dunker, christian. angústia de tese

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DUNKER, Christian. Angústia de tese. Acessado em: 03 de maio de 2015 Disponível em: http://www2.uol.com.br/vivermente/artigos/a_angustia_da_tese.html Depois de orientar mais de 40 trabalhos e participar de mais de 100 bancas de defesa de pós-graduação, verifico que há apenas uma coisa em comum entre elas: a angústia da tese. Pensando em meus queridos heróis, cada qual tendo feito a difícil travessia do deserto, entre filhos, casamentos, separações e funerais, percebo como a coisa é trágica para quem se arrisca a começar uma vida de pesquisador ou de escritor. Seus parentes e amigos acham que você foi abduzido para outro mundo. Incertezas e insônias, achaques de orientadores e o sentimento persistente de fracasso são inexplicáveis para os que nos cercam. Não há muito dinheiro envolvido, a fama será modesta e supor que este cenário de Dante é gratificador é no mínimo irônico. Fato é que a tese nos representa intimamente e ficará, mesmo, gravada, nos anais da história, com o nosso nome. O principal vilão desta história é o texto ele mesmo. Escrever. Achar as palavras. E dentro do texto o pior inimigo não é a ignorância, mas uma coisa louca que começa a crescer nos nossos ombros, como um daimon socrático, só que do mal, berrando impropérios indecentes sobre a qualidade, relevância e sentido do que estamos fazendo. A voz do supereu e seu comparsa incitador, o Ideal do eu, é a voz da deslealdade e a fonte e origem da angústia da tese. Contra gente assim malvada tentei inicialmente métodos carinhosos. Calma, e prudência, “você vai conseguir”, “nós te amamos”, “não leve isso tudo tão a sério”. Logo percebi que, apesar de imprescindíveis, tais ilações pareciam virar energético na boca sangrenta de Leviatã. Quanto mais o pobre infeliz se sente amado e amparado, pior fica. A decepção que ele imagina causar, com sua tese pífia, avoluma-se no universo. Coração gelado é gelado mesmo. Contra ele desenvolvi então uma tática de embusteiro. Melhor do que odiar um vampiro sem alma, que fica andando por aí como um fantasma a observar, sorrateiro, aquela vírgula fora de lugar, é odiar alguém de carne e osso, seu embaixador na terra: o senhor orientador. Ajuda, mas não resolve. Aqui vai a fórmula milagrosa a que cheguei, ainda que quase nunca consiga acertar a

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Page 1: DUNKER, Christian. Angústia de Tese

DUNKER, Christian. Angústia de tese.

Acessado em: 03 de maio de 2015

Disponível em: http://www2.uol.com.br/vivermente/artigos/a_angustia_da_tese.html

Depois de orientar mais de 40 trabalhos e participar de mais de 100 bancas de defesa de pós-graduação, verifico que há apenas uma coisa em comum entre elas: a angústia da tese. Pensando em meus queridos heróis, cada qual tendo feito a difícil travessia do deserto, entre filhos, casamentos, separações e funerais, percebo como a coisa é trágica para quem se arrisca a começar uma vida de pesquisador ou de escritor. Seus parentes e amigos acham que você foi abduzido para outro mundo. Incertezas e insônias, achaques de orientadores e o sentimento persistente de fracasso são inexplicáveis para os que nos cercam. Não há muito dinheiro envolvido, a fama será modesta e supor que este cenário de Dante é gratificador é no mínimo irônico. Fato é que a tese nos representa intimamente e ficará, mesmo, gravada, nos anais da história, com o nosso nome.

O principal vilão desta história é o texto ele mesmo. Escrever. Achar as palavras. E dentro do texto o pior inimigo não é a ignorância, mas uma coisa louca que começa a crescer nos nossos ombros, como um daimon socrático, só que do mal, berrando impropérios indecentes sobre a qualidade, relevância e sentido do que estamos fazendo. A voz do supereu e seu comparsa incitador, o Ideal do eu, é a voz da deslealdade e a fonte e origem da angústia da tese.

Contra gente assim malvada tentei inicialmente métodos carinhosos. Calma, e prudência, “você vai conseguir”, “nós te amamos”, “não leve isso tudo tão a sério”. Logo percebi que, apesar de imprescindíveis, tais ilações pareciam virar energético na boca sangrenta de Leviatã. Quanto mais o pobre infeliz se sente amado e amparado, pior fica. A decepção que ele imagina causar, com sua tese pífia, avoluma-se no universo.  Coração gelado é gelado mesmo. Contra ele desenvolvi então uma tática de embusteiro. Melhor do que odiar um vampiro sem alma, que fica andando por aí como um fantasma a observar, sorrateiro, aquela vírgula fora de lugar, é odiar alguém de carne e osso, seu embaixador na terra: o senhor orientador. Ajuda, mas não resolve. Aqui vai a fórmula milagrosa a que cheguei, ainda que quase nunca consiga acertar a justa mistura, para cada qual de meus pupilos, de seus dois ingredientes.

(1) “Escritor escreve; pesquisador pesquisa”. Se você não escreve, acha que vai escrever, ainda está esperando para escrever, pensa que precisa ler mais antes, tem uma ideia incrível na cabeça, está quase preparado para... não é escritor. Escritor escreve, se não escreve não é escritor.  No desespero infinito conhecido como “fim de tese” sentimos que está em causa o juízo mais íntimo de nosso ser, a batalha final entre o Dragão Alado de Rá e o Obelisco Atormentador decidindo nosso lugar na ordem cósmica. Só que não. Aliás, estas não serão suas últimas palavras. Lembre-se: “Escritor escreve” ontem, hoje e principalmente amanhã também. Existe amanhã. Existe vida depois da tese.

Junte isso com o que disse um famoso editor. “Agora que você entregou os originais, quero que você releia o trabalho, com cuidado. Marque aquelas passagens que você acha mais sensacionais, aqueles momentos fulgurantes que só você saberia escrever, seus momentos de gênio. Marcou? Agora retire-os imediatamente de seu livro. Eles só dizem respeito a você. Seu juízo sobre o que você faz está completamente perturbado pelo que você está fazendo.”

Em suma, não adianta edulcorar o supereu, melhor levar ele para a cama. Trabalhe no texto e deixe as opiniões para depois. Divisão social do trabalho. Deixe os julgamentos, críticas, considerações de valor e, principalmente, a definição de seu lugar ontológico no mundo para quem é pago para isso. Assinado: nós, a banca examinadora.

 

Page 2: DUNKER, Christian. Angústia de Tese

Este artigo foi originalmente publicado na Abril de Mente e Cérebro 2015, que pode ser adquirida na Loja Segmento: http://bit.ly/1FHaxa8