórico, de muitos valores das ideologiasconcorrentes. Cf. Habermas (1999).

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Identidades israelenses e palestinas: questões ideológicas

vida e atividades econômicas dentro de uma mesma abordagem política.Isso se encaixa bem com sociedades de indivíduos atemorizados, assimcomo com um sistema de valores ligados ao consumismo e à moda pós-moderna de fragmentação, dispersão, descontinuísmo.

Baseada em direitos iguais, a democracia tenta chegar ao meio-termodourado que permite a indivíduos e comunidades coexistirem com basena livre comunicação e na resolução não violenta de conflitos, tendo porbase padrões gerais aceitos pelo grupo: nesse processo ela cria uma novaidentidade coletiva que tenta incluir as comunidades que a compõem.Nesse sentido, poderia ser uma promessa de paz para o Oriente Médio.Mas ali, precisamente, é mais vulnerável aos ataques de fundamentalistase outros grupos conservadores, que a consideram falha em conteúdo po-sitivo. Como a democracia liberal nega quaisquer prerrogativas automáti-cas para as �comunidades imaginadas� de religião e nação, aqueles cujaidentidade estiver mais estreitamente ligada a isso irão rejeitar o liberalis-mo como um �estrangeirismo� importado do Ocidente.

Originalmente a democracia era estranha às identidades coletivasjudaico-israelenses e palestino-árabes. Interessantemente, porém, a evo-lução histórica de ambas levou a uma gradual ainda que incompleta incor-poração de muitos valores e práticas democráticas. A inserção de Israele, em menor grau, da economia palestina no mercado mundial criou umpúblico (interno) de alguma forma identificado, ou pelo menos atraído,pelas promessas da democracia liberal. Como veremos, seu crescimentoestá muito ligado ao processo de paz � enquanto os opositores do processode paz se nutrem de identificações étnicas e religiosas mais antigas. Ainteração entre essas identidades coletivas na história de ambas as comu-nidades na Palestina será analisada a seguir.

Identidades sionistas e israelenses

A ideologia sionista e israelense passou por quatro estágios mais oumenos articulados: (1) o �clássico� sionismo pré-Estado; (2) o estatismoda �pequena Israel�, 1948-1967; (3) uma longa fase quando o confrontocom os territórios ocupados levou à queda do consenso interno de Israel,1967-1991; (4) 1991 até agora, caracterizado pela disputa entre o pós-sionismo e um judaísmo fundamentalista. Em cada estágio, um elementode identidade coletiva era enfatizado, outros desenfatizados.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

Primeiro estágio, 1880-1940: sionismo clássico

O sionismo não foi a primeira forma de nacionalismo judaico � a visãode que a identidade coletiva dos judeus não é a de uma religião mas a deuma nação, e que seus problemas demandavam uma solução nacional �mas foi certamente a que teve uma influência mais duradoura. O sionismoadquiriu sua forma organizacional e expressão política nos últimos anosdo século XIX, antecedendo seu rival pelas terras em apenas alguns anos. Osionismo começou como uma reação tríplice contra a mudança na situa-ção dos judeus no século XIX. Estas mudanças tiveram relação direta como processo de modernização política e as mudanças socioeconômicasassociadas ao desenvolvimento do capitalismo, e significaram para os ju-deus crescente perseguição, particularmente na Europa oriental. Forçasnacionais e sociais na Europa estavam então intensificando uma situa-ção prolongada de vulnerabilidade de uma minoria discriminada. Politica-

mente, o sionismo se revoltou contra a impotência dos judeus, particular-mente no Pale of Settlement do Império russo. Economicamente, se opunhaà posição marginal e de crescente miséria na qual vivia a maioria dos ju-deus. Ideologicamente, rejeitava tanto (1) a interpretação religiosa dominan-te que mantinha os judeus observantes em um auto-imposto estado depassividade e calada aceitação de seu sofrimento como uma retribuiçãodivina, e (2) a assimilação individual em países onde a emancipação torna-va isso possível (Europa central e ocidental). Para os sionistas, a assimila-ção individual levava à alienação e a crises de identidade, e era, em todocaso, inútil, uma vez que o fato mesmo de sua integração em nações mo-dernas provocava um reação anti-semita. Somente uma resposta coleti-va, nacional judaica, resolveria. E ajudaria os judeus enquanto povo.

O discurso sionista, que mesmo em seus dias iniciais nunca foi tãocoerente como proclamava (Silberstein, 1999, p.19-24 e passim), se centra-lizou ao redor de um programa definido que se supunha poder curar aimpotência nestas três esferas através de um �retorno à história�. Segu-rança e prosperidade seriam garantidas pela concentração territorial detodas as minorias judaicas do mundo em um único território soberano(�a volta dos exilados� e a �negação da Dispersão�), descolonização cultu-ral pela criação do �novo judeu� em seu próprio país. Era um dogma dosionismo que a cultura judaica não poderia sobreviver (ou, pelo menos,não florescer) na Diáspora.

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Identidades israelenses e palestinas: questões ideológicas

Uma vez comprometidos com a Palestina (a Terra de Israel) comoúnico local para seu futuro Estado, uma concentração sionista nesse espe-cífico território acaba levando à idolatria, dando valor transcendental acaminhadas pelo país, associando a colonização judaica da terra com qua-lidades quase místicas (Benvenisti, 1986). Assim como outros nacionalis-tas, ideólogos sionistas sofreram para apoiar sua reivindicação históricasobre um território específico alegando antigüidade de parentesco de seusgrupos. As comunidades judaicas mostraram impressionantes habilida-des para sobrevivência em ambientes muitas vezes hostis, mas somenteem circunstâncias específicas isso tomou uma forma protonacional. Ossionistas afirmaram � através da arqueologia, da revitalização da línguahebraica, da tradição literária, assim como de outros meios � sua continui-dade histórica dos judeus com os antigos hebreus. �Peneiraram� o passadohistórico e religioso para �criar tradições�: adotaram o calendário judaico,revitalizaram a língua e o alfabeto hebraicos, criaram símbolos idiossin-cráticos, ritos e festas, �nacionalizaram� certas antigas práticas agríco-las hebraicas, estabeleceram datas memoráveis.4

O movimento sionista se organizou para guiar a imigração de judeusde todo o mundo, e o assentamento sionista na Palestina foi � muitasvezes em circunstâncias adversas � muito bem-sucedido em criar ali (sobos auspícios dos ingleses) uma sociedade judaica completamente nova,o �novo yishuv�5 que eventualmente adquiriu independência políticacomo Estado de Israel. Antes do estabelecimento de Israel, o sionismopodia ser descrito como um movimento bastante pluralista e nacionalis-ta, sua linha dominante tingida pelo socialismo, e mesmo sua ala religiosaaceitando, ainda que a contragosto, um papel secundário da religião nofuturo Estado. Dentro de um mundo judeu observante, o sionismo sedefiniu primariamente em oposição às reivindicações do judaísmo en-quanto religião. Tentou (ainda que não com total sucesso) criar uma nova

4 Sobre mitos no sionismo, cf. Zerubavel (1995). Entre os rituais a mencionar figuram porexemplo: escavações arqueológicas, trilhas ritualizadas, a reinterpretação e a celebração decertos acontecimentos históricos, tais como a revolta dos Macabeus contra os selêucidas noséculo II a.C., ou a de Bar Kochba contra os romanos no século II d.C. (hoje memorializadono festival de Lag b-�Omer (para não falar do Dia da Independência), assim como lugaresrecém-sagrados, como por exemplo Massada � sítio da última e desesperada resistênciajudaica contra os romanos em 72 d.C., e o memorial do Holocausto �Yad Vashem� etc.

5 Yishuv: o nome da comunidade judaica na Palestina no período anterior ao Estado.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

e secular identidade judaica na Palestina, ancorada em parte na identifica-ção e na emulação dos antigos hebreus, e em parte nos valores progressis-tas universais de justiça social sem óbvio conteúdo judaico. De fato, aindaque nessa etapa o sionismo fosse primariamente nacionalista, tinha tam-bém um forte elemento socialista. A Segunda e a Terceira Aliyyah (1905-1925)6 cristalizaram instituições e conceitos que se tornaram o locus clas-

sicus do sionismo: a veneração de Gordon Tolstoyan pelo trabalho braçal,o marxismo sionista de Borochov, os movimentos pioneiros da juventu-de, o Histradut, os partidos políticos da esquerda sionista, os kibutz etc.Esses conteúdos ideológicos eram fortemente influenciados pelos mode-los do Leste Europeu e pelo socialismo. Nos anos 30, refugiados do nazis-mo adicionaram a esse complexo uma camada de pensamento científico,geralmente positivista, com um verniz de alta cultura centro-européia.As características gerais, porém, permaneceram inalteradas até a Guerrade Independência de 1948 e a simultânea imigração em massa das comu-nidades de judeus orientais.

Os líderes do movimento sionista pré-Estado e do yishuv podem seorgulhar de muitos sucessos impressionantes, o mais significativo sen-do a criação da primeira comunidade judaica política viável em 1.900 anos.Porém falharam numa tarefa: apesar de a maioria dos então sionistas teremsido seculares, o �novo judeu� nacional que eles projetaram e se ocupa-vam em construir nunca pôde ser divorciado de sua origem religiosa.

A sociedade israelense que se formou não era nem uma Gesellschaft

moderna, nem plenamente democrática, tornando-se algo como um con-glomerado anômalo de elementos modernos e pré-modernos. Um dosmotivos para isso foi a própria presença dos árabes/palestinos na região,que forçou o sionismo a realizar seu projeto em oposição aos habitantesautóctones. Isso fez com que um plano que parecia lógico do ponto devista da situação dos judeus na Europa se transformasse em empreen-dimento colonialista. A criação de uma nova nação num território já habi-tado poderia somente ser feita à força. Não era um caso de colonialismoclássico: o sionismo não pretendia explorar a mão-de-obra palestina, masconseguir suas terras. Como é bem conhecido, a conseqüência foi um

6 Aliyyah: �Ascensão�, jargão sionista que significa imigração judaica para a Terra de Israel.A historiografia do sionismo pré-Estado distingue cinco grandes �ondas� de imigrantes, cadauma constituindo uma �aliá�.

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Identidades israelenses e palestinas: questões ideológicas

processo de expropriação que terminou em 1949 com o deslocamentodos palestinos para fora dos territórios controlados pelos sionistas. Ou-tra conseqüência foi que a esperada secularização da vida judaica não sealcançou completamente na Palestina. Isso foi causado pela atitudeambivalente em relação à democracia que o conflito com os palestinosárabes impôs aos sionistas. Internamente, o yishuv desenvolveu órgãosrepresentativos, um sistema de alocação de recursos e mecanismos pararesolução não violenta de conflitos por meio de negociações. Na ausên-cia do poder do Estado, a existência de partidos políticos antagônicosforçou o movimento sionista e o yishuv a desenvolver um �consociationalism�que mais tarde se transformaria na democracia israelense (Horowitz &Lissak, 1976). Porém, externamente, o yishuv tinha que se opor à introdu-ção da democracia no mandato palestino: eleições universais levariam �dado o antagonismo da maioria árabe no país � a uma imediata paralisa-ção de todo o empreendimento sionista. Para os sionistas socialistas, afacção hegemônica, comprometida com princípios democráticos, isso le-vou a um dilema entre os princípios nacionalistas e os democráticos. Onão-reconhecimento pelos sionistas dos direitos democráticos da entãomaioria palestina árabe do país, associado à recusa árabe em aceitar osjudeus na Palestina como algo mais do que uma minoria religiosa, for-çou o yishuv a manter uma definição comunitária pré-moderna social nãoterritorial como critério para os limites grupais. O projeto de tornar osjudeus novamente sujeitos dentro da história não trouxe, portanto, a iden-tidade coletiva secular que a maioria dos sionistas daquele tempo acha-va óbvia.

O sionismo anterior ao Estado pode ser assim representado:

+ enfatizado: NACIONALISMO SOCIALISMO................................................................................................................

� desenfatizado: RELIGIÃO

Segundo estágio: sionismo estatal, 1948-1967

O período �heróico� do sionismo terminou com o estabelecimentodo Estado em 1948. Assim como em outros países recentemente inde-

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

pendentes do Terceiro Mundo (China, Índia, Egito, Indonésia etc.), aselites líderes do movimento sionista, que tinham expulso o poder impe-rial e tomado o controle para si, conseguiram, ainda que com crescentesdificuldades, prolongar a atmosfera de uma �sociedade mobilizada� pormais de uma geração na construção da nação, até serem tomadas pelafadiga e pela corrupção. Esse prolongamento foi conseguido pela ideologia� associada com o nome de David Ben-Gurion � de estatismo (mam-

lakhtiut), uma revisão do sionismo clássico onde o culto do Estado era agarantia da segurança e do bem comum de uma população cada vez maisdiversificada. O que fez essa redefinição ao mesmo tempo possível e inevi-tável foi a divisão da Palestina após a Segunda Guerra Mundial. O abando-no da terra pela maioria da população árabe tornou possível estender aorganização parlamentar internamente democrática do yishuv ao Estado.A necessidade de absorver e mobilizar massas de novos imigrantes ju-deus tornou isso imperativo.

Na era da imigração em massa para Israel de inteiras comunidadesjudaicas do Oriente Médio, profundamente tradicionalistas e geralmentepatriarcais, o socialismo e outros valores globais tinham que ser desen-fatizados, enquanto o conteúdo judaico ou a significância do Estado tinhaque ser reforçada. Por esse motivo, os assentamentos coletivistas da es-querda �pioneira� e suas instituições voluntárias partidárias (e tropasparticulares) se tornaram alvo de ataques, mas o papel do exército comoelemento integrador cresceu, e com ele um certo militarismo, uma glo-rificação do poder pelo poder, e uma diminuição da importância da di-plomacia e de acordos como métodos para resolução de conflitos inter-nacionais.

Enquanto o yishuv pré-estatal nunca tinha sido completamente homo-gêneo em população e ideologia, com as ondas de imigração que penetra-ram o Estado independente a diversidade alcançou novos picos. Isso tor-nou mais imperativo que a ideologia geral fosse vinculada a um ideal dehomogeneidade. Pressões e demandas para coesão interna foram manti-das ainda por ameaças externas ao jovem e nascente Estado judeu. Contraum pano de fundo de um povo perseguido e recentemente traumatizado,preocupações com a segurança se tornaram parte de um constante �com-plexo de segurança� em Israel, que por vezes alcançou dimensõesparanóides.

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Identidades israelenses e palestinas: questões ideológicas

Essa fase pode, portanto, ser caracterizada por seu pronunciado na-cionalismo. Era, contudo, um nacionalismo diferente daquele da era pré-1948, oscilando entre uma autodefinição judaica e uma nascente israelen-se. A maioria dos imigrantes que chegaram após o estabelecimento doEstado, por exemplo judeus orientais e sobreviventes do Holocausto, vi-nham como refugiados mais do que idealistas sionistas. Não lhes foramdadas as mesmas honrarias do que ao seus já estabelecidos predecesso-res. A visão dominante dos árabes como negativos, primitivos e feudaisalimentou o desdém pelos judeus orientais, a maioria dos quais vinhade países árabes e eram fortemente influenciados pela cultura árabe. Na-quele momento nem as experiências dos judeus orientais ou dos sobrevi-ventes do Holocausto eram ouvidas como histórias pertinentes à identidadecoletiva de Israel, que era definida como um melting pot homogeneizante.O modo paternalista e muitas vezes autoritário pelo qual os imigrantesjudeus orientais eram tratados lançou as bases para sua revolta políticauma geração mais tarde.

Mapai, a ala estatista do sionismo socialista, ficou no poder. Mas en-quanto Mapai e sua rede de associados tinha um papel central nos proje-tos de construção nacional, o partido havia se tornado uma máquina doestablishment. A ideologia socialista foi abafada de forma a não irritar osjudeus orientais tradicionalistas que estavam rapidamente se tornandouma maioria demográfica. De fato, a necessidade de controlar politica-mente os recém-chegados influenciou o desenvolvimento da democra-cia nesse período � uma democracia limitada e instrumental, com elei-ções formalmente livres que eram, na prática, dominadas por oligarquiaspartidárias, e cujas posições de poder estavam em mãos dos judeus as-quenazes. Os árabes israelenses remanescentes da comunidade palestina,que antes de 1948 constituía a maioria do país, estavam confinados emseus vilarejos, e portanto �invisíveis�, não tendo nenhum papel na defini-ção de Israel. Essa exclusão de fato dos (formalmente iguais) árabes israe-lenses e a manipulação em larga escala dos judeus orientais levaramalguns autores a falar de Israel como uma etnocracia ou Herrenvolkdemokratie.7

Durante esse estágio, o tema dominante não era construir um Estado

7 Samih Farsoun comparou o sistema político vigente em Israel com o regime do apartheid

na África do Sul. Sobre o conceito de etnocracia, cf. Kimmerling (1999).

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

�judeu�, ou seja, um Estado com um conteúdo especificamente religioso,mas �um Estado dos judeus� onde a situação do povo judeu ficaria �nor-malizada�, ou seja, basicamente semelhante às nações socioeconomica-mente avançadas e etnicamente relativamente homogêneas da Europaocidental. Eventualmente, porém, esse equilíbrio se desfez.

Isso pode ser representado da seguinte forma: o sionismo estataltinha como base uma fórmula consensual de nacionalismo que era apoia-da por uma adesão (pelo menos verbal) aos valores tanto da democraciaquanto da religião judaica, entre os quais não era visível uma contradi-ção insuperável.

+ DEMOCRACIA NACIONALISMO RELIGIÃO................................................................................................................

� SOCIALISMO

Terceiro estágio do sionismo: 1967-1991 (late zionism)

A sociedade israelense dos anos 50 estava longe de ser unitária ouhomogênea, e havia pouca integração entre seus vários componentes so-ciais e étnicos. Porém, em comparação com o que viria a seguir, ela semantinha coesa � um Estado curioso de meio-termo entre Gemeinschaft e

Gesellschaft �, dominada pela ideologia totalizante do estatismo. O coletivoera considerado mais importante do que o individual, e o coletivo semanifestava pela nação-Estado. Identidades coletivas competidoras � so-cialista, religiosa ou liberal � eram deixadas em segundo plano. Tensõesinternas eram varridas para debaixo do tapete em nome de uma unidadefictícia, legitimizada e reforçada por percepções de ameaças existenciaisinterpretadas como anti-semitismo. Na fala pós-modernista, uma ampla-mente internalizada metanarrativa sionista teve lugar. Israel estava ideo-logicamente baseado na união de duas identidades coletivas: uma judai-ca religiosa e uma liberal-democrática. O movimento sionista imaginouuma harmonia entre eles, mas essa composição era internamente contra-ditória e eventualmente seus participantes se afastariam em direção auma tendência mais radicalmente democrática e outra mais radicalmen-te judaica religiosa.

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Identidades israelenses e palestinas: questões ideológicas

Isso se tornou óbvio nos anos 60 quando o edifício do Estado sionistacomeçou a ruir. Com o aumento da prosperidade, agentes socializantescomo movimentos juvenis, o movimento trabalhista e sindicalista(Histadrut) e os assentamentos começaram a se tornar menos atraentes.Coletivismo, frugalidade, devoção a ideais de pioneirismo e serviço volun-tário à comunidade foram gradualmente superados por um individualis-mo pequeno-burguês e pelo consumismo. Em poucas palavras, Israel pa-recia se mover de uma comunidade pré-moderna �mobilizada�, baseadaem união e num menor grau em religião, para uma sociedade burguesade tipo ocidental, baseada em uma cidadania determinada pelo território.Nesse período as lideranças do país freqüentemente apelaram aos vizi-nhos árabes para uma paz baseada nas linhas de cessar-fogo existentes eque tinham se transformado em fronteiras; em 1965, mesmo o partidorevisionista direitista Gahal retirou reivindicações territoriais de sua plata-forma eleitoral. Em 1966, foi retirada a administração militar das vilasárabes. Mantém-se uma questão hipotética sobre onde Israel teria idose a Guerra de Junho de 1967 não tivesse intervindo na progressiva he-gemonia de um Estado de Israel �normalizante� sobre uma tendência �par-ticularizante� de Terra de Israel. Israel parecia a caminho de se tornar umpaís �normal�.

A Guerra dos Seis Dias tirou Israel permanentemente do caminhoda �normalidade�. O confronto de maio de 1967 com o que parecia umaameaça existencial por parte dos árabes; a indiferença do mundo; a reno-vada �comunidade de destino� com o judaísmo mundial (world Jewry); e,mais ainda, o próprio resultado da guerra, isto é, o renovado confrontocom terras bíblicas e o dilema sobre o que fazer com os territórios ocupa-dos e seus habitantes palestinos, todos esses fatores exacerbaram o pro-cesso de polarização que mudou o curso de Israel de pequeno país emvias de normalização para império regional rasgado por desentendimen-tos internos. Mais tarde, particularmente após os anos 80, o distancia-mento de Israel de uma sociedade sionista monista foi também estimula-do pelo � ainda que lento e parcial � movimento árabe em direção a umanormalização de relações com o Estado judaico. O nível de ameaça externadiminuiu acentuadamente. Isso abriu espaço para um crescente cansaçocom a guerra e uma busca pela paz; mas também tornou a colonizaçãodos novos territórios politicamente �barata�. Paradoxalmente o processo

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

terminou transformando Israel numa sociedade antes, mais do que me-nos, particularista.

Como resultado de uma exaustão interna da fase sionista clássica,de um renovado confronto com os palestinos e da diminuição da hostilidadeárabe �externa�, Israel se tornou uma sociedade profundamente dividi-da. Nos anos 80, pelo menos quatro profundas divisões dividiam sua po-lítica: esquerda versus direita (hawks’ versus ‘doves); israelenses judeusversus israelenses árabes; asquenazes versus judeus orientais; e judeus re-ligiosos versus seculares. Isso pode ser sumarizado da seguinte forma:

1) O debate �esquerda-direita� sobre os territórios: o súbito controlede Israel sobre Jerusalém oriental além da Judéia e da Samaria reabriu odebate sobre sua extensão territorial e composição demográfica ideais,uma tensão que tinha estado dormente desde que em 1947 o movimentosionista aceitou um Estado em apenas parte da terra-mãe histórica. Aolongo dos anos 70 e 80 havia um acirrado debate entre �demógrafos�(isto é, esquerda), que propunham um Estado menor porém demografi-camente mais judeu, estando portanto dispostos a devolver a maioria dosterritórios em troca da paz, e �territorialistas� (isto é, a visão da direitade uma grande Israel, que considerava os territórios não �ocupados� massim �liberados�, inalienavelmente judeus para sempre, que brincavamcom a idéia de expulsar os palestinos e não estavam muito entusiasma-dos com nenhuma sugestão de paz que pudesse envolver sacrifícios terri-toriais. Minimalistas de várias cores que preferiam manter os territóriosintocados como uma moeda de troca em alguma futura negociação depaz foram gradualmente silenciados: a própria lógica de uma ocupação quese prolongava de ano para ano militava contra o separatismo. Além domais, debates políticos sobre o futuro dos territórios árabes conquista-dos em 1967 permaneceram hipotéticos enquanto nenhum parceiro árabepara a paz era visível. Ao longo dos anos, Israel se entrincheirou em suasnovas terras. Quando em 1977 o Egito fez seu movimento de �paz-surpre-sa�, conseguiu ainda mais ou menos facilmente recuperar todo o Sinai.A rota palestina para a paz, por outro lado, era muito mais tortuosa. Nomomento em que a OLP finalmente entrou em conversações de paz, aeconomia palestina tinha se tornado amplamente integrada à de Israel,os territórios ocupados estavam pontilhados com assentamentos israelen-ses, e a maioria dos israelenses era contrária a se desfazer dos territórios:

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Identidades israelenses e palestinas: questões ideológicas

eles passaram a ver essa posse como parte vital de sua autodefiniçãoenquanto nação. Um dilema sobre a disposição dos territórios coloriutodos os outros grandes antagonismos de identidade.

2) Judeus versus árabes. Enquanto os árabes israelenses tinham for-malmente adquirido direitos civis e políticos iguais, eles permaneciamdiscriminados em acesso à terra, recursos públicos, empregos etc.; e en-frentavam uma segregação social informal. Eles eram e continuam a serum grupo �excluído�, discriminado pela grande maioria dos judeus israe-lenses. Isso foi menos grave para a identidade israelense enquanto elespermaneceram invisíveis. Nos anos 80, porém, essa comunidade tinhase transformado em quase um milhão ou mais de pessoas, mais organiza-da, mais decidida e cada vez mais identificada com os palestinos além daLinha Verde. Isso trouxe para mais perto o dilema de saber se Israel eraapenas o Estado dos judeus (caso em que não poderia mais se conside-rar democrático) ou se de todos os seus habitantes (caso em que sua de-finição como Estado judeu ficaria sob pressão).

3) Asquenazes versus judeus orientais. Em contraste com os árabesisraelenses, os judeus de origem oriental sempre foram considerados umgrupo �in�. A idéia do melting pot predominante nos anos iniciais do Estadodeu lugar a uma ideologia de oportunidades iguais, reconhecimento dovalor de suas tradições, e a promessa de tratamento e espaço igual aosjudeus orientais. Mais pobres, menos educados, com famílias maiores,eles ficaram, contudo, concentrados nas camadas de menor renda e mão-de-obra não qualificada, sub-representados na universidade e nas gran-des empresas e, não raramente, socialmente estigmatizados. Em 1977tinham se tornado suficientemente assertivos para derrubar os trabalhis-tas do poder. Portanto, a democratização da sociedade israelense criouespaço para os judeus orientais, mas por conseqüência se fazia mais visíveluma ideologia mais tradicionalista e religiosa e portanto menos democrá-tica � apoiada pela maioria deles.

4) Judeus religiosos versus seculares. Entre todas as contradições queafetam a política israelense, o conflito entre judeus religiosos e secula-res era provavelmente o mais profundo.8 Isso acontece por se encontrar

8 Isso era intuitivamente entendido pela maioria dos israelenses que, segundo pesquisas deopinião à época, em meados dos anos 90, consideravam a cisão interna como mais perigosado que o conflito externo entre Israel e o mundo árabe.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

na base do contrato social e das próprias estruturas e valores que fazema coesão da sociedade. O equilíbrio foi mantido pelo status quo, um acor-do de divisão de poder datado dos anos 40, entre o então dominante par-tido trabalhista e a minoria religiosa sionista. O acordo simbolicamenteafirmava o caráter judeu do Estado, mas na prática restringia a lei rabínicaa questões de ordem pessoal: casamento, divórcio, enterro, herança. Osreligiosos aceitaram a divisão pela qual eles controlavam as questões pri-vadas e os negócios do cidadão, mas se omitiam nas questões de políticaexterna e socioeconômica. Nos anos 80, o consenso a esse acordo come-çou a ser erodido. Os ortodoxos não estavam mais satisfeitos em somentedecidir sobre o shabbat e a observância de leis dietárias. Fundamentalistasjudeus de diferentes tendências agora desenvolviam claras agendas políti-cas para a �judaização� dos territórios, para obter maior influência religiosana educação pública e uma gradual introdução das leis religiosas judai-cas (halacha) em áreas como aborto e casamentos mistos. Essa renovadamilitância ortodoxa foi estimulada pelo crescimento natural, em particularda comunidade ultra-ortodoxa, e por uma moda popular de �volta às raí-zes�, semelhante a desenvolvimentos paralelos no mundo cristão ociden-tal e muçulmano.

Contra uma minoria ortodoxa havia uma maioria não observante.Isso não quer dizer que a maioria dos israelenses era completamente se-cular � de fato, a maioria mantinha pelo menos alguns rituais judaicos.Existe em Israel um continuum de identificações e práticas que vão da ultra-ortodoxia ao ateísmo. Somente uma pequena minoria optaria por umaseparação total do Estado de suas raízes judaicas.9 A maioria se identificacom uma versão modificada de democracia ocidental, e enquanto não viacom bons olhos total igualdade com os árabes, considerava a religião umfato essencialmente privado e se ressentia da crescente coerção religiosa.

9 Cinco por cento dos judeus israelenses se autodefine como haredi (ultra-ortodoxo anti-sionis-ta), 9% como sionista religioso, 36% como tradicional, 4% como Conservative ou Reform

(correspondendo às ramas centristas e liberal-progressistas da comunidade judaica nosEUA), e 45% como não afiliado. Porém, 68% crêem que os judeus sejam o povo escolhido,55% crêem que o Pentateuco foi entregue a Moisés no monte Sinai, 69% observam as leisdietárias (kashrut), 42% se abstêm de qualquer trabalho no sábado, 71% jejuam no Dia daExpiação, e 72% afixam mezuzot nas suas portas: Levy et al. (1993, apud Kimmerlins, 1999,p.358).

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Identidades israelenses e palestinas: questões ideológicas

Após os anos 70, uma maioria de israelenses não religiosos apoiouuma maior democratização de todos os aspectos da vida social e política.As muitas contendas políticas sobre questões religiosas que interferemna vida dos indivíduos provavelmente ajudaram a cristalizar a sensaçãode que existia uma identidade israelense �secular� separada. Isso tam-bém interferiu na tolerância mútua.

Como resultado dos profundos desentendimentos sobre a naturezada sociedade israelense e suas relações com outros, é difícil falar atual-mente num consenso sobre sua identidade coletiva. Um conjunto de pro-blemas minava o que tinha sido a identidade coletiva de Israel antes de1967: o debate sobre os territórios ocupados significava que, apesar deum compartilhado sentimento de nacionalismo, não havia mais acordosobre o que a nação era: um território ou uma comunidade de pessoas.As pressões cada vez maiores dos palestinos nos territórios e dentro deIsrael tornaram difícil combinar os fatores conjuntos de suporte à identi-dade coletiva: democracia e judaísmo. Por um lado, a questão sobre como(não) incluir os árabes palestinos tornava as fronteiras coletivas de Israelmais questionáveis; e, por outro, a contradição entre a demanda por umademocratização conforme tendências pluralistas liberais e a demanda poruma ênfase na religião conforme os preceitos das leis rabínicas destruíaa ilusão de que esses valores poderiam conjuntamente apoiar a identidadeisraelense. Essas questões passaram a ser vistas como mutuamenteexcludentes. A ligação entre elas � a da demografia ou território como baseda definição da nação, e a da democracia e religião � foi dada pelos colonosfundamentalistas de Gush Emunim, que buscavam uma colonização naforma de colisão antipalestina dos territórios, sob o argumento teológicode que a judaização dos territórios levaria tanto a um engrandecimentoterritorial (�plenitude�) quanto a uma transformação espiritual da nação.10

O que tornou essas divisões mais perigosas do que poderiam ter sidofoi sua gradual divisão em dois blocos distintos: um asquenaze � classe

10 Gush Emunim considerava o Estado de Israel como mero instrumento para promover ocaráter judeu do país. Sua virada ideológica não foi o único mas provavelmente o mais impor-tante fator para promover o fundamentalismo judaico como alternativa ideológica legíti-ma à democracia que (assim eles temem) pode solapar Israel enquanto Estado judeu. Signi-ficativo, porém, é o fato de que Gush Emunim inicialmente disfarçava seu programamessianístico sob termos nacionalistas (�incutir um novo espírito patriótico numa naçãodeprimida�, �mostraremos aos árabes [ou: aos americanos] quem comanda aqui� etc.).

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

média-secular-esquerdista, outro oriental-pobre-religioso-direitista. Esseprocesso começou nos anos 70. A direita subiu ao poder pela primeiravez em 1977, pois juntava dois fatores: por um lado, capitalizava sobreas políticas inconsistentes dos trabalhistas no quesito paz e territóriosocupados, oscilando entre retirada e colonização; por outro, vinha ao en-contro dos protestos dos judeus orientais quanto à corrupção crescenteda elite asquenaze que estava no poder. No final dos anos 70, temas étni-cos começaram a ter um papel ainda mais pesado nas campanhas políticas.Os judeus orientais adotaram o estridente antiarabismo da direita. A issofoi acrescentado, desde meados dos anos 80, a crescente visibilidade eambição dos partidos e associações ortodoxos, quase todos de direita,que começaram a corromper o meio político � e o efeito polarizador daguerra contra a OLP no Líbano em 1982. Muitos israelenses se uniramem dois grandes grupos cada vez mais alienados e hostis um ao outro:por um lado a esquerda, em sua maioria asquenazes de classe média,colarinho branco, estabelecidos e seculares � mais ou menos os des-cendentes do sionismo de esquerda pré-Estado; por outro, a direita, for-mada pelos orientais, os imigrantes involuntários do Oriente Médio, emsua maioria proletários, econômica e culturalmente privados, tradicio-nais ou mesmo observantes do ponto de vista religioso. Foi a questãopalestina nos territórios que expôs a sociedade israelense impondo-lhea diferenciação político-ideológica que a caracteriza até os dias de hoje.

No final dos anos 80, a esquerda tinha claro que Israel não iria conse-guir manter os territórios palestinos e ao mesmo tempo manter sua carac-terística judaico-democrática. E isso envolvia, pela primeira vez, o reco-nhecimento dos palestinos enquanto nação com direito à autodeterminação.Assim, a esquerda sionista decidiu romper sua tradição de não-reconheci-mento pelo mesmo motivo que antes tinha tornado imperativo essemesmo não-reconhecimento: tornar possível a existência de um Estadojudeu na Palestina. A intifada convenceu um amplo segmento da popula-ção israelense de que não havia alternativa viável à fórmula �terra pelapaz�, e que os palestinos eram o parceiro inevitável.

A direita chegou a conclusões diametralmente opostas. Enquantopara a esquerda sionista uma predominância demográfica judaica no Esta-do era um fato primordial, a direita partiu do pressuposto de que uma novadivisão territorial tinha que ser evitada a todo custo ainda que signifi-

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Identidades israelenses e palestinas: questões ideológicas

casse domínio ou expulsão de uma população não judaica. A direita in-terpretou a crescente crítica internacional à forma como Israel lidava comos palestinos como mais uma certeza de sua própria visão sionista deum eterno anti-semitismo contra o qual um Estado judeu forte forneceriaproteção. A direita fortemente opôs o reconhecimento da OLP, precisa-mente porque (corretamente) previu que esse reconhecimento levaria ànegociação, o que por sua vez levaria Israel eventualmente a se retirarpelo menos de parte dos territórios. No final dos anos 80, a cultura israe-lense dava claros sinais de desmantelamento. O país parecia se dirigir aum combate entre duas Weltanschauungen que tinham cada vez menos emcomum.

Um setor da população � provavelmente aqueles que tinham umavisão mais cosmopolita por terem familiares ou residência no exterior,acesso a viagens e aos meios de comunicação internacionais � aderiu pri-mariamente a valores de uma democracia pluralista. Esses israelensesse opunham à coerção religiosa, e consideravam a religião parte da esferaprivada. Apesar de uma grande maioria se considerar judia, eles se identi-ficariam antes de mais nada como israelenses. Presumivelmente, se senti-riam bem também em restringir a identidade judaica do Estado principal-mente a símbolos. O que eles podem não ter percebido foi que essaposição os levaria inexoravelmente a um Estado que não mais pertence-ria ao �povo judeu�, um grupo étnico religioso geograficamente dispersono mundo, mas a todos os seus habitantes enquanto cidadãos com direi-tos iguais � inclusive os não-judeus. O final dessa história somente pode-ria ser a abolição das estruturas discriminatórias fixando a primazia judai-ca sobre o Estado.

O outro setor � mais pobre, menos moderno e em menor contatocom o mundo exterior � aceitava como seu valor central uma interpreta-ção ritualística e paroquial do judaísmo. O ponto final dessa identidadepoderia, contudo, ser a abolição da democracia, transformando Israel emum Estado teocrático que imporia um modo de vida judaica mais estrito.Não-judeus teriam pouco espaço dentro de tal política. O contraste en-tre essas duas identidades conflitantes é simbolizado pela luta entre duascidades: uma Jerusalém autenticamente �judaica� contra uma Tel-Avivcosmopolita, ocidentalizada e �helenizante�. Esquematicamente, o períodotransicional pode ser representado assim: o �nacionalismo� era ainda a identi-dade dominante mas não havia mais um consenso sobre seu conteúdo.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

+ RELIGIÃO NACIONALISMO DEMOCRACIA................................................................................................................

� SOCIALISMO

Quarto estágio: 1990 até hoje: a dicotomiapós-sionismo/fundamentalismo judaico

Não há uma clara divisão de períodos para o que aconteceu à culturaisraelense na última década.11 O panorama social e ideológico de Israelhoje é, todavia, muito diferente daquele que prevalecia no começo doestágio anterior. Numerosos visitantes e israelenses demonstram surpre-sa e se dizem �incapazes de reconhecer o país�. A composição demográficae étnica de Israel, modos de pensar, assim como formas de comportamen-to interpessoal, mudaram completamente nos últimos tempos. A evolu-ção aponta para uma continuação dessa fragmentação ideológica da socie-dade. Na fase de transição, o velho sionismo/nacionalismo israelenseenquanto uma idéia, ainda que controvertida, era suficientemente fortepara manter duas identidades conflitantes sob controle: por um lado umatendência democrática individualista radicalizada e, por outro, uma judai-ca fundamentalista. O nacionalismo israelense foi recentemente coloca-do na defensiva e o futuro da sociedade israelense parece depender doresultado dessa luta pelo domínio entre essas ideologias.

O período 1989-1993 foi um divisor de águas na história do conflitoárabe-israelense. Em 1989 Israel ainda se opunha a conversações comos palestinos. Em 1990, Israel se sentiu ameaçado por um eixo palestino-iraquiano. Em 1991, a Guerra do Golfo afastou esse medo e assistimos,durante a Conferência de Madri, às primeiras negociações entre Israel eos Estados árabes, inclusive uma delegação conjunta jordano-palestinen-se. Isso sinalizou um reconhecimento implícito de Israel pelo mundoárabe, e dos palestinos por Israel, e levaria dois anos mais tarde a umsegundo avanço: reconhecimento mútuo entre Israel e a OLP além dosAcordos de Oslo. Associados à paz com a Jordânia em 1994, esses desenvol-

11 Cf. Ram (1999). Minha própria análise tem paralelos com a de Ram, mas rejeita suaconceitualização do fundamentalismo judeu moderno (nas suas formas sionista e ultra-ortodoxa) como sendo �neonacionalista�.

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Identidades israelenses e palestinas: questões ideológicas

vimentos diminuíram drasticamente o nível de ameaça ao Estado. Ideolo-gias pós-sionistas floresceram quando Israel não tinha mais que se con-frontar com inimigos mortais. Após a breve interrupção causada pelaGuerra do Golfo, o país sentiu que podia respirar mais livremente. Essatranqüilidade provavelmente permeava a crescente tolerância à sua recenteheterogeneidade.12

O sionismo, o nacionalismo dos judeus, sofreu nos anos 90 uma du-pla crise de deslegitimação. Por um lado, foi prejudicado por análises aca-dêmicas e representações ideológicas na mídia e nas artes, ligadas à es-querda democrática. Por outro, a ortodoxia anti-sionista sobrepuja odiscurso do sionismo religioso, impelindo uma porção cada vez maiorda população para fora da órbita do sionismo. Juntos, esses dois movimen-tos estarão comprimindo a identidade nacional coletiva israelense.

O �pós-sionismo�, uma mal definida mistura de posições anti-sionis-tas e tendências pós-modernistas, começou na academia com a publica-ção de trabalhos que punham a descoberto uma até então oculta históriade negação dos palestinos pelo sionismo. Graças à abertura dos arqui-vos israelenses, o grupo dos �novos historiadores� documentou as cir-cunstâncias da independência de Israel na guerra de 1948. Nesse proces-so, eles destruíram uma série de mitos amplamente aceitos: de que oyishuv era inferior militarmente e venceu os árabes apesar de adversida-des (Davi contra Golias); que os líderes sionistas tinham inabalavelmentebuscado a paz; que o êxodo palestino de 1947-1948 foi causado pelospróprios árabes.13 A interpretação dos novos historiadores estava muitomais próxima da narrativa palestina do que da narrativa oficial sionista.As acusações dos novos historiadores atingiram um nervo exposto deuma geração que ainda tinha sido educada dentro de ideais sionistas, masse tornou adulta durante a Guerra do Líbano e a continuada ocupaçãodos territórios palestinos. Esses jovens israelenses, não necessariamentede esquerda, estavam chocados com o potencial destrutivo que eles teste-munhavam dentro de sua própria sociedade � por exemplo, o assassinato

12 Os ataques terroristas fortuitos por fundamentalistas palestinos sunitas e libaneses xiitasgeram um clima de apreensão e têm graves conseqüências políticas, todavia sem ameaçar asobrevivência da coletividade.

13 Morris (1987); Shlaim (1988). Um precursor menos acadêmico foi Flapan (1987).

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

de Rabin por um fanático religioso e a aprovação muda, mas bastanteampla, que esse ato obteve entre o público religioso. Depois dos novoshistoriadores vieram os �novos sociólogos�, cientistas sociais que questio-naram o tratamento dado por Israel à maioria dos judeus orientais, a mi-noria dos árabes israelenses, e a outros grupos minoritários (Kimmerling,1983; Ram, 1993; Smooha, 1978).

Tais temas não estavam restritos à universidade. Ao final dos anos80 e 90 eles reverberaram na imprensa, programas de entrevistas e do-cumentários na TV,14 assim como na arte, na música popular com temashíbridos e orientalizantes, poesias de paz, e romances (inclusive algunsescritos por árabes israelenses em hebraico), teatro e cinema. Os anos90 testemunharam um aprofundamento da democratização e do �multi-culturalismo� em muitos aspectos da vida israelense. Coletivamente osesforços dos acadêmicos e pensadores pós-sionistas certamente criaramum espaço para tratamento mais adequado de assuntos que tinham sidosilenciados. Nesse processo centrífugo de clamar por espaço para todosos tipos de minorias, eles podem também ter ajudado a demolir o ethos

de solidariedade que mantinha a sociedade israelense unida.Porém, em vez de trazer novas posições coerentes e claras, esses

acres debates por enquanto levaram apenas a uma confusão ideológica e auma ampla retirada de esquemas interpretativos ambiciosos. Em seu lu-gar veio o individualismo, o consumismo, e uma confusa abertura às in-fluências externas: uma celebração e uma adoção pós-moderna das dife-renças, mas em detrimento do colapso da metanarrativa. O efeito geraldo pós-sionismo foi o de criar fendas no muro da autoconfiança de Israel.

O processo pelo qual mais e mais grupos originalmente marginaisforam trazidos para o centro da órbita foi acompanhado por uma dilui-ção da coesão societária. O conteúdo judaico de algumas comunidadesfoi colocado em dúvida, por exemplo, o dos etíopes que foi e continuasendo amplamente discriminado. Mais significativamente, a imigraçãoem massa de judeus da antiga União Soviética, que chegaram em Israelao final da Guerra Fria, englobava uma grande porcentagem com nenhum

14 Um bom exemplo foi Tekumma, um folhetim comemorando o cinqüentenário da indepen-dência de Israel. Cf. a crítica de Ilan Pappe em Journal of Palestine Studies (verão 1998),p.99-105.

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Identidades israelenses e palestinas: questões ideológicas

ou apenas tênues vínculos com o judaísmo.15 O mesmo é verdade a fortiori

para grupos que não podem ser considerados judeus por nenhuma mágicada imaginação, como as centenas de milhares de trabalhadores estrangei-ros. Do outro lado desse espectro, os haredim,16 ainda que obviamentejudeus, se tornaram também um subgrupo legitimamente não sionista,participando com cada vez mais visibilidade pública nas lutas de poderpolítico e ideológico e clamando por uma divisão mais justa do bolo. Du-rante o mesmo período também os árabes israelenses, incluindo gruposfundamentalistas muçulmanos, se tornaram uma presença muito maisativa. Na virada do milênio, o quadro era de extrema heterogeneidade.Judeus e a fortiori sionistas pareciam estar se tornando mais uma mino-ria entre tantas outras (uma situação vagamente parecida com a dosWASPs nos EUA). O multiculturalismo da sociedade israelense coincidiucom sinais de um colapso da sociedade, como um crescimento de crimee do uso de drogas, um declínio na segurança pessoal, e sintomas � difí-ceis de medir mas claramente observáveis � de deterioração no convívio.

Aos seus críticos, essa perda de direção pode ser atribuída aos pós-sionistas. É provavelmente exagerado atribuir tão profundas transforma-ções sociais ao trabalho erudito de um bando de jovens acadêmicos.Porém, de forma mais geral, o pós-sionismo pode ser visto como o demolidorde mitos nacionalistas que eram os suportes da identidade coletiva deIsrael. Nesse sentido tornou a sociedade israelense mais vulnerável. Oretorno à fé e o crescimento de uma ortodoxia não sionista constituiu ooutro pólo que corroeu o auto-entendimento consensual da Israel sionistade dentro para fora. Essa evolução não alcançou os sionistas religiososde Gush Emunim, cujo papel tinha terminado quando eles alcançaramseus limites demográficos. Enquanto isso, porém, o sionismo religiosose tornou mais ortodoxo e direitista durante as últimas décadas.

Essa evolução é bem exemplificada pelo fenomenal crescimento doShas, o partido dos ultra-ortodoxos orientais, assim como pelo menosespetacular ultra-ortodoxo Ashquenazi. Shas é um dos mais notáveis

15 O número de gentios no meio dos imigrantes russos, que somam cerca de quinhentos mil(sendo 10% da população de Israel), é avaliado entre 25% e 40%: Lustick (1999). Lustickobserva que, interessantemente, os não-judeus foram aceitos sem dificuldade como novoscolonos na Cisjordânia em Gaza. Ibidem, p.427.

16 Haredim: os �tementes de Deus�, nome pelo qual os ultra-ortodoxos se designam.

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fenômenos sociais na história recente de Israel. Ao adotar com sucessoo ressentimento dos judeus orientais contra a elite � principalmenteasquenaze � liberal, intelectual, jurídica e econômica, que os mantinhaoprimidos, Shas construiu uma poderosa rede de escolas ligadas ao parti-do, yeshivas e serviços sociais. Espelhando movimentos fundamentalistasmuçulmanos no mundo árabe, Shas tomou assim funções e preencheunichos deixados em desordem pelo Estado, criando uma população dedependentes pobres que são por eles doutrinados numa forma autoritá-ria, antidemocrática, porém carismática de judaísmo. Em deferência aseus muitos eleitores que não são pessoalmente anti-sionistas mas antesdireitistas tradicionais observantes que se identificam como sionistas enacionalistas, Shas agora já se tornou o terceiro maior partido de Israelmas camufla seu anti-sionismo. Porém, sua verdadeira relação com oEstado judeu aparece na manipulação corrupta e voraz das finanças públi-cas, em sua recusa ao serviço militar � o mais óbvio critério de não-identi-ficação com o Estado. Em suma, Shas vê o Estado como um instrumen-to para atingir seus interesses setoriais. Como resultado dessas facçõescontraditórias, o pós-sionismo e o fundamentalismo, o declínio do nacio-nalismo sionista e a extinção do socialismo como um ideal inspirador,17

os israelenses se encontram desde os anos 90 diante de uma encruzilha-da: ou um incoerente multiculturalismo tendo ao horizonte o espectroassustador de um Estado não judeu, ou uma corrida para abraçar um ju-daísmo cada vez mais obscurantista.

Em suma, a radicalização e a �fragmentação� pós-moderna das guer-ras culturais israelenses abriram a possibilidade, em princípio, de um futuro�pós-sionista� estágio de emancipação dos não-judeus em Israel e o re-planejamento de Israel como Estado de todos os seus cidadãos; do outrolado, há as alternativas mais fundamentalistas. O sentimento de confu-são é profundo. Impossível neste momento prever para onde Israel irádo ponto de vista ideológico mas é certo que não poderá sobreviver comosociedade sem ter como base alguns valores comuns. A situação desdeos anos 90 pode ser representada assim:

17 A rejeição ao marxismo pela intelligentsia ocidental nos anos 80 foi antecipada em Israel porum declínio paralelo que começou pelo menos uma geração antes � por causa das políticasantiisraelenses e anti-semitas da União Soviética.

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+ RELIGIÃO ↔ DEMOCRACIA................................................................................................................

� NACIONALISMO

Ao mesmo tempo, não se deveria superestimar essas tendências cen-trífugas pós-sionistas e fundamentalistas. Por um lado, o aparato do poderque privilegia judeus sobre não-judeus permanece intacto; o controle ter-ritorial foi dado aos palestinos em apenas 40% dos territórios ocupados.Judeus orientais têm sido mais bem aceitos do ponto de vista cultural doque antes, porém falhas socioeconômicas ficaram quase intactas. A elitedo poder secular mantém controle sobre a maioria dos postos de comando:exército, polícia, forças de segurança, banco central, controle sobre terrae agricultura, indústrias mais importantes, comércio internacional etc.Em outras palavras, as contradições ideológicas não foram (ainda) tra-duzidas por uma verdadeira mudança no poder. Por outro lado, uma gran-de maioria dos judeus israelenses continua, formalmente, a seguir a cren-ça sionista. Ainda mais relevante são os extremistas religiosos lideradospor uma minoria de colonos que nunca estiveram submetidos ao tipo deconfusão ideológica e exaustão que caracterizou a metade secular da popu-lação. Os fundamentalistas florescem numa situação de não-paz e insegu-rança (Lustick, 1988). Insegurança nas fronteiras e heterogeneidade inter-na foram logo vistas como uma ameaça pela direita secular e pelos judeusfundamentalistas. Eles recusaram uma confrontação com as muitas im-portações sociais e ideológicas que estavam inundando Israel, e optaram,em vez disso, pelo �contra-ataque� físico. Por meio de batalhas de rua,demonstrações violentas, vandalismo comunitário e puro terrorismo, osfundamentalistas religiosos contribuíram para uma violenta quebra no sen-timento de normalização que estava encantando muitos no período 1993-1995, constituindo a causa em si mais importante para o fracasso do pro-cesso de paz. A violência dos rejeicionistas, tanto judeus quantomuçulmanos, criou um círculo vicioso de medos irracionais que direta-mente levaram Netanyahu ao poder em 1996. O prejuízo causado ao pro-cesso de paz israelense-palestino durante seu mandato foi tal que seusucessor de centro-esquerda em 1999-2000 não pôde mais desfazê-lo.Isso levou diretamente à atual crise.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

As identidades árabes palestinas

O relato sobre a evolução da ideologia palestina, menos conhecidado que a de Israel, será necessariamente mais breve e mais baseado emimpressões do que em dados. Isso tem a ver com a relativa pobreza dasfontes palestinas (pelo menos em línguas ocidentais), o que reflete tam-bém as vicissitudes de uma sociedade que por longo tempo permaneceuno estágio oral e tradicional. Não obstante, o suficiente nos é conhecidopara permitir um breve esboço, mostrando que assim como os sionistas/israelenses, os palestinos atravessaram uma série de discretos estágioshistóricos, cada qual com seu complemento ideológico, indo desde umaorientação religiosa e principalmente pan-arabista antes de 1948, atraves-sando um estágio de �monismo� palestino, sob os Acordos de Oslo, atéo atual, de construção da nação, levando a uma situação de dissensõesculturais latentes, que lembram o cenário israelense.

Primeiro estágio: nacionalismo palestino iniciale pan-arabismo, 1900-1948

A identidade coletiva dos árabes palestinos é, em suas formas con-trastantes, fortemente impregnada pelo sentimento de perda de umaterra-mãe onde seus ancestrais viveram por muitas gerações. Ainda queos habitantes não tenham desenvolvido uma consciência nacional especí-fica até bem tarde, a arqueologia e a antropologia documentam a continui-dade da habitação humana na Palestina. Isso ocorreu apesar de expul-sões e emigrações (assim como os judeus antes e depois das revoltascontra os romanos no primeiro e no segundo séculos), imigrações e inva-sões (tais como as dos árabes no século VII, dos cruzados do século XII,e outros grupos mais recentes).18 A identificação subjetiva dos habitan-tes da Palestina também passou por sucessivas e dramáticas mudanças,a mais óbvia tendo sido a adoção do cristianismo por grupos substanciaisde judeus, canaanitas, nabateus, gregos e outras comunidades que habita-vam o país, e a partir do século VII sua gradual islamização. As diferen-tes religiões e seitas palestinas freqüentemente se viam em conflito, e

18 Imigrantes mais recentes incluem os imigrantes egípcios do século XIX em Gaza, peregri-nos do Marrocos e do Sahel que se estabeleceram em Jerusalém, e outros.

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Identidades israelenses e palestinas: questões ideológicas

em geral diferenças, mais do que cooperação, parecem ter caraterizado avida na Palestina. Isso criou para os ideólogos palestinos um problemaoposto ao encontrado por seus colegas sionistas: palestinos podem apon-tar para uma impressionante continuidade física, mas têm que �pular�abruptos hiatos culturais. A maioria dos atuais palestinos pode bem des-cender de uma longa cadeia de ancestrais que viveu na Palestina por gera-ções, mas esses ancestrais não deixaram muitas evidências de terem per-tencido a um grupo mais ou menos coerente, ou mesmo de ligação comessa terra particular.19

O nacionalismo palestino definiu a nação palestina desde o começoinequivocamente como uma nação árabe. Alguns escritores nacionalis-tas palestinos vinculam sua linhagem a fontes pré-árabes, como a dosantigos canaanitas (em guerra com e subjugados pelos hebreus, retro-projetando portanto uma luta milenar pelo mesmo território). O exercí-cio de legitimação teve função útil para suas nações no século XX, mas écientificamente duvidoso. Não há indicações de uma identidade coletivapalestina antes do século XIX, e mesmo então a população palestina eramuito pequena. Numa operação semelhante os sionistas, que tinham queocultar a existência de populações não judaicas na antiga e moderna Pales-tina, presença que poderia prejudicar suas próprias reivindicações, os pa-lestinos tinham que minimizar o historicamente predominante papel dosjudeus na história da Palestina durante os tempos bíblicos. Uma narrativaque mostrasse a consciência palestina local teria problema em acomo-dar as variegadas divisões internas da população e sua identificação comfatores mais universais como a umma muçulmana. Em outras palavras, areconstrução histórica palestina não é menos problemática do que aqueladesenvolvida pelos sionistas.

19 Em contraste, os sionistas podem apontar para uma continuidade cultural igualmente im-pressionante pelo lado dos judeus na Diáspora, que mantinham (ainda que numa formareligiosa) um sentido de nacionalidade centrada na memória, transmitida de uma geraçãoa outra, de uma Terra Prometida, recebida, perdida e a ser recuperada no futuro. Porém ossionistas têm maior dificuldade � vistos os inúmeros casamentos mistos e conversões �em provar a existência de um elo biológico entre os judeus de hoje e os hebreus da Antigüida-de. Os Khazares constituem somente o exemplo mais famoso disso; cf. a interpretação con-testada de Koestler (1976). Cf. Parkes (1971); Peters (1984), que foi desmascarado comouma burla antipalestina.

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A integração relativamente fraca da sociedade palestina sob o regi-me otomano, assim como suas fronteiras vagas e uma muito obscura di-ferenciação das populações árabes em torno, poderia explicar parcialmen-te as dificuldades que a sociedade palestina teve em criar para si mesmouma identidade coletiva coerente. Isso teve conseqüências especialmentetrágicas durante seu confronto com o sionismo antes de 1948, e durantetoda a fase crítica antes da fragmentação de sua sociedade. Dois proble-mas que os palestinos continuam a enfrentar hoje remontam a isso. Porum lado, a divisão sectária que predominava na Palestina (assim como emtodo o mundo muçulmano e cristão pré-moderno) durante o longo perío-do quando a identificação com um grupo religioso tinha primazia sobrea identidade territorial ou lingüística, continua até hoje a prejudicar asrelações entre palestinos muçulmanos e palestinos cristãos. As minoriascristãs se vêem como �mais antigas� e �primordiais�, mas de um pontode vista fundamentalista muçulmano são meramente �tolerados�. Ain-da que seu extremismo não reflita a atitude da maioria dos palestinosmuçulmanos, tudo que é relativo às relações cristãs-muçulmanas perma-nece como ponto sensível na sociedade palestina.

Por outro lado, as muitas semelhanças que os palestinos árabes têmcom seus vizinhos (mesma língua e religião da maioria, história e costu-mes compartilhados etc.) tornaram uma orientação pan-arabista prová-vel e facilmente legitimizada, mas também criaram um problema parauma nacionalidade palestina independente. De fato, esse nacionalismopalestino somente surgiu depois que as nações árabes falharam repetidae decisivamente em amparar seus irmãos palestinos, provocando um sen-timento permanente de traição e isolamento entre os palestinos. Talvezo severo tratamento sofrido pelos refugiados palestinos na maioria dospaíses árabes foi para seu sentimento de identidade independente aindamais significativo do que a nakba (a catastrófica destruição da sociedadepalestina em 1948 por Israel). Mesmo assim, o pan-arabismo permaneceuma força potencial.

O antagonismo entre clãs e famílias e entre camponeses, nômades emoradores da cidade, que deve ser acrescido dos marcantes contrastesregionais, explica em parte por que os palestinos não conseguiram resis-tir ao avanço dos imigrantes sionistas, que graças à proteção britânica setornaram mais fortes e mais organizados. Não menos importantes foram

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outros fatores sociais e econômicos. A maioria dos palestinos continuouno papel de inquilino endividado que inicialmente sofria mais opressãopor parte dos donos das terras do que dos sionistas. A estrutura autoritá-ria-patriarcal da sociedade palestina não permitiu o desenvolvimento deuma sociedade civil autônoma durante o mandato britânico. A políticapermaneceu, com poucas exceções, a prerrogativa de um pequeno númerode grandes famílias, cujos membros também preenchiam a maioria dasfunções ideológicas (dignitários religiosos, educadores etc.). Enfraqueci-dos por desentendimentos externos, se viram impedidos de uma respostaadequada ao desafio sionista. Não menos importante, o limite quantoao que era aceitável no debate intrapalestino era muito mais estreito doque no yishuv. Violência e assassinato de oponentes políticos e ideológi-cos eram mais comuns na sociedade árabe do que na sionista (além deque sionistas e britânicos nada faziam para impedi-los). Assim temosum paradoxo. Enquanto sua falta de poder � tanto um sobre o outro quan-to diante do mundo � forçou os sionistas, dialeticamente, a improvisarpolíticas de ganhos graduais, que afinal criaram uma massa crítica edesaguaram num �Estado em construção� (state on the way) internamentedemocrático, exatamente o oposto aconteceu com os palestinos: o fatode haver uma estreita sobreposição de poder econômico, político e ideoló-gico e de a maior parte da comunidade estar nas mãos de um pequenonúmero de famílias paralisou essa sociedade em táticas destrutivas e numdiscurso estéril e contraproducente. Contínuas greves, boicotes, e mes-mo a Grande Revolta de 1936, associada à recusa palestina em fazer qual-quer tipo de acordo, tudo isso tendeu a fortalecer os judeus mais do quea enfraquecê-los. A força interna do oponente sionista, que depois doHolocausto capitalizou sobre os sentimentos de culpa do Ocidente, seencaixou com a fraqueza endógena da sociedade palestina, que não conse-guiu criar uma política coerente. O resultado final foi a derrota em 1947-1948 e a nakba. A maioria dos palestinos foi transformada em refugiadossem terra e sem teto não bem-vindos nos países vizinhos, miseráveisdemais para absorvê-los.

É, portanto, difícil definir uma identidade coletiva árabe palestinacoerente antes da chegada do sionismo. Enquanto um patriotismo localrudimentar palestino pode ter existido antes do sionismo, é provavel-mente correto dizer que, mais do que tudo, foi o confronto com o sionismo

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que criou a histórica trajetória palestina independentemente de seus vizi-nhos árabes.20 A �invasão� sionista � assim ela parece aos palestinos �privou-os tanto de oportunidades políticas quanto econômicas. Vendade terras de proprietários árabes para sionistas levou à remoção de inqui-linos palestinos, e confrontou muitos mais com a mesma ameaça. O resul-tante aumento no preço das terras levou os palestinos à miséria. A estra-tégia da esquerda sionista do �trabalho hebraico� progressivamenteimpediu trabalhadores palestinos de entrar no mercado de trabalho judai-co. Desejo de independência, estimulado por sentimentos pan-arabistas,era impedido pelos britânicos para facilitar o crescimento de uma naçãojudaica na Palestina. A resistência palestina contra essas tendências foibrecada por violentas táticas britânicas e sionistas. Todas essas experiên-cias ajudaram a criar uma nação palestina árabe e afastá-la de sírios, liba-neses, egípcios etc. Ou seja, o sionismo criou não uma mas duas naçõesna Palestina: os israelenses e os palestinos, mesmo que a identidade cole-tiva palestina ainda não estivesse bem cristalizada. Ela continha elemen-tos tanto do pan-arabismo quanto do nacionalismo local patriótico, as-sim como manifestações do islamismo político.

Segundo estágio: nacionalismo palestino pré-Estado

O nacionalismo palestino como movimento e discurso coerente secriou após e em resposta à destruição e dispersão da sociedade palestinaem 1948. A catástrofe de 1948 havia tirado dos palestinos todo prestígioeconômico ou diplomático; destituiu completamente suas liderançasnacionais e pensadores anteriores. Os anos 50 e o começo dos 60 consti-tuem um novo começo, quando uma nova geração estava crescendo noscampos de refugiados que tinham pipocado nas terras dos vizinhos deIsrael: Jordânia, Líbano, Gaza. Os palestinos constituem, não menos doque os judeus, uma �comunidade imaginada�. Isso não no sentido pejora-tivo, mas no sentido de uma comunidade que tinha que construir suasfronteiras, e vasculhar seu passado para definir as características que se-riam aceitas como autênticas, em suma, inventar-se como nação. Quando

20 Kimmerling & Migdal (1994). Khalidi (1997) critica sua tese e desenvolve uma tentativasofisticada para seguir a pista da consciência nacional palestina até meados do século XIX,no entanto não convenceu a maioria dos críticos.

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os refugiados palestinos começaram a se dar conta da catástrofe que ostinha acometido, e a articular seu destino, eles tiveram que se contentarcom uma restrita quantidade de materiais ideológicos. Eles tinham queolhar para tudo o que tinha sido, com todos os seus episódios heróicos,afinal uma história de derrota, e encarar o desafio de transformar essaherança em uma missão positiva no futuro.21

O novo nacionalismo palestino foi desenvolvido por universitários,que venceram as limitações e a imobilidade de uma existência de refugia-dos e logo ocuparam posições de liderança nos vários partidos políticose grupos de comando. Ainda assim, em vista da dispersão dos palestinose seu relativo isolamento uns dos outros, não é surpreendente que váriasanálises ideológicas tenham se desenvolvido paralelamente. Duas tendên-cias principais se destacam. Os palestinos do Egito e do Golfo, entre elesmuitos descendentes de famílias sunitas da Faixa de Gaza, estavam naorigem do Fatah, um movimento estritamente não classista que objetivavaa liberação de toda a Palestina. A identidade palestina como enunciadapelo Fatah era estritamente monista: todas as diferenças palestinas, parti-cularmente as que envolviam questões de classe, tinham que ser postasde lado até que o objetivo final da �volta para a Palestina� tivesse sidoalcançado. Fingindo seguir os ideais pan-arabistas, Fatah, logo lideradopor Yasser Arafat, advogava pela autoconcessão de poder palestino, estritaneutralidade nas ligações com os Estados árabes hospedeiros, e um caute-loso evitamento do tópico muçulmano.

A juventude palestina do Líbano e da Síria, por outro lado, gravitariapara Beirute, naquele tempo o centro ideológico árabe mais fértil, ondediscursos pan-arabistas, watani, marxistas, liberais e religiosos se entre-cruzavam. Ali era também, infelizmente, o centro da política rival árabe.As universidades estavam imbuídas de ideologias marcantemente secula-res, não sectárias e terceiro-mundistas esquerdistas radicais, que eramobviamente atraentes aos cristãos palestinos (assim como a membros

21 É verdade que os judeus também tinham que lidar com uma história de derrotas. Contudo,a duração maior de sua história lhes proporcionava melhores ocasiões para interpretá-lamais positivamente. Assim, uma primeira catástrofe, a perda da soberania nacional para osromanos, fica num passado remoto: há dezenove séculos; enquanto a segunda, o Holocausto,é tão recente que quase coincidiu com o renascimento da soberania judaica � e suas lições,de todo modo, ainda não podem ser absorvidas completamente.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

das muitas outras comunidades não hegemônicas do Líbano). Daí surgi-ram movimentos como a Frente Popular para a Libertação da Palestinade George Habash (FPLP) e a Frente Democrática para a Libertação daPalestina (FDLP). Eles elaboraram ideologias com uma marcante tendên-cia socialista, que tentava combinar o nacionalismo palestino com umprograma de transformação revolucionária do mundo árabe enquanto pre-lúdio necessário para a libertação da Palestina. O nacionalismo palesti-no era popular entre as massas árabes. Chefes locais o consideravam umfermento potencialmente perigoso, e desde 1964 tentaram canalizá-loem uma estritamente controlada Organização para a Libertação da Pales-tina (OLP).

As ideologias propostas pelas organizações político-militares palesti-nas divergiam significativamente entre si. A essa altura ainda não existiaum consenso sobre quem ou o que os palestinos eram enquanto nação.No nível programático, os grupos nacionalistas divergiam quanto ao papeldo arabismo e do islamismo. A identidade coletiva se desenvolvia com baseem práticas comuns: a �reinvenção� palestina estava na base da retomadada luta armada que � junto com o desenvolvimento de uma rede de solida-riedade, base do que se tornaria eventualmente a sociedade civil palesti-na � era crucial para retomar a dignidade de uma massa de refugiadosdesprezados, desmoralizados e dispersos, inspirando-os com o epítetode �geração da revolução� ( jil ath-thawra). Todas as correntes palestinastinham em comum uma exaltação da luta armada, uma superestimaçãode seu próprio potencial, e uma perigosa ignorância em relação ao inimigo.Israel era visto simplesmente como um representante do imperialismoocidental sem nenhuma força ou estrutura interna própria. O �vazio�social e político de Israel era enfatizado pela denominação �a entidadesionista�. Ações de guerrilha palestina eram militarmente ineficientes,porém ajudavam muito o moral palestino. Mais importante, provocavamretaliações israelenses que desestabilizavam os países hospedeiros árabes,e punham em ação uma espiral que culminou com a Guerra de Junho de1967. O resultado não planejado dessa guerra foi a ocupação do resto daPalestina histórica (isto é, dentro das fronteiras do mandato), uma segun-da fuga de centenas de milhares de palestinos para a Jordânia, uma novadivisão, entre aqueles palestinos moradores da Cisjordânia e de Gaza,agora sob ocupação israelense, e outros, fora dessas regiões.

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Identidades israelenses e palestinas: questões ideológicas

A guerra de 1967 foi uma virada para a autocompreensão não só dospalestinos mas também da de Israel. Sua conseqüência foi uma desagradá-vel e involuntária coabitação diária do palestino �interno� e do ocupanteisraelense. Esse contato diário de ocupante e ocupado se tornou um pro-cesso em que ambos os lados tomaram conhecimento da realidade obsti-nada do outro. Pôs em movimento uma série de reflexões e atividades �desde demonstrações de protesto até diálogos de paz transculturais � queculminariam em reconhecimento mútuo. Já vimos como esse processolevou os israelenses a redefinir as fronteiras de seu país e comunidade eo �conteúdo� de sua identidade coletiva. Mas o envolvimento mútuotransformou o auto-entendimento dos palestinos também.

O mais importante efeito de longo termo da ocupação sobre os pales-tinos foi uma mudança dialética no domínio entre �dentro� e �fora�. Osárabes israelenses, os originários �dentro�, o remanescente da sociedadepalestina em Israel após 1948, foram por dezenove anos consideradossemitraidores e desconsiderados. A hegemonia do discurso palestinoestava com um �fora� que articulava uma ideologia revolucionária de�volta�, e cujos fedayin se tornaram os heróis da toda a nação árabe. Defato, uma conseqüência imediata da guerra de 1967 foi permitir às fac-ções de comando palestinas controlar a OLP, transformando-a num �Esta-do portátil�. Arafat tentou transformar a OLP num equivalente da agên-cia judaica pré-Estado de Israel � um �Estado a caminho� de um governoem exílio (Kimmerling & Migdal, 1994, p.216). Eventualmente, a OLP,logo dominada pelo Fatah, desenvolveu um elaborado exército de oficiais,uma série de pequenos exércitos, suas próprias escolas, hospitais, servi-ços sociais e aparatos de propaganda e diplomáticos, um império financeiro.A OLP conseguiu mais ou menos unir os vários grupos de guerrilha pales-tinos num todo funcionante, que veio a representar a causa palestina, enesse percurso conseguiu consideráveis recursos diplomáticos e econômi-cos. Mas enquanto a OLP foi, entre os anos 60 e 80, bem-sucedida emtornar a causa palestina popular no exterior, se manteve muito ineficientelocalmente na mudança do equilíbrio de forças. Incapaz de impedir umúnico assentamento israelense, se envolveu em batalhas políticas inter-árabes, desafiou o regime hachemita na Jordânia sem sucesso, e depoisperdeu credibilidade e simpatia ao estabelecer seu �Estadinho� pseudo-soberano no sul do Líbano, caracterizado por uma variante palestina de

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estadismo � numa adulação simbólica e militar de um aparente Estado,mas autoritário e cada vez mais distante das preocupações do cidadãopalestino comum (Sayigh, 1997).

No meio-tempo, contudo, o �dentro� cresceu em força. Quanto maisIsrael invadia a Cisjordânia e Gaza, mais importante se tornava sumud, a�firmeza� dos que ficaram �dentro� para resistir a uma nova expulsão.Os palestinos de �dentro� tentaram proteger seus interesses por meiosnão violentos tais como petições e marchas. A intifada, um movimentoespontâneo do final de 1987, que inicialmente escapou do controle daOLP, se tornou um importante marco na consciência palestina. Por al-guns meses quebrou os moldes patriarcais autoritários que o movimen-to nacional palestino tinha herdado e reproduzido. A conseqüência maisconspícua da intifada foi um tipo de revolução de gerações ao inverso,na qual adolescentes, as �crianças das pedras�, se tornaram os professo-res de todo o povo, que admirava sua coragem. Mas a intifada tambémcontinha elementos de emancipação das mulheres, de luta de classes (nainútil tentativa de criar uma autarquia econômica palestina), e uma �pu-rificação� populista sob a forma de tribunais do povo contra informan-tes, traficantes de drogas e �mulheres imorais�.22 A real importância daintifada estava, porém, na acidental descoberta do �poder dos sem-po-der�. Suprimir tumultos desarmados feitos por crianças e mulheres ti-nha um efeito muito mais desmoralizante nos soldados israelenses doque perseguir guerrilheiros palestinos. Essa tarefa de dominar uma re-belião popular levou a encontros e conversações israelense-palestinos e,eventualmente, a negociações de paz. No meio-tempo entretanto, a re-volta foi retomada pela OLP.

Esquematicamente podemos representar a identidade coletiva pa-lestina no período entre 1987 e 1993 da seguinte forma:

+ enfatizado RELIGIÃO NACIONALISMO SOCIALISMO................................................................................................................

� desenfatizado DEMOCRACIA

22 Sobre a intifada, cf. inter alia as pesquisas de Joost R. Hiltermann, Behind the Intifada (1992)e Zeev Schiff and Ehud Ya�ari, Intifada: The Palestinian Uprising – Israel’s Third Front. New York:Simon & Schuster, 1990.

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Terceiro estágio: a construção da nação, 1993 até hoje

Negociações com Israel tinham se tornado possíveis, pelo lado pales-tino, como resultado final de uma longa evolução política e ideológicanos anos 70 e 80 quanto à questão da partilha � o equivalente a debatessemelhantes que borbulhavam entre facções sionistas no final dos anos30 e 40. O crescente realismo do movimento nacional palestino � conside-rado por seus críticos mais utópicos como uma série de retiradas � foimediado pelos palestinos da Cisjordânia e de Gaza e da própria Israel,que passaram a ter um papel crescentemente ativo nos debates da OLP.Os estágios desse processo são bem conhecidos. A posição Fatah origi-nal lembrava a dos líderes palestinos antes de 1948, clamando por umacompleta erradicação da comunidade judaica na Palestina e um retornoa um status quo pré-sionista. Eventualmente a maioria da OLP passou aadotar a idéia da partilha e um objetivo bem menos grandioso: um esta-do em parte da Palestina. A constituição da OLP de 1966 foi um passo adi-ante no sentido de prever um �Estado democrático multiconfessional�(presumivelmente seguindo o então viável modelo do Líbano) no qualos descendentes da comunidade judaica que já moravam na Palestinaantes do sionismo seriam convidados a permanecer. Os judeus permane-ceram definidos como uma minoria religiosa: a nacionalidade do novoEstado seria árabe. Gradualmente a proporção de judeus israelenses acei-tos para continuar a viver em tal Estado palestino se tornou opaca. Emseguida, a adoção de um programa de estágios pelo Conselho NacionalPalestino XII (CNP) no Cairo em 1974 propôs o estabelecimento de uma�autoridade nacional� em qualquer parte da �terra-mãe a ser libertada�.Isso já implicava alguma forma de coexistência (não exatamente pacífi-ca) com a parte ainda não �libertada�, isto é, Israel. O FDLP, o mais pro-gressista dos partidos palestinos, reconheceu, em teoria, a existência deuma nação separada israelense judaica. Na metade dos anos 60, algunslíderes palestinos já se engajavam em encontros secretos com israelen-ses da esquerda. A derrota da OLP no Líbano em 1982 fortaleceu o surgi-mento de líderes acadêmicos e comunitários na Cisjordânia e em Gaza.A intifada estimulou a OLP a completar a última etapa. Em 1988, o Conse-lho Nacional Palestino XVIII em Argel indiretamente reconheceu o Estadode Israel e pediu uma solução com dois Estados: com esse passo, um

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campo de diálogo foi alcançado com os israelenses dispostos a trocar�terra por paz�. Depois de uma série de etapas intermediárias, isso culmi-nou em 1993 com a declaração de princípios que continha, pela primeiravez, o reconhecimento mútuo Israel�Palestina, e previa o estabelecimentode zonas palestinas autônomas na Cisjordânia e em Gaza.

Após 1994, oficiais repatriados da OLP se tornaram a espinha dorsalda administração palestina na entidade semi-autônoma que foi estabe-lecida em parte dos territórios ocupados. O Fatah, cada vez menos ideoló-gico, mais ou menos absorveu o FPLP e outras facções dissidentes, e tinhauma desconfortável coexistência com as lideranças locais na Cisjordâniae em Gaza. Em vista de eventos posteriores e de seu pequeno significa-do em geral, torna-se tentador considerar todo o experimento de dar po-der aos palestinos paulatinamente liderado por Arafat como fadado aoinsucesso. No começo, todavia, a ANP ainda detinha as esperanças demuitos palestinos, e tinha um certo prestígio. Começou a melhorar a ne-gligenciada infra-estrutura dos territórios, construiu uma ampla rede deinstituições, e através de incessante propaganda fez surgir a crença deque o Estado palestino, com Jerusalém como capital, estava a um passo.Assim como o sionismo antes do estabelecimento do Estado de Israel, onacionalismo palestino se diferenciava de e se desenvolveu contra umambiente hostil. Copiando seus vizinhos israelenses, e outros movimen-tos nacionais, os palestinos tomaram muito cuidado em desenvolver sím-bolos específicos de soberania, como uma bandeira, um hino, selos, no-mes de ruas comemorando episódios heróicos, uma incipiente �religiãocivil� e uma antiga genealogia para estar à altura dos judeus. O momentode glória da ANP foi a vitória maciça de Arafat nas eleições de 1996.

Portanto, os Acordos de Oslo trouxeram muita esperança mas des-truíram-na logo em seguida. A transição contraditória de movimento paraEstado é o fator principal nas mudanças que atualmente acontecem naidentidade coletiva palestina. O movimento nacional palestino suspensoentre fracasso e sucesso estava agora dominado por quatro dilemas: (1)a exclusão dos palestinos �de fora�; (2) a dependência de Israel da lideran-ça �de dentro�; (3) democratização incompleta; (4) a fragilidade da socie-dade civil.

Juntos, esses desafios progressivamente afetaram a liderança deArafat.

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1) A aceitação dos Acordos de Oslo praticamente deixou de fora ametade da nação palestina, a saber, os refugiados. Ao envolver a OLP emconversas bilaterais em 1992, Rabin e Peres na verdade conseguiram le-var as lideranças dos refugiados a abandonar seus �protegidos� em trocade seu próprio direito de retorno e de posições de autoridade sobre ospalestinos internos. Uma vez estabelecida nos territórios palestinos, essaação deixou a liderança da OLP sujeita a qualquer coisa que Israel se dig-nasse a oferecer. Deixou também a Diáspora palestina sem liderança, denovo na mão de facções rivais radicais e sem poder.

2) Não obstante as aparências, a liderança da OLP logo sofreu deuma falta de legitimidade na Cisjordânia e em Gaza, tanto por conta dessatraição com os refugiados quanto pelas restrições do próprio Acordo deOslo, que implicava um estágio intermediário com muitas pontas soltassem um claro compromisso com um Estado palestino independente emtodas as cidades da Cisjordânia e de Gaza. Muitos palestinos considera-vam os acordos viesados em favor de Israel. De fato, o acordo refletia oisolamento e a fraqueza política dos palestinos após sua calamitosa identi-ficação com o Iraque de Saddam Hussein durante a crise do Golfo de 1990-1991. Além disso, mesmo os objetivos limitados contidos no Acordo deOslo de 1993 foram progressivamente desfeitos e qualquer concessãoque Israel fizesse quanto ao território e à autonomia era feita na condiçãode a OLP policiar seus próprios extremistas. Isso mais uma vez afetou acredibilidade das lideranças.

3) Pequeno progresso foi feito na transformação das estruturas auto-ritárias que permeiam a vida social palestina. A democracia que a OLP

estabeleceu nos territórios sob seu controle era incompleta e apenas for-mal; o parlamento palestino tem poderes muito reduzidos e é amplamentedependente de um executivo controlado por Arafat. Eleições � feitas ape-nas uma vez � eram parcialmente de base étnica e mesmo religiosa (comlugares reservados para cristãos e samaritanos, reminiscência do siste-ma otomano millet).

4) Finalmente e mais importante, a ausência de uma sociedade ci-vil atuante nos territórios controlados pela ANP. Corrupção e nepotismotornaram a consecução de progresso econômico e justiça social ainda maisdifíceis. Arafat coibiu uma incipiente imprensa livre, seu serviço secretofoi culpado de violações de direitos humanos contra dissidentes, e no

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seu esforço de construir um Estado a ANP tentou colocar sob seu con-trole todos os órgãos autônomos �intermediários� � em primeiro lugaras centenas de ONGs que formavam a estrutura da vida social organiza-da nos territórios.

Ao final da década todos esses fatores apontavam numa direção: umprofundo desapontamento com a liderança da ANP, com o projeto dedesenvolvimento e emancipação nacional que eles pretendiam viabilizar,e indiretamente com a identidade coletiva que eles tentaram criar. Em vezda mobilização da sociedade, provavelmente indispensável para o projetode construção da nação de que os palestinos precisam, o processo de pazlevou a uma onipresente desmoralização e portanto desmobilização. Nãohavia um �dividendo da paz�. Milhares de pessoas tinham se tornado de-pendentes da ANP para sua sobrevivência; simultaneamente, muitos inte-lectuais se retiraram da vida pública para a proteção da vida privada.

Onde isso deixa a identidade coletiva palestina? No ano 2000 a lide-rança da ANP falhou em tornar claro aos palestinos e aos observadoresexternos qual era o contorno dessa sociedade: a despeito de declaraçõesverbais em contrário, essas lideranças pareciam ter aceitado uma mutila-ção de fato da nação palestina ao deixar de fora os refugiados; pelo me-nos até as negociações de Camp David em julho de 2000, eles pareciamdispostos a aceitar mais uma mutilação do território palestino por causade sua incapacidade de impedir contínua colonização por parte de Israel.Finalmente, e no longo prazo mais prejudicial: não foram capazes de criarum consenso sobre qual tipo de sociedade o futuro Estado palestino deve-ria se tornar � religioso ou secular, ocidental ou socialista, pluralista ousingular. A ANP nem tornou claros seus próprios objetivos nem permi-tiu uma livre discussão de cursos alternativos.

Porém, ao final dos anos 90, aconteciam debates semi-secretos, nosquais o fracasso da construção do Estado palestino era mais abertamentecriticado e havia discussões para determinar a forma da representaçãopalestina. Essa forma ou narrativa tinha também ficado mais complicada:de �monista� e �ativista� ia em direção a críticas e descrições mais refina-das em classe e gênero. Nesses debates semipúblicos e semiclandestinosduas principais identidades se desenvolveram e propagaram, de algumaforma equivalentes às israelenses: uma identidade religiosa-fundamen-talista e uma ocidental-democrática. Nenhuma era antinacionalista mas

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cada uma propunha uma significativa modificação no discurso monista.Em certo sentido, cada uma poderia ser vista como um prolongamentode características iniciais do Fatah e dos intelectuais de esquerda.

A opção pluralista democrática merece uma análise mais profundado que caberia neste texto. Pesquisas de opinião sugerem que a maioriados palestinos prefere um regime democrático de livre mercado e desejacopiar modelos como os da Suécia ou Suíça. Isso apontaria uma escolhaclaramente secular, não sectária. Possivelmente também um regime quecombinasse liberdade política com proteção contra os assaltos do capita-lismo selvagem além de um pouco de previdência social. Tal Estado pales-tino presumivelmente consideraria sua identidade árabe e/ou islâmicacomo um assunto particular de seus cidadãos, ou no máximo a ser repre-sentado simbolicamente, e como tal não haveria razão para que não pu-desse haver interação e coexistência com um vizinho israelense estrutu-rado da mesma forma. Na realidade dos territórios palestinos, todavia,essa alternativa não foi completamente teorizada. A maioria dos críticosnão trouxe nenhuma contraproposta construtiva.23 Tragicamente ausen-tes são novas análises e novas estratégias de intelectuais esquerdistaspalestinos, que parecem estar tomados pela mesma fraqueza do que seuscolegas no exterior. O ceticismo palestino a respeito do processo de paz,que cresceu enquanto o Acordo de Oslo falhou em proporcionar o prome-tido, não deveria ser confundido com uma rejeição à paz com Israel en-quanto tal. Um grande número de palestinos investiu esforços e boa von-tade na construção de instituições e regras para lidar com os problemassociais, econômicos e educacionais dessa sociedade. Intelectuais palesti-nos que estão pessoalmente envolvidos com um futuro democrático conti-nuaram a se engajar na busca por políticas alternativas viáveis (até o come-ço da nova intifada, muitas vezes em diálogo com colegas israelenses).Infelizmente, o espaço para um debate político criativo foi se fechando,e pouca produção original surgiu até agora desses esforços. Em muitasoutras instâncias, a idéia de democracia liberal na Palestina se confun-diu com enriquecimento e vantagens pessoais, consumismo ostensivo euma cópia de estilos yuppie das elites ocidentalizadas.

23 Edward Said é provavelmente o exemplo mais triste disso, por exemplo seu Peace and its

Discontents: Essays on Palestine and the Middle East Peace Process (1996). Cf. Chase (1997), p.69-74. Para uma visão totalmente diferente, consultar Massad (1997, p.21-35).

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A bancarrota ideológica do grupo ao redor de Arafat, junto com a ane-mia da esquerda democrática, deixava a porta amplamente aberta para adireita religiosa muçulmana entrar. O Islã político não constitui uma novapresença na comunidade palestina, porém seu surgimento enquanto opo-nente sério e politicamente organizado para a hegemonia � em oposiçãoà liderança nacionalista existente � só começou no final dos anos 80, emreação às percebidas �rendições� da OLP a Israel, a sua crescente buro-cratização e corrupção, e a sua incapacidade em conseguir o mínimo acei-tável para o povo palestino. Hamas e outros partidos muçulmanos meno-res (tais como o Jihad Islami) não desenvolveram somente uma liderançaalternativa mas também uma rede de instituições sociais ao redor da mes-quita (escolas, hospitais, centros sociais etc.), com a finalidade de preen-cher o vazio deixado tanto por Israel quanto pela OLP. Eles também pro-põem uma definição diferente de ideologia e coletividade. Na definiçãomuçulmana fundamentalista não há lugar para divisões territoriais daPalestina, a qual, tendo como centro a cidade santa de Jerusalém, conside-rada país muçulmano inalienável, deve ser conquistada em sua totalida-de numa luta final à outrance contra Israel. Enquanto essa guerra pode sedesacelerar por armistícios temporários, não pode ter um fim enquantonão for liquidada a soberania judaica sobre qualquer parte da Palestina.Uma luta mantida por meios revolucionários e terroristas, tais como bom-bas suicidas, não conseguiu nos anos 90 enfraquecer Israel de forma de-cisiva, ainda que tenha instilado medo em sua população. Dentro da co-munidade palestina, o Hamas conseguiu �desmascarar� a ANP comosendo cúmplice dos sionistas, e responsável por desarmar os islamitas,que conseguiram assim ocupar uma posição moralmente superior. As-sim como os fundamentalistas judeus fizeram em Israel, os fundamen-talistas muçulmanos repetidamente forçaram, dentro da sociedade pales-tina, todo o projeto de construção da paz OLP � Israel a tomar uma atitudedefensiva e tendencialmente deslegitimizaram a ANP. Isso forçou o pró-prio Fatah a ter posições muito mais militantes contra Israel � fato quese tornou ainda mais claro com o começo da intifada de al-Aqsa em setem-bro de 2000.

Em relação à identidade coletiva, os fundamentalistas muçulmanostentaram desviar a definição política da comunidade palestina de umavinculação territorial e de uma limitada definição nacional, como é de-

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fendida pelo Fatah, para uma mais universal que englobasse em princí-pio todos os crentes muçulmanos. Isso não exclui a existência de Esta-dos separados. Eles advogam o estabelecimento de um Estado teocráticoem toda a Palestina, onde a vida política, social e econômica seria basea-da na shari’ah, lei religiosa muçulmana; tanto os palestinos cristãos quantoos eventuais remanescentes judeus seriam relegados ao status de �mino-ria protegida�. Assim como os fundamentalistas judeus, muitos islamitasconcordam que esse objetivo pode ser conseguido passo a passo, pormeios democráticos e educacionais, enquanto outros mais extremistaspropõem uma transformação revolucionária violenta e mais rápida, quenecessariamente inclui a desestabilização do atual regime. Ambas as ten-dências têm em comum a rejeição de uma democracia pluralista baseadana soberania popular: �Deus tem a soberania�, cujas palavras reveladasnas escrituras sagradas e cujo desejo somente podem ser interpretados demaneira autoritária por uma casta de especialistas religiosos profissionais.

Como seus oponentes judeus, porém, o Hamas e seus colaboradores(satélites) não foram capazes nesse período de expandir seus seguido-res para mais do que um terço da população. Ainda que isso constituísseum sério desafio à autoridade de Arafat, seu programa não foi aceito pelamaioria dos palestinos. De fato, a maioria dos palestinos da Cisjordâniae de Gaza continuou durante os anos 90 a apoiar o processo de paz en-quanto mal menor. Eles podiam estar infelizes com as limitações e o lentoprogresso, desconfiar das intenções israelenses, e criticar o modo comoArafat lidava com as questões. Porém, pesquisas de opinião indicavamque basicamente dois terços dos palestinos preferiam uma política de-mocrática a uma muçulmana.24 Eles obviamente não estavam convenci-dos de que a liderança da ANP estava levando os palestinos para o cami-nho da democratização. Mas também não estavam convencidos de que�o Islã é a resposta�: até o final do ano 2000 a violência aleatória do Hamascontra Israel foi geralmente considerada estúpida (ainda que não necessa-riamente repreensível do ponto de vista moral) e contraproducente.

Em suma, as linhas de gravitação ideológica da comunidade palestinadurante o final dos anos 90 e até o começo da segunda intifada podem

24 A opinião pública palestina é avaliada por sondagens periódicas do Center for PalestineResearch and Study em Nablus, chefiado por Khalil Shikaki, e seus resultados são relata-dos em suas publicações e no website www.cprs-palestine.org.

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ser sumarizadas da seguinte forma: o nacionalismo permanece o elementomais forte ainda que o processo da formação de um Estado independen-te não tenha sido completado; a forma como a ANP institucionalizou seupoder pode ter colocado a democracia, enquanto valor, na defensiva; osocialismo tinha mais ou menos desaparecido do mapa; o fundamenta-lismo religioso tinha surgido como uma alternativa viável: em parte amal-gamado com o nacionalismo e em parte permanecendo na oposição.

+ predominante RELIGIÃO NACIONALISMO................................................................................................................

� oposição DEMOCRACIA ↔ RELIGIÃO

Da mesma forma que a identidade coletiva israelense judaica, as fron-teiras e valores da subjetividade palestina passaram por diversos estágiose não tiveram tempo de amadurecer em um formato mais ou menos fixo.Assim como no caso judaico, uma consciência nacional palestina vin-culada ao território teve que se destacar de definições predominantementereligiosas na origem. Em nenhum caso esse processo foi completado. Emambos os casos, as definições coletivas foram eventualmente desafiadaspor outras, mais individualistas, democráticas, radicais, seculares, libe-rais. Porém, enquanto a comunidade não tinha alcançado um estágio maisou menos estável, o nacionalismo permaneceu o denominador comummais forte.

Há também distinções importantes. A sociedade palestina nunca pas-sou pelo processo de relativa secularização que muitas comunidades ju-daicas tiveram. Como resultado, a identificação religiosa é muito mais di-fundida entre os palestinos do que entre os israelenses, onde ela é maisou menos restrita a uma (ainda que grande) minoria de judeus observantes.Pela mesma razão, a tendência pluralista democrática é mais fortementeenraizada entre israelenses do que entre palestinos. Por outro lado nãohá nada na coletividade palestina que se aproxime da estreita sobreposiçãode religião e nacionalidade judaica. Nem há um equivalente entre os israe-lenses das tensões entre o pan-arabismo e o �canaanitismo� local.

A evolução ideológica judaica israelense é mais articulada e está mui-tos passos adiante da dos árabes palestinos porque o sionismo conseguiu

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seu Estado muito mais cedo. Com a soberania, o Kulturkampf entre fun-damentalismo e democracia secular também se tornou mais intenso emIsrael. Em parte isso tem a ver com a heterogeneidade de Israel: os ára-bes israelenses são legalmente parte da sociedade mas não podem serinscritos na definição judaica da sociedade; os palestinos não conferemsemelhante legitimidade aos colonos judeus que vivem entre eles e for-mam 10% da sua população. De toda forma ambas as sociedades se encon-tram diante de um dilema basicamente semelhante: a escolha entre umaidentidade religiosa ou democrática. A contradição pode somente se exa-cerbar e alcançar um ponto mais decisivo depois que os palestinos tive-rem seu próprio Estado, fato atualmente meio duvidoso.

Até o fracasso das negociações do status final em julho de 2000, acriação de um Estado palestino independente parecia provável e próxima.Talvez isso teria justificado, visto retroativamente, as indas e vindas deArafat. Nas atuais circunstâncias de quase-guerra entre ambas as comuni-dades, soberania se tornou de novo uma possibilidade mais distante. Aaspiração a isso não se modificou, porém, e podemos portanto levantara hipótese de tal Estado palestino num futuro quarto estágio, no qual ascontradições descritas acima podem ainda amadurecer e alcançar umponto de explosão.

O que pode ser esperado? Uma vez conseguido o Estado, podemosprever o declínio � depois de certo tempo � do nacionalismo palestinopelo menos entre os palestinos que moram nesse Estado, o qual não vairesolver o problema dos três milhões de palestinos na diáspora, a nãoser que se crie uma lei semelhante à Lei do Retorno para os Palestinos.Mesmo então, somente uma minoria, justamente aqueles que estão empior situação, vai na verdade voltar ao país de origem; esses repatriados,particularmente os do Líbano e da Síria, podem acabar numa posiçãosemelhante àquela dos judeus orientais em Israel. Palestinos que optampor ficar no exterior vão se transformar lentamente numa diáspora me-nos engajada, e se integrar mais ou menos em seus países de residência.Porém, sua posição certamente será influenciada pela existência de umEstado palestino e pode eventualmente ficar parecida com a dos judeusamericanos ou ingleses em relação a Israel. No próprio Estado palestinouma luta intensificada pela democracia pode ser prevista: uma contra-partida palestina para a contradição democracia�religião que afeta atual-

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mente Israel. Todavia, a dificuldade para obter democracia plena pode sermaior na Palestina do que em Israel, pois há ali uma elite muito menordo que em Israel. Essa futura constelação ficaria muito parecida com aque Israel está enfrentando agora:

+ RELIGIÃO ↔ DEMOCRACIA................................................................................................................

� NACIONALISMO

Três encruzilhadas ideológicas

Quais são os cenários mais prováveis e mais desejáveis para o desen-volvimento das futuras culturas tanto israelenses quanto palestinas, doponto de vista de uma solução pacífica e justa do conflito? Para onde asguerras culturais levarão israelenses e palestinos? Sem dúvida um fatordeterminante será o futuro desenvolvimento da busca de uma forma deacomodação mútua � seja na forma de um colapso total, seja de uma res-tauração do que era, até há alguns meses, o chamado �processo da paz�;ou algo semelhante. Esse agora moribundo �processo da paz� certamentenão é uma variável independente mas sim determinada pelo equilíbriopolítico e ideológico interno de cada comunidade, assim como por umasérie de fatores internacionais e globais. Existe uma interdependênciadireta entre desenvolvimentos culturais e políticos: o processo de paz ea liberdade de ação que os líderes israelenses e palestinos têm com seusparceiros nas negociações dependem entre outros de valores estabeleci-dos anteriormente em ambas as sociedades. Esses valores foram por suavez a conseqüência dos dilemas político-ideológicos que cada um dos po-vos criou para si mesmo como resultado do conflito com o outro. Poroutro lado, estes com o tempo adquiriram uma pátina de imutabilidade.A experiência passada sugere que o que parecia imutável poderia mudarde repente como resultado de surpresas políticas e internacionais: em1977 a maioria dos israelenses recusou devolver o Sinai ao Egito, masessa recusa se dissolveu quando Sadat visitou Israel e falou em econo-mia de paz. Em 1999, palestinos que anteriormente se opunham à in-tegração econômica com Israel pediam maiores oportunidades de emprego

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para palestinos em Israel. Políticos israelenses de todos os partidos jura-ram nunca falar com Arafat, o �chefe dos assassinos�, e ninguém maisenfaticamente do que Ariel Sharon. Depois da derrota de Barak e a elei-ção de Sharon, mesmo com uma plataforma que visa lidar mais firme-mente com a questão da ameaça à segurança, poucos imaginam que elevá realmente evitar qualquer contato com a liderança palestina. Essassurpresas políticas têm duas mãos: sete anos após seu reconhecimentomútuo, a rejeição palestina ao direito de existência de Israel parecia afasta-da. Oito meses após a nova intifada e com crescentes sinais de fortaleci-mento do fundamentalismo muçulmano, essa certeza se evaporou.

Em conclusão, são os contraditórios altos e baixos do próprio proces-so de paz que produzem essas profundas mudanças em atitudes estabe-lecidas. Parece portanto não haver dúvida de que o feedback do processode paz � hoje quase um processo de guerra � sobre os desenvolvimentosideológicos em cada comunidade continuará a ser predominante, e prova-velmente mais forte do que a influência oposta. Fatores mútuos e glo-bais vão ditar o futuro curso das identidades coletivas israelenses e pales-tinas de uma forma ou outra. No restante deste artigo vamos detalharalguns dos desenvolvimentos analisados na primeira parte e na conclu-são vamos levantar três possíveis hipóteses de resultados intermediáriosde identidade coletiva como conseqüência de escolhas políticas.

Um avanço positivo e uma conclusão bem-sucedida do processo depaz levando a um final o conflito entre Israel e os palestinos se tornourecentemente possibilidade muito mais remota do que há um ano. Ne-nhum dos lados, porém, deixou de considerá-lo como o resultado maisdesejável, ainda que a forma do status final e as fórmulas de chegar a elepareçam agora amplamente divergentes. Nenhum lado parece mais dis-posto a aceitar a fórmula Oslo como base para negociações, e nenhumlado espera paz e reconciliação num futuro próximo. Porém, a naturezavolátil da política do Oriente Médio torna impossível prever qualquerresultado. O que está todavia claro é que as identidades coletivas israe-lenses e palestinas continuarão a se desenvolver. Se o passado é um exem-plo, sua evolução continuará a ser influenciada por suas relações mú-tuas � tanto antagonísticas quanto amigáveis � mais do que por qualqueroutro fator.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

Paz

A não ser que o Oriente Médio esteja se dirigindo a um cataclismaque drasticamente mudará populações, fronteiras e mentalidades, a paz,se alguma vez conseguir ser alcançada por parâmetros conhecidos, aindaconterá o estabelecimento de um Estado palestino coexistindo com Is-rael, que se verá como um Estado judeu. Soluções mais integrativas taiscomo (con)federações regionais, Estado binacional, cooperação regionalna construção de um mercado comum médio-oriental25 etc. são nesteestágio apenas sonhos; poderiam ser também uma receita para mais insta-bilidade e derramamento de sangue. Em vez de prever uma futura coope-ração �intensa�, maiorias significativas de ambas as sociedades tendemagora a separação e desengajamento: de fato, em vez de contrair um ma-trimônio, o que se ouve são preparativos para um divórcio amigável. Issopode somente tomar a forma de dois Estados independentes mantendorelações mais ou menos corretas. Qualquer solução menor do que issoserá simplesmente uma continuação do conflito de outra forma. Mesmouma tão modesta �paz fria� parece distante no momento deste escrito.Porém é importante refletir sobre suas conseqüências para a identidadedessas populações.

Dependendo de como tal paz for conseguida, e a qual custo para oslados, ela pode no curto prazo levar a um sentimento renovado de otimis-mo e visão do futuro; ou a maiores divisões internas e decepção entre osperdedores. Em todo caso, essa paz somente será possível ao preço deconcessões penosas de ambos os lados, e supõe-se que haverá ampla opo-sição a ela por setores mais extremistas de cada sociedade. Nós pode-mos portanto inicialmente esperar em Israel tentativas para cimentar aunidade nacional invocando um discurso sionista decorado com referên-cias tanto à religião quanto à democracia, e no Estado palestino apelosnacionalistas semelhantes. Ou seja, a mentalidade �fortaleza� que criouo ímpeto para a predominância de pensamentos nacionalistas em Israelserá inicialmente forte. Do lado palestino, Arafat, ou seu sucessor, precisa-rá de todo o suporte nacional que puder conseguir e portanto discursossemelhantes podem ser esperados. A partir daí, todavia, tudo vai depender

25 Cf. a visão de Shimon Peres sobre um �Novo Oriente Médio� em seu livro The New Middle

East (1995).

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Identidades israelenses e palestinas: questões ideológicas

de a paz ser consolidada e se desenvolver sob forma de cooperação eintegração regional mais ampla, sendo que o oposto levará a região a umconflito renovado.

Defendemos que a autêntica paz deve afetar a identidade coletivade Israel mais profundamente do que qualquer outro resultado. Se a pazse consolidar poderá haver uma eventual reconciliação de Israel com omundo árabe. Nesse caso, uma vez que se tenha decorrido tempo suficien-te para fazer esquecer desapontamentos passados, um renovado estadode normalização e relaxamento das tensões com o mundo externo virá.Isso por sua vez exporá as contradições internas. Na ausência de coer-ções externas é improvável que Israel seja capaz de controlar suas tendên-cias centrífugas. A contradição entre uma orientação judaico-teocráticae uma secular-democrática será exacerbada. Nessas circunstâncias os se-tores mais modernos terão vantagens, já que são maioria, e serão fortale-cidos pela nova abertura do país a influências regionais e globais, e a orien-tação fundamentalista pode se ver enfraquecida.

Internamente a paz terá dois resultados. Por um lado, o perpétuoantagonismo entre trabalhistas e Likud sobre o futuro dos territórios nãoterá mais sentido, e isso influenciará o poder de barganha dos partidosreligiosos: com menos recursos para distribuir sua influência na socieda-de, pode começar a secar. Em segundo lugar, com poder sobre as frontei-ras e oportunidades econômicas aumentadas, mais e mais judeus orien-tais vão conseguir sair de uma situação de privação econômica, se livrardos velhos moldes sociais e se tornar parte da metade mais moderna dasociedade israelense. Como resultado, a velha oposição entre asquenazes-seculares-classe média-demografistas versus orientais-tradicionalistas-po-bres-territorialistas vai começar a se diluir. Isso levará a novos alinha-mentos políticos. A paz com o mundo externo não levará necessariamentea uma maior coerência entre as muitas minorias israelenses; por outrolado, seguidores do antigo �campo nacional� entre as comunidades judai-cas orientais e russas poderão criar uma coalizão com os remanescentespolíticos progressistas do antigo �campo da paz�, árabes israelenses eoutros, o que irá mais amplamente democratizar o Estado de Israel. Apósum prolongado período de paz sem ameaças externas, os nacionalistaspoderão não ser mais capazes de manter a estrutura sionista do Estado.Se Israel se tornar o Estado de todos os seus cidadãos, com completa

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

emancipação dos árabes israelenses, eventualmente perderá o caráterjudeu.26 A minoria religiosa entre os judeus israelenses poderá obter al-guns direitos grupais, mas não estará em condições de determinar o cará-ter e as políticas do Estado. Eventualmente, a Lei do Retorno poderá serabolida, transformando Israel em um Estado pós-sionista: o colapso dosionismo e o desmantelamento de suas estruturas étnicas terão sido intro-duzidos pelo próprio sucesso em criar um porto seguro para o povo judeu.

Os efeitos da paz no autoconceito do Estado da Palestina serão igual-mente perturbadores. Em geral, o tipo de paz que será alcançada entreisraelenses e palestinos vai determinar em qual direção suas identida-des coletivas irão. Muito vai depender de quanto Israel pode ser �con-vencida� a mostrar �generosidade�, e quão abertos os palestinos estarãopara levar em conta as considerações sobre segurança israelenses. Emoutras palavras, com quais recursos, territoriais, econômicos e ideológi-cos, os palestinos poderão contar para construir seu futuro? Se o acordode paz reconhecer um Estado palestino com território e meios suficientespara um desenvolvimento adequado, e puder vir ao encontro de aspira-ções palestinas básicas, tais como uma significativa presença em Jerusa-lém oriental, provisões para a reabilitação dos refugiados palestinos etc.,a legitimidade do acordo será suficiente. Isso vai destacar a posição dolíder que a conseguiu, estimular uma abertura em direção ao mundo epermitir uma eventual reconciliação psicológica com Israel. Um maiorconsenso interno associado a um clima geral de otimismo e identifica-ção popular com o Estado palestino pode ancorar as instituições democrá-ticas palestinas mais firmemente. A oposição religiosa pode ser de algu-ma forma desarmada do ponto de vista ideológico, podendo seguir asregras políticas do jogo. Haverá menos necessidade de apelar a mitos na-cionalísticos. Tudo isso ajudará no desenvolvimento de uma democracialiberal como identidade coletiva dominante dos palestinos.

Se por outro lado a paz for �restrita�, o Estado palestino terá menosrecursos humanos, econômicos e culturais para sua consolidação. O desa-pontamento popular palestino e a falta de credibilidade do acordo po-dem forçar a liderança a impô-lo por meios não democráticos. Mesmo

26 Os árabes israelenses, agora quase um milhão, já constituem um sexto da população, e po-deriam alcançar a paridade demográfica com os judeus de Israel em cerca de cinqüenta anos.

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Identidades israelenses e palestinas: questões ideológicas

que o consiga, isso afetará negativamente a crença na democracia enquan-to opção viável para a política palestina, resultando num renovado cresci-mento do fundamentalismo muçulmano como um ímã que levará a futu-ras instabilidades internas e possivelmente regionais. Nesse caso, a elitepalestina pode ter pouca escolha: tendo que dar as cartas em defesa dosnacionalistas de novo e eventualmente criando �distrações� antiisraelen-ses para salvar sua própria posição. O resultado poderia ser uma paz muitofria com Israel.

A transformação da comunidade política palestina árabe de seu atualestado de amálgama nacional-religiosa para uma democracia pluralistapode demorar uma geração, e isso somente se todas as condições exter-nas estiverem �certas�. De fato, se críticos culturalistas tais como Hun-tington estiverem certos, esse projeto poderia ser maciçamente rejeita-do pelos palestinos como um produto estranho à sua própria civilizaçãopor ser importado do Ocidente, e pode não dar certo. Inicialmente, ospalestinos podem atravessar uma longa fase de introversão durante aconstrução da própria nação. Podem também optar por uma maior ênfasenos valores muçulmanos e/ou um mais estreito alinhamento com o mun-do árabe. É porém pouco provável que acontecimentos em Israel nãoexerçam uma forte atração. Mesmo uma limitada transformação de Israelpara mais longe do sionismo já terá importantes efeitos no vizinho palesti-no. A influência de tal processo na identidade coletiva palestina precisaser deixada sem resposta no momento. Se a resposta palestina será poremulação, dissolvendo suas próprias fronteiras comunitárias, ou por rejei-ção e maior particularização, isso dependerá da dimensão da cooperaçãoou separação que ambas as nações conseguirem como resultado da paz.

Guerra

Um retorno a uma guerra aberta declarada entre Israel e o mundoárabe, incluindo os palestinos, não parece provável, mas não é impossí-vel. As conseqüências de uma definição de suas identidades coletivas sãodifíceis de prever, mas uma nova ênfase na nação parece lógica. Assumin-do que ambos os lados sobrevivam politicamente intactos a um confrontomilitar, as conseqüências ideológicas serão severas. A guerra fará desacre-ditar a teoria de �terra por paz�, ou seja, de que uma acomodação estável

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

e satisfatória com o outro lado possa ser alcançada mediante mútua cessa-ção de violência, negociações pacientes e concessões limitadas. A guer-ra, particularmente se for destrutiva, pareceria provar que não há �nin-guém com quem se possa falar�, e que a comunidade internacional foiincapaz ou não teve vontade de prover justiça ou segurança. Isso poderiaestimular um retorno às �origens autênticas� da comunidade, e colocardiscursos mais universalistas na defensiva. Nessas circunstâncias é prová-vel que os judeus israelenses e os palestinos árabes revertam a um nacio-nalismo �heróico�, provavelmente tingido de fortes elementos religio-sos. Para Israel, uma volta à ideologia do período pré-Estado é impensável,já que a precondição demográfica � no caso uma grande diáspora persegui-da � não existe mais. Um retorno da ideologia estadista mais Israelcentrada (ou seja, não levando em consideração a diáspora) não é excluí-do, se houver uma ameaça existencial renovada, seja ao centro (Israel)ou a uma ou mais das periferias remanescentes (diásporas). O atual colapsodo processo de paz pode dar à etnocracia israelense � Israel enquantoEstado judeu � um novo sopro de vida. Combinado com o ressurgimentodo anti-semitismo no mundo, e uma renovada militância antiisraelensede fundamentalistas muçulmanos na região, pode-se acender de novo umnacionalismo paranóide e tendências rejudaizantes dentro de Israel. Dolado palestino, uma guerra aberta pode ter conseqüências ideológicas me-nos dramáticas, uma vez que parecerá apenas a exacerbação de uma situa-ção já existente. Porém, a não ser que o próprio centro político sucum-ba, um estado de exceção colocará as forças pró-democráticas da sociedadecivil sob maior pressão; isso permitirá às lideranças suprimir tanto osremanescentes liberais quanto qualquer tendência de insurreição por ladodos islamitas. Ideologicamente isso provavelmente levará os palestinosde volta ao passado, com nacionalismo e Islã aliados sob liderança secu-lar. Com exceção de tal cenário apocalíptico, porém, um total retorno aopassado é improvável em ambas as comunidades.

Nem guerra nem paz

A mais provável previsão é uma continuação do que vem acontecen-do, ou seja, um longo período em que ambos os lados continuarão a lutarsob condições de média intensidade, pontuadas por picos de terrorismo

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Identidades israelenses e palestinas: questões ideológicas

e retaliação. Diminuir o controle israelense pode levar a um gradual eparcial afastamento territorial por parte de Israel de algumas partes daCisjordânia, mas intensificação da colonização em outras partes; cresci-mento gradual do poder palestino em alguns dos territórios, mas semtotal soberania e possivelmente sem uma autoridade central palestina; eum maior afastamento entre ambas as nações. De fato, essa �separaçãounilateral� corresponde à situação de �nem guerra nem paz� da época1967-1973. Nesse cenário o processo de paz vai continuar estacionáriomas sem dramáticas ameaças de segurança para Israel, sem ameaçar aautodeterminação parcial palestina já conseguida, e sem um definitivofinal nas negociações ou colapso na esperança de um final mais satis-fatório. Uma vitória, seja do fundamentalismo seja da (menos provável)democracia em qualquer das sociedades, alteraria a dinâmica entre elas.

Enquanto a rebelião palestina continuar em sua atual forma, umamudança no equilíbrio do poder não é provável. Na teoria, os dilemasculturais são vistos em nítido contraste. Na prática, as escolhas não sãoainda tão absolutas. Os palestinos não vão facilmente se arriscar a versua liderança sucumbir sob o peso de uma mudança em favor da direitamuçulmana: enquanto a independência não for alcançada, um lado precisado outro. Em Israel também, a distribuição de ideologias dominantesentre vários grupos sociais levou a uma �multipolaridade� dispersa de-mais para permitir a qualquer lado uma nítida vitória: a maioria dos ju-deus israelenses balança entre duas tendências extremas: a maioria dosjudeus orientais não é nem ultra-ortodoxa nem ultradireitista, mas tradi-cional. O setor religioso é uma minoria internamente dividida (com osionismo religioso e Gush Emunim opostos aos anti-sionistas ultra-orto-doxos), mas a maioria secular está dividida demais e desmoralizada de-mais para permitir que se altere esse equilíbrio.

Não se deve imaginar, porém, que uma conjuntura de equilíbrio instá-vel entre duas forças mais ou menos iguais pode ser mantida indefinida-mente. Por vezes se diz que a sociedade israelense � assustada pela pers-pectiva de uma guerra civil � está crescendo em direção a um novoconsenso localizado no centro desses campos (Ezrahi, 1997). Após trêsanos de governo Netanyahu a transição em direção a Barak parecia mos-trar esse consenso intrajudaico. Cada lado respeitando o resultado dos

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

fatos consumados por seu predecessor: o Likud rejeitava a idéia de umEstado palestino independente mas não podia desfazer os Acordos deOslo, tinha que reconhecer os palestinos e a OLP e continuou as negocia-ções com Arafat; os trabalhistas continuam a rejeitar uma colonizaçãoem larga escala, mas pretendem manter as colônias existentes naCisjordânia. Com o fracasso das conversações de paz e a queda de Barak,o governo de unidade nacional de Sharon basicamente deve optar poruma política de continuidade e consenso, antes do que por uma volta aoaventurismo.

Em todo caso, é questionável se esses acordos representam mais doque reflexos centristas temporários, e apenas retardam o momento daverdade. Basicamente, democracia e fundamentalismo religioso são in-compatíveis. Eventualmente uma das tendências irá derrotar a outra eabsorvê-la sob forma de minoria. Falhando isso, se ambas essas tendên-cias coletivas se neutralizarem, elas podem eventualmente alcançar umasolução que essencialmente cortará a sociedade em dois. Já que tantofundamentalistas israelenses quanto palestinos estão dispersos por todoo país (ainda que tenham um centro geográfico judaico em Jerusalém eum palestino em Hebron e Gaza), o reagrupamento físico não parece prová-vel.27 Se um cessar-fogo puder ser assinado, novos arranjos na divisão depoder serão considerados um útil pis-aller por ambos os lados. Tal novoarranjo do status quo não seria nem o resultado menos provável nem o pior,mas vale lembrar que acordos de compartilhamento de poder não po-dem ser estáveis a não ser que sejam apoiados por barganhas não violen-tas e tolerância. É mais provável encontrar essa variante entre os queapóiam o pluralismo democrático do que entre seus oponentes fun-damentalistas.

Uma situação de conversações de paz estacionária, violência limitadae �nem guerra nem paz� pode continuar por um certo tempo. Não trará,porém, uma solução aos problemas intercomunidade que estão na ori-gem dos fatos, nem permitirá, dentro de cada comunidade, a clara vitó-ria de uma tendência ideológica sobre outra, dando continuidade à insta-bilidade. Eventualmente ambos os lados irão em direção a um confronto

27 O colunista humorístico Zeev Chafetz uma vez imaginou a partilha de Israel em dois Esta-dos � um Estadinho teocrático �Judea�, localizado em Jerusalém, e um �Israel� secular situa-do no litoral mediterrâneo. Cf. Israel Report e sua intervenção no talk show político Popolitica.

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Identidades israelenses e palestinas: questões ideológicas

mais decisivo e total ou voltarão a mais sérias tentativas para romper oimpasse (e criar uma solução pacífica mutuamente aceitável para seuprolongado conflito).

No longo termo, a paz no Oriente Médio pode somente ser baseadanuma aceitação básica: a de Israel no mundo árabe e a da Palestina porIsrael. Além de acordos políticos e de segurança e uma forma de interaçãoeconômica mutuamente benéfica, uma paz estável requer paz entre aspessoas e não apenas entre os governos. Portanto, ela deve se basear emum mínimo de valores compartilhados por ambos os lados.

Cada uma a seu modo, duas sociedades muito diferentes, mutua-mente hostis mas intimamente ligadas, estão alcançando constelaçõesideológicas semelhantes. Poderia o paralelismo nas escolhas de identidadeque os confronta servir como ponte para o diálogo? Enquanto os parale-los entre a evolução cultural de ambas as sociedades são apenas inciden-tais, os obstáculos permanecem formidáveis. Se depois de Israel tambémos palestinos tiverem permissão para cruzar o patamar de soberania, es-taria armado o cenário para um declínio do nacionalismo. O que virá emseguida? Dois modelos mutuamente exclusivos de identidade coletiva,um baseado em religião e outro em democracia pluralista, estão lutandopela ascensão em ambas as sociedades. Essas semelhanças estruturaissão precondição indispensável para uma aproximação cultural dessas co-munidades. Ainda que influências culturais globais e regionais estejammais influentes em todo lugar, e o verdadeiro conteúdo de cada identidadeseja diferente em cada sociedade, a evolução ideológica tanto de Israelquanto da Palestina será fortemente dependente do que acontece comseu vizinho. Isso abre possibilidades: para a comunicação israelense-pales-tina significa que um diálogo autêntico é somente possível entre aque-las forças de cada sociedade que optam por uma identidade coletiva demo-crática não religiosa.28 A reaproximação cultural israelense-palestina, hojeuma miragem distante, se tornará uma opção apenas quando a identifica-ção nacional de ambas as nações se tornar menos fanática e menos exclu-siva, e quando, no coração de ambos os povos, a opção democrática obtiveruma vitória decisiva sobre o fundamentalismo religioso.

28 Cf. Jürgen Habermas (1984/1987). Tentativas isoladas de certos fundamentalistas paraestabelecer uma comunicação com seus parceiros muçulmanos (por exemplo os esforçosdo rabino Menahem Fruman do assentamento Teqoa na Cisjordânia) ainda não registra-ram nenhum sucesso nem houve reciprocidade por parte dos palestinos.

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Parte IIIO conflito visto do Brasil

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8Dez anos no deserto: a participação brasileirana primeira missão de paz das Nações Unidas

Norma Breda dos Santos*

O presente trabalho visa tentar dar continuidade a uma reflexão so-bre a política multilateral brasileira com relação ao Oriente Médio, inicia-da há dois anos e cujo resultado mais importante é o texto �O Brasil e aquestão israelense nas Nações Unidas: da criação do Estado de Israel aopós(?)-sionismo� (Breda dos Santos, 2000). Trataremos das décadas de1950 e 1960, período em que o Brasil participou da primeira operação demanutenção de paz (1957-1967), constituída pela ONU, em conseqüên-cia da Crise do Suez, de 1956. Nossa constatação inicial é o fato de quenos últimos anos a paz israelo-palestina pouco tem sido tratada no âmbitoda ONU e o Brasil, com relação à região, acompanha perfeitamente o fenô-meno que se passa no âmbito da organização internacional, demonstran-do um baixo grau de interesse e desempenho na última década. Compara-

* Professora da Universidade de Brasília (UnB).

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

tivamente, e em sentido contrário, nas décadas de 1950 e 1960, essa atua-ção alcançou seu ponto máximo. Tudo indica que o envio de militares aoOriente Médio resultou em uma bem-sucedida experiência multilateralprotagônica para uma potência média como o Brasil, ainda que muitopouco se saiba, de fato, sobre ela. Daí esta proposta de melhor conhecê-la.

O contexto internacional e a política multilateralbrasileira para o Oriente Médio nasdécadas de 1950 e 1960

A Crise do Suez assinala mudanças quase contraditórias, masextremamente importantes, no funcionamento do sistema internacio-nal. De um lado, 1956 marca a flexibilização do sistema bipolar, que passade estrito (tight) a flexível (loose), na denominação de Morton Kaplan.Ou seja, de um sistema de alta instabilidade, pontuado por graves ten-sões entre as superpotências e pela escalada nuclear, passa-se a um sis-tema mais complexo, em que as relações sino-soviéticas se deterioram ea França e a Grã-Bretanha tornam-se também potências atômicas. O en-tendimento entre norte-americanos e soviéticos sobre as medidas de ur-gência a serem adotadas durante a Crise de 1956 são manifestação des-sas alterações, que teriam seu ápice na Crise dos Mísseis de Cuba, em1962, em direção à coexistência pacífica. De outro lado, 1956 e os aconte-cimentos subseqüentes marcam o início do acirramento da disputa he-gemônica entre os Estados Unidos e a União Soviética na região médio-oriental, que até então escapara em alguma medida à lógica bipolar: UniãoSoviética e Estados Unidos haviam votado pela partilha da Palestina; emnovembro de 1956, entendem-se quanto às medidas a serem tomadasdiante da crise. Daí em diante, os acontecimentos no Oriente Médio, no-tadamente as relações entre Israel e os países árabes, serão fortementepermeadas pelas disputas entre soviéticos e norte-americanos na região.

Entre 1957 e 1967, período em que governam o Brasil JuscelinoKubitschek, Jânio Quadros, João Goulart, Castello Branco e tem início omandato de Costa e Silva, a ênfase dada pela política externa ao alinha-mento com os Estados Unidos ou à busca ao desenvolvimento adquiredensidades diversas e alternadas, com a preponderância da última. Em1957, é justamente Oswaldo Aranha quem representa o Brasil na sessão

265

Dez anos no deserto: a participação brasileira...

anual da Assembléia Geral da ONU, exatos dez anos depois de tê-la presi-dido em momento histórico da aprovação da Resolução n.181 (II), queestabelecia o Plano de Partilha da Palestina. Aranha muito acreditara nasvantagens da busca de uma aliança privilegiada do Brasil com os Esta-dos Unidos, assim como na contribuição marcante nos trabalhos da ONU

para a paz mundial. Passada uma década, fará na Assembléia Geral umdiscurso pessimista com respeito às realizações alcançadas pela organiza-ção, que se destacaria por seu conteúdo marcadamente desenvolvimen-tista, tônica da diplomacia multilateral brasileira das décadas seguintes.Aranha registra que, reconstruída a Europa, chegara a hora de a ONU,sobretudo por meio do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mun-dial, preocupar-se com o desenvolvimento do continente americano e que,estando o eixo das preocupações brasileiras concentrado na solução deproblemas de desenvolvimento econômico, sua inserção passaria, então,primeiramente pela América Latina e pelo mundo em desenvolvimento.1

No período 1957-1967, vai-se do anúncio da Operação Pan-America-na (1958) à Política Externa Independente (1961-1964), para, finalmente,com o início do período militar, assistir-se a uma verdadeira inflexão dapolítica externa nos quadros de um alinhamento automático aos Esta-dos Unidos (1964-1967), rompida pela Diplomacia da Prosperidade(1967-1969). Os postulados da confrontação bipolar estão presentes nacondução da política externa brasileira, pelo menos nas �questões capi-tais que envolvam a adoção de medidas de defesa da coligação ocidentalcontra o expansionismo soviético�,2 mas, sobretudo, a ausência de inte-resses econômicos de monta darão à ação governamental com relaçãoao Oriente Médio uma autonomia relativa. Ou seja, as mudanças no siste-ma internacional não afetam substancialmente a percepção e a ação dadiplomacia brasileira com relação à região médio-oriental, pelo menosaté a crise do petróleo nos anos 70.

Essa relativa independência é bastante visível quando se observa opadrão de voto brasileiro na ONU com respeito ao conflito israelo-palesti-no, onde se pode identificar uma preocupação de buscar posições eqüitati-vas e de compromisso. Observamos, por exemplo, que o voto favorável

1 �Décima Segunda Sessão Ordinária da Assembléia Geral da Organização das Nações Uni-das, 1957�, em A palavra do Brasil nas Nações Unidas, 1946-1985 (1995, p.109-12).

2 Relatório apresentado ao Presidente da República pelo Ministro das Relações Exteriores, 1957, p.24-5.

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do Brasil à Resolução n.181 (II) que, além de aprovar o Plano de Partilhada Palestina, estabelecia a proteção dos lugares santos e o estatuto inter-nacional de Jerusalém, não impediria que, quase dois anos mais tarde,em 1949, o Brasil se abstivesse na votação que aprovaria a admissão deIsrael à ONU (Resolução n.273, III), uma vez que condicionara seu votoà implementação por Israel das resoluções relativas à internacionalizaçãode Jerusalém e à questão dos refugiados árabes. O Brasil, inclusive, votarafavoravelmente a uma resolução, aprovada poucos dias antes da votaçãoda adesão de Israel à ONU, convidando-o a prestar esclarecimentos so-bre a administração de Jerusalém e dos refugiados árabes. Nos anos se-guintes, não deixaria de votar favoravelmente às várias resoluções quecondenaram Israel quanto ao tratamento dado à população civil e aos pri-sioneiros árabes e ao desrespeito ao estatuto internacional de Jerusalém.

Por outro lado, em 1951, o Brasil vota favoravelmente à Resoluçãon.95 (VI), que instava o Egito a levantar as restrições impostas à passa-gem de navios através do Canal de Suez e do Golfo de Ácaba, quando aquestão é submetida ao Conselho de Segurança por iniciativa de Israel.Em 1955, nova queixa é apresentada por Israel ao órgão, a propósito doapresamento de um navio israelense por autoridades egípcias no Canalde Suez. O Brasil lamenta o ocorrido, �gesto incompatível� com a resolu-ção de 1951. Mas, em 1956, quando uma Assembléia Especial de Emer-gência é convocada em conseqüência da intervenção militar da França,da Grã-Bretanha e de Israel contra o Egito, o Brasil vota a favor da prontaretirada das tropas daqueles países do território egípcio (UNR, 1988,p.290; Breda dos Santos, 2000, p.22-35).

Nesse sentido, ainda, em setembro de 1965, instruções eram trans-mitidas de Brasília às embaixadas brasileiras em Argel, Beirute, Cairo,Damasco, Rabat, Teerã, Tel-Aviv e Túnis (capitais dos países que no Ita-maraty designam a região Oriente Próximo, da qual se ocupa o Departa-mento Oriente Próximo, DOP) sobre a �posição do Brasil em relação aoconflito árabe-israelense�. Essas instruções eram dadas em função diretadas repercussões, e pressões, esperadas em face da resolução tomadapelos chefes de Estados árabes, em reunião realizada no Cairo, em janeirodaquele ano, para que seus governos regulassem suas relações com omundo exterior em função da atitude dos governos com Israel. A instru-ção do Itamaraty afirma que,

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na América Latina, a Argentina e a Venezuela já estão sendo visadas pelaLiga Árabe, que tenta proceder à mobilização da colônia árabe daquelespaíses, no intuito de contrapor-se ao que é tachado de �infiltração e publici-dade sionistas�. Como no Brasil existem consideráveis colônias árabe eisraelita, não é de mais admitir-se que o território brasileiro possa ver-setransformado igualmente em arena do confronto árabo-sionista. Essa hipó-tese justifica a busca, desde logo, de uma definição da posição brasileira.

Reitera-se, daí, o interesse brasileiro em manter e ampliar boas rela-ções com o mundo árabe e com Israel e que,

posto que Israel existe não tem por que o Brasil conduzir-se, no âmbito de contatosbilaterais e legítimos, em função de outro fator que não seja o interesse nacional, sópodendo repelir qualquer tentativa da Liga árabe de impor-lhe normas de conduta,neste ou naquele ponto. [grifo nosso]

E conclui:

O reconhecimento da realidade estatal de Israel não implica endossoda parte do Brasil ao status quo vigente na Palestina. Reconhecendo a existên-cia [de Israel] e com ele tratando livre e dignamente, o Brasil lhe estarásendo leal, sem que os árabes possam nisto encontrar ofensa. De outrolado, recusando-se a aceitar como definitivas as atuais fronteiras árabo-israelenses, a partilha e dupla ocupação de Jerusalém ou o deslocamentodos refugiados, o Brasil estará também sendo leal com os árabes e conservan-do com eles ampla margem de trabalho.3

Essas instruções, com efeito, refletem o posicionamento da diploma-cia brasileira com relação ao Oriente Médio até então. Mas os interessese as pressões árabes se tornariam muito mais conseqüentes na décadaseguinte, com a crise mundial do petróleo e as ameaças de suspensão deseu suprimento. À novidade combinava-se o modelo de diversificação emodernização industrial estabelecido então pelo governo militar, extre-mamente dependente dessas importações, trazendo, portanto, para oBrasil, uma considerável vulnerabilidade. A resposta do governo brasileiroserá o realinhamento pragmático de suas posições, afastando-se de Israele cortejando a simpatia árabe (Breda dos Santos, 2000, p.52-60).

3 Arquivo Histórico do Itamaraty (AHI)-Brasília, Secretaria de Estado das Relações Exterio-res às Embaixadas em Argel, Beirute, Cairo, Damasco, Rabat, Teerã, Tel-Aviv e Túnis, 8 desetembro de 1965. Confidencial.

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Sobre a historiografia e as fontes

Conta-se que ao deixar a sessão da Assembléia Geral, logo após aaprovação da resolução que previa a criação da I Força de Paz das NaçõesUnidas (Fenu), grande virada na história das Nações Unidas, o secretá-rio-geral Dag Hammarskjöld dirige-se a seu assistente Ralph Blunch elhe diz peremptoriamente: �Now, Corporal [apelido que Hammarskjölddera a Blunch], go get me a force�. Blunch comentaria mais tarde as difi-culdades que tivera na busca do rápido cumprimento da ordem do secretá-rio-geral � não pela insuficiência do número de ofertas de contingentes,muito pelo contrário: �We had so many offers we were embarrassed ...from twenty-three or twenty-four countries. We couldn�t use even halfof what had been offered� (Rovine, 1970, p.289).

Essa demonstração de interesse de diversos governos em participarda força de paz certamente se explicava pela oportunidade que, para aspotências médias e pequenas, essa colaboração significava, no sentidode exercerem um papel mais ativo na condução dos problemas mundiaise daí aumentar seu prestígio. O interesse brasileiro em participar da mis-são certamente se explica pelo mesmo tipo de interesse. E foi, entre tan-tos concorrentes, um dos escolhidos para compor a Fenu, que mereceriaao longo das décadas seguintes referências positivas em discursos do pró-prio Itamaraty, bem como da literatura sobre a história da política exter-na brasileira, ainda que em menor quantidade.

Pois bem, nem sua tão citada importância, pelo prestígio que teriatrazido ao Brasil, ou sua longevidade, afinal foram dez anos de presençabrasileira na Faixa de Gaza e no Sinai, fizeram que essa experiência setransformasse em tema de certa relevância para a historiografia das re-lações internacionais do Brasil ou na literatura especializada em assun-tos estratégico-militares. Honrosa exceção é o livro O Brasil e as operaçõesde manutenção de paz das Nações Unidas, de Paulo Roberto Tarrisse da Fon-toura, publicado em 1999, que traça um amplo quadro histórico sobreas operações de manutenção de paz em geral, incluindo informações úteise bem sistematizadas sobre a participação brasileira nessas missões, inclu-sive na Fenu.4 Nos periódicos dedicados a assuntos militares e de estraté-

4 Cf. Tarresse da Fontoura (1999): originalmente, tese apresentada no Curso de Altos Estudos(CAE), do Instituto Rio Branco, em 1999. O livro de Afonso José Sena Cardoso, O Brasil nas

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gia, não editados por instituições militares � Política e Estratégia, Parceriasestratégicas e Premissas – nenhum artigo foi encontrado sobre a Fenu.5

Em A defesa nacional, cujo subtítulo é �revista de assuntos militarese estudo de problemas brasileiros�, publicada pela Biblioteca do Exércitodesde 1913, e que abriga sobretudo contribuições de articulistas milita-res, nosso levantamento cobriu o período 1956-2000, ou seja, do número498 da revista até o 788, o que corresponde ao monumental volume de290 números. Cada número contêm em média 180 páginas. Nesses 290números, que apareceram, portanto, desde a Crise do Suez e o envio demilitares brasileiros ao Egito até o presente momento, somente quatroartigos trataram da Fenu (Salgueiro de Freitas, 1960; Martins, 1962;Cavalcante Jr., 1963; Silva Lins, 1967). O que torna particularmente mani-festa a modesta atenção dada pelos próprios militares à Fenu é o fato deobservar-se que, além de uma variedade considerável de temas aborda-dos pela revista desde a sua criação (a título de exemplo, artigos sobre oproblema telefônico no Brasil, a produção nacional de ferro, a indústriade refinação de petróleo no Brasil etc.), seus artigos demonstram a par-tir de meados da década de 1950 uma crescente atenção aos estudosgeopolíticos, passando, em 1958, a incluir em seu índice, que continhaem torno de sete itens temáticos, um especificamente dedicado àGeopolítica. Essa estrutura vigorará até o final de 1961, quando a revistapassará a ter o formato de índice atual (um editorial e a simples enumera-ção dos artigos). Durante as décadas de 1960 e 1970, abundam n�A defesanacional os artigos sobre a penetração soviética, a guerra revolucionária, aguerra psicológica, o problema comunista etc. Em contraste, tema no míni-mo tão relevante quanto esses artigos que refletem a preocupação dos

operações de paz das Nações Unidas (1998), também originalmente tese apresentada no CAE,contrariamente ao que o título indica, é um estudo sobre a evolução das operações de pazde um ponto de vista marcadamente conceitual, sem se ater particularmente ao envolvi-mento brasileiro nessas missões.

5 Dos periódicos dedicados à história das relações internacionais, pela relevância que têmpara a área, consultamos: Contexto Internacional, Política exterior, Política Externa e Revista Brasi-leira de Política Internacional. A propósito dos periódicos especializados em assuntos estraté-gico-militares, é útil lembrar que a revista Política e Estratégia foi publicada de 1983 até oinício dos anos 90, pelo Centro de Estudos Estratégicos da Sociedade de Cultura Convívio;Premissas começou a ser publicada em 1992, pelo Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp,e Parcerias estratégicas em 1996, pelo Centro de Estudos Estratégicos, órgão da Secretaria deAssuntos Estratégicos da Presidência da República.

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militares brasileiros quanto às injunções da Guerra Fria nos destinos dopaís, ainda que de forma um tanto superficial, seria obviamente o enviode contingentes brasileiros à Península do Sinai, tema nada distante, mui-to pelo contrário, das questões trazidas pela configuração Leste-Oestedo sistema de poder mundial. Praticamente as mesmas considerações apli-cam-se à Revista militar brasileira, criada em 1924 (até então Boletim Mensaldo Exército), e que em 1983 passou a denominar-se Revista do exército brasi-leiro, onde nenhum artigo sobre a Fenu foi encontrado (período 1956-2000).

No tocante às fontes, foram consultados o Arquivo Histórico doItamaraty (Brasília) e o Centro de Documentação do Exército � C Doc(Brasília).

A Crise do Suez e o estabelecimento da Fenu6

No dia 14 de maio de 1948, oito horas antes do término do mandatobritânico na Palestina, foi oficialmente proclamada a criação do Estadode Israel. No dia 15, ao se retirarem os ingleses, tropas de países árabesvizinhos invadiram a Palestina, dando início a um conflito armado, aofinal do qual tropas israelenses haviam ocupado áreas destinadas ao Esta-do árabe, aumentando em 37% o território de Israel atribuído pelo Planode Partilha. Apesar do Acordo Geral de Armistício entre Israel e os paísesárabes, o estado de beligerância entre os protagonistas do conflito de 1948-1949 se manteria e a paz seria interrompida por choques intermitentes.

A nacionalização do Canal de Suez pelo governo de Nasser, em ju-lho de 1956, contrariando interesses israelenses, franceses e britânicos,representa nova reviravolta na região: em outubro, Israel lança um ata-que em direção ao Sinai e ocupa a península. França e Inglaterra lançamum ultimato ao Egito e a Israel para que retirem suas tropas da zona docanal, ameaçando enviar tropas ao local. Israel aceita o ultimato e o Egitoo rejeita, o que resulta na intervenção militar de França e Inglaterra.

Na ONU, uma Assembléia Especial de Emergência foi convocada,apelando-se a um mecanismo institucional estabelecido pela resolução�Unidos para a Paz�, de 1950 (Resolução n.377, V), que permitia à Assem-

6 Esta seção é uma versão ampliada das páginas 35 a 43 de Breda dos Santos (2000).

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bléia agir em questões relativas à manutenção de paz, quando o Conse-lho de Segurança se encontrasse paralisado pelo veto, no caso franco-britânico. A Assembléia Especial de Emergência (1º a 10 de novembrode 1956) aprovou, com o voto favorável brasileiro, quatro resoluçõesprincipais que apelavam para o imediato cessar-fogo, a imediata evacua-ção das tropas israelenses, britânicas e francesas das áreas do territórioegípcio sob ocupação e a livre navegação no Canal de Suez (Resoluçãon.997, SE-I); solicitavam a elaboração pelo secretário-geral, Dag Ham-marskjöld, de um plano para a criação de uma Força Internacional deEmergência das Nações Unidas (Resolução n.998, SE-I); estabeleciam ocomando da força a ser criada, autorizavam o recrutamento de oficiaispara dela participar (Resolução n.1.000, SE-I) e definiam suas atribuições,e criavam um Comitê Consultivo. O comitê, presidido pelo secretário-geral, seria composto por representantes do Brasil, Canadá, Noruega, Co-lômbia, Paquistão e Ceilão (Resolução n.1.101, SE-I) (UNR, 1988, p.31-4).

Assim, em 1956, outra inovação institucional foi introduzida noâmbito da ONU: é criada a primeira força para a �manutenção da paz�,não prevista na Carta. A Fenu foi concebida como uma força simbólica,que não se destinava ao combate e sim à supervisão do cessar-fogo, àretirada das forças francesas, inglesas e israelenses do Sinai, e a instau-rar uma zona tampão entre Egito e Israel. Dela não participavam as gran-des potências e seu envio ao Egito contou com o consentimento das par-tes em conflito.

Em seu discurso de abertura à décima primeira sessão anual da As-sembléia Geral, que acontecia logo após a Assembléia de Emergência,convocada para tratar da crise no Oriente Médio, Freitas-Valle enunciouos princípios que guiariam o Brasil diante do conflito:

seremos favoráveis a uma solução que leve em conta os interesses legíti-mos dos usuários [do Canal de Suez], mas que de forma alguma viole asoberania do Egito ... [Não] toleraremos em nenhuma circunstância ações,de quem quer que seja, que barrem a qualquer país o direito de passagemlivre pelo Canal sob qualquer alegação.7

7 �Décima Primeira Sessão Ordinária da Assembléia Geral da Organização das Nações Uni-das, 1956�, em A palavra do Brasil nas Nações Unidas, 1946-1985 (1995, p.104).

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A Assembléia continuou a discutir e a adotar resoluções visando àabertura do Canal de Suez, à retirada das forças que ainda ocupavam oterritório egípcio e à pacificação da região. O Brasil continuava a defen-der a evacuação imediata das forças francesas e inglesas, e a retirada dastropas israelenses para aquém da linha estabelecida pelo Armistício defevereiro de 1949, com a liberação de Sharm-el-Sheikh e da Faixa de Gaza,no entendimento de que a Fenu evitaria novas agressões.

Após marchas e contramarchas, retiram-se os ingleses e franceses,e Israel, mais recalcitrante, acaba também por se retirar do Sinai e dacosta da Faixa de Gaza, sem ter obtido a garantia de livre navegação noCanal de Suez e no Golfo de Ácaba. Mantinha-se, assim, a nacionaliza-ção do Canal, e seus usuários aceitavam pagar ao Egito pelo direito depassagem. A Assembléia só encerrou seus trabalhos com a retirada dasforças israelenses do território egípcio, iniciada em 21 de dezembro de1956 e concluída em 8 de março de 1957.

A Fenu entrou em operação em novembro de 1956, e o Brasil delaparticipou de janeiro de 1957 a junho de 1967, quando foi encerrada. Ascircunstâncias em torno do envio dos militares brasileiros ao Egito nãodeixaram de causar constrangimento ao governo. Antes da convocaçãoformal, o contingente já se organizava para a missão. No começo de de-zembro de 1956, havia sido comunicado aos representantes brasileirosna ONU que a convocação seria feita em três dias, o que não viria a aconte-cer. Havia informações de que Nasser mostrara resistências em aceitar aparticipação do Brasil. A situação preocupava o governo, uma vez quea demora do embarque desagradava a opinião pública. Somente no dia 7de janeiro de 1957, o secretário-geral anunciaria a requisição do contin-gente e a situação se esclareceria com a informação das autoridades egíp-cias de que o Cairo jamais pensara em recusar a participação brasileira, eque a demora da convocação ocorrera, na verdade, pelas dificuldades nasnegociações de assunto daquela natureza. O Batalhão do Suez embar-cou, finalmente, chegando ao Egito ainda em janeiro e fevereiro de 1957.8

Não se sabem ao certo os motivos da resistência de Nasser com rela-ção à participação brasileira na Fenu, mas a informação sobre essa atitude

8 AHI-Brasília, Cyro de Freitas-Valle para Exteriores, 7 de janeiro de 1957, Secreto, Telegra-mas, Cx. 46, 1950-1957, e Ghali (1993, p.117).

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é, de fato, confirmada por diversas fontes. Anos mais tarde, o majorRubens Portugal, que cumprira missão no Estado-Maior do Comandoda Fenu durante mais de dois anos, afirmaria que

contra o Brasil, o Egito levantou ... objeções sérias [grifo nosso]. Talvez aindaperdurasse a lembrança de que o Brasil fora o autor � em 1947 � de umaproposta de resolução que muito desagradou aos egípcios na questão �ODissídio Anglo-Egípcio: o Canal de Suez e o Sudão�. Ou, talvez porque oEgito nos estivesse vendo, àquela época, como um país excessivamentealinhado ao lado dos Estados Unidos, o grande aliado de Israel.9

A presença brasileira no Egito não teria sido tão longa não fora a mu-dança das condições de sua manutenção. Com efeito, em dezembro de1958, o ministro da Guerra brasileiro tencionava fazer regressar o contin-gente brasileiro, alegando os elevados custos de sua manutenção. Emjaneiro do ano seguinte, o governo brasileiro, de fato, decide retirar seubatalhão, considerando que cabia também a outros países contribuir paraa operação no Egito.10

A informação chegou ao conhecimento de Dag Hammarskjöld que,preocupado com suas conseqüências, dirige uma carta ao governo brasileirosolicitando a reconsideração de sua decisão de retirada da Fenu. Mas deque conseqüências falava principalmente o secretário-geral? Os elogios quefaz ao contingente brasileiro, que �tem sido um valiosíssimo componentedaquela força e contribuiu para uma operação altamente bem-sucedida,auxiliando grandemente o esforço das Nações Unidas para manter a paze a tranqüilidade no Oriente Médio� são naturalmente um indicativo darelevância que tinha a participação brasileira em si e da gravidade de suaretirada. Mas carta do secretário-geral indica, sobretudo, que a retiradapretendida pelo governo brasileiro se faria em momento político inoportu-no, uma vez que a retirada de contingentes, naquele momento, ameaça-va esvaziar os enormes esforços empreendidos pela Secretaria Geral de

9 C Doc-Ministério do Exército-Brasília, �Relatório apresentado pelo Major Rubens Portu-gal, referente à sua missão no Estado-Maior do Comando da Força de Emergência das Na-ções Unidas no Oriente Médio, no período de 31 de dezembro de 1962 a 10 de fevereiro de1965� (Relatório apresentado pelo major Rubens Portugal, 1965), Rio de Janeiro, 27 deabril de 1965, p.8, Confidencial, Subseção Biblioteca, Cx. 6 (Vários).

10 AHI-Brasília, Exteriores à Missão do Brasil nas Nações Unidas, 7 de janeiro de 1959, Car-tas e Telegramas, Recebidos/Expedidos, Secreto, Cx. 47, 1958-1959.

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levar a cabo uma missão de tipo novo, que enfrentava oposições no seioda própria ONU, passado o momento da euforia em torno de sua cria-ção, em que o próprio governo brasileiro insistira para garantir sua parti-cipação. Afirmava, assim, Hammarskjöld que

a significação da participação brasileira na Força é hoje maior do que nun-ca, uma vez que o contingente brasileiro é agora o único da América Lati-na. Bem compreendo as condições que levaram o Brasil ao desejo de retirarseu contingente, mas nunca será demais salientar que tal fato se reveste degraves conseqüências para o futuro da Fenu e, por isso, para a totalidadedo esforço de paz das Nações Unidas naquela área, pelo que me sinto nanecessidade de fazer um decisivo apelo a seu governo. Um dos possíveis resulta-dos da retirada brasileira neste momento é o de que outros Governos venham a tomardecisões similares com respeito a seus contingentes, causando a virtual dissolução daForça [grifo nosso]. As conseqüências dessa triste possibilidade poderiamser desastrosas. Creio ser de meu dever apelar ao Governo brasileiro, como máximo empenho, no sentido de examinar ... a possibilidade de reconside-rar o assunto da retirada do Contingente Brasileiro. Por sua parte, as Na-ções Unidas estão prontas a aceitar um contingente menor que o atual e aprocurar uma diminuição dos encargos, financeiros e de outra natureza,que implica para o Brasil a manutenção de seu contingente.11

A relutância do secretário-geral em concordar com o retorno do con-tingente brasileiro inspirou o Itamaraty a pensar em uma fórmula pró-pria, na forma de uma possível barganha: em troca da decisão de não re-tirar suas tropas, o Brasil poderia ver atendidas e suavizadas as condiçõesdos empréstimos que o governo havia contraído no Eximbank. Com efeito,os recursos financeiros norte-americanos chegavam ao Brasil nas déca-das de 1940 e 1950 basicamente mediante empréstimos de natureza co-mercial, o que implicava o pagamento de volumosos montantes corres-

11 Arquivo Histórico do Exército (AHEx), Carta do secretário-geral Dag Hammarskjöld aoGoverno Brasileiro, 19 de janeiro de 1959. Cx. �Batalhão Suez, Fontes Primárias�, cópia dodocumento cedido por André Matheus e Souza. Os esforços do governo para garantir suainclusão na Força no momento de sua criação são um dos argumentos que da missão brasi-leira em Nova York utiliza a fim de dissuadir o Governo de retirar o contingente: �... estima-mos, na justa medida, o sacrifício que representa para as finanças do Brasil a conservaçãodo contingente no Egito. Mas tomamos a liberdade de recordar que: 1) o Brasil insistiudurante vários meses para participar da Força de Emergência ...�. AHI-Brasília, C. de Freitas-Valle para Exteriores, 7-8 de janeiro de 1959, Cartas e Telegramas, Recebidos e Expedidos,Secreto, Cx. 47.

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pondentes a juros e amortizações. De 1940 a 1959, o Brasil, a uma únicaexceção, é o país que mais desembolsa recursos para cobrir obrigaçõescom o Eximbank.12 A tentativa de barganha não chegou a se concretizar.Em novembro de 1959, Hammarskjöld comunicou estar a ONU dispostaa custear a manutenção do batalhão brasileiro, e em face disso o governobrasileiro decidiu reconsiderar sua decisão e manter seu contingente noEgito.13

Não obstante, vale lembrar que as despesas feitas pelos governosque participavam com contingentes da Fenu eram, sem dúvida, uma ques-tão a ser devidamente avaliada. Apesar de os membros da ONU estaremobrigados a contribuir para o orçamento da organização internacional,incluindo aí as despesas com as operações de manutenção de paz, o déficitdo orçamento da organização internacional agravou-se seriamente emconseqüência, por exemplo, da inadimplência de membros como a Françae a União Soviética, que não concordavam em financiar essas operações.A saída mais imediata encontrada para o problema foi a redução das des-pesas com a Fenu, que passaram de 25 milhões de dólares, em 1958, para19 milhões, em 1961, e 14 milhões, em 1967 (Ghali, 1993, p.114-5).Assim, o envio do contingente passava a ser oneroso para os cofres públi-cos dos países participantes, já que os reembolsos feitos pela ONU a es-ses países se tornavam cada vez menores do que as despesas que estesrealmente faziam face com o envio de seus contingentes. No que toca àparticipação brasileira, esse ônus tornava-se mais importante já que asautoridades brasileiras não haviam realizado nenhum tipo de planejamentopara aproveitar aquela experiência internacional para promover o adestra-

12 AHI-Brasília, Exteriores para a Missão do Brasil junto às Nações Unidas, 4 e 6 de fevereirode 1959, Cartas e Telegramas, Recebidos/Expedidos, Secreto, Cx. 47, 1958-59, e resenha�A política externa do Brasil em 1959� (1960).

13 AHI-Brasília, Cyro de Freitas-Valle a Exteriores, 9-10 de fevereiro de 1959, Cartas e Telegra-mas, Recebidos/Expedidos, Secreto, Cx. 47, 1958-59. Em 1961, o Itamaraty registraria que�Israel, dentro da orientação que o seu Governo adotou depois da questão de Suez em 1957,procura formar com o Brasil laços muito estreitos, como o faz com a generalidade dos paí-ses latino-americanos, dos países africanos, e dos países asiáticos ... O Brasil apoiou a can-didatura de Israel ao Conselho Executivo da Organização Mundial de Saúde, em fevereirode 1961. Israel apoiou a candidatura do Embaixador Gilberto Amado à reeleição para a Co-missão de Direito Internacional da ONU, sufragou a candidatura do Brasil à reeleição naFAO, e apoiou, durante os jogos universitários de Sofia, a tese brasileira de realização en-tre nós dos próximos jogos� (Relatório, 1961, p.44-5).

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mento dos oficiais e soldados brasileiros e a modernização e maior pro-fissionalização do Exército. Não houve a preocupação, por exemplo, deaproveitar o contato com tecnologia mais avançada em diversas áreas,como a de radiocomunicações. Ao retornarem do Egito, os militares erammandados para casa, não sendo utilizados para instruir aqueles que parti-cipariam da missão, tampouco sua experiência sendo aproveitada parapromover o aperfeiçoamento técnico do próprio Exército brasileiro (vejaseção seguinte).

Se os termos da imaginada barganha com o Eximbank não haviampassado do plano de mera especulação em 1958-1959, o mesmo não ocor-rerá em 1964, quando da prevista mudança de comando da Fenu, entãosob responsabilidade do general Carlos Paiva Chaves, em agosto daqueleano. De acordo com o princípio da rotatividade, o comando deveria pas-sar a um militar de outro país. O governo brasileiro não se mostra dispostoa acatar a regra e comunica ao secretário-geral que, caso outro militarbrasileiro, o general Syzeno Sarmento, não fosse designado para o coman-do, o Brasil teria que rever sua colaboração.

A questão não se resolveu facilmente, uma vez que o rodízio no co-mando da Fenu vinha sendo respeitado desde a sua criação e o secretá-rio-geral dificilmente poderia deixar de aplicá-lo sem, no mínimo, provo-car reações de desagrado nos demais países candidatos, que poderiamaté mesmo retirar suas tropas. Em face da obstinação do governo brasilei-ro, fechando questão em torno do assunto, o secretário-geral definiu umafórmula com os representantes brasileiros, segundo a qual o general PaivaChaves, ainda com o título de comandante da Fenu, retornaria ao Rio deJaneiro, onde seria examinado por uma junta médica, que daria parecerno sentido de que ele não estaria em condições de saúde para continuara exercer sua função. O parecer seria comunicado oficialmente ao secretá-rio-geral, que se manifestaria pela continuidade do comando da Fenu porum militar brasileiro. De fato, a fórmula funcionou e o general SyzenoSarmento foi designado para �completar� o período de comando do gene-ral Paiva Chaves.14

14 AHI-Brasília, Geraldo de Carvalho Silos a Exteriores, 4-5 de setembro de 1964, e Exterio-res à Missão do Brasil junto às Nações Unidas, 20 de outubro de 1964. Cartas e Telegra-mas, Recebidos/Expedidos, Secreto, Cx. 50.

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A Fenu em ação

Em 1957, a Fenu contava com seis mil efetivos, número que diminui-ria ao longo dos anos, até chegar a 3.400 efetivos, em 1967. Dez paísescontribuíram com tropas, e Índia, Canadá, Iugoslávia e Brasil foram osque maiores contingentes enviaram: a Índia com um total de 6.881 milita-res, o Canadá com 5.780, a Iugoslávia com 3.893 e o Brasil com 3.305(Ghali, 1993, p.117; Relatório, 1957,p.6).

No mesmo período, 1957-1967, o Brasil envolveu-se em outras cincomissões promovidas pela ONU: a) na Operação das Nações Unidas noCongo (Onuc), com 179 militares; b) na Força de Segurança das NaçõesUnidas na Nova Guiné Ocidental/Irian Ocidental (UNSF), com dois mili-tares; c) na Missão do Representante do Secretário-Geral das Nações Uni-das na República Dominicana (DOMREP), com um militar; d) na Missãode Observação das Nações Unidas Índia�Paquistão (Unipom,) com dezmilitares, e e) na Força de Manutenção da Paz das Nações Unidas emChipre (UNFICYP), com um civil e vinte militares. Além disso, no âmbitoda Organização dos Estados Americanos (OEA), o Brasil participou daForça Interamericana de Paz, na República Dominicana, de 1965 a 1966,com 1.450 militares,15 operação esta no mínimo polêmica quanto à sualegitimidade, posto que, de fato, visava apoiar um golpe de Estado naquelepaís (Breda dos Santos, 1998).

Comparativamente, portanto, os dez anos da presença brasileira naFenu e a proporção de efetivos brasileiros enviados ao Egito são suficien-temente indicativos da singularidade daquela experiência.

A Fenu teve que operar exclusivamente no lado egípcio da fronteiraentre Egito e Israel, uma vez que o governo israelense não reconheceusua validade jurídica. A Força mantinha um oficial de ligação com as auto-ridades governamentais egípcias no Cairo. Afora o secretário-geral daONU, a figura mais importante em sua estrutura hierárquica era a de seucomandante, que operava de acordo com as instruções e diretrizes trans-mitidas pelo secretário-geral, agindo como seu principal delegado. Ao

15 Os dados apresentados no parágrafo encontram-se em Tarresse da Fontoura (1999, p.201-4).O autor informa que seu levantamento não incluiu a contribuição brasileira ao ComitêEspecial das Nações Unidas para os Bálcãs, em 1948-1949 (UNSCOB).

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

longo de sua existência, a Fenu teve cinco comandantes, dos quais doisbrasileiros, como referido. O �Batalhão Suez�, como ficou conhecido noBrasil o grupo de militares brasileiros que participou da Força, atuou nosetor de Gaza, em Al-Arich e em Ras El Naqb.

Ainda que a participação brasileira na Fenu tenha sido consideradauma experiência bem-sucedida � pelo Itamaraty, pelo Ministério da Guer-ra e pela ONU �, a leitura de documentos diplomáticos e militares brasilei-ros, sobretudo os últimos, apontam para a existência de problemas sériosem sua realização, que têm principalmente a ver com questões relativasà sua própria organização. Entre esses problemas, dois aparecem comoos mais relevantes: de um lado, o contato extremamente insuficiente entreo Itamaraty e o Ministério da Guerra, responsável pelo preparo e peloenvio do contingente brasileiro; de outro, a falta de planejamento do Mi-nistério da Guerra, no sentido de aproveitar a experiência de seus militaresno Egito para promover sua modernização e profissionalização.

Críticas a propósito da precária ou inexistente comunicação inter-ministerial estão fartamente registradas em relatórios redigidos por ofi-ciais militares que visitaram o contingente brasileiro a partir de 1964 e,particularmente, no relatório do major Rubens Portugal, que trabalhoujunto ao Estado-Maior da Fenu e esteve no Egito durante mais de doisanos (31 dezembro de 1962 a 10 de fevereiro de 1965). Afirma Portugal,por exemplo, acreditar

que, em certos momentos, o Itamaraty tenha formulado alguma políticaou elaborado algum estudo sobre a área e sobre as suas questões. No entan-to, é patente que nunca tais estudos (se é que existem) foram jamais oficia-lizados e, conseqüentemente, encaminhados à execução para que todos osatos decorrentes fossem coerentes com as idéias e os princípios julgadosoficialmente básicos ... Pois, as minhas conclusões sobre o que observei noplano político são as seguintes: a) o Brasil não tem uma política geral paracom as Nações Unidas, as forças de manutenção de paz, o Oriente Médio ea FENU.

E conclui:

Urge consolidar a política do Brasil para o Oriente Médio, particular-mente com respeito à FENU, à ONU e às demais áreas de atrito do Oriente

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Dez anos no deserto: a participação brasileira...

Médio (Iêmen, Chipre e outras) atribuindo a algum órgão interministeriala responsabilidade de executá-las.16

Por seu turno, no Itamaraty, o conteúdo do longo estudo preparadopela Divisão do Oriente Próximo visando à reunião de embaixadores bra-sileiros na área, realizada em Roma, em 1966, não contradiz as impres-sões do major Portugal. Nesse estudo, o conflito árabe-israelense é men-cionado como aquele �que mais de perto toca à ação diplomática brasileirana área�,17 mas não se analisa nem se aponta nenhuma questão de or-dem operacional ou aspectos que mais concretamente dissessem respeitoà atuação e aos interesses brasileiros em torno do conflito, como a óbviapresença do contingente brasileiro no Egito, suas condições de atuação,sua contribuição, seus problemas etc.

No estudo, afirma-se que

[o] Brasil não tem, por certo, objetivos próprios que o levem a envolver-senos problemas regionais do Oriente Próximo, isto é, a tomar partidos ...Acresce que muitos desses conflitos e tensões geram continuamente proble-mas levados às instâncias internacionais, onde o Brasil tem de pronunciar-sesobre eles, não sendo de excluir-se a hipótese de que, a qualquer momento,seja o Brasil chamado ao papel de mediador, neste ou naquele caso. A presen-ça de um contingente brasileiro nas Forças das Nações Unidas, em Gaza, éum bom exemplo desses eventuais envolvimentos do Brasil nos problemasda área, pela via internacional multilateral ... Tudo o que leva à conclusãode que se o Brasil tem todo interesse em manter-se imparcial e equânimeem face dos conflitos e tensões em causa, sua diplomacia precisa, no en-tanto, estar permanentemente alerta para os mesmos. De um lado, parahabilitar o Governo brasileiro a saber, a cada momento, com que OrientePróximo está tratando, isto é, como e com quem conduzir relações condizen-tes com os interesses nacionais. De outro lado, para estar ela própria sem-pre pronta para fazer face às exigências decorrentes da posição internacio-nal do Brasil.18

Observa-se, pois, que há coerência na retórica do Itamaraty, manifestatambém, e principalmente, em suas posições na ONU com respeito ao

16 Relatório apresentado pelo major Rubens Portugal, 1965, p.19-20 e 29.17 �Material de base para a reunião dos embaixadores brasileiros na área do Oriente Médio�,

Divisão do Oriente Médio, Ministério das Relações Exteriores, Confidencial, Roma, abrilde 1966, p.48.

18 Ibidem, p.I.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

conflito israelo-palestino. Aproveitando-se da ausência de interesses dire-tos na região, o Brasil apóia a busca de soluções conciliatórias e pauta-sepela eqüidistância com relação às partes em conflito, exercendo, assim,um papel de mediador e de �amortecedor� de tensões, sobretudo quandose engaja numa missão de paz, vendo nessa atuação uma via de projeçãodo prestígio internacional do país, interesse nacional a ser perseguido.No entanto, não se detecta consistência ou preocupação real em buscar-se uma política conseqüente para a realização desses interesses nacio-nais, por meio, por exemplo, de uma ação coordenada com setores gover-namentais diretamente envolvidos e interessados, como era o caso doExército.

Um exemplo singelo desse tipo de problema encontra-se no relatoque o tenente-coronel José Tancredo Ramos Jube faz de sua curta visitaao Batalhão Suez em 1965 (20 de julho a 6 de agosto de 1965). O militarrelata que, nos países em que o avião da FAB em que viajava fez escala,

foi anotada a ausência completa do M.R.E. Apesar das Embaixadas teremsido avisadas da passagem do avião e alertadas do material a elas destinadoe da presença, na aeronave, de oficial general da FAB, em nenhum pousofomos sequer procurados por um único elemento integrante de nossosquadros diplomáticos.19

Os documentos consultados confirmam que, de fato, não existia ne-nhum tipo de ação coordenada entre o Itamaraty e o Ministério da Guer-ra. Os contatos entre os dois ministérios eram feitos, basicamente, porum oficial, lotado no gabinete do ministro da Guerra. Apesar da resistên-cia do Itamaraty, era mantida na missão brasileira em Nova York, emboranão regularmente, a presença de um adido ou assessor militar, com patentede general que, sendo demasiadamente elevada, acabou por não supriras necessidades reais exigidas por um trabalho mais ligado ao cumprimentode serviços operacionais de rotina.20

19 C Doc, Ministério de Exército, �Relatório de Missão junto ao Batalhão Suez, do Ten.-Cel.José Tancredo Ramos Jube, 1965�, Ministério da Guerra, Gabinete do Ministro, escalãoAvançado, Divisão de Relações Públicas, Subseção Biblioteca, Cx. 6 (Vários).

20 C Doc-Ministério do Exército, Relatório apresentado pelo Ten.-Cel. Iris Lustosa de Oliveira(Relatório apresentado pelo Ten.-Cel. Iris Lustosa de Oliveira, 1967) Ministério da Guerra,Gabinete do Ministro, 2ª Divisão-SSI, Reservado, 8 de fevereiro de 1967, visita ao BatalhãoSuez em janeiro de 1967. Subseção Biblioteca, Cx. 6 (Vários), p.1.

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Finalmente, sobre a questão, vale lembrar que, apesar da contínuaparticipação brasileira em operações de missões de paz naqueles anos(1957-1967), que teria continuidade nas décadas seguintes � quando,inclusive, muito maior complexidade adquiriram, pela diversidade de suastarefas e do pessoal envolvido �, o governo brasileiro não contava, até1993, com uma estrutura para acompanhá-las. Somente em maio de 1993é que o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) foi estabelecido, sob acoordenação do Itamaraty (Tarresse da Fontoura, 1999, p.207-8).

Quanto ao segundo importante problema mencionado, ou seja, a faltade preocupação ou qualquer tipo de planejamento pelo Ministério daGuerra visando ao aperfeiçoamento de seus efetivos a partir da experiênciamilitar internacional no Egito, o relatório do major Portugal é eloqüente.Afirma o militar que

[o] que mais espanta o oficial brasileiro que vai servir no Estado-Maior doComandante da FENU é que o Brasil é o único dos sete países contribuin-tes para a Força que não tem doutrina oficial firmada para nenhuma dasduas políticas consideradas [a macropolítica e a micropolítica] ... No tocanteà micropolítica, o Brasil é o único dentre os sete países [que compõem aFENU] que não dá assistência ao seu contingente porque é o único quenunca definiu o que esperava do seu contingente na FENU. Não havendoobjetivo em vista, não há mesmo razão para apoio, assistência e orienta-ção. O oficial brasileiro que se encontra servindo no Estado-Maior do Co-mandante da FENU, tem de deduzir ele próprio as finalidades, os objetivose os processos, imaginando na solidão e em diálogo com os seus própriosbotões, o que a Pátria distante haveria de esperar de si. Ao nosso ladoentretanto, os demais contingentes agem em obediência às respectivas polí-ticas nacionais e nesse sentido são severamente fiscalizados. Os canadenses,dominando o apoio logístico, guardam na sua mão a própria sobrevivênciada Força. Para isso eles mantêm o controle sobre o suprimento (transpor-tes) e manutenção. Os indianos, por sua vez, mantêm a supremacia deefetivos ... Representam a massa de infantaria ... Os escandinavos desejamardentemente a manutenção do status na área. Para isso dão decidido apoiopolítico e administrativo à Força ... [e] alardeiam uma boa vontade exa-gerada com a FENU. Os iugoslavos são os mais leais amigos dos árabes,porque são os que mais identificam os seus objetivos nacionais com osobjetivos da RAU.21

21 Relatório apresentado pelo major Rubens Portugal, 1965, p.14.

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E continua:

O Brasil não está aproveitando a FENU, como devia, para treinamentodos quadros do Exército ... O Brasil poderia tirar grandes vantagens disso, masaté 1964, os nossos homens destacados para servir na Cia da PE [Polícia do Exército]da FENU eram cabos e soldados que eram licenciados ao chegarem de volta ao Brasil[grifo nosso]. Foi com o objetivo de minorar o erro que em colaboraçãocom o Cmt do Btl Brasileiro, conseguimos modificar a nossa representaçãojunto à PE, passando a destacar sargentos ao invés de cabos e soldados. Sóassim, esses homens não serão logo licenciados e alguma coisa pode serque reverta em benefício do Exército.22

Os relatórios dos oficiais encarregados de visitar o Batalhão Suez erelatar sua situação ao Ministério da Guerra confirmam as impressõesdo major Portugal. Dois anos mais tarde, por exemplo � pouco antes,portanto, da retirada da Fenu do Egito �, detecta-se a mesma situação eobservações similares. Notam os militares que a participação em opera-ções de paz é aproveitada por vários países como uma escola para o aper-feiçoamento de seus quadros, o que contrasta completamente com a atitu-de das autoridades governamentais brasileiras:

Infelizmente, no Brasil, há a mentalidade de que, ir ao estrangeirosignifica passear e juntar dólares; à experiência adquirida pouco valor édado. Até hoje não foi feito nenhum estudo sério sobre nossa participaçãona FENU ou no Congo. Até hoje não são utilizados na preparação dos no-vos contingentes, oficiais e praças que já tenham estado na FENU. Os relató-rios dos comandantes de batalhão apodrecem nas gavetas e nunca foramcodificados ou transformados em experiência viva. Torna-se necessário queseja mudada a atitude dentro do nosso Exército, para com as operações daONU. O Brasil deve procurar participar, em todas as que não firam seusprincípios políticos. Ao mesmo tempo, deve procurar codificar a experiên-cia acumulada até agora em suas escolas, na preparação dos contingentese, até mesmo na criação de um Centro de Preparação para Forças Internacio-nais, onde seriam preparados os nossos contingentes para FENU, S. Domin-gos e quantas outras aparecessem.23

22 Ibidem, p.16.23 Relatório apresentado pelo Ten.-Cel. Iris Lustosa de Oliveira, 1967, p.14-5.

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Dez anos no deserto: a participação brasileira...

A retirada do Batalhão Suez

Ao longo da década de 1960, o mundo assistia com apreensão ao cres-cimento do poderio militar egípcio, fato longe de passar despercebidopelo major Portugal, que registrava em seu relatório de 1965 que, guarda-das tais tendências,

chegará o dia em que o presidente Nasser poderá admitir que está maisforte que Israel ... Calculo que entre 1966 e 1967 o Egito poderá atingiruma tal situação de autoconfiança que a partir de então a presença da FENUlhe poderá ser desnecessária. Pode acontecer, outrossim, que tal presençachegue a ser inconveniente dependendo da estratégia que venha a ser visa-da no Cairo.

Perguntava-se o militar:

[E]stá o governo brasileiro aparelhado para reagir com presteza e mover-se comagilidade diante das mutações que hoje são imprevisíveis? A minha impressão é quenão está. A minha impressão é que o governo brasileiro está de costas voltadas parao Oriente Médio onde meio milhar de brasileiros – e a bandeira do Brasil – encon-tram-se empenhados em uma tarefa hoje sereníssima, amanhã quem sabe? [grifonosso]

E, finalmente, recomendava aos seus superiores hierárquicos:

Tendo em conta a estimativa que faço no sentido de que a partir de 1966 podeo Egito querer mudar a sua política em relação a Israel e à FENU, considero urgentís-simo que o EME dê início a tais estudos. Trata-se de proteger não apenas meio milharde soldados brasileiros mas a nossa posição, o nosso futuro na ONU e no OrienteMédio, a nossa situação política na África etc. ... [grifo nosso]24

O dia 14 de maio de 1967 marca o início do período qualificado pelocomandante do contingente brasileiro no Egito como o de �Conjunturade Exceção�. Nesse dia, décimo nono aniversário da criação de Israel,tropas egípcias ocupam o Sinai. Dois dias mais tarde, Nasser exige o re-cuo dos contingentes da Fenu às proximidades da fronteira egípcio-israe-lense para, em seguida, exigir sua retirada completa. Em 19 de maio, a

24 Relatório apresentado pelo major Rubens Portugal, 1965, p.34 e 69.

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Fenu recebe do secretário-geral da ONU ordem de retirar-se da área emque operava. As patrulhas, na realidade, já haviam sido suspensas em 16de maio pelo Comando da Força a fim de evitar incidentes com as tropasegípcias.

A �Conjuntura de Exceção propriamente dita� estende-se de 5 a 12de junho, quando tropas israelenses, que há meses se movimentavamao longo das fronteiras de Israel, passaram a atacar intensamente seusrivais egípcios, jordanianos e sírios. De maneira extraordinária, nessesseis dias, Israel vence seus inimigos, ocupando Sharm-el-Sheik, a mar-gem ocidental do Canal e do Golfo de Suez, a Cidade Velha de Jerusa-lém, a Cisjordânia e o platô do Golã, na Síria, até a cidade de Kuneitra.

Na documentação consultada não se pôde verificar se as acertadaspreocupações apontadas pelo major Portugal em seu relatório, com respeitoà situação dos militares que se encontravam no Egito na conjuntura detensão que precede à Guerra dos Seis Dias, chegaram a se tornar objetode estudo de seus superiores. Em todo caso, o �Registro Histórico Com-pleto de 1957-1967�, que detalha o dia-a-dia do Batalhão no Egito, justi-fica a posição do contingente brasileiro no momento em que o conflito édeflagrado, ou seja, em meio ao fogo cruzado:

embora as atividades militares desenvolvidas na RAU, e presenciadas portodas as tropas da FENU, viessem ganhando uma intensidade cada vez maiscrescente, as autoridades egípcias, que desempenhavam funções de liga-ção junto ao Comando das tropas da FENU, asseguravam que a retirada daForça se processaria tranqüilamente e dentro dos prazos previstos. Haviaindícios de guerra, mas o seu desencadeamento no dia 5 de junho colheu atodos de surpresa, principalmente considerando as garantias que o governoegípcio vinha proporcionando à Força.25

No dia 5 de junho, o Campo de Rafah estava tomado por forças israe-lenses, onde reuniram os contingentes da Fenu (brasileiros, iugoslavos,noruegueses e indianos). No dia 12, os militares brasileiros eram desloca-dos para o porto israelense Ashdod e embarcados no Soares Dutra, da Ma-rinha brasileira. Lamentavam a perda de um colega, segundo-sargento

25 C Doc, Ministério do Exército-Brasília, Seção de Histórico das Organizações Militares, III/2º Regimento de Infantaria � Btl Suez, �Registro Histórico Completo 1957-1967�, p.2461.

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Dez anos no deserto: a participação brasileira...

Carlos Alberto Ilha de Macedo, atingido mortalmente pelo fogo cruza-do entre israelenses e egípcios, no Campo Rafah, no primeiro dia doconflito.26

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26 Ibidem, p.2454 e 2466.

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9O padrão de votação brasileiro na ONU

e a questão do Oriente Médio

João Vicente Pimentel*

IntroduçãoUma análise serena do padrão de votação do Brasil nas Nações Uni-

das desde 1947 sobre as questões do Oriente Médio revela um consistentepragmatismo em defesa dos interesses brasileiros, que são condiciona-dos por elementos da realidade, tais como:

a) a relevância político-diplomática da região no contexto internacio-nal e, em particular, para um país como o Brasil, que busca adequar suainserção e visibilidade aos seus objetivos permanentes e imediatos;

b) os meios disponíveis para uma atuação conseqüente;c) a presença no Brasil de expressivas e influentes comunidades ára-

be e judaica;

* Diretor do Departamento de África e Oriente Próximo do Ministério das Relações Exterio-res do Brasil até o início de 2001. Cônsul-Geral do Brasil em Los Angeles.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

d) a manifesta preferência das lideranças dessas comunidades porum encaminhamento pacífico das pendências do Oriente Médio, uma vezque a paz providenciaria o cenário adequado à intensificação do intercâm-bio, seja no âmbito familiar, seja no econômico-comercial;

e) a importância estratégico-econômica do Golfo Árabe/Pérsico, re-gião onde se concentra cerca de metade das reservas mundiais de petró-leo, e o fato de os países do Golfo, tradicionais fornecedores de petróleoao Brasil, constituírem importante mercado consumidor/reexportador,além de serem investidores internacionais.

Histórico

Já na sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas (AGNU) de1947, quando se aprovou a Resolução n.181, relativa à partilha da Palesti-na em dois Estados, um árabe e um judeu, a delegação brasileira distin-guia entre o desejável e o possível. Na ocasião, o representante do Brasildeclarou que:

� a questão da partilha se apresentava como um fait accompli;� o Brasil teria preferido um plano que preservasse a unidade política

na Palestina, ainda que sob a forma de um governo federal ou cantonal;� vista como medida temporária, à luz das tensões reinantes, o Brasil

votaria a favor da partilha, ciente de que essa alternativa contava como endosso das grandes potências;

� deixava constância, porém, de que o fazia diante da falta de alternati-va ao plano, julgando que, no caso, a ação seria preferível à inércia,por trazer em si a possibilidade de progressos futuros.

Esse fio condutor pautou o desempenho de Oswaldo Aranha na presi-dência daquela histórica sessão da AGNU. Aranha empenhou-se para fa-cilitar a obtenção de um consenso e desobstruir o ardiloso curso dos traba-lhos, contribuindo para aprovar um plano que ele sabia imperfeito, masque não deixava de atender aos interesses ocidentais e brasileiros. O de-sempenho do estadista assegurou ao Brasil um papel essencial na ado-ção da Resolução n.181. O texto estabelecia um regime territorial interna-cional para Jerusalém, um corpus separatum, fundamentado na singulardimensão espiritual e universal da cidade.

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O padrão de votação brasileiro na ONU e a questão do Oriente Médio

A situação de fato, estabelecida pelas armas em 1948, é um dos fato-res que levam o Brasil a aguardar até 7 de fevereiro de 1949 para reconhe-cer o Estado de Israel. Por sua vez, a evolução dos acontecimentos emJerusalém em direção oposta à prescrita na Resolução n.181 faz pendero voto brasileiro para abstenção, quando da admissão de Israel nas Na-ções Unidas, em 11 de maio de 1949 (Resolução n.273, III).

Ao longo dos anos 50 e 60, o Brasil favoreceu as resoluções que defen-diam a solução de situações de conflito e o fornecimento de assistênciaaos palestinos. Paulatinamente, consolidou-se nas Nações Unidas tendên-cia a favorecer uma posição de eqüidistância no conflito do Oriente Médioe a advogar uma solução justa, abrangente e duradoura para os litígios.Essa posição tomaria forma definitiva na Resolução n.242 (1967) doConselho de Segurança (CSNU), aprovada com o voto do Brasil (à época,integrante desse órgão na qualidade de membro não permanente). AResolução n.242 permanece até hoje como elemento normativo centraldas negociações entre árabes e israelenses.

A crise do petróleo, a evolução do diálogo Norte�Sul e da Guerra Fria,bem como a percepção do governo Geisel quanto aos interesses desen-volvimentistas do país vão conduzir a diplomacia brasileira a se aproxi-mar, nos foros internacionais, da maioria dos países em desenvolvimento.Data de 1975 a controvertida Resolução n.3.379, que considerava o sionis-mo como forma de discriminação racial, e que foi aprovada na Assem-bléia Geral com o voto favorável do Brasil.

No plano bilateral, procurava-se adensar o intercâmbio com os paí-ses árabes, sobretudo os produtores de petróleo. Ainda em 1975, o gover-no brasileiro autorizava a OLP a manter representação em Brasília, noescritório da missão da Liga Árabe.

O fim da Guerra Fria e a conseqüente reorganização das relações in-ternacionais afetaram, inevitavelmente, o tratamento da problemática mé-dio-oriental. Em 1990, a 46ª AGNU revogou a Resolução n.3.379, sobreo sionismo, com o voto favorável do Brasil. Em 1991, o desfecho da Guerrado Golfo e as alterações no conteúdo da agenda internacional criaram ascondições possíveis para a convocação da Conferência de Madri. A partirde 1992, com a chegada dos trabalhistas ao poder em Israel, aceleraram-se as negociações bilaterais secretas de Oslo, que previam a assinaturade sucessivos acordos de paz entre israelenses, jordanianos e palestinos

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

em 1993, 1994 e 1995. Tal conjuntura, como era de esperar, repercutiudiretamente nas Nações Unidas.

A análise das resoluções aprovadas de 1992 a 1999 revela sensíveldiminuição da quantidade e atenuação do teor dos projetos submetidosà AGNU sobre a matéria. Muitos deles registram, de maneira positiva,os progressos alcançados nas negociações de paz. Entre a 48ª e a 51ªAGNU (1993-1996), figurou na agenda da Assembléia Geral a chamada�Resolução positiva�, que versava sobre as negociações de paz. À parteos projetos em geral adotados sem voto (cooperação ONU�Liga Árabe;cooperação ONU�Conferência Islâmica; assistência aos palestinos) ouaqueles rotineiramente adiados (reator nuclear iraquiano, situação Ira-que�Kuwait), chegou-se à 54ª AGNU com quatro grandes unidades refe-rentes ao Oriente Médio, ao abrigo dos quais se examinam dezoito proje-tos sobre temas correlatos: Situação no Oriente Médio, Questão daPalestina, Agência das Nações Unidas para Assistência e Obras Destina-das aos Refugiados Palestinos no Oriente Próximo (UNRWA) e ComitêEspecial para Investigar Práticas Israelenses que Afetam os DireitosHumanos do Povo Palestino e de Outros Árabes dos Territórios Ocupa-dos. A esses projetos, soma-se o tema �Belém 2000�, sobre o qual temsido aprovada resolução desde 1998 (53ª AGNU).

Exame dos temas na pauta da AGNU

Situação no Oriente Médio

Desde 1993, vêm sendo tabulados sob esse item da agenda três pro-jetos de resolução que versam sobre Jerusalém e as colinas do Golã. Ostextos são, em geral, preparados pelo Grupo Árabe e negociados com paí-ses ocidentais, sobretudo europeus. Um terceiro projeto, sobre o Pro-cesso de Paz no Oriente Médio, foi apresentado apenas entre 1993 e 1996.

Jerusalém

A chamada �Questão de Jerusalém� é um dos mais complexos te-mas da problemática do Oriente Médio, em boa parte em razão de seuconteúdo emocional, com implicações para o universo mitológico judeu,

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O padrão de votação brasileiro na ONU e a questão do Oriente Médio

muçulmano e cristão. O padrão de votação brasileiro nessa matéria é só-lido desde a adoção da Resolução da Partilha, quando da presidência deOswaldo Aranha da sessão extraordinária da Assembléia Geral da ONU,iniciada em abril de 1947, e da segunda sessão da AGNU daquele ano,inaugurada em setembro.

Diante dos acontecimentos de 1948 e 1967, a posição brasileira semanteve coerente, com votos sucessivos em defesa de uma solução basea-da no Direito Internacional, na AGNU, no CSNU e em outros órgãos eorganismos internacionais, como a Comissão de Direitos Humanos e aOrganização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura(Unesco).

Assim, o Brasil apoiou as Resoluções n.194 (de 1948) e n.303 (de1949), ambas posteriores ao início das hostilidades que dividiram a cidadesanta. Essas resoluções reiteram o regime do corpus separatum e a necessi-dade de proteção e livre acesso aos lugares santos.

Em seguida à Guerra dos Seis Dias, o Brasil vota a favor das Resoluçõesn.2.253 e n.2.254 (4 e 14 de julho de 1967), que constituem as primei-ras manifestações da comunidade internacional contrárias à ocupação mi-litar e à anexação por Israel de Jerusalém oriental.

Em 1980, às vésperas da adoção, em Israel, da lei que declararia serJerusalém a capital do país, o Brasil apóia a Resolução ES-7/2 da Assem-bléia Geral de Emergência, que conclama Israel a retirar-se incondicional-mente dos territórios ocupados.

Em seu discurso perante a AGNU, nesse mesmo ano, o chanceler Ra-miro Saraiva Guerreiro expressa condenação a �certas medidas, recente-mente adotadas ou anunciadas, de consolidação da ocupação ilegal e deanexação formal de territórios tomados pela força�. Em seguida, reiteraapoio à Resolução n.478 do CSNU e à �rejeição universal das medidasdestinadas a modificar unilateralmente o status da cidade de Jerusalém�.

Nos anos 90, o Brasil vota consistentemente a favor das perspecti-vas impulsionadas pela Conferência de Madri e pelos Acordos de Oslo.As �resoluções positivas� recebem invariável voto positivo brasileiro.

Quando, em 1996, sobrevém a inflexão política que paralisa o proces-so de paz, o Brasil se posiciona com clareza. Ao acompanhar o consensoem torno da resolução da Comissão de Programas do Conselho Executivoda Unesco que, em 25 de outubro de 1996, deplora a decisão do governo

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

do Likud de abrir o Túnel dos Hasmoneus, o representante brasileiro instaas partes envolvidas na crise a evitar toda ação que pudesse ameaçar oprocesso de paz e pondera que, sendo o Brasil um país onde convivemem harmonia contingentes de população das mais diferentes etnias e re-ligiões, não cabe senão um apelo para que israelenses e palestinos prossi-gam com as negociações de paz, com base nos acordos existentes, no di-reito internacional e nas resoluções pertinentes das Nações Unidas.

No plano interno e bilateral, a trajetória do Brasil tem sido consisten-te com os preceitos do Direito Internacional aplicáveis na matéria. A sededa missão diplomática foi sempre mantida em Tel-Aviv, inicialmente comolegação (1952) e em seguida, como embaixada (1958). Vale notar quenisso coincidimos com a tendência da comunidade internacional repre-sentada nas Nações Unidas, que repetidamente rejeita a modificação uni-lateral do status de Jerusalém e orienta os Estados-membros a não sedia-rem suas embaixadas naquela cidade. Hoje, das 130 embaixadaslocalizadas em Israel, apenas Costa Rica e El Salvador situam as suas mis-sões diplomáticas em Jerusalém.

O Golã sírio

Ocupado por Israel em junho de 1967 e formalmente anexado a seuterritório em 1981 (decisão ratificada pela Knesset � Parlamento israelen-se � em 1991), o platô do Golã está no centro da discórdia entre Damas-co e Tel-Aviv. As divergências de princípio sobre esse ponto, juntamentecom a definição da linha de fronteira, bloqueiam as negociações na frentesírio-israelense-libanesa.

No âmbito das Nações Unidas, até 1990 os textos da tradicional reso-lução sobre o Golã eram mais abrangentes, repetitivos e de linguagemagressiva. Ausentes das sessões de 1991 e 1992 da AGNU, os projetosvoltaram à pauta em 1993 e 1994, mais concisos, objetivos e redigidosem linguagem comedida. A comparação dos padrões de votação de 1990(45ª AGNU) e 1994 (49ª AGNU) revela, se não maior apoio, pelo menosmenor rejeição aos textos apresentados: os votos negativos caíram de 22para dois (EUA e Israel); as abstenções subiram de 41 para setenta (Bra-sil); os votos favoráveis passaram de 84 para 77. Ou seja, houve significa-tiva migração de votos para a abstenção, em decorrência do enxugamento

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do texto, por um lado, e da alteração do quadro parlamentar no pós-Guerra Fria, por outro. Na 50ª AGNU, a inclusão de referência à linha de4 de junho de 1967 (mantida desde então em todas as resoluções sobreo tema) como fronteira sírio-israelense no Golã reduziu o apoio parlamen-tar à resolução. Os votos favoráveis foram reduzidos a 66, havendo ain-da dois votos contrários (EUA e Israel) e 79 abstenções (Brasil).

Na 54ª AGNU, a Resolução n.54/38 (�Golã sírio�), adotada por 92votos a favor, dois contra (EUA e Israel) e 53 abstenções (Brasil), mantevea referência àquela fronteira polêmica. A resolução exortou Israel a reto-mar as conversações de paz com Líbano e Síria e registrou ainda o desa-pontamento com a não-desocupação do Golã por Israel, contrariandoresoluções do CSNU e da AGNU. Em conseqüência, foi ressaltada a ilega-lidade da construção de assentamentos e outras atividades realizadas porIsrael na área e determinou-se, uma vez mais, que a contínua ocupaçãodo mencionado território sírio constitui obstáculo ao processo de paz.

O processo de paz no Oriente Médio

No período de 1993 a 1996, foram aprovadas resoluções que discor-riam de forma genérica sobre o tema �Processo de Paz no Oriente Mé-dio�, expressando o apoio da Assembléia Geral aos progressos registradosna busca da paz na região. O projeto era apresentado por Noruega, Esta-dos Unidos e Rússia, co-patrocinados por grande número de países, en-tre os quais o Brasil. O texto dessas resoluções diferencia-se dos demaisadotados sobre a região por adotar tom positivo em relação ao processode paz, demonstrando o apoio da comunidade internacional ao avançodo processo. A partir de 1997, contudo, a chamada �Resolução positiva�não mais foi apresentada por seus co-patrocinadores, em razão da faltade acordo sobre emendas apresentadas pelo Grupo Árabe.

A questão da Palestina

Em relação a esse item da agenda, a Assembléia Geral das NaçõesUnidas analisa, desde 1993, quatro projetos de resolução, em geral prepa-rados pelo Grupo Árabe e negociados com países ocidentais, sobretudoeuropeus: (a) Comitê sobre o Exercício dos Direitos Inalienáveis do Povo

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Palestino; (b) Divisão do Secretariado sobre os Direitos Palestinos; (c)Programa Especial de Informação sobre a Questão da Palestina do Depar-tamento de Informação Pública (DPI) do Secretariado; e (d) Solução Pacífi-ca da Questão da Palestina. Durante esse período, cresceu o número deabstenções na votação dos dois primeiros projetos (europeus ocidentais);o terceiro vem sendo aprovado por grande número de votos; o quarto,ajustado após as muitas abstenções de 1993, foi aprovado por amplamaioria nos anos subseqüentes. O Brasil tem votado a favor dos quatroprojetos. Israel e Estados Unidos tendem a votar contra.

Na 52ª AGNU foi aprovada, ainda, resolução que elevou o status darepresentação palestina nos trabalhos da ONU. Aquela delegação conquis-tou, dessa forma, o direito de: participar do Debate Geral da AssembléiaGeral; inscrever-se na lista de oradores em qualquer reunião do plenárioda AGNU, após o último Estado-membro inscrito; levantar questões deordem em temas afetos aos palestinos e ao Oriente Médio; co-patroci-nar projetos de resolução e de decisão sobre esses temas (os projetos,porém, só poderão ser colocados em votação a pedido de um Estado-mem-bro); fazer intervenções; o direito de resposta e assento no plenário daAGNU e em reuniões no âmbito da ONU imediatamente após os Estadosobservadores e antes dos demais observadores. A delegação palestinaainda não conquistou, todavia, o direito de votar projetos de resoluçãonem de apresentar candidaturas.

Dentro desse contexto, o governo brasileiro decidiu, em abril de 1998,elevar o status da representação palestina em Brasília, a fim de torná-lomais compatível com a nova realidade política e geográfica instauradano Oriente Médio, tendo sido introduzidas as seguintes mudanças: a) onome da Delegação Especial Palestina, antes incluída no capítulo referentea �Organismos Internacionais�, passou a figurar na parte reservada a �Paí-ses e Delegações�, após �Zâmbia� e antes de �União Européia�; e b) naordem de precedência dos chefes de missão, o nome do chefe da Delega-ção Especial Palestina passou a figurar na posição correspondente à datade apresentação de suas credenciais.

Na 54ª AGNU, foram aprovadas as seguintes resoluções sob esse item:

a) Resolução n.54/39, sobre o �Comitê sobre o Exercício dos DireitosInalienáveis do Povo Palestino�, aprovada por 105 votos a favor (Brasil),

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três contra (EUA, Israel e Ilhas Marshall) e 48 abstenções. O texto dessaresolução assinala que o comitê contribui de forma positiva e valiosa paraos esforços internacionais em favor da paz no Oriente Médio e do cumpri-mento integral dos acordos já assinados, auxiliando o povo palestinodurante a fase de transição (até que seja concluído o processo de pacifica-ção na região).

b) Resolução n.54/40, sobre a �Divisão do Secretariado sobre os Di-reitos Palestinos�, aprovada por 107 votos a favor (Brasil), três contra(EUA, Israel e Ilhas Marshall) e 47 abstenções. Essa resolução solicita aosecretário-geral das Nações Unidas o prosseguimento de destinação derecursos à divisão, cujas tarefas incluem, entre outras, a organização deencontros regionais e a preparação e disseminação de documentos so-bre a questão palestina. A resolução também expressa reconhecimentopelas ações tomadas pelos Estados-membros na observância do Dia Inter-nacional da Solidariedade ao Povo Palestino (29 de novembro).

c) Resolução n.54/41, sobre o �Programa Especial de Informaçãosobre a Questão da Palestina do Departamento de Informação Públicado Secretariado�, aprovada por 151 votos a favor (Brasil), três contra(EUA, Israel e Ilhas Marshall) e duas abstenções (Micronésia e Uzbequis-tão). Partindo do pressuposto de que a disseminação de informações éde vital importância para o respeito aos direitos inalienáveis do povo pa-lestino, essa resolução enumera tarefas a serem realizadas pelo referidodepartamento, solicitando-lhe, também, apoio à divulgação do projeto�Belém 2000�.

d) Resolução n.54/42, sobre �Solução Pacífica da Questão da Palesti-na�, aprovada por 149 votos a favor (Brasil), três contra (EUA, Israel eIlhas Marshall) e duas abstenções (Micronésia e Uzbequistão). Conside-rando a responsabilidade da ONU pelas questões relativas aos palesti-nos enquanto a paz não é alcançada e reconhecendo os avanços do proces-so de paz, principalmente na década de 1990 (destaque especial aosentendimentos mantidos em Madri, Oslo e Sharm El-Sheikh), a resolu-ção expressa apoio à pacificação e, mais especificamente, ao princípio�terra por paz�. Ademais, exorta a comunidade internacional a envidaresforços para assegurar o êxito do processo de paz e o respeito aos prazosacordados, sempre enfatizando a necessidade de respeito aos direitosinalienáveis do povo palestino, em especial o da autodeterminação.

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Agência das Nações Unidas sobre Assistênciae Obras para Refugiados Palestinosno Oriente Próximo (UNRWA)

Criada em 1949 pela Resolução n.302 (IV) da AGNU, com a finalidadede fornecer ajuda humanitária a palestinos refugiados em decorrênciada Guerra Árabe�Israelense de 1948, a Agência das Nações Unidas so-bre Assistência e Obras para Refugiados Palestinos no Oriente Próximo(UNRWA) provê, desde maio de 1950, ensino, capacitação, serviços médi-cos, socorro e outros serviços aos refugiados palestinos. Em 1967 e em1982, as funções da agência foram ampliadas para fornecer assistênciahumanitária a outras pessoas deslocadas e necessitadas de ajuda emer-gencial, como resultado das hostilidades ocorridas a partir de 1967. Omandato da agência foi prorrogado diversas vezes pela AGNU. A últimaprorrogação estende o mandato até 30.6.2002 (Resolução n.53/46).

Na 54ª AGNU, as resoluções aprovadas sob esse item (com mínimasalterações no quadro parlamentar em relação aos anos anteriores) foramas seguintes:

a) Resolução n.54/69, sobre �Assistência a Refugiados Palestinos�,aprovada por 155 votos a favor (Brasil), um contra (Israel) e duas absten-ções (Estados Unidos e Micronésia). Reconhece os avanços do processode paz no Oriente Médio, mas lamenta a situação dos refugiados palesti-nos, tendo em vista que não se procedeu ainda a sua repatriação e indeni-zação. Expressa também preocupação com a situação financeira da UNRWA,recomendando, por um lado, maior transparência orçamentária e eficiên-cia interna ao comissário-geral da agência, e por outro conclamando acomunidade internacional a contribuir com doações àquele órgão.

b) Resolução n.54/70, sobre o �Grupo de Trabalho sobre o Financia-mento da UNRWA�. Adotada, como de hábito, por consenso, expressaaprovação ao trabalho do grupo para cujo prosseguimento recursos deve-rão continuar a ser destinados pelo secretário-geral.

c) Resolução n.54/71, sobre �Pessoas Deslocadas em Decorrênciadas Hostilidades de Junho de 1967 e Subseqüentes�, aprovada por 154votos a favor (Brasil), dois contra (Israel e Estados Unidos) e duas absten-ções (Micronésia e Ilhas Marshall). Reafirma o direito das pessoas des-

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locadas em decorrência da Guerra dos Seis Dias e demais confronta-mentos subseqüentes a retornar a suas residências nos territórios ocu-pados por Israel desde 1967, e conclama a comunidade internacional acontribuir para o trabalho dos órgãos governamentais e não governa-mentais que prestam assistência humanitária a essas pessoas.

d) Resolução n.54/72, sobre �Oferecimentos de Bolsas de Estudopara Educação Superior, Inclusive Treinamento Vocacional para Refugia-dos Palestinos�. Aprovada por 158 votos a favor (Brasil), nenhum con-tra e uma abstenção (Israel), solicita à comunidade internacional, entreoutros pontos, a elevação de contribuições e bolsas a refugiados palesti-nos e o apoio às universidades palestinas nos territórios ocupados (incluí-do o estabelecimento da Universidade de Jerusalém Al-Quds para Refu-giados Palestinos).

e) Resolução n.54/73, sobre �Operações da UNRWA�, aprovada por154 votos a favor (Brasil), dois contra (Israel e Estados Unidos) e umaabstenção (Micronésia). Reconhece o trabalho da UNRWA e o apoio daOLP, entre outros, à agência. Paralelamente, conclama Israel a aplicar nor-mas internacionais para salvaguardar o pessoal da UNRWA, bem comoos locais ocupados pela agência, e requer compensações do governo israe-lense por prejuízos causados aos bens e escritórios da agência em segui-da a ações daquele governo.

f) Resolução n.54/74, sobre �Propriedades e Rendimentos de Refu-giados Palestinos�. Aprovada por 154 votos a favor (Brasil), dois contra(Israel e Estados Unidos) e duas abstenções (Micronésia e Ilhas Marshall),reafirma os direitos dos refugiados palestinos sobre suas propriedades esobre as rendas delas derivadas. Vale observar que o documento aindaconclama israelenses e palestinos a lidar com a questão nas negociaçõesque deverão levar ao estabelecimento da paz definitiva na região.

g) Resolução n.54/75, sobre �Universidade de Jerusalém Al-Qudspara Refugiados Palestinos�. Aprovada por 155 votos a favor (Brasil), doiscontra (Israel e Estados Unidos) e uma abstenção (Micronésia), enfatizaa necessidade de fortalecimento do sistema educacional nos territóriosocupados, em particular, o estabelecimento da Universidade de Jerusa-lém Al-Quds para Refugiados Palestinos. Nesse sentido, solicita a Israelque remova os impedimentos para a criação da referida instituição.

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Relatório do Comitê Especial para Investigar PráticasIsraelenses que Afetam os Direitos Humanos do PovoPalestino e de Outros Povos Árabes dos Territórios Ocupados

Criado pela AGNU em 1968, pela Resolução n.2.443 (XXIII), o ComitêEspecial para Investigar Práticas Israelenses que Afetam os Direitos Hu-manos do Povo Palestino e de Outros Povos Árabes nos Territórios Ocupa-dos tem por objetivo salvaguardar o bem-estar e os direitos humanosdas populações nas áreas ocupadas por Israel desde 1967, bem como aintegridade dessas áreas, na ausência de uma solução definitiva.

Sob esse item, a Assembléia Geral examina os relatórios anuais doComitê Especial. Em geral, o governo israelense não facilita as investiga-ções in loco do comitê e, por isso, os relatórios costumam ser preparadoscom base em fontes secundárias. As delegações dos Estados Unidos ede Israel costumam criticar o relatório e o trabalho do comitê, conside-rando-os parciais e desnecessários, e sugerindo que os seus recursos fi-nanceiros sejam redirecionados para projetos de desenvolvimento eco-nômico nos territórios ocupados.

Até a 50ª AGNU, os diversos projetos de resolução sob esse item eramreunidos em uma resolução omnibus. Nos últimos anos, porém, foramaprovadas cinco resoluções separadas. Na 54ª AGNU, foram aprovadasas seguintes resoluções:

a) Resolução n.54/76, sobre o �Trabalho do Comitê Especial paraInvestigar Práticas Israelenses que Afetam os Direitos Humanos do PovoPalestino e de Outros Árabes nos Territórios Ocupados�. Aprovada por84 votos a favor (Brasil), dois contra (Israel e Estados Unidos) e 67 absten-ções, elogia o comitê pelos esforços no cumprimento da tarefa propostapela AGNU e por sua imparcialidade; conclama Israel a cooperar com ocomitê especial na implementação do seu mandato; lastima as políticase práticas de Israel que violam os direitos humanos do povo palestino eoutros árabes dos territórios ocupados, como transparece nos relatóriosdo comitê especial que cobrem o período analisado. A resolução expressaainda preocupação com a situação no território palestino ocupado, inclu-sive Jerusalém; instrui o comitê a realizar consultas apropriadas ao ComitêInternacional da Cruz Vermelha para assegurar-se de que o bem-estar e

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os direitos humanos dos povos dos territórios ocupados são garantidos,reportando o observado ao secretário-geral; requer ainda a apresentaçãoao Secretariado Geral de relatórios periódicos sobre a situação no territó-rio palestino ocupado, inclusive Jerusalém, e a contínua observação dotratamento aos prisioneiros nessas localidades e outros territórios ocupa-dos por Israel desde 1967.

b) Resolução n.54/77, sobre �Aplicabilidade da Convenção de Gene-bra Relativa à Proteção de Civis em Tempos de Guerra, de 12 de agostode 1949, ao Território Palestino Ocupado, inclusive Jerusalém, e aos Terri-tórios Árabes Ocupados�. Aprovada por 154 votos a favor (Brasil), doiscontra (Israel e Estados Unidos) e uma abstenção (Micronésia), enfatizaque Israel deve cumprir suas obrigações de acordo com o Direito Interna-cional; reafirma a aplicabilidade da Convenção de Genebra relativa à Prote-ção de Civis em Tempos de Guerra, de 12 de agosto de 1949 ao territóriopalestino ocupado, inclusive Jerusalém, e a outros territórios árabes ocupa-dos por Israel desde 1967; conclama Israel a aceitar a aplicabilidade daConvenção e apela para que todos os Estados partes assegurem o respeito,por Israel, às suas determinações; por fim, reitera a necessidade de rápi-da implementação das recomendações contidas nas resoluções anterio-res sobre o tema (1997, 1998 e 1999).

c) Resolução n.54/78, sobre �Assentamentos Israelenses no Territó-rio Palestino Ocupado, inclusive Jerusalém, e no Golã Sírio Ocupado�.Aprovada por 149 votos a favor (Brasil), três contra (Israel, Estados Uni-dos e Micronésia) e três abstenções, reafirma a ilegalidade dos assenta-mentos israelenses no território palestino ocupado, inclusive Jerusalém,e no Golã sírio ocupado e conclama Israel a interromper por completo asatividades de construção de assentamentos, como o de Jebel Abu-Ghneim. Insta, igualmente, Israel a pôr em prática medidas que previ-nam atos de violência por moradores israelenses de tais assentamentose garantam a segurança e a proteção dos civis palestinos nos territóriosocupados.

d) Resolução n.54/79, sobre �Práticas Israelenses Que Afetam osDireitos Humanos da População Palestina no Território Palestino Ocupa-do, inclusive Jerusalém�. Aprovada por 150 votos a favor (Brasil), doiscontra (Israel e Estados Unidos) e três abstenções, determina a ilegalidade

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de todas as ações de Israel em relação à população palestina no territóriopalestino ocupado, inclusive Jerusalém, que estejam em desacordo comas Convenções de Genebra, instando Israel a cessar todas as práticas queviolem os direitos humanos da população palestina. A resolução invoca,ainda, o respeito ao direito fundamental de ir e vir nos territórios ocupa-dos, em especial no tocante a entradas e saídas de Jerusalém oriental, erequer de Israel a aceleração do processo de liberação de palestinos arbi-trariamente presos ou detidos.

Belém 2000

O Projeto Belém 2000 foi lançado pela Autoridade Palestina com oobjetivo de criar naquela cidade a infra-estrutura adequada à celebraçãodos dois mil anos do nascimento de Jesus Cristo.

O presidente Fernando Henrique Cardoso aceitou convite formula-do pelo presidente Yasser Arafat para integrar o Comitê InternacionalBelém 2000, do qual também participaram, entre outros dignitários, ospresidentes dos Estados Unidos, França, Itália, Rússia, Egito, Tunísia,Argentina, Chile e Colômbia, o primeiro-ministro do Reino Unido, osreis da Jordânia e do Marrocos e representantes de Sua Santidade o papa.

Na 54ª AGNU, foi aprovada por consenso a Resolução n.54/22, queexpressou apoio ao projeto Belém 2000. Projeto sobre o tema já haviasido apresentado na AGNU anterior e prosseguiu na pauta da 55ª AGNU.

Conclusões

O tratamento das questões referentes ao Oriente Médio na ONU ten-de a adaptar-se às tendências da política internacional. Sendo as NaçõesUnidas uma grande câmara de repercussão, nela se refletiu o clima cons-trutivo criado pelas negociações israelo-palestinas na primeira metadeda presente década e a frustração da opinião pública mundial com o im-passe verificado desde a administração Binyamin Netanyahu.

Ao insistir na necessidade de solução para Jerusalém e o Golã, aocondenar a instalação de novos assentamentos em territórios palestinos,ao estimular as atividades da UNRWA e a continuidade das negociações

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O padrão de votação brasileiro na ONU e a questão do Oriente Médio

entre árabes e israelenses, ainda que por intermédio de resoluções nãoconsensuais (embora, vale lembrar, o consenso seja quebrado apenas porEstados Unidos e Israel), a 54ª Sessão da Assembléia Geral sinalizou clara-mente ao novo governo israelense o interesse da comunidade internacio-nal em que o processo de paz sobreviva. Cabe agora acompanhar qualserá a reação da Assembléia Geral da ONU após o breve mandato de EhudBarak � em que realizações importantes foram verificadas, como a assina-tura do Memorando de Sharm El-Sheikh, o efêmero período de conversa-ções entre Síria e Israel, a retirada das forças israelenses do Líbano � e aeleição recente de seu opositor, Ariel Sharon, que presumivelmente traráalterações no curso do processo das negociações de paz.

Algumas constatações se impõem, ao se analisar o padrão de votobrasileiro nessas questões:

a) Tomando-se o período 1947-1999 como um todo, a resultanteda trajetória brasileira não se apresenta linear ou rígida, e sim flexível obastante para adaptar-se a alterações do cenário interno e internacional.Ou seja, diante do tratamento dispensado pelas Nações Unidas às ques-tões do Oriente Médio, a motivação essencial do nosso padrão históricode votação é o esforço para adaptar a nossa atuação à percepção dos inte-resses do país perante a evolução dos fatos.

b) O leitmotiv do conjunto das votações no período 1947-1999 é oapoio ao processo de negociação da paz regional, meta adequada a umpaís como o Brasil, cujas fronteiras foram definidas pacificamente e noqual convivem harmoniosamente importantes comunidades árabe eisraelita, ambas influentes no interior da sociedade e com lideranças capa-zes de gerar uma proveitosa intensificação das relações com o OrienteMédio, dadas condições mais propícias no front regional.

c) As posições brasileiras não têm impedido uma crescente intensi-ficação do relacionamento do Brasil com Israel (haja vista a visita do mi-nistro Luiz Felipe Lampreia àquele país em 1995) e com vários paísesárabes (nesse sentido, registre-se, no ano de 2000, a visita ao Brasil dopríncipe herdeiro da Árabia Saudita, Abdullah Bin Abdul Aziz, e a realiza-ção do seminário �Relações entre o Brasil e o Mundo Árabe: Construçãoe Perspectivas�, organizado pelo Itamaraty, Fundação Alexandre de Gus-mão e o Conselho dos Embaixadores Árabes em Brasília).

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d) Ao fundamentar a nossa atuação internacional nessa matéria numfirme empenho na busca da paz, temos sido poupados de rejeições apriorís-ticas, por árabes e israelenses, dos nossos pleitos nos foros internacionais.

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10A fugidia base territorial do Estado palestino

Amaury Porto de Oliveira*

Quem são os palestinos? Que identidade nacional podem eles reivin-dicar? Sobre que território far-se-á sentir efetivamente essa reivindicação?

A Palestina, como conceito geográfico e político moderno, é frutoda Primeira Guerra Mundial e dos ajustes internacionais que modelaramo Oriente Próximo depois dela. Nos quatro séculos imediatamente an-teriores, o território em causa fizera parte das províncias asiáticas do Im-pério Turco, vindo assim a figurar entre as terras disputadas pela Françae pela Grã-Bretanha, quando do desmembramento dos domínios otoma-nos. A intervenção dos Estados Unidos (Missão King-Crane) no processodo desmembramento sustou a simples anexação de novos territórios pelaspotências européias, levando à instituição do sistema de mandatos sob a

* Embaixador aposentado. Membro da Área de Assuntos Internacionais do IEA/USP. Respon-sável pela área temática Ásia do Gacint.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

égide e supervisão jurídica da Liga das Nações. Na Conferência de SanRemo (abril de 1920) foram atribuídos, à França, o mandato sobre a Síriae o Líbano, e à Grã-Bretanha, os mandatos sobre a Mesopotâmia e a Pales-tina. Foram todos criados como mandatos classe A, isto é, territórios ma-duros para ascender à independência, num prazo determinado e sob orien-tação da potência mandatária (Art. 22, item 4, do Convênio da Liga dasNações). O mandato sobre a Palestina deixou de fazer referência explíci-ta às obrigações da potência mandatária a esse respeito, em razão da exis-tência de promessas anteriores da Grã-Bretanha ao Movimento Sionista(Declaração Balfour, de 2 de novembro de 1917), comprometendo-se aassegurar o estabelecimento, �na Palestina, de um Lar Nacional para opovo judeu�.

Na sua letra, retomada depois no estatuto do mandato, a Declara-ção Balfour referia-se apenas à instalação de uma entidade judia no seioda entidade maior, a Palestina, �ficando claramente entendido que nadapode ser feito capaz de prejudicar os direitos civis e religiosos das comuni-dades não judias existentes na Palestina�. Em suma, não se estava reco-nhecendo explicitamente vocação estatal ao povo que ia lá instalar o seuLar Nacional, e não se reconhecia estatuto de povo aos habitantes já láexistentes, mencionados apenas como �comunidades não judias�, comdireitos civis e religiosos. Na Conferência de San Remo, o delegado francêstentou incluir direitos políticos, mas os britânicos barraram a proposta.

Não me alongarei na descrição das barganhas diplomáticas que deter-minaram as fronteiras do mandato sobre a Palestina, na série de conferên-cias que se seguiram à Primeira Guerra Mundial. Importa assinalar quea França logrou resguardar para os Estados do Levante alguns territó-rios reivindicados pela Organização Sionista Mundial, e que a Grã-Bre-tanha conseguiu, em 1921, rever o texto do mandato palestino, de manei-ra a desobrigar-se da aplicação da Declaração Balfour nas terras para ládo Jordão, sobre as quais ela começara a articular a criação do Emiradoda Transjordânia (a Jordânia de hoje).

Prevalecendo-se de toda a amplitude de ação que o mandato lhesgarantia, os britânicos nunca definiram que quadro político anteviam parao território afinal denominado Palestina. Para efeitos práticos, organiza-ram-se segundo o modelo de uma colônia da Coroa, embora deixandoconsiderável autonomia civil e religiosa às duas principais comunidades

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A fugidia base territorial do Estado palestino

presentes no país: a judia e aquela outra que, para simplificar, vale cha-mar desde já palestina. O denominativo de árabe só ajudou a confundiros fatos, dissolvendo num confronto genérico � judeus versus árabes � osproblemas bastante específicos da população arabizada local. Em 1918,a população autóctone arabizada da Palestina orçava em 644 mil indiví-duos, dos quais 574 mil eram muçulmanos e setenta mil cristãos. A pre-sença judia nunca desaparecera de todo nas terras em questão, mas an-tes das imigrações pré-sionistas da segunda metade do século XIX chegaraa reduzir-se a umas poucas famílias. Com as imigrações, a parcela judiada população total já era de 8%, em 1918, subindo a 32% em 1946. Usan-do com mais eficácia do que a comunidade palestina a margem de auto-governo deixada pelo mandatário e fazendo valer ao máximo os dispositi-vos legais atinentes à criação do Lar Nacional Judeu, o Yishuv (como seautodenominava a comunidade judaica) foi-se dotando paulatinamente deinstituições administrativas e jurídicas, de caráter quase-governamental.

A comunidade palestina demonstrou desde o primeiro momento,por gestos e palavras, sua inconformidade com o processo acima, indo porvezes à violência, como nos motins de 1920-1921 e nos mais sérios de1929. Na virada para os anos 30, a situação começou a escapar ao controledo mandatário, a braços no exterior com as decorrências da grande criseeconômica de 1930. A nova conjuntura internacional acelerou, por suavez, a afluência de judeus para a Palestina. Em 1932, eles eram, ali, 175mil; nos três anos subseqüentes, registraram-se cerca de 135 mil novaschegadas. Tudo isso convergiu para a Revolta Palestina (1936-1939), comsuas duas dimensões de greve geral urbana e luta de guerrilhas nas monta-nhas. Foram necessários os esforços conjugados dos britânicos e das for-ças de defesa do Yishuv para debelá-la.

A cada surto de violência dos palestinos, Londres enviava ao localuma comissão investigadora, que produzia relatórios sem futuro. O rela-tório da Comissão Peel, apresentado em 1937, ganhou peso, contudo,tendo sido saudado como uma das mais perfeitas análises do problemapalestino. Sua tese central foi a de que tanto a Declaração Balfour quantoa redação do mandato haviam pecado, ao incitarem a Grã-Bretanha a darcurso a um novo direito, sobre território já preso a direito anterior. Omal estava feito, porém, e a melhor saída parecia ser a divisão do territó-rio entre os seus dois pretendentes. O governo londrino enrolou-se com

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

as reações conflitantes provocadas pelo Relatório Peel e apareceu em 1939com um Livro Branco, que procurava esvaziar a Declaração Balfour. Aessa altura, no entanto, o Yishuv chegara à maioridade, reforçando suaautonomia econômica e consolidando sua capacidade militar.

A comunidade judia da Palestina lançou um desafio frontal ao LivroBranco inglês e, a 11 de maio de 1942, numa reunião da OrganizaçãoSionista Americana, realizada no Hotel Biltmore de Nova York, a Agên-cia Judia fazia aprovar um programa elaborado por Ben-Gurion, concla-mando à criação do Estado judeu sobre todo o território da Palestina.Referendado em novembro do mesmo ano, numa reunião do ConselhoGeral da Organização Sionista Mundial, em Jerusalém, o Programa deBiltmore passou a ser a política oficial do sionismo. Concomitantemente,o ponto de apoio externo do movimento pela criação do Estado judeufora deslocado da Grã-Bretanha para os Estados Unidos da América.

Em contraste, a comunidade palestina saíra da Revolta de 1936-1939ainda mais fraca, política e militarmente. Sua elite nacionalista fora deca-pitada, e o jogo político intracomunitário vira-se reduzido à velha lutade clãs, destacando-se aí os Husseinis e os Nachachibis, estes últimosenfeudados ao trono transjordano. Na medida em que ainda se manifesta-va uma política palestina, ela o era através dos Husseinis, cuja figura maisimportante era o mufti de Jerusalém, Hadj Amin el-Husseini. Seu anti-britanismo radical descambava para conchavos com os nazistas, desvir-tuando o nacionalismo palestino para atitudes puramente anti-semitas.Cada vez mais incapacitados de fazerem ouvir a própria voz, os palestinosviram sua causa ser absorvida pelos regimes árabes circundantes, que amanipulavam para objetivos próprios.

Embora tendo feito de Israel o pólo de atração de sentimentos portodos partilhados e o pretexto de proclamações aparentemente unifica-doras, os Estados da Liga Árabe nunca chegaram a um consenso sobre amaneira de enfrentar o adversário designado, não dando sequer mostrasde terem plenamente compreendido a dinâmica interna da sociedade tec-nologicamente moderna que os defronta e da significação dela no planodos equilíbrios estratégicos globais. Mais do que se preparar para tratarefetivamente com Israel � através da luta armada ou da convivência pací-fica �, os regimes árabes constituídos fizeram do problema israelense umfator de competição entre eles pela liderança do mundo árabe, e de dema-

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gogia no âmbito doméstico. Serviram-se dos refugiados palestinos e dasorganizações de fedaim, criadas e financiadas por várias das capitais ára-bes, como massa de manobra para os desígnios de cada uma.

A eclosão, em 1939, da Segunda Guerra Mundial alterou fundamen-talmente a situação na Palestina. Londres impôs uma trégua artificialentre judeus e palestinos, graças à presença no território de numerosasdivisões dos Aliados. Uma parte do Yishuv colaborou com os britânicos,chegando a mandar uma Brigada Judia para lutar na Itália. Outra parcela,no entanto, insurgiu-se contra a aplicação do Livro Branco de 1939. Gran-des quantidades de armamentos começaram a ser importadas clandestina-mente pelos judeus, que logravam também apossar-se de boa quantidadede armas dos destacamentos aliados no local. A Haganah se consolidoucomo respeitável força de defesa do Yishuv, enquanto forças ancilares(o Irgun Zvai Leumi e a ainda mais radical Gangue Stern) levavam a lutacontra os britânicos ao território puro e simples. Em outro desenvolvimen-to, tomou vulto a imigração clandestina de judeus procedentes das áreasocupadas pelos nazistas.

No exterior, nos Estados Unidos mais propriamente, crescia a pres-são sionista em torno do Programa de Biltmore. Surgiu o �voto judeu�,ainda atuante nas eleições federais e estaduais norte-americanas. As auto-ridades de Washington passaram a demonstrar predileção pela idéia doEstado judeu e, em agosto de 1945, o presidente Truman enviou mensa-gem ao primeiro-ministro Clement Attlee, pedindo a admissão imediatade cem mil refugiados judeus na Palestina. Da resposta de Attlee saiu aconstituição de um Comitê Anglo-Americano de Investigação, transfor-mado adiante na Comissão Anglo-Americana. Essa cooperação foi leva-da até ser a Questão da Palestina submetida à recém-criada ONU. Emabril de 1947, a Grã-Bretanha requereu a convocação de uma AssembléiaGeral especial, e após uma série de trâmites que seria longo recapitular,foi aprovada resolução recomendando a partilha política do território domandato. Seriam criados um Estado árabe e outro judeu, associados entresi numa unidade econômica. Jerusalém seria internacionalizada.

As linhas de partilha recomendadas pela ONU foram, certamente, aúnica oportunidade que teve a comunidade palestina de obter um territórioequivalente ao destinado à comunidade judaica, sobre o qual edificar seuEstado. Para levar isso a cabo era preciso mobilizar apoio internacional,

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

em contraposição à composição de forças por detrás do Programa deBiltmore (aspirações sionistas e interesses estratégicos dos EstadosUnidos, basicamente). Mas como já ficou dito, os palestinos não dispu-nham de uma liderança capaz de perceber sua janela de oportunidade eagir em conseqüência. A resposta árabe ao plano da ONU foi conduzida,de forma irrealista e demagógica, pelos regimes vizinhos à Palestina. Tor-nou-se claro que não haveria a partilha. A Grã-Bretanha anunciou suadecisão de dar por findo o mandato, a 15 de maio de 1948. Nesse dia, oYishuv lançou sua Guerra de Independência, e o Estado de Israel surgiu,com as fronteiras ampliadas que puderam ser traçadas no campo de bata-lha. O Egito e a Transjordânia anexaram parcelas do território teorica-mente destinado ao Estado palestino (veja Mapas 1 e 2).

A permanente incapacidade dos regimes árabes de fazerem face, mi-litar e diplomaticamente, à cada vez mais poderosa e sofisticada máqui-na de guerra israelense ficou patenteada em junho de 1967, quando elesse deixaram levar a um novo confronto armado (a Guerra dos Seis Dias),ao fim do qual Israel estava de posse de todas as áreas da Palestina nãotomadas em 1948, inclusive a totalidade de Jerusalém. Os israelensesextrapolaram os limites do antigo mandato e anexaram a Península doSinai, do lado do Egito, e os Outeiros de Golã, na fronteira com a Síria(Mapa 3). De qualquer forma, fora restabelecida a unidade territorial doantigo mandato. E dentro desses limites crescera imensamente o pesoespecífico da população palestina. Após o �desastre� de 1948, somenteuma pequena fração de árabes palestinos permanecera sob controle deIsrael. Eram eles agora cerca de 1,5 milhão de indivíduos, concentradosna Banda Ocidental e na Faixa de Gaza, além de substancial minoria nointerior das velhas fronteiras. Em conjunto, o contingente sob adminis-tração de Israel passou a representar, após 1967, mais da metade de todosos árabes de origem palestina que viviam no Oriente Próximo.

Essa nova situação levou ao rápido fortalecimento do sentimento deidentidade nacional entre os palestinos, que passaram também a eviden-ciar forte ressentimento com relação aos métodos das lideranças árabesnão palestinas. No caso da Jordânia, choques armados entre habitantesoriginários desta ou daquela margem do Jordão enterraram a chamada�solução jordanense�, com que sonhavam os direitistas de Israel, e quevisualizava a transformação da Transjordânia no Estado da Palestina, apto

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a receber levas de incômodos cisjordanenses. Em junho de 1974, o XII

Conselho Nacional da OLP adotou resolução anunciando sua intençãode estabelecer uma Autoridade Palestina sobre qualquer parcela de terri-tório ocupado que viesse a ser �liberada�. E em outubro do mesmo ano,o rei Hussein instigou a cúpula árabe de Rabat a proclamar a OLP como�o único representante legítimo do povo palestino�. Com isso, os regi-mes árabes lavaram as mãos dos problemas ligados à autodeterminaçãonacional dos palestinos, sem no entanto abdicarem de ter voz nos assun-tos referentes ao islamismo, a Jerusalém e aos refugiados. O Egito e aJordânia assinaram a paz com Israel, que devolveu o Sinai.

Enquanto assim evoluía o lado palestino da equação, profundas alte-rações sociais e culturais estavam também ocorrendo no seio da popula-ção israelense. A esmagadora vitória militar de 1967 fizera Israel sentir-se mais seguro no quadro regional. Internamente, porém, passaram osisraelenses a afligir-se com o que fazer diante da abundância de terras e

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gente que lhes haviam caído nos braços. Duas posições básicas toma-ram impulso. Ou restituir territórios em troca de uma paz negociada comos palestinos, ou eternizar-se na conquista invocando o caráter historica-mente �judeu� das regiões anexadas. O tamanho e a composição da popula-ção israelense mudaram muito também, nos anos 80 e 90, com a chegadade grandes levas de imigrantes (como os setecentos mil russos do pós-implosão da União Soviética), com visões da identidade judaica e dosobjetivos de um Estado judeu bem diferente das motivações dos funda-dores de Israel. Os analistas falam agora de sociedade pós-sionista, naqual os velhos ideais dos fundadores foram substituídos pela necessidadede encontrar soluções para o confronto, cada vez mais intratável, entre aparcela triunfante da população e a parcela subjugada.

Uma vista de olhos sobre alguns indicadores econômicos revela oabismo entre as duas parcelas. Em janeiro de 2001, o Instituto NacionalDemográfico francês publicou estudo mostrando que, no conjunto Israel�Palestina, 55% dos habitantes eram judeus e 45% árabes. A populaçãoárabe cresce, porém, a 3,5% ao ano, permitindo prever que, em 2050,venham os judeus a representar apenas 30% da área em questão. Entreos setores da população israelense propriamente dita, apenas os judeusultra-ortodoxos exibem taxa de crescimento equiparável à dos árabes, oque explicará, talvez, a política dos sucessivos governos israelenses defacilitar a instalação das colônias de ortodoxos nos territórios ocupados.Os palestinos são mantidos alheios à crescente sofisticação tecnológicada economia israelense, situação expressa no fato de que a renda per capita

dos judeus anda em torno de 20 mil dólares, enquanto a dos palestinosnão chega a 2 mil. Alguns milhares de palestinos foram recrutados paraas funções não qualificadas dos modernos parques industriais de Israel,continuando a residir nas suas áreas tradicionais, sujeitos a percalços quelembram a África do Sul do apartheid. Conforme a situação geral da segu-rança, as autoridades centrais podem impedi-los de chegar ao local detrabalho. Algumas empresas israelenses começaram a importar mão-de-obra barata das Filipinas, da China e da Romênia, a fim de protegerem-secontra tais eventualidades.

Tudo isso explica que a rua palestina venha mostrando-se mais com-bativa do que a liderança política da comunidade. A primeira intifada(1987-1993) acuou os chefes políticos que se mostravam passivos diante

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da situação surgida em 1967, abrindo caminho para Arafat e o Fatah em-polgarem a liderança. Logo, porém, começaria Arafat a descreditar-se, dei-xando-se envolver no processo de Oslo, com o qual os israelenses subs-tituíram engenhosamente a idéia de �paz contra territórios�, pela de �pazcontra segurança�. Após o retorno de cerca de 20% do território de Gazae da Cisjordânia, sobre os quais Arafat instalou a Autoridade Palestina,entidade com alguns atributos de Estado, mas sem soberania, Israel dei-xou esgotarem-se todos os prazos previstos no Acordo de Oslo, sem fa-zer novas restituições territoriais. A nova intifada, iniciada em 2000 apóso fracasso das negociações Arafat�Barak, em Washington, colocou Arafatna defensiva diante dos ativistas do Hamas.

Ao encerrar em fevereiro de 2001, após a eleição de Ariel Sharon parao cargo de primeiro-ministro de Israel, este resumo de como vem evoluindoo problema da base territorial de um futuro Estado da Palestina, não meé possível fazer prognósticos sobre a eventual solução do problema. Aassinatura do Acordo de Oslo, em 1993, não interrompeu a instalaçãode colonos judeus nos territórios ocupados. Eles eram 100 mil naquelaépoca, estão chegando a 200 mil e o governo Barak foi dos que mais permi-tiram a abertura de colônias. Para dar uma idéia do que está sendo ofereci-do aos palestinos, com relação a território, reproduzo um esboçocartográfico (Mapa 4) publicado no Le Monde Diplomatique, de dezembrode 2000. O mapa não tem valor oficial, havendo sido elaborado com baseem informações fornecidas por membros da delegação israelense à cúpulaArafat�Barak, de julho de 2000.

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11Ação política, ideologia e religião

Oliveiros S. Ferreira*

Creio que é com base em uma reflexão, pouco convencional que seja,sobre a religião que poderemos começar a compreender alguns dos mui-tos aspectos do processo de paz que ainda não chegou a seu termo noOriente Médio, afora a penosa construção das ideologias que dividemhoje os povos � e, portanto, os governos � da região. Os autores de queme valho para desenvolver o tema talvez não sejam os mais significati-vos; mas, quem sabe por isso mesmo, por serem marginais ao tema �reli-gião�, traduzam melhor que teólogos deste ou daquele credo aquilo quepretendo comunicar.

Judeus, cristãos e muçulmanos reconhecem em Abraão o solo co-mum em que germinaram suas árvores frondosas. Não avanço nenhu-ma proposição por demais heterodoxa: para o cardeal Lustiger, não se

* Professor de Ciências Políticas da Universidade de São Paulo e da Pontifícia UniversidadeCatólica de São Paulo.

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pode entender o Novo Testamento sem compreender o Velho; isso paranão falar � podendo soar como uma meia-provocação � em Hans Küng,que não hesita em dizer que Paulo �possibilitou o acesso dos não-judeusà fé judaica, iniciando, com esse gesto, a primeira mudança de paradigma no

cristianismo�. Isso não impediu que a história levasse os homens a cons-truir crenças e ideologias que fecharam o caminho que Paulo teria aber-to, dividindo povos e separando civilizações. Dessa perspectiva � a denos perguntarmos se as civilizações construídas pelos diferentes credossão antagônicas e se uma deverá pagar um preço pelos males que even-tualmente tenha feito a outra � é interessante lembrar que nem as cruza-das, apesar de terem marcado profundamente a vida da Europa e de to-dos os povos árabes, e de os reis cristãos, especialmente na Espanha,insistirem na conversão dos muçulmanos, nem o ódio que se votou aosárabes que ocupavam os Santos Lugares conseguiram criar no imaginá-rio coletivo cristão a mesma imagem que a morte de Cristo permitiu sefizesse dos judeus. Curiosamente, se o anti-semitismo imprimiu seu fer-rete no mundo cristão, romano ou oriental, a ideologia, a potência ideoló-gica � no sentido em que Engels dizia ser o Estado a primeira potênciaideológica erguida sobre os homens � incorporou a civilização judaica eexcluiu a árabe. Estranho mecanismo de psicologia coletiva este, que opri-me os indivíduos, mas incorpora o cerne da civilização em que se nu-trem os seus valores religiosos.

Os árabes foram as vítimas desse estranho mecanismo do psiquismocoletivo. Cabe, a esse propósito, mencionar as palavras proferidas pelopresidente da Argélia, Abd el Aziz Bouteflika, ao falar sobre a reconcilia-ção no Mediterrâneo, na Universidade La Sapienza de Roma:

Gostaria de me deter no conceito de civilização judaico-cristã, que éutilizado em nossa área geográfica em contraposição a uma civilização mu-çulmana que seria inconciliável com aquela e que até mesmo a ameaçaria ...Este binômio que une � que divide, deveria dizer � na sua formulação astrês religiões monoteístas, que opõe duas a uma e que ergue um muroentre o Norte e o Sul do Mediterrâneo, não reacende, talvez, as cinzasainda não apagadas das violências e da intolerância de um tempo?

E continuava:

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Ação política, ideologia e religião

Assim se contrapõem duramente a cultura judaica e a cultura muçul-mana que também têm em comum uma considerável herança cultural eétnica e um patrimônio ainda vivo. Assim, o cristianismo e o islamismoenfrentam-se como acérrimos antagonistas apesar desse último, mesmonão admitindo a natureza divina de Jesus, reconhecer que Ele procede doespírito de Deus, do sopro de Deus, e reconhecer o mistério de seu nasci-mento virginal e conferir ao seu ensinamento todo o caráter sagrado dapalavra divina.

A geografia e a história da Palestina fizeram que o credo das três re-ligiões se transformasse em ideologias propulsoras de conflitos. Eles saí-ram do âmbito amplo das religiões para lentamente cair no reino estreito,humano e cruel, e por isso mesmo incomensurável, da guerra. É um dolo-roso processo que se inicia nas cruzadas � que teriam sido um choque,como se poderia dizer parafraseando Huntington, das civilizações cristãe árabe � e que vai prosseguir, séculos depois, durante o mandato britâni-co, na guerrilha entre pioneiros e árabes; finalmente nas guerras entreisraelenses e árabes, progredindo cada vez mais no campo sempre panta-noso das relações internacionais. Pantanoso e estreito em certo sentido,pois em outro é quase tão amplo quanto o das religiões, pois nele se po-derá decidir o destino do mundo, como quase se decidiu em 1973.

Se, de uma maneira ou de outra, dentro dos limites de nossa capacidadede influenciar, pretendemos contribuir desta ou daquela forma para apro-ximar os três Povos do Livro, as palavras de Bouteflika devem ser objetode nossa meditação. Afinal, não há por que continuarmos falando emcivilização judaico-cristã � ou greco-romana-judaico-cristã � se a culturaocidental deve muito, se não o fundamental de seu salto inicial no campoda ciência e da filosofia, às contribuições dos árabes. Continuo citando opresidente da Argélia e o faço por dois motivos: um, porque embora mu-çulmano não é palestino; outro, porque suas proposições, em boa medi-da, são verdadeiras e merecem ser meditadas. Ele registra o fato inegá-vel de que há uma oposição � ainda que seja apenas no campo religioso �entre �judeus-cristãos� (a expressão é dele) e muçulmanos. E tira dessaoposição suas conclusões de homem político:

Talvez não seja errado afirmar que, em determinada medida e alémdas conjecturas econômicas, isso [essa oposição] determina as leis restriti-vas em matéria de circulação das pessoas no Mediterrâneo e as condições

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de acolhida e de estada; contribui para alimentar um persistente racismo;gerou atitudes parciais e injustas para com a questão palestina; pesou emalgumas decisões inerentes às perspectivas de alargamento da construçãoeuropéia.

Bouteflika não diz o que diz em tom de queixa; pelo contrário, reco-nhece o atraso do mundo árabe � palavras suas � mas não o explica ape-nas pelo colonialismo ocidental e pela Revolução Industrial que levarama uma �perda cultural, a uma mutilação étnica e de identidade tão sistemá-tica, a uma exclusão total, cruel, de inteiras comunidades nacionais do mundodo saber e do progresso�. �Certamente� � disse ele � �o atraso do mundoárabe é também explicado pelo recesso cultural durante o período da do-minação otomana, favorecido pela esclerose do pensamento a partir dofinal do século XIV.�

Em seu discurso na Universidade La Sapienza, Bouteflika dá mos-tras do que poderia ser a união dos Povos do Livro, recordando três pes-soas. A primeira é Abd el Kader, �que promoveu, animou e dirigiu a resis-tência contra a ocupação colonial�, e que, vencido e exilado na Síria,�colocou em perigo a sua vida e de todos os seus familiares para salvaros cristãos maronitas durante as sangrentas rebeliões de 1860�. A segun-da é o arcebispo dom Duval, �que sempre deu provas de profunda compai-xão humana e de intransigente rigor com relação aos princípios ditadospela sua fé e pelas suas convicções�. E a terceira é o professor Lilenthal,cujas �tomadas de posição com relação ao conflito Israel�Palestina vale-ram-lhe múltiplas ofensas, um atentado no qual arriscou a vida e a exclu-são da comunidade judaica, pronunciada por um colégio de rabinos�.

Com certeza, o que deve ter determinado que não se incluísse a civili-zação árabe no rol das grandes civilizações que construíram o mundo oci-dental foi, de início, o caráter expansionista do Islã � com todas as conse-qüências advindas de uma conquista militar numa época que, se não erabárbara, nela não se cuidava do direito da paz e da guerra. Esse expan-sionismo pode ser explicado por muitas razões sociológicas e econômi-cas, mas seu fundamento religioso não deve ser esquecido. A �guerrasanta�, afinal, se não é a cavalgada a que Malraux comparava a �revolu-ção de Saint-Just�, ainda assim era uma cavalgada para abater os que nãoeram crentes. Embora Bouteflika afirme: �Com efeito, assim é dito no

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Alcorão: �Não discutais com as pessoas do Livro a não ser com extremacortesia, exceto com os que, entre estes, são injustos��, mesmo ele nãopoderá negar o fato de que o Islã, na extremidade lógica da doutrina, éuma religião expansionista. Assim o via, nos anos 20, Hassan al-Bannah,fundador e guia supremo dos Irmãos Muçulmanos. No seu �Credo�, di-zia: �Creio que todas as coisas decorrem de Deus, que nosso senhorMaomé, que a bênção de Deus esteja com ele, é o último dos profetasenviados a todos os homens, que o Corão é o livro de Alá, que o Islã éuma lei geral da ordem do mundo e do além-mundo...�. Para acrescen-tar, no item 5: �Creio que o muçulmano tem o dever de fazer reviver aglória do Islã, promovendo o renascimento de seus povos pela restaura-ção de sua legislação. Creio que a bandeira do Islã deve dominar a huma-nidade, e que o dever de todo muçulmano consiste em educar o mundosegundo as regras do Islã; comprometo-me a lutar, enquanto viver, pararealizar essa missão e a ela sacrificar tudo o que possuo�.

O credo dos Irmãos Muçulmanos, como o de qualquer grupo funda-mentalista, falaria contra a aproximação que Bouteflika nos propõe. Faça-mos, porém, nosso confiteor: Diante de nossa consciência, não temos odever moral de considerar também o cristianismo � em qualquer de suasderivações � uma religião expansionista? E, desse ponto de vista, cristia-nismo e Islã não se aproximam, tendo, cada um a seu tempo, e à sua ma-neira, feito a sua guerra santa para erguer o estandarte de Cristo ou ocrescente sobre a humanidade? Com certeza, o cristianismo perdeu seumomento, como se diz na arte da guerra, e hoje não é visto como ex-pansionista � especialmente porque já não tem pretensões de servir decabeça-de-ponte, ou ponta-de-lança, para a expansão territorial dos Esta-dos ocidentais. Não se poderá negar, no entanto, que as coortes missio-nárias, de qualquer derivação do cristianismo, insisto, acompanharamos conquistadores que expandiram os impérios europeus. O Islã tam-bém perdeu, no essencial, seu momento expansivo: o fundamentalismo,hoje, não encarna mais a guerra santa para a conquista da humanidade,mas sim a guerrilha ou o terrorismo, conforme o caso, para, inclusiveem terras em que a religião muçulmana é não apenas a dominante, maspraticamente a única vivenciada pelas populações, fazer que governos epopulações estejam permanentemente voltadas para Meca nas suas pre-ces e condutas sociais cotidianas.

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O primeiro Povo do Livro, ao contrário, jamais foi expansionista.Nisso, a religião judaica se distingue das outras duas: não é universalistaenquanto proposta de proselitismo, mas foi e ainda é capaz de inspirartambém a sua guerra santa. E, à diferença das outras duas que perderamseu momento de expansão, a religião judaica ainda tem energia suficientepara lembrar a todos que �Esta nação [Israel] se compara à poeira e àsestrelas: quando desce, desce até a poeira, e quando ascende, ascendeaté as estrelas�, como está no Meguilá, 15, que cito de Ben-Gurion.

O embaraço em compreendermos a situação em que vive Israel estána dificuldade em separar � se pretendemos ser honestos conosco � oLivro Sagrado da configuração estatal. É que, na verdade, desde o começodos tempos estava escrito que os judeus, dispersos após a destruição doTemplo, voltariam a Eretz Israel. Não se lê em Isaías, 43,5-6: �Trarei atua semente desde o oriente, e te reunirei desde o ocidente. Direi aoNorte: Devolve; e ao Sul: Não retenhas. Trazei meus filhos de longe eminhas filhas dos confins da terra�?

Devemos descer mais fundo, se tanto é possível, se pretendemoscompreender o drama � próximo da anomia social � tão vivamente ex-posto pelo professor Demant em seu artigo neste livro.1 É que até mes-mo aqueles que pretenderam fundar um Estado socialista, que encarnasseos ideais do sionismo, não puderam deixar de sentir, com intensidade quetocava o mais íntimo de seu ser, que o Estado de Israel não é uma criaçãodo homem, mas uma predestinação inscrita no Livro. Não se atribuiráfundamentalismo ou ortodoxia a Ben-Gurion. São dele, contudo, afirma-ções que, desconhecida a autoria, nos fariam pensar estarmos diante deum daqueles grupos ortodoxos a que se referia o professor Demant.2 To-memos esta, por exemplo:

Do mesmo modo que o país, o Livro só se abre àqueles que vivem naterra em que veio à luz e àqueles que falam seu idioma vivo. Quase todosos exegetas, tanto judeus, quanto gentios, não cumpriam com esses requisi-tos: não estavam radicados no país em que nasceu o Livro, e a língua hebraicanão vivia em seus lábios. E o Livro é o idioma.

1 Veja p.201-59.2 Idem.

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Permito-me intercalar um trecho de outra fala sua:

Um Exército permanente em Israel só foi organizado a partir da épocados reis. Saul foi o primeiro a recrutar um exército regular de três milhomens.

Volto ao texto anterior, que, não custa lembrar, cuidava do Livro ede sua exegese:

Nenhum dos exegetas da Bíblia, judeus ou não, puderam explicar oscapítulos de Josué de modo tão autêntico quanto o fizeram os combatentesda Zvah Haganá Leisrael. E em nossas colônias agrícolas das margens doJordão, do vale de Izreel e do Neguev florescem os primeiros brotos deplantas que darão a explicação a mais animada possível à numerosas passa-gens de Oséias, Miquéias e Isaías. Somente ao povo que voltar a radicar-seem sua terra e se identificar com as belezas naturais refletidas em cadapágina bíblica � e cuja língua seja sua língua viva e natural, aquela em quesonha e pensa, consciente ou inconscientemente � o Livro desvendará to-dos os seus segredos mais íntimos, assim como a alma do Livro e o povo seconfundirão numa só coisa.

Essa passagem, de beleza sem par, é de um guerreiro e de um estadis-ta não ortodoxo. Ela e quantas mais quisermos citar de textos escolhi-dos de Ben-Gurion, publicados pelo Dror, no Rio de Janeiro, em 1957,nos dariam idêntica visão: o Estado de Israel construiu-se porque estavano Livro que assim deveria ser. E para quem, como eu, viu o deserto ver-dejante, realmente se pode falar de �belezas naturais refletidas em cadapágina bíblica�. Estamos, sem dúvida alguma, diante de um funda-mentalismo. De tipo diferente, com certeza, porque vai buscar no Livroa explicação para uma missão que é política � pois se trata de fundar edefender um Estado � mas é, ao mesmo tempo, a realização de todasas profecias, pois a fundação do Estado é a realização daquilo que se leuno Livro.

Estaríamos diante de uma ideologia? Não hesitaria em dizer que sim.Mas é por isso mesmo, por integrarem um corpo ideológico, se assim sepode dizer, que nos interessa o que Ben-Gurion dizia nos anos heróicos.Interessa porque o guerreiro e estadista sente que sua missão política éreligiosa. Coloquemos pathos nesse sentir � e façamos o esforço intelec-tual de procurar compreender que, para o guerreiro e estadista, o Livronão é um livro religioso qualquer, mas é o Livro em que está escrita a

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história de seu povo, que é a sua história, e que quem escreveu essahistória foram pessoas inspiradas por D-us (como escreve MenachemMendel Schneerson, o Rebe). Ben-Gurion viu esses dois aspectos da re-ligião judaica:

A religião judaica difere fundamentalmente da cristã. Com efeito, elanão se limita à formulação de uma série de dogmas abstratos, mas se fundaem mandamentos, positivos e negativos, que abrangem toda a existênciado homem, desde o instante de seu nascimento (e mesmo antes) até suamorte e seu sepultamento ... Por outro lado, a religião judaica é uma crença

nacional, da qual estão impregnados todos os acontecimentos históricos dopovo de Israel, desde suas origens até o momento presente. Seria muitodifícil separar o plano religioso do plano nacional em nosso povo.

É difícil para nós, ocidentais e confessadamente agnósticos ou cris-tãos de freqüentação domingueira dos sacramentos, compreendermosessa ligação a um tempo intelectual e afetiva com o Livro. Nem mesmoum muçulmano praticante é capaz de ver no Corão a história de seu povoe a sua própria história. Um fundamentalista muçulmano verá, no Li-vro, apenas as normas que todos, obrigatoriamente, devem seguir. E verá,sempre, no judeu, sem dúvida, uma pessoa do Livro, mas injusta, comoestá escrito. Injusta não porque não crê em Jesus, que nasceu de MariaVirgem, e em Maomé, que Alá esteja com ele, o último profeta, mas por-que, embora seja uma pessoa do Livro, tomou suas terras ou de seus irmãosde sangue ou de clã, e submeteu todos a uma situação de inferioridade.

Sei que soa sem sentido ressaltar a importância da religião nesta dis-cussão, toda ela prenhe de política e da hostilidade que Carl Schmitt reco-nhecia no ato político. Não gostaria de falar em �personalidade básica� �conceito tão em voga há cinqüenta anos e hoje praticamente arquivadono museu histórico das curiosidades psicológicas. É importante, no entan-to, ter presente que não são as profundas diferenças entre ricos e pobresou a distinção entre os judeus procedentes desta ou daquela área geográ-fica que eliminam, como se ácido fossem, as ligações patéticas que o ju-deu, de esquerda ou de direita, tem com o Livro e com a história do povojudeu na Diáspora ou mesmo em Israel. Quero dizer com isso que oslaços de convivência na sociedade de Israel � sociedade definida geográficae juridicamente por um Estado � podem estar se desintegrando, e que di-reita e esquerda podem chocar-se nas ruas ou até chegar, a extrema direita,

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Ação política, ideologia e religião

ao regicídio, mas que, apesar disso tudo, haverá sempre, nos que for-mam neste ou naquele partido, o compromisso com este povo do Livro,que, além do mais, foi eleito. Só essa colocação permite compreenderpor que em Israel se aceita, ainda que discordando, a revisão do fato maisdoloroso da história do povo judeu nos últimos séculos, o Holocausto.Cito no original inglês do professor Demant: �Other researchers attackedas callous the way the Zionist leadership has neglected Europeans Jewsin the Holocaust�; ou como diz mais adiante: �it now became fashionable ...to regret how �the first Israelis� of the 1950s had shamed Holocaustsurvivors for having themselves be led �as sheep to the slaughterhouse��.Aceita-se essa dolorosa revisão mas, ao mesmo tempo, se reclama de JoãoPaulo II não haver condenado Pio XII à Geena.

Os antagonismos de riqueza ou de procedência geográfica � para nãodizer interétnicos � não são de hoje. Quem falava em �separação de comu-nidades e cisões partidárias�, em �Estado e religião� e já apontava a exis-tência de um problema racial no Estado � ainda que colocasse o racialentre aspas � era Ben-Gurion: segundo ele, o jovem Estado se havia de-frontado de repente com uma série de problemas cheios de graves amea-ças. Um deles era o problema racial. Dizia ele: �Vemos na Mediná algocomo uma pretensa raça �superior�, a �ashkenazi�, que detém em suasmãos praticamente a direção do povo, e uma raça �inferior�, a oriental...�.Hoje vemos esses problemas projetados em primeiro plano, porque a se-gurança de Israel não é mais uma questão que deva preocupar as lideran-ças militares mais do que os planejadores militares norte-americanos sepreocupavam com a maneira mais eficaz de dissuadir a União Soviética.A questão fundamental deixou de existir depois de 1973, quando a lide-rança soviética, mesmo sendo compelida politicamente a socorrer o IIIExército egípcio, não quis correr o risco do confronto nuclear com osEstados Unidos. Mas sobretudo depois de 1991. Sem dúvida alguma, aexistência de Saddam Hussein e seus foguetes com ogivas químicas e bio-lógicas obriga a que o Estado-maior israelita tenha sempre prontos seusplanos de contingência para a represália maciça. Mas essa é uma preocupa-ção também dos iranianos, como deveria ser dos egípcios, para não di-zer do comando da VI Frota norte-americana, igualmente vulnerável, ain-da que na extremidade lógica, a ataques dessa natureza.

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Israel�Palestina � A construção da paz vista de uma perspectiva global

Desaparecida a União Soviética � mas não sei se tornada sem impor-tância a Rússia � é possível colocar na agenda a questão �paz por terra�.É perfeitamente possível supor que mais dia menos dia, cedendo às pres-sões da hiperpotência, resolva-se o problema do Golã. Que sucederá,então, do ponto de vista da segurança interna e externa? Imaginemosum cenário, ainda que pessimista. Dispersas as nuvens que ameaçaramo Estado de Israel desde 1948, o fundamentalismo árabe ainda não conti-nuará praticando atos de terrorismo que são da mesma qualidade, em-bora de intensidade diversa, daqueles que os fedaim praticavam contraos kibutz na região do Neguev nos anos 50? Da mesma maneira, conside-rando as diferenças entre ricos e pobres tão cruamente apontadas, e lem-brando as colocações de Victor Raúl Haya de la Torre sobre o índio que,antes de ser operário oprimido, era oprimido porque era índio, pergun-to-me se, um dia, os �pobres� não somarão sua discriminação social àsua exclusão racial e não encontrarão no fundamentalismo judeu, tal qualfoi descrito, seu canal de expressão contra a sociedade da afluência. Essaé uma sociedade em que amplas camadas da população comprovam aquiloque Gramsci dava como parte do processo social e político, que é o senti-mento instintivo de autonomia, liberdade e poder.

A questão, no entanto, pode ser mais grave do que a simples adesãodos pobres às teses dos fundamentalistas judeus: no dia em que o fun-damentalismo for maioria no Estado, o governo poderá considerar comosua missão de condutor do povo eleito estabelecer as fronteiras do Esta-do onde foram desenhadas pelo Livro.

O que desejei colocar neste texto foram duas coisas: em primeirolugar, ressaltar a importância daquilo que chamo a �posse das almas�, arelação do ser humano com o além-túmulo, na formação de uma concep-ção do mundo que leva sempre e necessariamente à ação política; emsegundo lugar, que a religião judaica, ao contrário do cristianismo e doIslã, não é expansionista. Esse fato leva o judeu, declaradamente agnósticoou ortodoxo, a ver em Israel não mais o ponto de fuga, mas o ponto dechegada de sua longa caminhada pela História. Este é o problema � e maisque um problema, o drama, porque mais dia, menos dia, o Acaso, Se-nhor da Guerra, poderá querer cobrar aquilo que os homens ainda lhedevem. Como alguém que tinha um sentido trágico das coisas gostavade dizer: �Esta é a vossa hora e a hora da potência das trevas�.

SOBRE O LIVRO

Formato: 16 x 23 cmMancha: 27,5 x 49,5 paicasTipologia: Iowan Old Style 10,5/15Papel: Pólen 80 g/m2 (miolo)Cartão Supremo 250 g/m2 (capa)1ª edição: 2002

EQUIPE DE REALIZAÇÃO

Produção GráficaSidnei Simonelli

Edição de TextoNelson Luís Barbosa (Assistente Editorial)Ana Paula Castellani (Preparação de Original)Fábio Gonçalves eAda Santos Seles (Revisão)

Editoração EletrônicaLourdes Guacira da Silva Simonelli (Supervisão)Rosângela F. de Araújo eEdmílson Gonçalves (Diagramação)