dts 1

Upload: paulo-thiago

Post on 03-Feb-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/21/2019 DTS 1

    1/52

    Do ecodesenvolvimento

    ao desenvolvimento

    territorial sustentvel

    PARTE 1

  • 7/21/2019 DTS 1

    2/52

  • 7/21/2019 DTS 1

    3/52

    Dossi

    Polticas ambientais no Brasil:

    Do preservacionismo ao desenvolvimento

    territorial sustentvel

    Paulo Freire Vieira

    ResumoDesde o final dos anos sessenta, a ecloso de uma problemticaplane-tria relacionada ao reconhecimento de limites ecolgicos do crescimentomaterial tem mobilizado uma ateno crescente das comunidadescientficas e da opinio pblica. O conceito sistmico de ecodesenvolvi-mento emergiu nesse contexto e disseminou-se gradativamente comoexpresso de uma crtica radical da ideologia economicista subjacente suposta civilizao industrial-tecnolgica.

    No decorrer das dcadas de 1980 e 1990, a proliferao de estudos de casosobre as experincias de desenvolvimento local e desenvolvimento territorialem diferentes contextos nacionais tm contribudo para o aprofundamen-to das noes (sistmicas) de endogeneidade, descentralizao, self reliance,autonomia local e sistemas produtivos locais integrados, que sempre foramconsideradas como alicerces da posio ecodesenvolvimentista. Sob opano de fundo das incertezas, coaes e oportunidades impostas pelaglobalizao assimtrica, uma ateno especial passou a ser creditada anlise de respostas inovadoras e sinrgicas em termos de reorgani-zao socioeconmica, sociocultural e poltico-institucional gestadas

    nesses espaos. No obstante, e de forma um tanto paradoxal, na maiorparte dos trabalhos afinados com o enfoque territorial pouca ateno temsido concedida at agora ao tratamento dos imensos desafios suscitadospela ecloso da crise socioambiental e recuperao da vasta literaturaacumulada versando sobre o nexo ambiente & desenvolvimento. O artigooferece subsdios exploratrios voltados para a superao dessa lacuna,avaliando ao mesmo tempo a pertinncia e as condies gerais de viabili-dade do enfoque de desenvolvimento territorial sustentvel no atual estgiode evoluo da agenda ambiental brasileira.

    Palavras-chave: pesquisa sistmica, ecologia poltica, poltica ambiental,desenvolvimento territorial sustentvel.

  • 7/21/2019 DTS 1

    4/52

    28 p. 27 75

    N

    14abrilde2009

    1. Introduo

    Desde o final dos anos 1960, os desafios epistemolgicos, ticos

    e polticos suscitados pela crise planetria do meio ambienteesto na ordem do dia. A tomada de conscincia da necessidadede integrar e aprofundar o esforo de pesquisa cientfica sobre estatemtica, consubstanciada no projeto de instituio de um novocampo de conhecimento a cincia ambiental tem acompanhadoo desdobramento desta discusso (VIEIRA & WEBER, 2000). Emmeio a uma grande diversidade de pontos de vista sobre como fazeravanar uma contra-corrente voltada para o enfrentamento dos con-

    dicionantes estruturais da crise, vem se fortalecendo gradualmentea percepo do carter interdependentee globalizado dos mltiplosfatores que esto em jogo: poluio generalizada, perda intensivade diversidade biolgica e cultural, mudanas climticas, explosodemogrfica, persistncia das tradicionais assimetrias Norte-Sul eagudizao dos conflitos inter-tnicos e dos assustadores ndices deexcluso social, misria e criminalidade entre outros flagelos.

    Trata-se de uma dinmica que s se torna compreensvel me-

    diante a mobilizao do conceito desistema, ajustado ao tratamentodo problema da complexidade dos fenmenos vivos, ou seja, donmero e da variedade de elementos e relaes de interdependnciaque caracterizam sua dinmica contra-intuitiva (BERTALANFFY,1968; FORRESTER, 1971). Neste sentido, uma viso sistmica do mundotem alimentado a formao de uma nova ideologia sociopoltica, denovos conceitos de desenvolvimento, novos projetos de sociedadee novos estilos de vida (MORIN, 1977, 1980, 1990; MORIN & KERN,

    2000; VIEIRA, 1993, 1998 ; VIEIRA & RIBEIRO, 1999; PRIGOGINE &STENGERS, 1979; DANSEREAUS, 1973).

    No contexto brasileiro, at a poca da elaborao da novaCarta Constitucional de 1988, a incorporao daproblemtica eco-lgica na agenda das polticas pblicas foi processada de maneirafragmentada e desvinculada do debate acadmico sobre o binmiomeio ambiente & desenvolvimento (MONOSOWSKI, 1989). Fortementeinduzidas por movimentos de opinio pblica sediados nos pases

    afluentes, e imbudas de uma representao essencialmente preser-

  • 7/21/2019 DTS 1

    5/52

    29p. 27 75

    Paulo Freire Vieira

    Polticas ambientais no Brasil: do preservacionismo ao desenvolvimento territorial sustentvel

    D

    ossi

    vacionista dos problemas em pauta, as demandas sociais e as aesgovernamentais refletiam uma percepo ainda muito rudimentar danecessidade de conter a degradao intensiva do nosso patrimnio

    natural e de controlar a poluio urbano-industrial.Todavia, na esteira dos novos dispositivos constitucionais

    que foram criados, bem como do esforo de sensibilizao da opi-nio pblica que acompanhou a gestao e a realizao da Cpulada Terra, em 1992, o conceito dedesenvolvimento sustentvelpassoua circular regularmente no jargo dos gestores governamentais eda mdia. Num momento histrico marcado pela busca de redemo-cratizao da sociedade brasileira e pelo desgaste do conceito demodernizao conservadora - uma caracterstica da cultura polticados anos 1970 - a difuso da idia-fora de sustentabilidadedosprocessos de desenvolvimento parecia sugerir, primeira vista,uma abertura decidida instituio de sistemas de gesto inte-grada e participativa do nosso patrimnio natural e cultural. Masapesar dos avanos consubstanciados na oficializao gradativade novos instrumentos de regulao jurdica, coordenao polticae educao ambiental, as aes desenvolvidas no Pas em nomede umapoltica ambiental simultaneamente preventiva e proativa,coerente com os princpios assumidos no texto da Agenda 21,tm permanecido, desde ento, nitidamente aqum das expecta-tivas que foram criadas. Essas aes permanecem fragmentadase contraditrias, ocupando um espao perifrico na dinmica defuncionamento do sistema poltico e, tambm, na vida cotidianada maioria do povo brasileiro. Como explicar esta defasagem, que

    vai se tornando a cada dia que passa mais incmoda?

    A linha de argumentao exposta a seguir tributria da refle-xo ecolgico-polticaque antecedeu realizao da Conferncia deEstocolmo, em 1972 (MEADOWS et. al., 1972; ONU, 1972; SACHS,1980). Seu aprofundamento ao longo das ltimas dcadas tem fa-

    vorecido uma imagem mais ntida dos condicionantes estruturaise das opes de enfrentamento da crise, por meio da difuso dosprincpios de ecodesenvolvimento.

  • 7/21/2019 DTS 1

    6/52

    30 p. 27 75

    N

    14abrilde2009

    2. Gnese e atributos essenciais do conceito deecodesenvolvimento

    Em linhas gerais, e correndo riscos de simplificao excessi-va, at o incio dos anos 1970 momento em que eclode a revoluoambiental (NICHOLSON, 1970) a reflexo sobre o fenmeno dodesenvolvimento nos pases do Hemisfrio Sul girou em torno detrs grandes correntes interpretativas: a da modernizao nacional,a estruturalista-desenvolvimentista e a dependentista (HUGON, 1989;BERTHOUD, 1990; HARRIBEY, 2004; ROSIER, 1984; BROHMAN,1996; GUICHAOUA & GOUSSAULT, 1996). A partir da, as novas

    e alarmantes evidncias de ultrapassagem dos limites do cresci-mento material na biosfera induziram o surgimento de um novoe revolucionrio ponto de vista (MEADOWS, 1972; Herrera et al.,1971; MESAROVIC & PESTEL, 1975).

    Para os adeptos da primeira posio terica, predominante nocontexto do ps-guerra, a caracterstica mais importante dos pasesrotulados de sub-desenvolvidos era o seu atraso relativamente curva de evoluo (ou de progresso) das modernas sociedades

    industriais. A crena numa srie de etapas a serem necessariamentepercorridas pelas sociedades tradicionais, rumo ao estgio superiorprevisto pelo modelo ocidental, contribuiu para inscrever a busca decompreenso das dinmicas de desenvolvimento numa representaolinear e universalizante do processo de evoluo social (ROSTOW,1960). Nesta posio marcada por um vis eurocntrico, a complexi-dade do processo de desenvolvimento reduzida dimenso do cres-cimento econmico, supostamente quantificvel mediante a utilizao

    de ndices agregados. Alm disso, sob a influncia da interpretaoKeynesiana da economia capitalista, um estilo de planejamento estatalde inspirao tecnocrtica deveria comandar os esforos voltadospara a dinamizao intensiva do setor industrial.

    Esta posio contrasta nitidamente com as anlises de AlbertHirschmann (1958), Gunnar Myrdal (1969) e Franois Perroux (1969),ao lado de outros socioeconomistas vinculados escola latinoameri-cana da Comisso Econmicapara a Amrica Latina (CEPAL). Todos eles

    colocaram em primeiro plano os efeitos da dominao econmicae cultural exercida pelos pases afluentes sobre os pases pobres.

  • 7/21/2019 DTS 1

    7/52

    31p. 27 75

    Paulo Freire Vieira

    Polticas ambientais no Brasil: do preservacionismo ao desenvolvimento territorial sustentvel

    D

    ossi

    Destacaram a importncia do fenmeno da deteriorao dos termosde troca envolvendo o centro e a periferia do sistema capitalista,recomendando tambm o fortalecimento da regulao estatal pela

    via do planejamento estratgico e da criao de agncias pblicasde desenvolvimento. O sub-desenvolvimento era visto sobretudocomo um conjunto de problemas sociais de corte estrutural po-breza em massa, desemprego crnico, urbanizao descontrolada exigindo uma reviso crtica das relaes entre crescimento eco-nmico e distribuio de renda. Deste ponto de vista, a economiano poderia ser dissociada da tica. Na expresso lapidar de Per-roux (1981, p.32), o desenvolvimento deveria ser assumido como

    um fenmeno que leva em conta todas as dimenses do ser humano ediz respeito a todos os seres humanos. Sua efetivao dependeria,portanto, de uma reforma profunda das estruturas econmicas,sociais, culturais e polticas existentes em cada pas.

    O enfoque estruturalista-desenvolvimentista ope-se assim aovis positivista e politicamente ingnuo das teorias econmicas decorte modernizador e neoclssico, contestando a legitimidade daconcepo economicista do fenmeno do desenvolvimento. Incorporou discusso variveis institucionais situadas para alm do jogo domercado e do comrcio internacional. Sua difuso fortaleceu, almdisso, a hiptese segundo a qual a dominao externa est geralmenteconectada a diferentes formas de dominao interna a cada pas, eproduzidas por suas prprias elites. Entretanto, o reconhecimento danecessidade de uma dinmica mais endgena e socialmente eqitativade desenvolvimento no chega a colocar em xeque um ideal de cresci-mento econmico ainda muito alicerado na tica do domnio sobre

    a natureza e na opo pela transferncia mimtica e tecnocrtica detecnologias geradas nas sociedades afluentes.

    As contribuies de Samir Amin (1970 e 1973) e Andr GunderFrank (1970), entre outros, radicalizaram a anlise da lgica da domi-nao imperialista e de sua relao com a persistncia da condioestrutural de dependncia do mundo sub-desenvolvido. Nessesentido, os conceitos de sub-desenvolvimento e de desenvolvimentodesignam as duas faces de uma mesma moeda a saber, a fora deinrcia do processo de acumulao capitalista em escala mundial.O esquema evolucionista-reducionista da tradio modernizante

  • 7/21/2019 DTS 1

    8/52

    32 p. 27 75

    N

    14abrilde2009

    e o reformismo politicamente ingnuo da escola estruturalista-dependentista passaram assim a ser contestados, em nome dosriscos embutidos na internacionalizao crescente dos sistemas

    produtivos e do capital financeiro, cujos vetores estratgicos seriamas grandes corporaes transnacionais.

    A nova corrente re-enfatizava no s a condio de depen-dncia externa, mas tambm a anlise dos padres estruturais queconectam, de forma assimtrica, as economias centrais e aquelassituadas na periferia do sistema global. O apelo ao potencial desmis-tificador do conceito-chave de dominao, referenciado dinmicados conflitos de classe, fundamentava uma slida linha de argumenta-o crtica s limitaes congnitas do ideal do Estado-reformadordos cepalinos. O socialismo de corte estatizante emergiu como umnovo ideal-regulativo para o desenho de propostas alternativas demudana social nos pases do Sul.

    Essas trs representaes, hoje consideradas clssicas no campoda socioeconomia do desenvolvimento, passaram a ser contrastadas,durante as reunies preparatrias da Conferncia de Estocolmo, coma tomada de conscincia dos custos socioambientais das dinmicas decrescimento econmico processadas nos dois hemisfrios (KAPP, 1972e 1973). O conceito de ecodesenvolvimento emergiu nesse contexto ese disseminou gradativamente como expresso de uma crtica radicalda ideologia economicista subjacente suposta civilizao industrial-tecnolgica (SACHS, 1980; DUPUY, 1980; BOURG, 1996; MORIN &KERN, 2000). Algumas pistas para o seu correto entendimento podemser encontradas num volume expressivo de contribuies clssicas,mas ainda pouco conhecidas da comunidade cientfica brasileira entre outros, ONU (1972), Nicholson (1973), Godard e Sachs (1975),Fundao Dag Hammarskjld (1975), Galtung (1977), Nerfin (1977);Dupuy (1980); Sunkel (1981); Illich (1973); Godard (1980, 1981), Sachset al.(1981), CIRED (1986); Glaeser (1984).

    Na busca de enfrentamento da crise planetria do meio am-biente, seus adeptos colocaram em primeiro plano a redefiniodos estilos de desenvolvimento predominantes nos dois hemisf-

    rios e das formas de organizao socioeconmica, sociopoltica,sociocultural e socioambiental que lhe correspondem. Insistiamassim no reconhecimento do carter interdependente e globalizado

  • 7/21/2019 DTS 1

    9/52

    33p. 27 75

    Paulo Freire Vieira

    Polticas ambientais no Brasil: do preservacionismo ao desenvolvimento territorial sustentvel

    D

    ossi

    das mltiplas dimenses da crise. Da mesma forma, destacaramo potencial emancipador contido na noo de endogeneidadedasdinmicas de desenvolvimento que passou a adquirir legitimidade

    como indutora de um novo princpio de racionalidade social nocampo do planejamento. A idia era evitar, ao mesmo tempo, asarmadilhas do estatismo tecnocrtico e as limitaes de uma aborda-gem autrquica-fragmentada ou localista.

    Em meados dos anos 1980, a irrupo da ideologia do ajusteneoliberalrouba a cena. O desmoronamento inesperado do campo dosocialismo realmente existente abre caminho para o enfraquecimentodo papel planejador e regulador dos Estados-Nao; para a aberturaindiscriminada ao comrcio internacional e para a reduo drsticade programas sociais, no bojo das polticas de ajuste estruturalque coagem os pases do Sul a privilegiar as exportaes visandoo reembolso de suas dvidas externas. A busca obsessiva de efici-ncia econmica e de competitividade a todo custo nos mercadosinternacionais impe-se como um novo princpio de racionalidadena formulao de polticas e estratgias de crescimento.

    Ao final dessa mesma dcada, a disseminao do critriode sustentabilidade no campo das polticas pblicas de desenvol-

    vimento atenua o efeito de polarizao do debate criado pelamundializao neoliberal, mas introduz incertezas e uma polmicaconceitual que persiste ainda hoje. Por um lado, do ponto de vistaecolgico como salientou Weber (2000, p.122) a caracterizaodo conceito de desenvolvimento sustentvel derivado do famosoRelatrio Brundtland,

    fundada numa representao da natureza baseada na idia de es-toques a serem geridos visando alcanar o optimum, ou pontos deequilbrio, acabou nos conduzindo a certas distines casusticasentre sustentabilidade forte ou fraca, em funo de uma taxa deatualizao. Em decorrncia da nossa educao cientfica, inmeraspessoas passaram logicamente a conceber o desenvolvimento sus-tentvel em nome da preservao dos meios naturais, em termosde manuteno ex-post ou de restaurao de equilbrios. Tal algica que se depreende dos programas de gesto da biodiversidade

    concebidos em termos de polticas de criao de reas de preser-vao, florestas e stios arqueolgicos protegidos.

  • 7/21/2019 DTS 1

    10/52

    34 p. 27 75

    N

    14abrilde2009

    Alm disso, as tentativas de aplicao do conceito desustentabilidade no campo da gesto de recursos naturais tmgerado interpretaes bastante controvertidas sobre o estatuto

    do procedimento de clculo econmico-monetrio de danos so-cioambientais e dos possveis instrumentos de poltica econmicaa serem priorizados.

    Na confusa evoluo do debate que nos conduziu progressi-vamente ao iderio de um outro desenvolvimento evidencia-se opapel determinante representado pela difuso do novoparadigmacientfico. Com efeito, apesquisa sistmicavem sendo assumida, desdeo incio do sculo passado, como um novo e poderoso instrumentode elucidao e gesto da complexidade dos fenmenos vivos, a sa-ber, do nmero e da prodigiosa variedade de elementos e relaesde interdependncia que caracterizam o funcionamento contra-intuitivo1dos macro- sistemas dos quais ns somos simplesmente asclulas (BERTALANFFY, 1968; ROSNAY, 1975; AIDA, 1986). A revisoda extensa literatura produzida sobre o tema nas ltimas dcadasindica que o refinamento gradual de uma nova imagem-de-mundo,que re-insere a histria das sociedades humanas na histria dasrelaes que mantemos com a natureza, tem alimentado a re-inter-pretao do fenmeno do desenvolvimento nos dois hemisfrios econtribudo para a renovao dos sistemas de planejamento e gestonas mais diversas escalas territoriais (BUNGE, 1980; BUCKLEY, 1971;MILLER & MILLER, 1982; HOLLING, 1978; JOLLIVET & PAV, 2000;GARCA, 1994; VIEIRA, BERKES & SEIXAS, 2005).

    Vale a pena destacar que a internalizao do paradigmasistmico configura a fronteira atual do campo da ecologia humana,tornando-a o substrato terico e metodolgico de um enfoquesimultaneamente preventivo e proativo de planejamento e gesto(DANSEREAU, 1999; VIEIRA & RIBEIRO, 1999; BOYDEN, 1981; GLA-

    1 O termo designa uma caracterstica essencial da complexidade sistmica.Levando-se em conta a multiplicidade e a heterogeneidade dos componentes(fsico-qumicos, bio-ecolgicos e socioculturais) dos sistemas abertos, bemcomo a no linearidade das interaes e as diferentes escalas espaciais e tempo-rais a serem levadas em conta, torna-se impossvel prever e, em conseqncia,predizer suas trajetrias de evoluo no futuro a partir dos dados empricosdisponveis no presente.

  • 7/21/2019 DTS 1

    11/52

    35p. 27 75

    Paulo Freire Vieira

    Polticas ambientais no Brasil: do preservacionismo ao desenvolvimento territorial sustentvel

    D

    ossi

    ESER, 1997). A ecologia geral evoluiu, a partir do incio do sculopassado, do estudo das inter-relaes entre espcies vegetais eanimais que habitam uma determinada rea para o estudo de

    ecossistemas virgens ou com escassa interveno humana, paraalcanar finalmente o estgio onde os seres humanos deixam de serconsiderados como elementos externos aos ecossistemas2. Sobos influxos da percepo dos problemas socioambientais de escopoplanetrio, consolida-se gradualmente o projeto de construo deuma ecologia humana norteada pelopensamento complexo(MORIN,1990). Este projeto reconhece que os seres humanos, com a suaprodigiosa diversidade cultural, fazem parte constitutiva dos ecos-

    sistemas e paisagens. O campo socioambiental transcende, portanto, ombito da ecologia bsica, e o conceito de ambiente humano passa afundamentar as aes de planejamento e gesto realizadas em nomeda qualidade do ambiente total da espcie humana(BOYDEN, 1981).

    Por implicao, os processos adaptativos que se tornaminteligveis nesse novo campo de pesquisa orientada para a aoso tributrios de uma representao co-evolutivadas relaes entresistemas sociais e sistemas ecolgicos (ODUM, 1975 e 1983; BO-TKIN, 1990; BOOKCHIN, 1993). A esta concepo de ecologia humanasistmica caberia retomar a busca de explicaes sobre as causasdos processos de evoluo e/ou desagregao de sistemas sociaisa partir de determinadas condies ecolgicas, bem como sobre ascausas de mudanas especficas nos sistemas ecolgicos a partir dedeterminadas opes de organizao dos sistemas sociais.

    As referncias subseqentes ao conceito de ecodesenvolvi-mento no cenrio geopoltico dos anos 1970 foram marcadas pelanecessidade de romper com a tendncia de imitao, pelos pasesdo Sul, dos modelos dominantes promovidos pelos pases indus-trializados. A tnica dos estudos de caso realizados nessa pocaincide na criao de sistemas alternativos de planejamento e gesto,capazes de gerar estratgias de desenvolvimento mais endgenas,

    2 Definido no texto da Conveno da Diversidade Biolgica como um complexodinmico formado por comunidades de plantas, animais e micro-organismos etambm por seu meio ambiente no vivo que, por meio de suas inter-relaes,formam uma unidade funcional.

  • 7/21/2019 DTS 1

    12/52

    36 p. 27 75

    N

    14abrilde2009

    participativas, ecologicamente prudentes e sensveis s caracters-ticas especficas de cada contexto local e regional.

    Em termos operacionais, a noo complexa de meio ambientepressuposta no enfoque de ecodesenvolvimento foi construdalevando-se em conta trs dimenses fundamentais. Por um lado, adimenso relativa base de recursos naturaisnecessria subsistnciade grupos humanos e, de maneira simtrica, funo de assimilaodos dejetos gerados pelas atividades de produo e de consumo.Por outro, a dimenso relativa ao espao territorial, entendido comoo lcus dos processos co-evolutivos de adaptao ao meio e de in-

    veno cultural. E finalmente, a dimenso do hbitat considerado emseu sentido mais amplo, ou seja, correspondendo infra-estruturafsica e institucional que influencia a qualidade de vida das popula-es (habitao, trabalho, recreao, auto-realizao existencial) ea prpria viabilidade ecolgica dos sistemas socioculturais no longoprazo. Neste ltimo caso, os aspectos subjetivos (ou vivenciais) dasrelaes que mantemos com a natureza as percepes, valores esignificaes culturais passam a ser incorporados como variveisessenciais nas pesquisas orientadas para a formulao de estratgiasalternativas de desenvolvimento (GODARD & SACHS, 1975).

    Em contraste com os esquemas usuais de planejamento egesto baseados na mobilizao mais ou menos autoritria (ou topdown) das populaes, os agentes de ecodesenvolvimento atuandonos cinco continentes tm procurado

    oferecer respostas aos problemas mais pungentes e s aspiraes decada comunidade, superando os gargalos que obstruem a utilizao

    de recursos potenciais e ociosos e liberando as energias sociais e aimaginao. Para tanto, devem garantir a participao de todos osatores envolvidos (os trabalhadores, os empregadores, os agentesgovernamentais e a sociedade civil organizada) no processo dedesenvolvimento (SACHS, 2004, p.61).

    Ao invs de proselitismo e imposio mais ou menos veladade projetos, programas e polticas, valoriza-se a conduo de umdilogo permanente e horizontal com as comunidades locais, ba-seado em avaliaes locais participativas de ecossistemase paisagens

  • 7/21/2019 DTS 1

    13/52

    37p. 27 75

    Paulo Freire Vieira

    Polticas ambientais no Brasil: do preservacionismo ao desenvolvimento territorial sustentvel

    D

    ossi

    (GADGIL, 1999; WEBER, 2000; NORGAARD, 1994) e na negociaode cenrios alternativos para o futuro.

    Falamos assim de apropriao comunitria das estratgiasde interveno e de novos instrumentos de gesto capazes dealimentar uma relao sinrgica entre a esfera da produo de co-nhecimentos e a esfera da ao planejadora de corte participativo nos moldes de certas abordagens contemporneas de pesquisa-ao3sensveis problemtica socioambiental (THIOLLENT, 1985;GOYETTE e LESSARD-HBERT, 1987; CHAMBERS, 1994; DESHLER &EWERT, 1995; BARBIER, 1996). Na sntese paradigmtica cunhadapor Ignacy Sachs (1980, p.32), este enfoque permite aos planeja-dores e aos decisores polticos

    abordarem a problemtica do desenvolvimento de uma perspectivamais ampla do que as usuais, baseadas numa viso setorializada,compatibilizando uma dupla abertura ecologia natural e eco-logia cultural. Nesse sentido, os agentes de ecodesenvolvimentoestaro sensveis diversidade de situaes em jogo e, mais queisto, ao espectro pluralista das vrias solues possveis. Eles de-duziro disso a impossibilidade de se identificar adequadamente

    os problemas e as necessidades da populao, alm das potencia-lidades do meio natural, enquanto os prprios interessados noassumirem essas funes.

    O aperfeioamento de ecotcnicas sempre ocupou um espaoprivilegiado no desenho experimental dessas novas estratgias.Trata-se da varivel multidimensional por excelncia de um jogode harmonizao dos objetivos simultaneamente socioeconmicos,

    socioculturais, sociopolticos e socioecolgicos associados ao enfo-

    3 Entendida como uma estratgia de pesquisa aplicada de corte transdisciplinar,est em jogo uma ao comum de pesquisadores e indivduos/grupos interessadosem gerar conhecimentos que possam ser imediatamente revertidos em aes demudana no nvel local/territorial. Os problemas, objetivos a serem alcanadose princpios ideolgicos so estabelecidos em comum. Os pesquisadores contri-buem com uma representao cientfica dos processos de transformao social ede sua efetividade. Mas o produto final consiste numa transformao concreta dasituao inicial, gerando solues consideradas satisfatrias por todos os atoressociais envolvidos. Deste ponto de vista, toda pesquisa-ao participativa, masnem toda pesquisa participativa adquire o estatuto de pesquisa-ao.

  • 7/21/2019 DTS 1

    14/52

    38 p. 27 75

    N

    14abrilde2009

    que de ecodesenvolvimento. O ajuste harmonioso dos planos de in-terveno s peculiaridades de cada eco-regio selecionada para finsde interveno pressupe a considerao do mais amplo espectro

    possvel de opes tecnolgicas desde as mais simples e intensivasem mo-de-obra s mais sofisticadas e intensivas em capital. Oscritrios de seleo prescrevem um esforo de identificao e va-lorizao mxima dos recursos ambientais existentes (muitos delestalvez sub-utilizados ou mesmo desconhecidos), em consonnciacom a lgica das necessidades bsicas (materiais e intangveis) e com abusca de solues politicamente descentralizadas, promotoras daincluso social e ecologicamente prudentes (Sachs, 2007).

    Mais recentemente, luz das reflexes de Sen (1999) e Sen-gupta (2001 e 2002), Ignacy Sachs (2004, p.14-16) reconhece naexigncia de apropriao efetiva,por todos os cidados, do conjuntointegral dos direitos humanos fundamentais uma outra maneira deexprimir o essencial da plataforma tica desta nova concepo dedesenvolvimento. Neste sentido, ao lado dos direitos polticos, ci-

    vis e cvicos, somados aos direitos econmicos, sociais e culturais(incluindo-se aqui o direito ao trabalho digno), os novos cdigos

    jurdicos passaram a incorporar a ltima gerao de direitos hu-manos, ou seja, aqueles relativos a um meio ambiente saudvel eao desenvolvimento socialmente includente.

    Alm disso, o esforo investido numa reaproximao dosespaos da economia e da tica passou a levar em conta as limita-es dos indicadores usuais de eficincia econmica e de geraode riqueza. Aqui, a idia de uma nova economia de sistemassocioam-bientais complexos a ecossocioeconomia4 conserva, desde a pocada Conferncia de Estocolmo, toda a sua atualidade. Nesse caso,o desafio crucial consiste em se abrir a economia a novas aborda-gens (sistemas auto-organizadores complexos), novas dimenses(energtica, informacional) e novos instrumentos de avaliao(no monetrios), suscetveis de apreender os aspectos do realque escapam aos instrumentos tradicionais(PASSET, 1992, p.28).

    4 O termo foi cunhado por Karl William Kapp, economista de origem alem eum dos mais brilhantes precursores do debate ecolgico-poltico no cenrioeuropeu dos anos 1970.

  • 7/21/2019 DTS 1

    15/52

    39p. 27 75

    Paulo Freire Vieira

    Polticas ambientais no Brasil: do preservacionismo ao desenvolvimento territorial sustentvel

    D

    ossi

    A inteno mostrar a diversidade de registros da economia real,aquela que responde pelas estratgias cotidianas de sobrevivnciadas comunidades locais e que oportuniza um debate coletivo apto a

    orientar as decises estratgicas sobe opes de regulao da eco-nomia. Esta posio distingue-se assim, claramente, daquelas que,em nome do ideal de desenvolvimento sustentvel mencionado acima(WCED, 1987), orientam-se mais no sentido de um enfrentamentoex post de sintomas isolados da crise socioambiental, baseando-senuma concepo reducionista de sustentabilidade, ou seja, atrelada reproduo da lgica profunda do capitalismo globalizado (KAPP,1987; VIVIEN, 2005). A tomada de conscincia da necessidade de

    uma ruptura drstica com o mainstream da socioeconomia do desen-volvimento acena com a possibilidade de um novoprojeto civilizador,mas vem se tornando cada vez mais evidente que estamos aindanos primrdios de sua efetivao (MORIN & KERN, 2000).

    Apesar da potencialidade embutida nesse esforo de elabo-rao gradual do enfoque de ecodesenvolvimento, suas limitaesatuais tm sido assinaladas por um volume significativo de autores(GODARD, 1994a e 1994b; HATEM, 1990; BECKERMAN, 1992). Umadas crticas mais recorrentes insiste na polissemia que ainda cercaa sua utilizao, na academia e fora dela, bem como na tendncia hipertrofia da dimenso normativa em detrimento do rigor analtico.Em vez de um esforo de construo cumulativa de uma estruturaconceitual-terica cada vez mais consistente, critica-se muitas vezesa insistncia na comunicao de variaes estilsticas de um tipode discurso essencialmente tico-normativo e pouco sensvel preocupao pela anlise das condies de viabilidade de sua apli-

    cao no atual cenrio de desengajamento do Estado, privatizaogeneralizada dos servios pblicos e precariedade do dilogo entreas populaes e as instituies que, em princpio, a representam(BAREL, 1984). Finalmente, as interminveis controvrsias provocadaspela disseminao mediatizada dessas idias (sobretudo no apeloao clich dasustentabilidade) estariam refletindo uma suposta lutade influncias entre diferentes correntes ideolgicas e grupos de interesse,

    visando simplesmente impor uma certa maneira de colocar os problemas

    essenciais e atribuir responsabilidades (GODARD, 1992, p.2).

  • 7/21/2019 DTS 1

    16/52

    40 p. 27 75

    N

    14abrilde2009

    No transcurso dos anos 1990, novos aportes conceituais,tericos e metodolgicos a essa discusso vieram tona. Eles vmsendo testados em vrios pases nos mais diversos contextos re-

    gionais e locais. As categorias conexas de (i) desenvolvimento vivel, (ii)degesto patrimonial de recursos de uso comum e, mais recentemente,de (iii) desenvolvimento territorial sustentvel tm contribudo paradotar o enfoque de ecodesenvolvimento de fundamentos cientficose ticos cada vez mais slidos.

    3. Do ecodesenvolvimento ao desenvolvimento

    territorial sustentvel

    Viabilidade

    A difuso do conceito de desenvolvimento vivel, imediatamenteaps a realizao da Cpula da Terra, em 1992, passou a alimentaruma reflexo original sobre alguns tpicos que haviam sido trabalha-dos apenas de forma exploratria pela primeira gerao de tericosdo ecodesenvolvimento. Por um lado, tornaram- se mais ntidas asincertezas constitutivas que caracterizam a dinmica hiper-complexados sistemas socioecolgicos e, especialmente, dos agroecossiste-mas. Por outro, a disseminao das noes de incerteza contingente ede viabilidade5dos sistemas socioecolgicos contribuiu para aguaro peso das controvrsias cientficas que tm acompanhado o esforode planejamento e a gesto desses sistemas num horizonte de longo

    5 Oriundo do universo da pesquisa matemtica aplicada regulao de processoseconmicos, o conceito de viabilidade incorporado problemtica aqui tratadaincide no questionamento dos pressupostos teleolgicos embutidos nas anlisesmicroeconmicas convencionais, bem como nos instrumentos de regulao oti-mizada que essas anlises recomendam. Os temas da incerteza contingente e dascoaes de viabilidade, que configuram as tenses e os paradoxos das dinmicasevolutivas de macrossistemas complexos (identificveis nos campos da biologia,das cincias cognitivas ou das cincias sociais, por exemplo), passaram a alimen-tar um novo tipo de reflexo sobre os limites da previso no campo da gestode problemas socioambientais (Aubin, 2000). Nesse sentido, passamos a admitircomo uma hiptese forte que a dinmica se substitui aos estados de equilbrio, eque a previso cede seu lugar explorao de novas configuraes possveis, fazendo

    com que os procedimentos normativos percam progressivamente sua legitimidade face

    aos procedimentos rotulados de adaptativos (WEBER, 1992, p.293).

  • 7/21/2019 DTS 1

    17/52

    41p. 27 75

    Paulo Freire Vieira

    Polticas ambientais no Brasil: do preservacionismo ao desenvolvimento territorial sustentvel

    D

    ossi

    prazo. Isto significa que tais sistemas devem ser preparados paraque possam resistir a uma grande variedade de perturbaes ou flutuaes

    imprevistas, permanecendo prontos a se reorganizar nessas ocasies. Neste

    sentido, a resilincia desses sistemas representa a condio crtica essencial

    da sustentabilidade (HOLLING, 1978, 1998; Godard, 1996, p.33).

    Emergiu assim um novo arcabouo conceitual, voltado para aelucidao da complexidade embutida na impressionante variedadede modos de apropriaoe desistemas de gesto de recursos naturais deuso comum disseminados por todos os continentes (VIEIRA & WEBER,2000; HOLLING, 1978; BROMLEY, 1992; HOLLING et al., 1998; BERKESet al., 1989; BERKES & FOLKE, 1998; BERKES, COLDING & FOLKE,2003; GUNDERSON & HOLLING, 2002; OSTROM et. al., 2001; VIEIRA,BERKES & SEIXAS, 2005). Deste ponto de vista, o entendimento dosfocos estruturais da crise contempornea do meio ambiente passapela anlise dos usos que vm sendo feitos daquilo que no pertencea ningum e/ou atravessa a propriedade: florestas naturais, guascontinentais e marinhas, atmosfera, fauna selvagem, biodiversida-de. Podemos encontrar aqui no s a dimenso ligada ao estatutoeconmicosui generisdos bens comuns, mas tambm os conflitosde representaes e interesses resultantes do envolvimento de umgrande nmero de atores sociais, alm do peso das incertezas econtrovrsias cientficas sobre a dinmica de reproduo dos ecos-sistemas e paisagens no longo prazo (WEBER, 2000).

    As aplicaes deste enfoque analtico ao contexto dos pasesdo Sul vm permitindo reforar a hiptese de que os processos deutilizao predatria da base de recursos de uso comum podemser freqentemente correlacionados tendncia de dissoluodaquelas modalidades de organizao institucional no nvel local6que, no passado, mostraram-se capazes de preservar padres menosdestrutivos de inter-relacionamento das comunidades com o meioambiente biofsico e construdo.

    6 No sentido de iniciativas endgenas empreendidas no mbito de um dadomunicpio, em contraste com os nveis intermunicipal e regional. No contexto

    brasileiro, so os municpios que detm, entre todos os interlocutores do meio rural,entre todas as instituies, o mandato e a legitimidade necessria para organizar o

    atendimento s necessidades bsicas das populaes locais(Tonneau, 2002: 227).

  • 7/21/2019 DTS 1

    18/52

    42 p. 27 75

    N

    14abrilde2009

    Ainda na opinio de Jacques Weber (2000, p.120-121), falarde desenvolvimento vivel equivale a sublinhar que

    a definio de objetivos de longo prazo, de natureza tica e pol-tica (no sentido forte do termo), num horizonte temporal muitolongo, constitui um pr-requisito elaborao de toda e qualquerestratgia de gesto; e que a definio de regras de eqidade,bem como de objetivos enquadrveis em horizontes temporais delongo prazo, procedem do debate poltico, e no de definiesanalticas. No que diz respeito dimenso do longo prazo, asopes polticas, e portanto sociais, devem preceder o trabalhocientfico e no o contrrio.

    Patrimonialidade

    Alm disso, a busca de um estatuto jurdico compartilhadopara uma gesto democrtico-participativa de conflitos socioam-bientais encontrou na noo de patrimnio natural e cultural umponto de referncia inovador, num cenrio marcado pelo fenmenoda capitalizao intensiva da natureza (VIVIEN, 1994, 2005; ZIEGLER,

    2002). Na opinio lcida de Franois Ost (1995, p.351), esta noonos ajuda a conferir uma forma jurdica convincente preocupaotica de assumir a nossa responsabilidade frente s chances de so-brevivncia das geraes atuais e futuras. Isto na medida em que

    as inter-relaes envolvendo os seres humanos e o meio ambienteacomodam-se mal aos estatutos de objeto e sujeito. Como se a pr-pria distino entre sujeito e objeto, sobre a qual se construiu solida-mente a nossa modernidade, no se adequasse de maneira alguma

    necessidade de pensar e administrar uma realidade interativa como a do meio ambiente. Ao mesmo tempo, tornaram-se visveis oslimites inerentes s abordagens jurdicas tradicionais do meio, sejamaquelas expressas em termos de apropriao, de contratualizao oude regulamentao, sejam, de modo inverso, aquelas interessadas empersonificar a natureza e reconhecer-lhe direitos. E, finalmente, adistino entre esfera pblica e esfera privada, entre direito pblicoe direito privado, que deve ser tambm ultrapassada, se quisermosoferecer respostas adequadas problemtica socioambiental.

    Deste ponto de vista, que transcende a hegemonia de umtipo de pensamento binrio, seria importante ressaltar que no

  • 7/21/2019 DTS 1

    19/52

    43p. 27 75

    Paulo Freire Vieira

    Polticas ambientais no Brasil: do preservacionismo ao desenvolvimento territorial sustentvel

    D

    ossi

    existe patrimnio desvinculado da relao estabelecida com osseus titulares que o investem nessa condio (OLLAGNON, 2000,p.183). A relao patrimonial influencia decisivamente a formao

    do senso de identidade dos seus titulares, fazendo com que as an-lises da problemtica socioambiental no se restrinjam apenas aoentendimento da realidade objetiva do patrimnio. Importa assumirtambm a elucidao das relaes subjetivas que se estabelecementre o patrimnio e seu titular nos espaos de tomada de decisocoletiva. Como salienta Montgolfier (2000, p.391):

    no basta, na maior parte dos casos, estabelecer um plano de ges-

    to perfeitamente racional para se efetivar com xito a gesto daqualidade do patrimnio natural. Alm disso, torna-se indispensvelassegurar o engajamento duradouro daqueles atores sociais que seencontram, de uma forma ou de outra, envolvidos no processo.

    Em conseqncia, os novos instrumentos de auditoria pa-trimonial de polticas pblicas e de negociao multi-atores vieramdiversificar a caixa de ferramentas tradicional dos planejadores egestores de estratgias alternativas de desenvolvimento. O acento colocado aqui nas mudanas drsticas de percepo e atitude dosatores sociais envolvidos e nas implicaes dessas mudanas para ofortalecimento progressivo de um dispositivo coletivo e negociadode gesto de recursos de uso comum7.

    Territorialidade

    Finalmente, a proliferao de estudos de caso sobre as ex-perincias de desenvolvimento local e desenvolvimento territorial emdiferentes contextos nacionais, no decorrer das dcadas de 1980 e1990, tm contribudo para o aprofundamento das noes (sistmi-cas) de endogeneidade, descentralizao, autonomia esistemas produtivosintegrados, que sempre foram consideradas como alicerces da posio

    7 O termo usado aqui para designar uma classe de recursos naturais relativa-mente aos quais a excluso (ou o controle do acesso) difcil, sendo que, almdisso, cada usurio capaz de subtrair do acervo compartilhado com todos osdemais usurios. Consultar neste sentido Vieira, Berkes e Seixas (2005).

  • 7/21/2019 DTS 1

    20/52

    44 p. 27 75

    N

    14abrilde2009

    bottom up compartilhada pelos tericos do ecodesenvolvimento. Sobo pano de fundo das incertezas, das coaes e das oportunidadesimpostas pela globalizao econmico-financeira e cultural, uma

    ateno especial passou a ser creditada anlise de respostas ino-vadoras e sinrgicas em termos de reorganizao socioeconmica,sociocultural e poltico-institucional gestadas nesses espaos.

    No rol dessas inovaes esto includas, entre outras, a emer-gncia de novas formas de reciprocidade econmica, nutridas pelaformao de um tecido social especialmente coesivo e cooperativo;a estruturao desistemas produtivos locais em zonas rurais, integra-dos em redes de pequenas e mdias empresas que transcendem aesfera das relaes puramente mercantis e desvelam novos tiposde atividade no-agrcola no meio rural; e a pesquisa de novos ar-ranjos institucionais descentralizados e voltados para o exercciodagovernana local e territorial, da eqidade, da busca de sinergiaentre as comunidades locais e os diferentes mbitos de regulaoestatal, e dagesto patrimonial dos recursos e meios naturais.

    Dito de outra forma, o desmantelamento progressivo do se-tor pblico e a reduo mais ou menos drstica dos investimentossociais nos pases do Sul passaram a coexistir com o registro deexperincias originais de auto-organizao socioeconmica, so-ciocultural e sociopoltica no nvel local, implicando processos derecriao de identidades territoriais. O esforo de pesquisa compara-tiva concentrada na elucidao desse fenmeno tem revelado que,em inmeros contextos regionais, algumas populaes passarama assumir com autonomia crescente a busca de solues originaisno que diz respeito s opes de dinamizao socioeconmica, organizao do trabalho produtivo e gesto local dos recursosnaturais de uso comum. Contrapondo-se a um esforo de ajusta-mento passivo s coaes geradas pela globalizao de inspiraoneoliberal, instaurou-se assim uma nova lgica de organizao ter-ritorial do desenvolvimento, convergindo em grande parte com ostermos de referncia e o perfil ideolgico da verso originria doenfoque de ecodesenvolvimento. Mas esta tendncia desempenhaum papel ainda muito pouco elucidado nas dinmicas de desenvol-

    vimento socioeconmico atualmente (TAYLOR & MACKENZIE, 1992;CHAMBERS, 1989; WADE, 1988).

  • 7/21/2019 DTS 1

    21/52

    45p. 27 75

    Paulo Freire Vieira

    Polticas ambientais no Brasil: do preservacionismo ao desenvolvimento territorial sustentvel

    D

    ossi

    4. No cerne do debate: a integrao da varivelsocioambiental

    Nos dois hemisfrios, a proliferao de estudos de caso cen-trados na dimenso territorial do desenvolvimento tm contribudopara fazer avanar uma nova gerao de polticas pblicas de combate pobreza e excluso social uma tendncia que pode ser identi-ficada em nosso Pas a partir das aes que passaram a ser estimu-ladas pela Secretaria de Desenvolvimento Territorial do Ministriodo Desenvolvimento Agrrio e pelo Servio Brasileiro de Apoio sMicros e Pequenas Empresas (SEBRAE) nos ltimos anos. No centro

    das atenes foi colocada a temtica da reestruturao produtivado meio rural, em decorrncia da perda intensiva da capacidade degerao de emprego e renda das atividades agrcolas tradicionais.Ganharam tambm mais nitidez e credibilidade os discursos sobreopes de desenvolvimento agroecolgico8para os pequenos produto-res familiares, em contraste com a retrica tradicional, concentradana apologia da agricultura patronal e empresarial (SACHS, 2002;

    ALTIERI, 1986; CAPORAL, COSTABEBER & PAULUS, 2006).

    Alm disso, num contexto marcado pelo emperramento doprocesso de implementao daAgenda 21 Brasileira processo esteainda hoje considerado muito aqum do limiar desejvel vmse tornando cada vez mais oportunos os estudos de viabilidadepoltica do enfoque territorial do desenvolvimento nas diversasregies brasileiras.

    No obstante a constatao desses avanos, na maior partedos trabalhos afinados com o enfoque territorial e de forma um

    tanto paradoxal pouca ateno tem sido concedida (trinta e sete

    8 No sentido de um sistema produtor de alimentos que visa reconciliar a agro-nomia e a ecologia promovendo o desenho de agroecossistemas sustentveis.Coloca em primeiro plano a reciclagem sistemtica da biomassa e a buscade alternativas ao uso de insumos qumicos herdeiros da Revoluo Verde esuscetveis de degradar o meio ambiente biofsico. Ope-se assim ao modeloagrcola e agroindustrial de corte produtivista-predatrio, procurando integrarao trabalho de planejamento e gesto os saberes e as prticas vernaculares. Almde modelo de produo alternativo, a agroecologia pode ser considerada comoum sub-campo de pesquisa transdisciplinar-sistmica aplicada construo deum novo paradigma de desenvolvimento rural sustentvel.

  • 7/21/2019 DTS 1

    22/52

    46 p. 27 75

    N

    14abrilde2009

    anos aps a Conferncia de Estocolmo!) ao tratamento dos imensosdesafios suscitados pela ecloso da crise socioambiental planetria e recuperao da vasta literatura acumulada versando sobre o nexoambiente & desenvolvimento. Continuam escassas e bastante fragmenta-das as reflexes voltadas no s para a compreenso dos fatores queesto condicionando essa defasagem, mas tambm para a elaboraode uma possvel plataforma metodolgica compartilhada, capaz dealimentar, daqui em diante, a criao de programas coordenados deexperimentao interdisciplinar-comparativa e de longo flego emdiferentes contextos locais, regionais, nacionais e mesmo interna-cionais (VIEIRA, 1995, 2005; MMA, 2002, 2002b, 2003).

    Esta constatao refora ainda o ponto de vista segundo oqual deveramos considerar com ateno redobrada os possveisriscos de desvio economicista e tecnocrtico no manejo do enfoqueterritorial atualmente. Na opinio de Albagli (2004, p.63-64), semanejado de uma perspectiva meramente instrumental,

    o territrio constitui pea-chave para a reproduo do capital que,se hoje em dia exige ser globalizado, necessita tambm de anco-

    ragens fsicas para os empreendimentos produtivos, ao mesmotempo em que requer uma fronteira em constante movimento queatenda s contnuas transformaes nas condies de sua repro-duo. Diferenciao e especificidades territoriais so vistas aqui,fundamentalmente, como formas de atrair investimentos e gerarnovas lucratividades, e a territorialidade valorizada como meroobjeto de interesse mercantil e especulativo.

    Em outras palavras, a fora de inrcia da ideologia economicista

    pode chegar a comprometer seriamente a consistncia das iniciativasem curso ainda muito embrionrias de construo e consolidaoinstitucional de territrios sustentveis no Pas. A hiptese subjacenteassevera que as dinmicas de desenvolvimento territorial sustent-

    vel tm poucas chances de serem concretizadas e consolidadas seforem pensadas apenas enquanto um novo vetor de dinamizaosocioeconmica no nvel local, sem um esforo renovado de inte-grao interinstitucional, de gesto patrimonial dos recursos natu-

    rais de uso comum e, por implicao, de reverso dos resduos deautoritarismo e clientelismo que tm marcado, de forma indelvel,

  • 7/21/2019 DTS 1

    23/52

    47p. 27 75

    Paulo Freire Vieira

    Polticas ambientais no Brasil: do preservacionismo ao desenvolvimento territorial sustentvel

    D

    ossi

    as transformaes da nossa cultura poltica ao longo do tempo. Aexemplo do que tem ocorrido no processo de disseminao da visoreducionista-tecnocrtica do desenvolvimento sustentvel e tambm

    da chamada modernizao ecolgica, o debate sobre desenvolvimentoterritorial desvinculado da reflexo de fundo sobre a questo eco-lgica deveria ser manejado com extrema cautela.

    5. Pr-requisitos de viabilidade: promover a autonomialocal e romper com a sndrome da Torre de Babel

    Como pensar a viabilidade da passagem do conceito de de-senvolvimento territorial sustentvel ao se levarmos em contaa atuao cronicamente deficitria do Estado brasileiro no campoda gesto socioambiental? Desde a clebre reunio de Estocolmo,e passando pela srie de conferncias internacionais subseqentes,as intervenes oriundas dos trs setores que configuram o tripda governana territorial tm se revelado ambguas, setorializa-das e muito pouco sensveis complexidade embutida no inter-relacionamento dos sistemas sociais e dos sistemas ecolgicos.Corrobora este ponto de vista a anlise da poltica ambiental emsua conexo com as opes de desenvolvimento socioeconmicoe sociopoltico assumidas no Brasil nas ltimas trs dcadas. Semnegarmos os avanos conquistados ao longo dos anos 1980 e 1990,a expectativa de criao de um sistema integrado e participativo degesto do patrimnio natural e cultural, alm da melhoria da quali-dade de vida do conjunto da populao brasileira parece-me estarsendo sistematicamente frustrada at o momento (MONOSOWSKI,

    1989; BURSZTYN, 1993).Nos espaos de atuao da sociedade civil organizada, uma

    reviso da bibliografia produzida at 1992 mostra que, at o finaldos anos 1980, apesar do crescimento do nmero de atores, o mo-

    vimento ecolgico manteve-se alheio a uma reflexo conseqente eteoricamente fundamentada sobre o binmio meio ambiente & desen-volvimento. O predomnio desse vispreservacionistacomea a mudarapenas a partir da disseminao do RelatrioNossoFuturo Comum eda formao gradual do ambientalismo complexo-multisetorializadona transio para os anos 1990. Se a realizao da Conferncia

  • 7/21/2019 DTS 1

    24/52

    48 p. 27 75

    N

    14abrilde2009

    do Rio fez com que o movimento acelerasse sua expanso e suaconsolidao ideolgica e organizativa, ao mesmo tempo levou-o asuperestimar suas possibilidades de atuao em consonncia com o

    enfoque preventivo-proativo de poltica ambiental (VIEIRA & VIOLA,1992; VIEIRA, 1998).

    No perodo posterior realizao da Cpula da Terra, o mo-vimento ambientalista entra em sria crise de identidade, face ausncia de uma agenda estruturada e consensualmente assumidapelos diferentes grupos envolvidos. Ainda hoje, eles continuam ano dispor de recursos de anlise e de auto-organizao suficien-temente slidos para fundamentar e viabilizar coalizes sociais emtorno das noes-chave de ecodesenvolvimentoeAgenda 21 local emrede (VIEIRA, 1998; ANDION, 2007).

    Desafios, paradoxos e impasses

    Durante os ltimos vinte e cinco anos, foram constatados altose baixos no processo de elaborao e implementao da poltica

    ambiental brasileira. Por um lado, a Constituio de 1988 contri-buiu para fortalecer a atuao do Ministrio Publico. Por outro, aConferncia do Rio representou o incio de um processo inditode sensibilizao em grande escala da opinio pblica, inclusivede alguns segmentos importantes do empresariado. As avaliaesrealizadas durante a Rio + 5 convergem no reconhecimento deque, no bojo de um agravamento tendencial da crise planetria doambiente, a conscientizao da populao vem se intensificando ea armadura institucional para a consolidao das novas estratgiasde desenvolvimento vem sendo fortalecida.

    O acirramento da crise deflagrou um processo mais intensode envolvimento de representantes de todos os setores gover-namental, no-governamental e empresarial. Ao mesmo tempo, oConselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) passou a levar emconta esta nova dinmica participativa nas tomadas de deciso sobrepolticas a serem definidas e sobre as resolues a serem aplicadas.

    No transcurso das duas ltimas dcadas, as questes ali tratadascomearam a apresentar interfaces mais ntidas com as demaisreas e conselhos setoriais que compem o conjunto da mquina

  • 7/21/2019 DTS 1

    25/52

    49p. 27 75

    Paulo Freire Vieira

    Polticas ambientais no Brasil: do preservacionismo ao desenvolvimento territorial sustentvel

    D

    ossi

    governamental. Trata-se, hoje em dia, de um frum de resoluo deconflitos e disputas de interesses que procura legitimar de formatransparente decises e propostas de novas normas e leis, buscando

    reduzir progressivamente as tradicionais assimetrias no acesso informao pertinente.

    Ainda no perodo ps-Rio 92, passaram a ser criados tambmnovos rgos colegiados nos vrios nveis da ao governamental.

    Apesar de muitos conselhos institudos nos nveis estadual e muni-cipal no terem se consolidado, o CONAMA deve ser consideradocomo um caso a parte. Pelo fato de ter conseguido resguardar suacapacidade aglutinadora e sua funcionalidade, ele vem se tornandoum ponto de referencia importante para o funcionamento da redede conselhos populares que se encontra disseminada nas esferaslocal, microrregional e estadual. Neste contexto, a gesto ambientalcolegiada passa a ser percebida, pelo menos em termos retricos,como uma dinmica de promoo da responsabilidade comparti-lhada, coletiva e democrtica.

    Todavia, uma anlise menos impressionista da curva de evo-luo da poltica ambiental brasileira, bem como da consistnciado modus operandi do sistema de gesto institudo revela inmeraslacunas e contradies, sobretudo no que diz respeito s chancesde reverso do estilo de desenvolvimento dominante. Os obstculosmais significativos a esta mudana paradigmtica de enfoque deplanejamento e gesto podem ser sintetizados a partir de vriaslinhas de argumentao.

    Inicialmente, devem ser levados em conta os obstculos

    relacionados dissociao entre os objetivos expressos nos textose discursos sobre polticas ambientais e as opes reais de desen-volvimento socioeconmico que vm sendo assumidas como partedo processo de abertura do Pas globalizao (assimtrica) doscircuitos econmico-financeiros e culturais. Em contraste com a re-trica oficial, no transcurso das trs ltimas gestes governamentaisa valorizao de uma poltica ambiental de corte preventivo-proativo

    vem sendo sistematicamente colocada em segundo plano.

    Em seguida, importa destacar os obstculos relacionados especificidade da cultura poltica brasileira. Por um lado, continuaprecrio o controle social das decises sobre os rumos da poltica

  • 7/21/2019 DTS 1

    26/52

    50 p. 27 75

    N

    14abrilde2009

    ambiental. Persiste uma assimetria de poder nas aes empreendidasno nvel federal e nos nveis estadual e municipal. Ela resulta emparte dos entraves burocrticos tpicos do funcionamento do nosso

    sistema poltico, ainda desprovido das estruturas passveis de indu-zir uma autntica repartio de responsabilidades no cumprimentoeficiente das tarefas pblicas. Persistem tambm as desigualdadesna distribuio dos custos socioambientais de projetos, planos eprogramas de desenvolvimento, em funo da limitada capacidadede auto-organizao e barganha poltica da sociedade civil.

    Por outro lado, vrios autores salientam a carga negativarepresentada pelos processos de degenerao funcional das insti-tuies polticas, a saber: a existncia de interesses contraditriose corporativos no interior da prpria mquina de gesto pblica(ministrios, governos estaduais e municipais, empresas estatais emistas) e a falta de transparncia dos processos de tomada de decisosobre tpicos essenciais da vida coletiva, para alm do vis tecnicistae burocrtico predominante. Tais processos degenerativos poderiamser revertidos mediante a reviso dos procedimentos institudos detomada de deciso colegiada, acentuando-se seu vis democrtico-participativo, mas continuamos s voltas com um dficit instrumentalsignificativo, face ao carter embrionrio do processo de ecologizaoefetiva do conjunto das polticas pblicas (Ribeiro, 2000).

    Num terceiro grupo de obstculos podemos incluir as carn-cias institucionais sentidas no decorrer dos processos de opera-cionalizao das diretrizes de gesto integrada e participativa dosrecursos naturais e do meio ambiente. Alm da crise de legitimidadedo sistema de gesto, muitas vezes, os tcnicos do setor pblico nodetm o nvel de competncia mnima exigida na aplicao criteriosados instrumentos convencionais e dos novos instrumentos de regu-lao emergentes. Em outras palavras, carecemos de uma tradioconsolidada de articulao gil e orgnica das diversas agncias dosetor pblico com o sistema nacional de cincia e tecnologia porsua vez minado pela fragmentao dos programas e pela sndromede privatizao mais ou menos velada dos servios pblicos consi-derados essenciais. No deveramos minimizar tambm os dilemascolocados pela necessidade de regulamentao jurdica progressivados novos princpios constitucionais, e tampouco a ausncia de uma

  • 7/21/2019 DTS 1

    27/52

    51p. 27 75

    Paulo Freire Vieira

    Polticas ambientais no Brasil: do preservacionismo ao desenvolvimento territorial sustentvel

    D

    ossi

    tradio de co-participao contratualizadada sociedade civil nosprocessos de planejamento e gesto.

    Last but not least, muitos temas so introduzidos na agendagovernamental apenas no momento em que se tornam socialmentepercebidos por influncia da mdia. Na dcada de 1980, por exem-plo, a ateno da opinio pblica foi concentrada na elevao dosndices de poluio atmosfrica, considerados crticos em Cubato;na dcada de 1990, o foco passou a ser deslocado para os proble-mas de contaminao dos recursos hdricos e de elaborao dosnovos dispositivos de regulao jurdica; e no ano 2000, ganharamdestaque os problemas relacionados coleta e destino final dosresduos slidos, exprimindo as demandas de segmentos majori-trios da classe mdia urbana. Curiosamente, muitos outros temasde importncia crucial ainda no alcanaram o campo perceptivoda massa da populao a exemplo das relaes entre poluio epobreza ou dos estarrecedores nveis de violncia estrutural em-butidos nas atuais assimetrias Norte-Sul.

    Ainda no mbito da grande diversidade de representaespossveis da crise socioambiental, seria importante destacar o fluxoininterrupto de novas situaes problemticas para as quais nodispomos ainda de uma base fidedigna de conhecimento tcno-cientfico. Exemplos expressivos podem ser encontrados nos casosdos organismos geneticamente modificados, da sndrome da vacalouca, ou dos desequilbrios climticos globais, entre outros. Emtodos eles podemos constatar o peso das incertezas e controvrsiasenvolvendo muitas vezes os prprios pesquisadores e o bombardeiomacio de informaes fragmentadas, desconexas e muitas vezescontraditrias sobre a opinio pblica.

    Rumo gesto patrimonial de territrios construdos

    Face s evidncias disponveis sobre as interfaces entre a crisedo mundo rural e a degradao intensiva da qualidade de vida nasaglomeraes urbanas, a anlise de processos de descentralizao

    poltico-administrativa para o fortalecimento das alternativas dedesenvolvimento territorial sustentvel tornou-se tambm um itemprioritrio da agenda ambiental brasileira.

  • 7/21/2019 DTS 1

    28/52

    52 p. 27 75

    N

    14abrilde2009

    A avaliao dos casos positivos de envolvimento dos governosmunicipais na busca de superao desses impasses parece reforaras diretrizes assumidas pelo Sistema Nacional do Meio Ambiente

    (SISNAMA). Mas a discusso relativa s condies de viabilidade deuma gesto compartilhada dos recursos naturais e do meio ambiente muito mais complexa do que se imagina e dependeria, na minhaopinio, de uma elaborao mais rigorosa do conceito-chave deautonomia local que est na base do modelo ecodesenvolvimentista(GODARD & SACHS, 1975; GODARD, 1980; GALTUNG, 1977).

    Como j foi mencionado acima, na comunidade de pesquisa-dores vinculados tradio do ecodesenvolvimento este conceitono designa uma condio de autarquia relativamente aos nveissuperiores de organizao poltico-administrativa. Refere-se, antes, aum tecido cultural gerador de estratgias endgenas ou auto-deter-minadas de desenvolvimento, baseadas no ideal de empoderamento.Sem autonomia no poderamos falar degoverno local, mas apenas deadministrao local; e sem a instaurao efetiva dos princpios de sub-sidiaridade e de interdependncianegociada a instaurao de sistemasde planejamento e gesto compartilhada torna-se impensvel.

    Mas seria importante reconhecer aqui as influncias cada vezmais determinantes exercidas pelo nvel global-planetrio sobre aorganizao da vida coletiva nos espaos locais e micro-regionais.Sob o pano de fundo das mudanas induzidas pelas novas tecno-logias de informao e telecomunicao, o nvel global-planetrioabriga e condiciona atualmente os fluxos financeiros e comerciaisque influenciam decisivamente as opes de apropriao, uso e re-partio do patrimnio natural e cultural. Desta perspectiva, caberiaaos espaos de gesto referenciados ao nvel nacional responderpela induo e articulao de estratgias plurais de ao corretiva,desgastando assim a lgica homogeneizadora (e ainda hegemnica)das solues universalistas de corte tecnocrtico e geradoras deviolncia estrutural. Nesse sentido, se no cabe manter a expectativade participao democrtica sem um processo correspondente deredistribuio de poder (econmico e poltico-administrativo) donvel nacional para os nveis infra-nacionais, ao mesmo tempo seriaindispensvel reconhecer que no espao de exerccio do podernacional que so articuladas as estruturas que poderiam favorecer

  • 7/21/2019 DTS 1

    29/52

    53p. 27 75

    Paulo Freire Vieira

    Polticas ambientais no Brasil: do preservacionismo ao desenvolvimento territorial sustentvel

    D

    ossi

    o exerccio efetivo da autonomia local, arbitrando os conflitos queafloram como uma constante nas interaes com os nveis superioresde organizao territorial.

    Neste sentido, quais seriam as novas oportunidades de in-terveno que o SISNAMA oferece atualmente aos planejadores egestores de estratgias territorializadas de desenvolvimento noPas? Considerando-se que a participao dos governos municipaisno processo de criao de alternativas ir depender do grau de au-tonomia atribuda aos governos locais, seria importante re-enfatizarque infelizmente o Brasil no dispe ainda de um sistema de coope-rao permanente entre as entidades administrativas dos estados edos municpios. No jogo de inter-relaes entre os diferentes nveisde governo, no se tornaram ainda suficientemente claros os novospapis que as prefeituras podem exercer. Esta lacuna compromete aaplicao doprincpio de subsidiaridade em busca de solues duradou-ras para uma srie de macro-problemas que tendem a se complexificara cada dia que passa. As dificuldades no se limitam s indefinieslegais ou a uma atribuio pouco transparente de competncias eresponsabilidades polticas e administrativas. Elas decorrem tambmdo pluralismo de representaes sobre a crise ecolgica encontradaentre os agentes do setor pblico, alm destes ltimos permanecerematrelados a uma cultura poltica clientelstica, conservadora, corruptae ainda fortemente marcada por resduos autoritrios.

    A necessidade de fortalecermos institucionalmente um sistemade gesto capaz de articular sistemicamente os trs nveis de gover-no, em nome de umagovernana territorial, baseia-se no reconheci-mento de que, num pas de porte continental, o controle efetivo daimplementao das novas diretrizes exige a consolidao de umadinmica efetivamente descentralizadora. Entretanto, o descompassocriado entre os avanos obtidos na regulao jurdica dos problemasambientais e as limitaes do processo de reestruturao adminis-trativa acabou gerando um srio vcuo institucional. O que j estinstitudo como sistema formal de gesto (com o estatuto jurdicocorrespondente) tende, sem dvida, a favorecer a busca desoluesnegociadas e transgressoras da lgica centralizadora e autoritria queainda prevalece no sistema poltico brasileiro. Mas persistem aindainmeros impasses dignos de registro, ao lado de oportunidades ainda

  • 7/21/2019 DTS 1

    30/52

    54 p. 27 75

    N

    14abrilde2009

    muito pouco exploradas de recriao do sistema (SACHS, 1986a, 1995;VIEIRA & WEBER, 2000; SOUTO-MAIOR, 1992; KRELL, 1993).

    No mapa das carncias mais significativas no poderamosdeixar de insistir no reconhecimento de que o pas no dispe aindade um verdadeirofederalismo cooperativo. Contamos apenas com umaestrutura onde as diferentes esferas de tomada de deciso entramem acordo espontaneamente, a fim de superarem as dificuldades

    vigentes do atual sistema de separao administrativa. Este tipode interao no est baseado num padro organizativo capaz depropiciar uma parceria equilibrada e socialmente transparente;apenas reproduz um conjunto de relaes mais ou menos veladasde dominao-dependncia sujeitas s instabilidades e patologiastpicas da nossa cultura poltica. Convivemos tambm com as rela-es competitivas entre os entes federativos reveladas, por exemplo,na guerra fiscal e na disputa selvagem por novos investimentoseconmico-financeiros.

    Nesse sentido, no resta dvida de que o funcionamento doSISNAMA representa uma violao do sistema tradicional de divisoadministrativa entre os diferentes nveis de governo. Pois trata-se deuma estrutura complementada por convnios livremente celebradosentre os mesmos. Os convnios de cooperao firmados entre osrgos federais e as administraes municipais permanecem aindahoje carentes de um controle social efetivo sobre o uso dos recursosenvolvidos, bem como sobre os mecanismos de capacitao dosagentes executores tanto para a prestao de contas como paraa utilizao eficiente dos recursos. Isto certamente amplia o lequede opes de uso clientelstico dessas relaes. Ao mesmo tempo,o sistema criado tende a no respeitar adequadamente as com-petncias legislativas dos municpios (oriundas de sua autonomiaconstitucional). Eles permanecem deficitrios, tanto em termos dedados atualizados sobre a dinmica de apropriao dos recursosnaturais de uso comum, quanto de recursos financeiros e humanosindispensveis a um esforo conseqente de gesto integrada,descentralizada e comensurada dimenso do longo prazo. Pareceassim compreensvel que, dezessete anos aps o trmino da Cpulada Terra, o programa de criao de Planos Diretores Municipais e de

    Agendas 21 locais permanea ainda em estgio embrionrio.

  • 7/21/2019 DTS 1

    31/52

    55p. 27 75

    Paulo Freire Vieira

    Polticas ambientais no Brasil: do preservacionismo ao desenvolvimento territorial sustentvel

    D

    ossi

    Num segundo momento, cabe ressaltar a persistncia desrias deficincias de formao e comunicao. A grande maioriados prefeitos e vereadores parece desconhecer, ainda hoje, o fato

    de que seus municpios integram o SISNAMA e dispem de direi-tos, responsabilidades e possibilidades de ao que resultam daparticipao efetiva no sistema. Em conseqncia, tendem a seconsiderar incompetentes para lidar com os problemas relaciona-dos confrontao preventiva e proativa da crise socioambiental,transferindo ao mximo possvel a responsabilidade para os nveissuperiores de organizao poltica.

    As limitaes provocadas pela ausncia de vontade polticaefetiva e no meramente retrica constitui outro dado decisivo aser levado em conta. A ambio de tornar este sistema o eixo-diretorde uma transformao drstica da cultura poltica correspondemuito pouco realidade constatada na maior parte das nossas ad-ministraes municipais atualmente9. No Brasil existe uma grandediversidade de municpios, incluindo-se nisto as metrpoles, ascidades mdias, os pequenos municpios, as cidades pioneiras emfranjas de fronteira e os municpios caracterizados como patrimniohistrico. O sistema instalado no leva em conta adequadamenteos desnveis de desenvolvimento institucional e de abertura a mu-danas nos trs nveis de organizao federativa.

    No nvel do ajustamento da nova legislao s especificidadesterritoriais, tornou-se necessrio delimitar melhor as novas respon-sabilidades das instituies atuando nos nveis estadual e municipal.Trata-se de viabilizar o exerccio de uma autntica gesto ambientalautnoma. O artigo 23 da Constituio de 1988, regulamentando acompetncia administrativa comum aos trs nveis de governo para otratamento dos problemas socioambientais, avana em termos progra-mticos e ainda muito gerais na reviso do sistema de separao admi-nistrativa. Todavia, subsistem inmeros problemas de interpretao ede implementao, a serem sanados por meio de normas especficas

    9 A Associao Nacional de Municpios e Meio Ambiente (ANAMMA), criada hmais de uma dcada, visa congregar as iniciativas de gesto ambiental promo-

    vidas no nvel local. Os municpios lutaram e conseguiram ampliar expressiva-mente sua representao no CONAMA, o que atesta uma valorizao crescenteda ao local no mbito do SISNAMA.

  • 7/21/2019 DTS 1

    32/52

    56 p. 27 75

    N

    14abrilde2009

    claramente formuladas. Tais mudanas podero inclusive favoreceruma confrontao mais eficiente dos problemas socioambientais, namedida em que se facultaria aos prefeitos intervir com autonomia

    crescente na aplicao da legislao federal e estadual10.Finalmente, o enfrentamento efetivo desses problemas envol-

    ve necessariamente conflitos de percepo e de interesse. Muitasvezes, a prioridade concedida dinamizao socioeconmica, numcontexto de incertezas e instabilidades que acompanha a dinmicade mundializao da ideologia mercantil, condiciona uma atitudede minimizao das ameaas e riscos envolvidos.

    Por outro lado, no rol das oportunidades ainda pouco explo-radas de gesto nos moldes preconizados pelo enfoque de ecode-senvolvimento podemos incluir, inicialmente, os novos espaos quese abrem ao desenvolvimento do direito ambiental um campo deconhecimento ainda muito incipiente no Pas e conquista de umalegislao ambiental cada vez melhor ajustada s necessidades deuma gesto local ou comunitria dos recursos de uso comum. J setornou bastante difundida a idia de que os municpios podem (edevem) legislar nesta rea em regime de autonomia compartilhada ou de co-gesto. Mas a passagem da teoria prtica no evidente ea adequao da legislao s especificidades dos problemas sentidosno nvel local poder se transformar num dos condicionantes de umaparticipao mais efetiva e intensa das foras vivas da sociedade emsistemas comunitrios de gesto do patrimnio natural e cultural.

    Alm disso, cabe uma referncia cursiva abertura de novosmecanismos de coordenao intermunicipal, capazes de alavancar

    um programa de experimentaes com estratgias territorializadas dedesenvolvimento. Apesar das desigualdades em termos de dotaode recursos, bem como dos impactos diferenciados da legislaosobre o nvel local, vm se expandindo as possibilidades de coope-rao interinstitucional para a reativao de economias locais luzdas pesquisas recentes sobre desenvolvimento territorial sustentvel.Como foi salientado acima, o Ministrio do Desenvolvimento Agrrio

    vem se mostrando atualmente disposto a assumir gradativamente a

    10 O CONAMA aprovou em 1997 a resoluo 237, que procura organizar a atuaofederativa no mbito da gesto ambiental pblica.

  • 7/21/2019 DTS 1

    33/52

    57p. 27 75

    Paulo Freire Vieira

    Polticas ambientais no Brasil: do preservacionismo ao desenvolvimento territorial sustentvel

    D

    ossi

    abordagem territorial nos diversos programas sob sua responsabilida-de. Espera-se que ele avance no sentido de uma definio mais ntidada engenharia institucional que se faz necessria para levar a cabo

    essa inteno. Trata-se de romper com um padro ainda dominantede formulao de polticas pblicas de desenvolvimento baseadas emleituras fragmentadas dos contextos regionais, procurando atenderapenas a setores sociais especficos e desconsiderando o jogo deinterdependncias dinmicas, as complementaridades produtivas ea densidade associativa existentes nesses contextos.

    Daqui em diante, a evoluo do sistema de planejamento egesto institudo em nosso Pas dever exigir tambm investimentosmais substanciais na criao e difuso permanente de informaotcnico-cientfica relevante. Para muitos pensadores contempo-rneos, a crise global na qual estamos imersos constitui, em suasrazes mais profundas, uma crise de conscincia. O desconhecimentodos fatores crticos que condicionam no s as atuais tendnciasdestrutivas, mas tambm os espaos de manobra para intervenescoordenadas e de longo flego tornou- se o pior adversrio dosadeptos de uma poltica de desenvolvimento de corte simulta-neamente preventivo e proativo. O fomento integrao inter etransdisciplinar do conhecimento cientfico e a construo de um

    vasto sistema de educao para o desenvolvimento territorial sustentveldestacam-se, portanto, como um requisito suplementar de inegvelimportncia estratgica (VIEIRA, 2003; TONNEAU & VIEIRA, 2006).

    Promovendo a integrao transdisciplinar do

    conhecimento

    O aperfeioamento de uma abordagem transdisciplinar, basea-da no conceito de complexidade sistmica, traduz a exigncia de ques-tionamento da eficincia dos mecanismos geralmente utilizados nabusca de fundamentao cientfica dos processos de reorganizaosocial e poltica. A considerao simultnea de fatores biolgicos,psicolgicos, socioculturais e ecolgicos nas prticas convencionaisde planejamento e gesto encontra na elaborao de modelos e naanlise prospectiva dois procedimentos complementares, formandouma espcie desimbiose que se alimenta do refinamento intensivo da

  • 7/21/2019 DTS 1

    34/52

    58 p. 27 75

    N

    14abrilde2009

    tecnologia de processamento eletrnico da informao. As conseq-nciaspossveis das propostas de interveno colocadas em debatepelos pesquisadores passam a ser exploradas com mais acuidade

    por meio dessa verso instigante de prospectiva social. Os cenriosde futuros possveis alimentam as tomadas de deciso coletiva emuniverso controvertido ou seja, em meio a uma flagrante diver-sidade de formas de justificao das estratgias de enfrentamentoda crise planetria do meio ambiente e do desenvolvimento (BAREL,1971, 1973; OZBEKHAN, 1971; DURAND et al., 1976; DELAMARRE,2002; GODARD, 1996).

    A gesto da complexidade envolvida na reorganizao trans-disciplinar das comunidades cientficas e na criao de sistemas deplanejamento e gesto cada vez melhor articulados evoluo dapesquisa ecolgico-humana pode ser vista como um dos principaisdesafios a serem confrontados daqui em diante pelos planejado-res e gestores de polticas ambientais de corte preventivo-proativo,norteadas pelo enfoque de desenvolvimento territorial sustentvel.

    O volume crescente de impactos socioambientais produzidospor projetos, programas, polticas setoriais e aes pontuais deinterveno no campo do desenvolvimento local e territorial expri-me, de forma eloqente, a complexidade envolvida na gesto dossistemas socioambientais. A captao precisa desses impactos, pormeio de procedimentos de anlise sistmica, esbarra geralmenteno fato de que, alm do nmero elevado de fatores a serem con-siderados, as inter-relaes entre os mesmos apresentam carterno linear, envolvendo diferentes nveis hierrquicos e ocasionandoefeitos emergentes e avessos a uma anlise por via reducionista,mono ou mesmo pluridisciplinar. Somam-se a isso os problemascolocados pela internalizao da tica de sustentabilidade de longoprazo e dos riscos de irreversibilidade dos danos ambientais, ondeas incertezas e controvrsias cientficas ocupam um espao cada

    vez mais importante.

    A tomada de conscincia da necessidade de uma nova matrizde ordenamento do potencial de pesquisa sobre essa temtica pa-

    rece decorrer, como foi salientado na introduo deste artigo, dadisseminao progressiva da idia de que

  • 7/21/2019 DTS 1

    35/52

    59p. 27 75

    Paulo Freire Vieira

    Polticas ambientais no Brasil: do preservacionismo ao desenvolvimento territorial sustentvel

    D

    ossi

    o conjunto de objetos designados sob a categoria de meio ambientedefine-se somente em referncia a um sujeito principal (um ator,um agente, um sistema) e mais particularmente em referncia s

    percepes, aos interesses, s funes e sensibilidade deste su-jeito; os objetos e processos que compem o meio ambiente nose encontram reunidos num mundo nico seno atravs do tipode interesse e dos modos de ao do sujeito. Em funo de suaidentidade e de suas estratgias, este ltimo lhe confere sentido,seleciona e atualiza a informao que eles contm, de uma maneiraque lhe prpria e que os faz surgir como oportunidades, coaesou pontos de referncia simblicos, segundo o caso. O meio ambien-te constitui assim o produto ideal do sujeito, ou, mais precisamente,a categoria cognitiva que designa os objetos especificados por suarelao a um sujeito de referncia (GODARD,1992, p.340).

    As propriedades mais gerais desta relao fornecem umquadro de referncia analtico para investigaes sobre a crisesocioambiental nos mais diversos campos de especializao mo-nodisciplinar.

    Na reviso da bibliografia disponvel sobre o assunto podemser encontrados vrios indicadores dessa sensibilidade ao novoparadigma cientfico. Dentre os mais expressivos destacam-se autilizao de modelos multifatoriais (quantitativos e qualitati-

    vos) envolvendo a explorao criteriosa de interdependncias eesquemas de auto-regulao baseados em circuitos de feedback,incurses exploratrias no domnio da teoria sistmica do plane-

    jamento participativo, crticas teoria neoclssica do meio am-biente inspiradas na teoria dos sistemas autnomos e, finalmente,avanos no refinamento do conceito-chave desistemas produtivoslocais integrados. Apesar dessas evidncias, o trabalho de funda-mentao terica das dinmicas de desenvolvimento territorialsustentvel no atingiu ainda um patamar de maturidade consi-derado suficiente para fazer justia s duras exigncias colocadaspela crise recorrente das teorias e das prticas de desenvolvimentona transio para o novo milnio.

    No transcurso das ltimas duas dcadas, vem se intensificandoa percepo de que, na maior parte dos vrios ramos da cincia eda tecnologia, a abordagem analtico-reducionista deixa de levar em

  • 7/21/2019 DTS 1

    36/52

    60 p. 27 75

    N

    14abrilde2009

    conta um aspecto essencial do mundo em que vivemos, a saber, asinterconexes dos fenmenos vivos e as incertezas que cercam adinmica evolutiva dos sistemas socioambientais. Esta abordagem

    permanece hegemnica na comunidade cientfica, respondendopela estratgia do conhecer cada vez mais sobre fatias cada vez maisrestritas da realidade. No plano da cooperao entre especialistas eequipes de pesquisa, o efeito dominante pode ser caracterizadocom base no mito da Torre de Babel: por um lado, um nmero cres-cente de profissionais dispondo de acesso a canais cada vez maisplanetarizados de intercmbio de informao cientfica, mas aindaincapazes de transpor as barreiras de entendimento criadas pelas

    linguagens esotricas de suas disciplinas de origem; e por outro,pouco dispostos a investir tempo e energia num trabalho de reci-clagem contnua, considerada indispensvel confrontao dosmacro-problemas tpicos da nossa poca.

    Como acentuam Gibbons e Nowotny (2001), a busca deintegrao transdisciplinar pode ser vista como um novo modode produo do saber. Ele contrasta com a hegemonia do modopredominante, baseado na mera justaposio de disciplinas e numatendncia de insulamento da academia face s demandas emergen-ciais de reorganizao da sociedade. Essa transformao provm deuma evoluo das inter-relaes entre a cincia contempornea e acultura, que passa pela busca simultnea de integrao e contextua-lizao mais decidida do conhecimento produzido.

    Este questionamento do papel narcisista que tem sido assumi-do por uma boa parte da comunidade cientfica diante da virulnciada crise socioambiental planetria vem sendo reforada pela toma-da de conscincia dofim das certezas,denunciado com eloqnciapor Ilya Prigogine (1996). Trata-se agora de delimitar as condiesde possibilidade desse novo estilo de decodificao dos mistriosdo mundo com vistas gesto patrimonial dos riscos inerentes difuso de inovaes tcnicas em sentido amplo. Aqui, a idia deco-construo participativa das novas problemticas sociotcnicas ouseja, do carter reflexivo das interaes envolvendo o processo deevoluo do conhecimento cientfico e as representaes sociais dacrise e de sua superao emerge como um elemento crucial a serincludo nos procedimentos usuais de avaliao e gesto.

  • 7/21/2019 DTS 1

    37/52

    61p. 27 75

    Paulo Freire Vieira

    Polticas ambientais no Brasil: do preservacionismo ao desenvolvimento territorial sustentvel

    D

    ossi

    Outro aspecto importante dessa temtica ligada geraode uma base mais slida de conhecimentos diz respeito aos usospossveis da tcnica de avaliaode impactos socioambientais. Como

    j foi assinalado anteriormente, esta modalidade de avaliao podeser considerada como a base de sustentao dos diagnsticos so-cioambientais participativos. Mas sejam quais forem as condies

    jurdicas que normatizam sua aplicao, ela traduz uma exigncia decoleta de informaes e de diagnstico preliminar que no garante,em si mesma, a neutralizao dos focos estruturais dos problemassocioambientais. No estgio atual das discusses acadmicas so-bre o tema, parece evidente que este instrumento continua sendo

    exercida de um ponto de vista meramente reativo-remedial e nocomo um poderoso instrumento de corte simultaneamente pre-

    ventivo e proativo. O papel de instrumento de negociao polticaestaria sendo exercido de maneira ainda muito incipiente, talvezpelo fato de no dispormos de uma tradio de negociao e umacultura de planejamento ajustadas multi-dimensionalidade dacrise socioambiental contempornea. Retomando mais uma vez alinha de argumentao de Snchez (1991, p.21), as modalidades de

    negociao que vm sendo adotadas pelos proponentes de projetose programas de interveno na cena do desenvolvimento local con-tinuam sendo, na maioria dos casos, do tipo discusses tcnicasbipartites, ou seja, entre uma indstria e a agncia de controle depoluio, acerca de medidas de reduo de poluio e do cronogra-ma de sua implantao. Geralmente, a participao do pblico ainda percebida como nociva e manipulada por polticos com interessesprprios e no coincidentes com os da comunidade.

    Um exemplo desta abordagem redutora da complexidadeembutida na construo de territrios sustentveis em nosso Pasestaria expresso no uso da avaliao de impactos socioambientaiscomo um simples instrumento de escolha entre diferentes tecnolo-gias dotadas de maior ou menor potencial poluidor, mas sem que sechegue a questionar pela base os objetivos estratgicos e a prpriaracionalidade que preside concepo dos projetos para os quaisas tecnologias em pauta estariam sendo direcionadas.

    De forma alguma as respostas possveis a esses desafios pode-ro ser oferecidas num horizonte de curto prazo. Pois elas dependem

  • 7/21/2019 DTS 1

    38/52

    62 p. 27 75

    N

    14abrilde2009

    menos da capacidade instalada de regular o comportamento social pormeio de sanes jurdicas cada vez mais severas do que das injunescriadas por conflitos de interesse e pela capacidade real de barganha

    dos diversos atores sociais envolvidos ou seja, da configurao dacultura poltica prevalecente em cada contexto territorial.

    Diante da diversidade de interesses em jogo e do perfil con-flituoso que a busca de internalizao da dimenso socioambientalassume, via de regra, nos sistemas de regulao social da economia,no s o contedo cientfico e tcnico da avaliao acaba se tornandoum desafio de natureza poltica, desvelando as condies reais dedistribuio da competncia cientfica e do controle do seu exerccio.Cabe tambm levar em conta a arquitetura de um sistema de plane-

    jamento considerado capaz de tornar o envolvimento popular nouma srie de eventos pontuais a exemplo de audincias pblicasespordicas e tampouco um conjunto de ocorrncias aleatrias,mas um processo contnuo e estrategicamente orientado de aprendi-zagem coletiva. O novo contexto dever oferecer solues viveis necessidade de tornar a avaliao de impactos potencialmente apta amodificar a correlao de foras polticas entre os atores envolvidos num sentido mais favorvel queles interessados na experimentaocom o enfoque de desenvolvimento territorial sustentvel.

    6. Consideraes finais

    A energia que move as aes de mudana encontra-se armaze-nada no espectro que se estende da busca de satisfao de interessesegocntricos no mbito das trocas mercantis preocupao pelaefetivao das condies bsicas de sobrevivncia e emancipaodas comunidades locais. Depurar cada vez mais a qualidade dessaenergia tornou-se uma exigncia essencial ao xito de uma gestocolegiada do patrimnio natural e cultural, capaz de dar voz defesade interesses difusos, amplos e pulverizados da coletividade.

    Vista dessa perspectiva, a difuso do conceito de desenvolvi-mento territorial sustentveltorna-se oportuna, mesmo num contexto

    de interpretaes ainda bastante controvertidas sobre o seu real sig-nificado. Neste artigo procuramos oferecer uma imagem mais ntidada globalidade dessa proposta, da sofisticao da estrutura terica

  • 7/21/2019 DTS 1

    39/52

    63p. 27 75

    Paulo Freire Vieira

    Polticas ambientais no Brasil: do preservacionismo ao desenvolvimento territorial sustentvel

    D

    ossi

    e metodolgica que lhe d suporte e da radicalidade dos mecanis-mos de interveno que decorrem da adoo de seus pressupostosepistemolgicos e tico-polticos. Argumentamos que este conceito

    designa uma modalidade de poltica ambiental de corte simultanea-mente preventivo e proativo, focalizando a relao sociedade-naturezade uma perspectiva sistmica conseqente. Sua aplicao exige umadinmica de experimentaes comparativas e de longo flego comenfoques analticos de corte transdisciplinar e com sistemas auten-ticamente descentralizados de planejamento e gesto.

    Parece desnecessrio insistir no reconhecimento de queestamos ainda muito distantes desse ambicioso ideal-regulativo.Trinta e sete anos aps a realizao da Conferncia de Estocolmo,a idia-fora de endogeneidade das trajetrias de desenvolvimentointegrado continua associada a um padro de planejamento pensadocomo um espao de aprendizagem social permanente, voltado para aarquitetura de um novo projeto de sociedade e inspirado no idealde uma democracia realmente participativa. Neste sentido, contrastanitidamente com um padro que se caracteriza pela insistncia emmanter uma concepo reducionista da atividade econmica e umaconcepo tecnocrtica e burocratizada da natureza dos processosde tomada de deciso poltica.

    As possibilidades que dispomos, hoje em dia, de criaode novas estruturas, baseadas em estratgias de transio que seinscrevam num tecido socioinstitucional enrijecido, marcado pelafragmentao, pelo oportunismo, pela corrupo velada e pela des-continuidade crnica dos esforos so certamente muito limitadas.Some-se a isso os riscos sociais e ecolgicos suscitados pela nova edesfavorvel correlao de foras no contexto geopoltico global,baseada na transnacionalizao economicista dos circuitos tecnolgi-cos, financeiros e produtivos. Se parece bastante plausvel a hiptesede que o desenvolvimento territorial sustentvel no ocorrer pelo

    jogo espontneo das foras do mercado, uma viso lcida da criserefora a impresso de que, muito provavelmente, continuaremosatrelados ainda por muito tempo numa dinmica de degradaointensiva do patrimnio comum da humanidade.

    No obstante, conta a nosso favor o reconhecimento deque a evoluo dos sistemas complexos obedece a trajetrias

  • 7/21/2019 DTS 1

    40/52

    64 p. 27 75

    N

    14abrilde2009

    inerentemente imprevisveis. O descrdito progressivo da visodeterminista ou historicista dos encadeamentos entre os diferentesestgios de evoluo das sociedades parece ter confirmado a va-

    lidade desta assero. A perspectiva adotada neste artigo reforaa impresso de que a utilizao do novo paradigma sistmico-transdisciplinar, ou melhor, de que o exerccio da inteligncia dacomplexidade (MORIN & LEMOIGNE, 2000) pode vir a desempenharum papel decisivo na criao de estratgias sem remorso de rege-nerao cultural nos prximos tempos. A experimentao lcida epaciente com o enfoque de desenvolvimento territorial sustentvelfaz parte dessa dinmica transgressiva de inveno de formas deresistncia obstinada barbrie do presente.

    Recebido em 20.3.2009Aprovado em 5.4.2009

    Referncias

    AIDA, S. et al. Science et pratique de la complexit. Paris: La

    Documentation Franaise, 1986.ALBAGLI, S. Territrio e territorialidade.In: LAGES,V.N. et al. (Orgs.),Territrios em movimento: cultura e identidade como estratgiasde insero competitiva. Rio de Janeiro: Relume Dumar / Braslia:Sebrae, 2004.

    ALTIERI, M. Agro-cologie: bases scientifiques dune agriculturealternative. Paris: Debard, 1986.

    AMIN, S. Laccumulation lchelle mondiale. Paris: Anthropos,1970.

    __________. Le dveloppement ingal. Paris: Anthropos, 1973.

    ANDION, M.C.M. Atuao das ONGs nas dinmicas dedesenvolvimento territorial sustentvel no meio rural de SantaCatarina. Os casos da APACO, do Centro Vianei de EducaoPopular e da AGRECO. Florianpolis (Tese). Programa de DoutoradoInterdisciplinar em Cincias Humanas da UFSC, 2007.

    AUBIN, J-P. Uma metfora matemtica da evoluo econmica: ateoria da viabilidade. In: VIEIRA, P.F.; WEBER, J. (Orgs.) Gesto de

  • 7/21/2019 DTS 1

    41/52

    65p. 27 75

    Paulo Freire Vieira

    Polticas ambientais no Brasil: do preservacionismo ao desenvolvimento territorial sustentvel

    D

    ossi

    recursos naturais renovveis e desenvolvimento. Novos desafiospara a pesquisa ambiental. 2a ed. So Paulo: Cortez, 2000.

    BARBIER, R. La recherche-action. Paris: Anthropos, 1996.BAREL, Y. Prospective et analyse de systmes.Paris: La DocumentationFranaise, 19