dunker, christian. o encontro na mata

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DUNKER, Christian. O encontro na mata. Acessado em: 12 de abril de 2015 Disponível em: http://brasileiros.com.br/14Wjq A psicanálise, assim como a antropologia e a crítica de arte (para não falar na economia), tem uma linguagem própria, nem sempre fácil de compreender. No entanto, muitas vezes a recompensa para quem mergulha nesse universo é grande. É o que acontece com a leitura de Mal-estar, Sofrimento e Sintoma – uma Psicopatologia do Brasil Entre Muros, de Christian Dunker, um livro cuja importância deve crescer muito à medida que for mais e mais discutido. E pode ter a chave ou chaves para o entendimento de nosso mal-estar, numa direção diferente daquela teorizada por Freud em seu clássico O Mal-estar na Civilização. Fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (LATESFIP), ao lado de Vladimir Safatle e Nélson da Silva Jr., Dunker é um sujeito alto, grande como suas ideias, ambiciosas, mas sempre expostas com modéstia e generosidade. Na conversa que tivemos em seu consultório, em uma casa simpática no Paraíso, bairro paulistano, o verbo correu solto, entre exclamações, risadas e momentos de profunda reflexão. Dunker, autor também de um livro premiado pelo Jabuti em 2011, Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (Editora Annablume), ressaltou temas de seu livro, como a lógica do condomínio, a brasilidade e a psicanálise enquanto sintoma social e formadora de nossa identidade, e fez uma análise da atual conjuntura, das manifestações de insatisfação e ódio, além de mostrar as relações estreitas entre o neoliberalismo e o surgimento de novos sofrimentos psíquicos a partir dos anos 1970. Também fez questão de dizer que seu livro não é tão difícil assim: “Tem capítulos absolutamente não acadêmicos, eu já sei que vou pagar uma conta por isso. Por exemplo, o capítulo em que eu procuro retomar Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda, misturando com música e literatura. Em termos acadêmicos é criminoso, né, porque o estudioso do Lima Barreto vai dizer que a internação dele não foi bem assim, que não se pode considerar apenas o modernismo paulista, etc. Você comete violações para fazer esse passeio macroscópico e dialogar com um público menos segmentado. Inclusive o capítulo sobre diagnóstico não é para psicanalistas, mas para pessoas ligadas ao direito, educação, medicina”. Logo na introdução do livro, Dunker traz um conceito-chave para entender grande parte da sua hipótese. Além do “diagnóstico” que conhecemos, aquele da clínica, do reconhecimento de sintomas

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DUNKER, Christian. O encontro na mata.

Acessado em: 12 de abril de 2015

Disponvel em: http://brasileiros.com.br/14Wjq

A psicanlise,assim como a antropologia e a crtica de arte (para no falar na economia), tem uma linguagem prpria, nem sempre fcil de compreender. No entanto, muitas vezes a recompensa para quem mergulha nesse universo grande. o que acontece com a leitura deMal-estar,Sofrimento e Sintoma uma Psicopatologia do Brasil Entre Muros, de Christian Dunker, um livro cuja importncia deve crescer muito medida que for mais e mais discutido. E pode ter a chave ou chaves para o entendimento de nosso mal-estar, numa direo diferente daquela teorizada por Freud em seu clssico O Mal-estar na Civilizao.

Fundador do Laboratrio de Teoria Social, Filosofia e Psicanlise da USP (LATESFIP), ao lado de Vladimir Safatle e Nlson da Silva Jr., Dunker um sujeito alto, grande como suas ideias, ambiciosas, mas sempre expostas com modstia e generosidade. Na conversa que tivemos em seu consultrio, em uma casa simptica no Paraso, bairro paulistano, o verbo correu solto, entre exclamaes, risadas e momentos de profunda reflexo. Dunker, autor tambm de um livro premiado pelo Jabuti em 2011, Estrutura e Constituio da Clnica Psicanaltica (Editora Annablume), ressaltou temas de seu livro, como a lgica do condomnio, a brasilidade e a psicanlise enquanto sintoma social e formadora de nossa identidade, e fez uma anlise da atual conjuntura, das manifestaes de insatisfao e dio, alm de mostrar as relaes estreitas entre o neoliberalismo e o surgimento de novos sofrimentos psquicos a partir dos anos 1970. Tambm fez questo de dizer que seu livro no to difcil assim: Tem captulos absolutamente no acadmicos, eu j sei que vou pagar uma conta por isso. Por exemplo, o captulo em que eu procuro retomar Gilberto Freyre, Srgio Buarque de Hollanda, misturando com msica e literatura. Em termos acadmicos criminoso, n, porque o estudioso do Lima Barreto vai dizer que a internao dele no foi bem assim, que no se pode considerar apenas o modernismo paulista, etc. Voc comete violaes para fazer esse passeio macroscpico e dialogar com um pblico menos segmentado. Inclusive o captulo sobre diagnstico no para psicanalistas, mas para pessoas ligadas ao direito, educao, medicina.

Logo na introduo do livro, Dunker traz um conceito-chave para entender grande parte da sua hiptese. Alm do diagnstico que conhecemos, aquele da clnica, do reconhecimento de sintomas regulares, de sndromes e distrbios, jurdico-morais, seria preciso desenvolver uma espcie de diagnstica sobre tudo que envolve seu transbordamento, a expanso desses atos, os raciocnios e estratgias de insero poltica, clnica e social do diagnstico e sua consequente fora de lei. O diagnstico de uma doena grave, por exemplo, no apenas um fato clnico do qual decorrer um tratamento mdico. Ele tambm se tornar, eventualmente, um fato econmico, para a pessoa e para a famlia que o recebe, um problema moral, se a doena possuir valncia moral na cultura do paciente E sintetiza: Uma diagnstica composta pelos efeitos, pelos sentidos e pelas re-redesignaes que um diagnstico pode ter para um sujeito ou para uma comunidade diante do aspecto social de sua patologia. Ela fundamentalmente uma resposta tica que podemos criar para dar destino ao que a psicanlise chamou de mal-estar. Boa clnica crtica social feita por outros meios. Esta frase no livro, seria uma provocao, diz o autor: Uma parfrase de uma frase do Clausewitz, que diz que a guerra a poltica feita por outros meios, ou seja, voc faz a guerra para voltar poltica e quando a poltica se esgota voc vai para a guerra de novo.Sua diagnstica do momento se que podemos usar essa expresso clara: Coisas como democracia racial, homem cordial, o nosso sincretismo, o jeitinho brasileiro no esto funcionando mais. Ns demos um passo no sentido de nos tornarmos mais indivduos. O problema, explica, que esses novos indivduos acreditam demais no contrato, nas relaes institucionalizadas, fazem sua parte, mas no recebem em troca a compensao. A vem o dio.

Pensando em nossa histria, Dunker sugere que houve uma suspenso dos termos do problema: O mal-estar estava nomeado, tivemos a ditadura militar, a inflao, a misria, a seca, a fome. Com Fernando Henrique, Lula e Dilma, parte de tudo isso foi resolvida, mudando o contexto. O tipo de polarizao que a gente tinha foi resolvido. Nossos problemas se tornaram outros e entendo que a gente no criou ainda um pacto em torno de qual o novo mal-estar e quais so as narrativas de sofrimento que vo governar e ser legtimas nesse quadro. Um elemento unificador do nosso mal-estar hoje a violncia e a corrupo. S que no so, at segunda ordem, temas que inspirem de fato uma poltica. Uma interpretao que eu daria para esse momento que ns estamos por um lado muito fixados em certas nomeaes e nomeaes que so obviamente insuficientes. A gente precisa de outras, de uma reinveno e acho que vai vir, pois estamos em um momento de transio.

Sendo mais especfico, Dunker acredita que a gente vai ver um tempo novo de diviso social, no no real, mas na representao, das pessoas produzirem uma situao geopoltica parecida com a que o Chile viveu at bem recentemente, de estreitamento do centro e polarizao de todos os tipos, inclusive de homens e mulheres. Esse tipo de diviso leva, historicamente, a uma reformulao institucional mais vasta ou a uma anomia, que uma espcie de transformao desse estado de baguna em regra, ou seja, no vamos mais nos entender, vamos continuar nos desentendendo at quebrar.

Mas tambm otimista quanto aos jovens: No apagar das luzes desse projeto, e eu considero que Fernando Henrique, Lula e Dilma, e o Itamar Franco tambm, so o mesmo projeto, tem uma palavra de ordem que reveladora: ptria educadora. Pela primeira vez na histria, voc vai ter uma parte expressiva da sociedade educada. As novas geraes se interessam incrivelmente por poltica, tm uma lucidez de leitura de cenrio impressionante e vo fazer alguma coisa a partir de um outro patamar de cultura. Voc tem debate aberto e franco pelo Brasil profundo, em Goinia, em Itumbiara, em Rio Preto, onde quer que se v.

Do ponto de vista da insatisfao atual e do sofrimento, no entanto, o buraco parece estar mais embaixo: A gente s consegue pedir que prendam os ladres, acabem com a desordem, criem mais leis, afirma. E continua: No que isso seja equivocado, mas deixa de lado outras formas de sofrimento que so igualmente importantes e que, sem as quais, voc no consegue propriamente reorganizar sua relao com a lei. Ns estamos fetichizados com mais leis, mais cdigos, mais regras e obviamente, do outro lado, menos corrupo, menos roubalheira, que produto de uma autointerpretao baseada excessivamente no contrato, isso tudo contrato! A psicanlise tambm, at certo ponto, uma teoria que parte da primazia da lei e do contrato como determinao dos sintomas e formas de sofrimento. Isso explica por que no Brasil tem tanta psicanlise, de boa e m qualidade, porque ela faz parte de nossa cultura, porque um sintoma do Brasil. Isso uma tese do livro. Porque o Brasil tem essa marca de se interpretar como deficitrio do ponto de vista de relao com a lei. Isso desde os economistas da dcada de 1920, os antroplogos do final do sculo 19, os portugueses que nos colonizaram Quer dizer, o Brasil uma terra sem lei e sem rei.

O regime de contrato, fetichizao das leis, individualizao, novos sofrimentos esto, de acordo com o autor, relacionados intimamente a uma srie de acontecimentos concomitantes, a globalizao, o surgimento do neoliberalismo e determinao do DSM (Manual Diagnstico e Estatstico de Transtornos Mentais), que expurgou a psicanlise da sade mental. O neoliberalismo te obriga a sofrer como um indivduo e to somente como um indivduo. Isso uma novidade. No tem mais sofrimento coletivo, o sofrimento coletivo uma coisa anacrnica. E mais: para voc conseguir sofrer e ser reconhecido, voc tem de sofrer como indivduo. Ou seja, voc tem de sofrer em relao lei, as formas de tratamento se tornam absurdamente ligadas produo de contratos. Por exemplo, hoje se voc pegar o tratamento bsico para anorexia, voc vai fazer um contrato com seu mdico dizendo que se compromete a comer tantas calorias por dia; se voc violar o contrato tantas vezes, voc vai ser punido ou perder regalias x e y, e se voc violar o contrato no final, voc ser desligado do servio. Loucura! uma maneira de colocar o sofrente como um indivduo consumidor, que, se viola o contrato, punido ou no ganha o prmio, ou seja, se est aplicando a lgica de tratamento, cuidado, ateno ao funcionamento econmico. Curiosamente, voc pode definir o neoliberalismo com a suspenso das zonas protegidas. Hoje faz parte dos protocolos pensar: esse cara precisa de um transplante de fgado, mas ele alcolatra e alcolatras costumam recair, ento passa o fgado para outro, porque o Estado tem de ter uma boa relao custo/benefcio. Da que o diagnstico para ns (do LATESFIP) seja um ponto de honra, porque houve a assimilao desse campo, da legitimidade para prticas acintosamente comerciais.

O livro descreve um grande sintoma que cada vez mais estaria presente na forma de organizao social contempornea, a lgica do condomnio. Ns estamos aqui dentro e nosso pacto produz uma lei local que capaz de ir contra a lei geral e que nos proporciona mais gozo, mais satisfao, alm da segurana objetiva e dos benefcios reais que a inveja que eu provoco em quem est l do outro lado do muro.

Aqui, a lei no deve ser entendida apenas como um princpio que nos torna a todos equivalentes, interditando certas coisas e prescrevendo outras. A forma de poder que caracterstica do sndico reside na deciso de suspender a aplicao da lei ou de intensificar sua aplicao conforme a circunstncia. assim que pode haver uma corrupo dentro da lei, uma opresso dentro da lei, uma imoralidade dentro da lei. O condomnio um caso particular do que Walter Benjamin chamou de estado de exceo, e que gradualmente tornou-se a regra para nossas formas de vida, especialmente depois dos anos 1970. E enquanto isso acontece, a gente tem a inveja como afeto social dominante. Ento, voc tem Daslu, coisas bizarras em termos de consumo, tnis no sei o qu, operao plstica, a arte negociada de uma certa maneira O que comea a acontecer que o condomnio vai ficando menor e menor. A varanda gourmet um reflexo disso, pois, em algum momento desse processo, a forma condomnio comeou a admitir pessoas que no estavam previstas. Ento voc vai ao aeroporto e tem esse bando de gente viajando; voc vai ao shopping center e tem pessoas que no so como voc e que esto consumindo; a filha da empregada estuda na PUC com seu filho.

A vida em forma de condomnio tem um trao que assim: s vale o ltimo captulo. S vale o carro do ano, a Mercedes do ano, o que voc est mostrando em presena. Se voc tem ou no, se vai para Miami ou no. Voc tem uma reduo do tempo para o presente mostrvel. Aparentemente, com a desativao de certos pactos de silncio (a corrupo estava a, mas no vinha tona), teria-se aberto um canal de mudana de lugar, da inveja em dio.

Para Dunker, isso inicia, de certa maneira, uma nova poca. Foi se formando no Brasil novas formas de sofrer ligadas indeterminao. Nem tudo lei. Tem muita gente que est sofrendo porque no sabe o que vai acontecer e no nem PT nem PSDB. No tem lugar nessa geografia, no tem opinio. Est totalmente silenciada nessa configurao, se perguntando quem e no qual a lei. Quem ela na medida em que encontra um outro que tambm no sabe mais quem , se uma pessoa, um animal. Ou seja, ou voc sofre porque algum violou o pacto ou voc sofre porque tem um objeto intrusivo. A ressaca moral que vai acontecer depois , escuta, precisamos repensar o Brasil, precisamos reinventar a histria. Isso, por um lado, e o sentimento de anomia por outro. Vai vir. A ideia de que, bom, acabou o Estado, acabou o governo, etc, contm uma verdade de que alguma coisa acabou. Uma forma de vida acabou. Talvez agora ou daqui a pouco surjam outras formas. Mas, enquanto isso, o que acontece com a angstia, a inveja, o sentimento de injustia Tudo isso se polariza no dio. Voc s pode entrar na jogada se for com o dio.

Mas e o antdoto? Por onde a gente sai? Sai pelo encontro na mata. A ideia de um ndio andando na mata fechada, que encontra algo na clareira. a lgica do encontro. No condomnio no tem encontro. A graa do encontro na mata que ele no se faz por uma lgica do ns e eles, que tem a ver com o dio.

No encontro com o outro na mata, eu no sei mais quem eu sou; ele pode ser um inimigo ou um amigo, um ser humano ou um extraterrestre; eu que preciso me libertar e dar uma voz a um outro tipo de sofrimento, o sofrimento de indeterminao, que tem a ver com o seguinte: escuta, ns estamos sofrendo por excesso de identidade, larga a mo dessa paixo pela identidade, tem a arte dizendo que outros modos de existncia em que voc no precisa ser idntico a si. Voc precisa construir uma experincia perspectivista, em que no preciso um diagnstico, uma nomeao, branco, preto, classe mdia ascendente, rico bem resolvido, tanto faz, possvel uma vida que seja menos dependente, menos sedenta de identidade, e mais sedenta de alteridade, de uma espcie de negociao perspectiva que d a graa do jogo e d outra forma de sofrer, no mais pelo supereu proibitivo, mas por um supereu baseado na potncia e na impotncia.

Ou seja, nos falta desesperadamente, constitutivamente, uma coisa que no tem a ver com a lei mas com no saber, com a incerteza, a dvida, a angstia, suspenso de posio no mundo. E onde est isso? Est na arte. A arte conseguiu se desenvolver e falar de um sofrimento que tem essa chave gramatical. A Marina Abramovi o encontro na mata.