drops entrevista revista espm ed 4 2011 - jul-ago

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Entrevista Classe C : uma explosão de crédito e consumo A esta entrevista com Nelsom Marangoni, vice- presidente do IBOPE, a questão principal foi a conceituação do que vem a ser a nova classe C que está presente na mídia. Com sua longa experiência de psicólogo e pesquisador, Marangoni diz que a nova classe média não condiz com a definição clássica e a realidade mercadológica da classe média tradicional. Sem obscurecer o imenso significado que tem a ascendência da nova classe média, Marangoni prefere creditá-la a uma explosão de crédito e consumo, cuja sustentabilidade pode ser posta em dúvida. Para que essa nova classe média se aproxime dos padrões da classe média tradicional, serão necessários muitos anos de progresso social, educacional e cultural. Essa discrepância entre a tese da nova classe média, defendida pelo IBGE/FGV, e o “Critério Brasil”, utilizado pelas empresas de pesquisas não é apenas teórica. Ela pode também influir em muitas decisões mercadológicas importantes. E NTREVISTA CONCEDIDA A F RANCISCO G RACIOSO N Entrevista com Nelsom Marangoni

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Primeira parte da entrevista com o vice-presidente do IBOPE, Nelsom Marangoni para a Revista da ESPM edição julho/agosto 2011.

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R E V I S T A D A E S P M – maio/junho de 20118

Entrevista

Classe C: uma explosão de crédito e consumo

Aesta entrevista com Nelsom Marangoni, vice- presidente do IBOPE, a questão principal foi a conceituação do que vem a ser a nova classe C

que está presente na mídia. Com sua longa experiência de psicólogo e pesquisador, Marangoni diz que a nova classe média não condiz com a definição clássica e a realidade mercadológica da classe média tradicional. Sem obscurecer o imenso significado que tem a ascendência da nova classe média, Marangoni prefere creditá-la a uma explosão de crédito e consumo, cuja sustentabilidade pode ser posta em dúvida. Para que essa nova classe média se aproxime dos padrões da classe média tradicional, serão necessários muitos anos de progresso social, educacional e cultural.

Essa discrepância entre a tese da nova classe média, defendida pelo IBGE/FGV, e o “Critério Brasil”, utilizado pelas empresas de pesquisas não é apenas teórica. Ela pode também influir em muitas decisões mercadológicas importantes.

En t r E v i s ta c o n c E d i da a Fr a n c i s c o Gr ac i o s o

N

Entrevista com Nelsom Marangoni

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maio/junho de 2011 – R E V I S T A D A E S P M 9

}No Brasil, quando se fala de classe média, existe uma idealização.~

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E N T R E V I S T A

GRACIOSO − A classe média hoje repre-sentaria 53% da população brasileira. Os critérios de classificação social do mundo da pesquisa de mercado sempre foram polêmicos. No passado houve até mesmo uma cisão entre a ABIPEME (Associação Brasileira de Institutos de Pesquisa de Mercado) e a ANEP (Associação Nacional de Empresas de Pesquisa), por ocasião da tentativa de introdução de um novo crité-rio. Conhecemos os números do IBGE que serviram de base para a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), e todas as projeções. Como você os inter-preta? Eles realmente nos autorizam a falar de uma nova classe média, que seria o resultado de uma emergência de quase 40 milhões de pessoas?

NELSOM − Este é um assunto complicado porque envolve conceitos diferentes. Dois deles estão em evidência: o conceito de classe a partir do “Critério Brasil”, que é usado pelas empresas, e o conceito da Fundação Getulio Vargas (FGV), que fala em classe. Fiz um trabalho recente que contesta o que está acontecendo na mídia. Temos observado uma idealização da classe média. O que aparece na mídia − por razões políticas, comerciais ou simples desconhe-cimento − é mais uma idealização, como se realmente houvesse uma transformação do povo brasileiro. Nesse trabalho levanto uma dúvida: há uma mudança social ou meramente financeira? O “Critério Brasil“ estabelece quem tem mais e menos poder de compra. O conceito da FGV também é baseado em renda, mas fala em uma classe

média com renda familiar de R$ 1.200,00 a R$ 5.174,00. Já o “Critério Brasil” con-sidera uma renda média de R$ 1.170,00 a R$ 1.700,00. A questão é que as empresas utilizam o “Critério Brasil”, enquanto tudo que é publicado na mídia retrata a classe C da FGV, que está baseada na PNAD do IBGE, mas fala das classes B1, B2 e C1. A classe C2 do “Critério Brasil” não entra na classe C do Critério da FGV. Imagine a distorção que isso gera no marketing das empresas. O critério da FGV está errado? Não, é outro critério. O fato é que, no Brasil, quando se fala de classe média, existe uma idealização.

GRACIOSO – É uma versão que nós, como brasileiros, gostamos de ouvir. Fala do pro-gresso, da emergência, da transformação de trabalhadores e consumidores, de pessoas que estavam isoladas do mercado. É por isso que pega com tanta facilidade.

NELSOM − Existe uma teoria em psicolo-gia que diz que as pessoas gostam de se enganar. Por isso, quando se fala de um crescimento espantoso da classe média, as pessoas acabam embarcando nesse sonho, o que dificulta e faz perder o foco dos princi-pais problemas. É a fantasia de que a classe média, agora, pode tudo, com as empresas lançando cada vez mais produtos para esse público. Mas muitas dessas empresas acabam perdendo o foco, por não levar em conta as variáveis da realidade.

GRACIOSO − E o “Critério Brasil”, usado pelas empresas de pesquisas, como de-fine a classe média?

}O conceito da FGV fala em uma classe média com renda familiar de R$ 1.200,00 a R$ 5.174,00. Já o “Critério Brasil” considera uma renda média de R$ 1.170,00 a R$ 1.700,00.~

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maio/junho de 2011 – R E V I S T A D A E S P M 11

S o f i a E s t e v e s

‘NELSOM − O “Critério Brasil” estabelece a classe média a partir da posse de bens que guardam uma relação com a renda e esse é um dos erros. O melhor critério para potencial de consumo é a renda, só que nas pesquisas tradicionais de marke-ting é impossível obter esse dado, seja por desconhecimento, seja por medo de dizer quanto se ganha. Então, é preciso usar o método que estime essa renda − por meio da posse de bens −, o que pode levar à dis-torção. O “Critério Brasil” mede o mesmo tamanho da classe média ou da classe C do Critério da FGV.

GRACIOSO – Portanto, falamos em algo como 50% da população.

NELSOM – O último dado oficial é de 2009: 49% do “Critério Brasil” e 50% da FGV. Em 2011, o número da FGV já é 55%, mas a comparação que faço aqui é 49% contra 50%. De acordo com o “Critério Brasil”, pertence à classe C quem ganha hoje entre 2,1 e 3,2 salários-mínimos, ou seja, de R$ 1.145,00 a R$ 1.745,00. Já o Critério da FGV vai de R$ 1.200,00 a R$ 5.174,00. Veja que o grupo chamado pela mídia de classe média é mais amplo e heterogêneo em termos de renda. Se verificarmos a renda média do trabalhador brasileiro, o último dado de maio é de R$ 1.567,00. Então, faz muito sentido o “Critério Brasil” considerar quem ganha até R$ 1.745,00. O outro, que vai até R$ 5.174,00, me parece exagerado.

GRACIOSO − Para o “Critério Brasil” já é classe B?

NELSOM − Já é B1, B2, até na classe A e B. Veja a grande diferença: o Critério da FGV estabelece 11% nas classes A e B e o “Critério Brasil” 33%. O “Critério Brasil” dá uma margem melhor de atuação para as empresas porque segmenta mais as classes A e B. Já os 11% da FGV é mais difícil seg-mentar, porque está tudo concentrado na classe C, que eles chamam de classe média.

GRACIOSO − O “Critério Brasil” também divide em cinco classes?

NELSOM − Sim, como a FGV: A, B, C, D e E. O “Critério Brasil” evita chamar de clas-se média, porque classe média tem outra conotação, que, na teoria sociológica, vai além do poder de compra.

GRACIOSO − É o burguês com tradição familiar de educação, de cultura, con-servadorismo...

NELSOM − No Brasil, o que está havendo não é uma mobilidade social, mas uma mo-bilidade em termos de consumo e poder de compra. A mobilidade social significa que você sai de uma classe mais baixa e passa para a classe média. Mas você só pode di-zer que participa dessa nova classe se tiver os benefícios sociais e econômicos que ela oferece, como cultura, lazer, acesso à saúde, educação. Mas aqui ainda há muita carência desse tipo de benefício. Há um movimento, uma mobilidade, que é devido ao aspecto financeiro, mas não existe a contrapartida do social, por isso preferimos não chamar de classe média o pessoal da classe C.

}O que aparece na mídia, por razões polít icas, comerciais ou simples desconhecimento é mais uma idealização, como se realmente houvesse uma transformação do povo brasileiro.~

MarangoniNelsom

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}As oportunidades de negócios estão em todas as classes, inclusive nas classes A e B.~

E N T R E V I S T A

GRACIOSO − Falando de outros critérios, que vão além da renda, o que define a classe média e a diferencia da parcela cha-mada classe C, que pretende se incorporar à classe média? NELSOM − No Brasil, a classe média tra-dicional refere-se muito mais à classe B. Nesse sentido, é uma classe que já tem acesso a bens de consumo mais sofistica-dos, como eletrônicos, carros, informática. Já essa classe C, que chamo de emergente, ainda não tem acesso a isso. Estamos em uma sociedade onde a ascensão dessa classe emergente se dá muito mais pelo consumo e pelo crédito. Até levanto uma dúvida: será que estamos vivendo, realmente, uma questão sustentável? Diria que não. Pen-sando em termos de consumo, há essas diferenças que, em termos de educação, são muito maiores.

GRACIOSO − Fale um pouco mais sobre educação.

NELSOM − Se imaginarmos que, para haver uma ascensão social, é preciso ter acesso à educação, isso não faz parte da classe emergente. Temos vários exemplos de jo-vens que se matriculam na faculdade, mas acabam desistindo, por falta de recursos. Muitas vezes, não têm conhecimento nem formação para se manter. GRACIOSO − Segundo o Sindicato das Escolas de Nível Superior de São Paulo, a principal causa da desistência é a falta de preparo para acompanhar o curso.

NELSOM − É isso mesmo. Também tem o problema financeiro. Essa situação mostra que a ascensão social não está ocorrendo. São pessoas que emergiram e já pertencem à classe C, mas não têm os benefícios da classe média porque isso toma tempo. Uma pessoa que nasce nas classes mais altas, esse tempo é encurtado porque já faz parte do contexto, da família. Aqui temos uma educação muito falha. Comparando com os Estados Unidos, estamos 60 anos atrasados. Outro dia vi uma pesquisa mos trando que o número de formados no ensino médio acompanhou o dos anos 1950 nos Estados Unidos, enquanto a quantidade de for-mados nas universidades brasileiras era equivalente à dos anos 1960 nos Estados Unidos. Realmente, ainda estamos muito longe. Também ocupamos um dos piores índices no IDH (Índice de Desenvolv i-mento Humano), onde a variável educação é relevante. No Brasil, a educação é muito precária e o pior é que as políticas voltadas para isso são ainda mais precárias.

GRACIOSO − Não há melhoria à vista.

NELSOM − Não. Por isso precisamos ter certo cuidado. Estamos diante de uma clas-se C emergente, do ponto de vista de consu-mo e também de pensamento e sentimento. Hoje existe menos preconceito em relação a esse público, que está desenvolvendo um sentimento de autoestima e independência. Deveríamos aproveitar o fato de a classe C estar sendo mais respeitada para ter um crescimento social realmente verdadeiro.

GRACIOSO − Nesse contexto, a nova classe média deverá votar de forma mais conservadora nas próximas eleições?

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S o f i a E s t e v e s

}É a fantasia de que a classe média agora pode tudo, com as empresas lançando cada vez mais produtos para esse público.~

NELSOM − Eles não têm muita noção disso. Mas deverão votar naqueles que oferecerem benef ícios imediatos − que são os econômicos. A última eleição nos mostrou isso: nos extremos da renda do trabalhador brasileiro − quem ganha até t rês sa lár ios- mínimos e ac ima de dez salár ios-mínimos − t ivemos uma dife-rença gritante entre Dilma e Serra. Na últ ima pesquisa de intenção de votos, Dilma estava 20% acima no extremo in-ferior, enquanto Serra tinha 15% a mais de votos no extremo superior. E, no meio, tínhamos uma semelhança, uma espécie de equivalência. É por isso que Fernando Henrique Cardoso acertou ao dizer que o PSDB deveria buscar a diferenciação no meio, porque, nos extremos, seria muito difícil. O pessoal de baixa renda é muito sensível ao Bolsa Família, à ajuda finan-ceira e, na eleição, a variável econômica ainda é determinante. GRACIOSO − Vamos mudar o foco para potencial de consumo porque, para as empresas, o que interessa é o dinheiro disponível ao fim do mês nas mãos do consumidor. Você reconhece que houve realmente esse aumento? A FGV aponta que o crescimento da renda dessa nova classe média, nos dois últimos anos, che-gou a 4% acima do PIB. Considerando que o PIB de 2010 foi de 7%, isso significa que o crescimento da renda dessa nova classe média chegou a 11%. NELSOM − De 2003 até 2010, por exemplo, esse crescimento foi equivalente a 25% da renda do trabalhador brasi leiro. Agora,

esse número precisa ser visto com cuidado, porque um aumento de renda numa base muito frágil tem um significado diferente do que um aumento de renda numa base melhor. Por isso digo que esse aumento de consumo − que é uma realidade − está mais baseado no crédito do que no au-mento de renda. É um aumento de renda frágil, que parte de uma base elementar onde a renda do trabalhador brasileiro é de R$ 1.567,00. Há um dado interessante do IBGE mostrando que 70% da renda do trabalhador vão para quatro categorias de produtos: vestuário, moradia, alimentação e transporte. GRACIOSO − Portanto, são despesas es-senciais à vida.

NELSOM − Ligadas à sobrevivência. So-bram apenas 30% de R$ 1.500,00, em torno de R$ 500,00 para lazer, educação, saúde, produtos pessoais...

GRACIOSO − E pagar as dívidas...

NELSOM − Ou seja, se não tiver crédito, não há como alimentar todo esse consumo. Há também um certo exagero direcionado à classe C, como se ela fosse responsável por toda a expansão do consumo. Quando verificamos, realmente, os dados, percebe-mos uma expansão do consumo em todas as classes. Para dar um exemplo, as classes D e E que, em 2002, tinham somente 21 categorias de produtos na cesta básica, no ano passado passaram a ter 39, quase o dobro. Então por que esse foco excessivo na classe C? Tenho feito um trabalho entre os

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