dromocracia, cibercultura e transpolÍtica · dromocracia, cibercultura e transpolÍtica...

23
DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA Contextualização sociodromológica da violência invisível da técnica e da civilização mediática avançada Eugênio Trivinho Resumo Articulando três importantes conceitos para a renovação da teoria social e, em particular, da teoria da comunicação, o estudo se desdobra na esteira crítica de uma fenomenologia sociodromológica da história ocidental e da civilização mediática avançada em que a categoria da dromocracia nomeia o regime invisível da velocidade tecnológica como epicentro descentrado de estruturação da vida humana; a da cibercultura, a configuração social-histórica contemporânea da técnica sofisticada, articulada em rede imaterial planetária; e a da transpolítica, a lógica predominante de gestação social de fenômenos impermeáveis ao controle institucional e de invisibilidade e flutuação das novas formações de poder. Trata-se, numa palavra, do nosso mundo – em sua dimensão material, simbólica e imaginária – cujos rumos, umbilicamente subordinados à aleatoriedade das injunções do mercado, põem-se para além da herança política da modernidade.

Upload: others

Post on 14-Jun-2020

14 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA · DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA Contextualização sociodromológica da violência invisível da técnica e da civilização

DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA

Contextualização sociodromológica da violência invisível da técnica eda civilização mediática avançada

Eugênio Trivinho

Resumo

Articulando três importantes conceitos para a renovação da teoria social e, emparticular, da teoria da comunicação, o estudo se desdobra na esteira crítica de umafenomenologia sociodromológica da história ocidental e da civilização mediática avançadaem que a categoria da dromocracia nomeia o regime invisível da velocidade tecnológicacomo epicentro descentrado de estruturação da vida humana; a da cibercultura, aconfiguração social-histórica contemporânea da técnica sofisticada, articulada em redeimaterial planetária; e a da transpolítica, a lógica predominante de gestação social defenômenos impermeáveis ao controle institucional e de invisibilidade e flutuação das novasformações de poder. Trata-se, numa palavra, do nosso mundo – em sua dimensão material,simbólica e imaginária – cujos rumos, umbilicamente subordinados à aleatoriedade dasinjunções do mercado, põem-se para além da herança política da modernidade.

Page 2: DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA · DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA Contextualização sociodromológica da violência invisível da técnica e da civilização
Page 3: DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA · DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA Contextualização sociodromológica da violência invisível da técnica e da civilização

DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA

Contextualização sociodromológica da violência invisível da técnica eda civilização mediática avançada1

Eugênio Trivinho2

Não duvidemos, ao longo do tempo,somente os vetores mudam.

VIRILIO (1996, p. 30)

I – VELOCIDADE E HISTÓRIA Sociodromologia fenomenológica do processo civilizatório

O conceito de dromocracia teve, no âmbito das ciências humanas e sociais, asua gestação e fundação crítica na obra de Paul Virilio. Em Velocidade e política, Virilio(1977) lança, senão as bases, ao menos as sinalizações teóricas fundamentais para acompreensão da história e dos processos políticos e sociais pelo prisma do vetordromológico.3 Dromos, prefixo grego que significa rapidez, vincula-se, obviamente – a partirda dimensão temporal da existência –, ao território geográfico (na qualidade de coordenadaespacial), portanto à urbis. Mantém, não obstante – algo menos notado –, umbilicais ligaçõescom interesses de logística, estratégia e tática, numa palavra, com o campo bélico.

1 O presente ensaio – tributário da obra de Paul Virilio e que dela se distancia em vários aspectos, como forma de realizaçãodo princípio dialético da tensão (aqui não conceitualizado de maneira explícita) com a própria fonte inspiradora –corresponde a uma síntese reescalonada do capítulo de abertura de Crítica da cibercultura: dromocracia, glocal etranspolítica [título referencial e provisório], com lançamento previsto para o primeiro semestre de 2006. A obra resulta deProjeto de Pesquisa em desenvolvimento no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica daPontifícia Universidade Católica de São Paulo (PEPGCOS-PUC/SP). Os procedimentos científicos e técnicos deconsolidação da pesquisa condicionaram a criação do CENCIB – Centro Interdisciplinar de Pesquisas em Comunicação eCibercultura. Os resultados desse percurso reflexivo foram circunstanciados em artigos publicados nos últimos anos (veja-se, em especial, TRIVINHO, 2002, 2003a, 2003b, 2004). O presente estudo cumpre, conforme o indica o subtítulo, oobjetivo de melhor contextualização desses textos e, em particular, de clarificação de pontos eventualmente lacunares dopensamento histórico neles consolidado sobre a (crítica da) cibercultura. (O caráter de síntese reescalonada da argumentaçãose deve a motivos menores, mas não menos determinantes: perfaz a versão possível, por agora, para viabilizar o debatepúblico. A argumentação completa está prevista para a obra mencionada.)2 Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica deSão Paulo (PEPEGCOS-PUC/SP) e coordenador do CENCIB – Centro Interdisciplinar de Pesquisas em Comunicação eCibercultura nessa instituição. Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidadede São Paulo (ECA/USP), coordenou, de 1995 a 2002, o Grupo de Trabalho “Comunicação e Sociedade Tecnológica” (atual“Tecnologias Informacionais de Comunicação e Sociedade”) da COMPÓS – Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação. É autor de Redes: obliterações no fim de século (São Paulo: Annablume; FAPESP, 1998),Contra a câmera escondida: estruturas da violência soft (São Paulo: Editor-autor, 1998) e O mal-estar da teoria: a condiçãoda crítica na sociedade tecnológica atual (Rio de Janeiro: Quartet, 2001), entre outras obras.3

Cunha, assim, a dromologia – mais precisamente, poder-se-ia dizê-lo (não sem risco de pleonasmo, aqui justificado), asociodromologia – como método de abordagem.

Page 4: DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA · DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA Contextualização sociodromológica da violência invisível da técnica e da civilização

Fundamentalmente, velocidade e guerra – Virilio mostra no conjunto de sua obra – são facesconexas do mesmo processo. Importa, nesse aspecto, em estrita simultaneidade aomapeamento cognitivo e ao domínio prático do espaço e de suas possibilidades, o sentido dotempo em que, mediante o plano logístico, se realizam as ações de assalto e/ou de proteção,de avanço ou de recuo, de abastecimento e de retaguarda. Desde essa relação basilar até assuas manifestações fenomenológicas colaterais, a velocidade não pode ser concebida emdisjunção com a categoria da violência, concreta ou simbólica (cf. VIRILIO, 1977, 1984a,1984c; TRIVINHO, 2001a, p. 209-227, 2001b, 2002, 2003a, 2004). Ao flexionar e assimproblematizar a temática, Virilio subtrai a questão dromológica de seu longo e exclusivocativeiro no reduto das ciências exatas e da terra e, simultaneamente, abrindo-lhe oshorizontes, insere-a no terreno das ciências humanas e sociais. A operação, a par de suasinjunções específicas, se norteia por clara intencionalidade: o conceito de dromocracia, naobra de Virilio, pertence a (e, ao mesmo tempo, encerra) um quadro teórico e epistemológicovoltado para a consumação da crítica à organização sociotécnica dinâmica que, a cada época,define a vida humana. Não se trata, portanto, de prisma descritivo-constatório ounomológico-classificatório. A mobilização do conceito, per se, se põe, de partida, em favor dadissonância e, melhor ainda, do interesse de confronto em relação às formas e tendências doexistente. A categoria tensiona, a partir de dentro (vale dizer, de modo imanente), o seupróprio referente, ao evidenciar a ligação entre processo sociotécnico de fomento davelocidade e processo histórico permanente de destruição material e/ou simbólica daalteridade, de seu grupo ou classe social, de sua urbis, de seu ecossistema e de sua cultura, emsuma, de sua alma. Nesse aspecto, o conceito de dromocracia torna patente o quanto, nahistória, a alteridade, seu território e seu corpo, sua temporalidade e sua subjetividade, forame são menos objetos de projetos herdeiros do humanismo greco-clássico, cristão, renascentistae/ou marxista do que de uma cultura logística milenar e generalizada – que recorta, dilacera eneutraliza (de modo ocluso, isto é, sem dizê-lo) todos esses metarrelatos ou metanarrativas[na conhecida expressão de Lyotard (1986, 1993)] –, fazendo da oscilação estratégica entreinvestida e recuo um equivalente civil suavizado (reificado, para usar uma velha expressãomarxista) do ciclo militar de ataque e defesa e, a partir daí, habitus cotidiano inquestionado.Não por outro motivo, a alteridade assim tomad – não raro a priori – como objeto dedesconfiança, em suma, como inimiga (até que justifique a consideração oposta), não poderiamerecer senão tratamento norteado pelos pressupostos da tática.

Essa costura teórica heterodoxa do processo histórico demonstra que, emmatéria de política da reflexão, a perspectiva sociodromológica não frustra a complexidadefenomênica observada e da qual é parte tensa, quer dizer, não desata o que, a rigor, comparecenela conjuminado. Nessa medida, opõe-se, radicalmente, não só à lógica do pensamento detradição cartesiana e positivista: o foco primordial do confronto é o cinturão do olvido(voluntário ou involuntário) patrocinado por todas as correntes teóricas de sustentação dasciências humanas e sociais, fundado na e alimentado pela cisão (aparente) entre processosbélicos e processos civis, entre interesses essencialmente militares e interesseseminentemente políticos, fronteira – dada somente em tese, isto é, de modo abstrato e, nocaso, irreal e equívoca – que radica na formação histórica da democracia moderna, fonteúltima das recentes formas do Estado (o de Direito burguês como o de Bem-Estar Social e,agora, o neoliberal). Nesse quadro, de geração e distribuição da polêmica, a obra de Virilio é,a um só tempo, memória do esquecimento (na modalidade de crime teórico em si, na medidaem que nele se implica a morte da complexidade do real) e, sobretudo, posicionamento contraele. Virilio politiza, assim, desde os pressupostos elementares da elaboração teórica, nãosomente a dromocracia, mas, primordialmente, o seu pilar processual, a velocidade.

2

Page 5: DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA · DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA Contextualização sociodromológica da violência invisível da técnica e da civilização

Com efeito, a história social e cultural da dromocracia – tão instigante quantoobscura e intrigante – ainda está para ser devidamente constituída, sob lastro emdetalhamento factual e na sistematicidade epistemológica demandados, tarefa cujo resultadose estima mais próspero quanto mais se realize em áreas diversificadas do conhecimento (nãosó científico) e/ou mediante metodologia interdisciplinar. Virilio (1977, 1980, 1984a, 1984b,1984c, 1995, 1996a, 1996b, 2002), embora tenha feito várias sinalizações teóricas a respeito elevantado um sem-número de elementos empíricos relevantes – considerando a dromocraciaem sentido estrito e lato –, explorou, fundamentalmente e com ampla recorrência, o trechomacro-histórico mais recente da matéria, relativo aos acontecimentos sociais, culturais etecnológicos dos últimos dois séculos.

Por certo, a argumentação subseqüente não pretende saldar inteiramente alacuna. Deve, no entanto, ser recebida como contribuição nesse sentido, com epicentro napreocupação interdisciplinar de dissecação das relações entre velocidade tecnológica, media ecibercultura. A investigação articula – a bem dizer, ao modo de teses –, os elementosempírico-descritivos, analítico-reflexivos e críticos acerca do processo social-histórico dedromocratização da vida humana, no intuito de somar conceitos novos para a teoria social e,em especial, para a teoria da comunicação – amplamente implodida em seus fundamentosapós a emergência do cyberspace (cf. TRIVINHO, 2001, p. 117-131) – e de condicionar, embases alternativas às propostas teóricas correntes, o desenvolvimento da crítica teórica dacivilização mediática e, em particular, da cibercultura.4 Dado que a categoria da dromocracia,em razão da carga de sentido que encerra, mostra não restarem impunes quaisquerpossibilidades de sua utilização como instrumento epistemológico de percepção de processossocial-históricos, é necessário ter em conta, do princípio ao fim, a impregnação, na temática,da questão da violência e, no limite, da guerra – pelo que assim se justifica o arco dacriticidade teórica requerida.5

Vetores técnicos e tecnológicos de dromocratizaçãoda vida humana

A apreensão do fluxo histórico da fenomenologia sociocultural empírica davelocidade técnica e tecnológica pode – a traços fincados em pontos estruturais sine qua non–,6 ser consolidada com base em duas coordenadas básicas: [1] a do sucesso cinético sobre oterritório, na forma do deslizamento [ou do “alisamento” espacial, para evocar Deleuze(1997, p. 179-214)]; e [2] a da otimização progressiva de princípios funcionais eprocedimentos operacionais de produção de resultados (sejam eles quais forem), vale dizer,de condensação dos mesmos no tempo ou, numa palavra, de compressão temporal. Em ambosos casos, trata-se, fundamentalmente, de dois princípios, o de desempenho e o de eficácia,conjugados na menor escala de tempo possível, vigente a cada época.

4 Se as teses defendidas puderem ao menos ser vistas como outra maneira de re-significar a história e como demonstraçãoválida e viável nessa direção, já terá cumprido o seu principal papel.5

Essa evocação assume validade tanto mais enfática em razão da suspensão, no fluxo da argumentação, do tratamento maisexaustivo dos nexos com o processo bélico. A matéria já foi objeto específico de abordagem em fases pregressas da presentepesquisa (TRIVINHO, 2001a, p. 209-227, 2002, 2004). A necessidade cognitiva do momento repousa na cobertura teórica eepistemológica de material social-histórico ainda não considerado.6 Não sem risco de alguma lacuna essencial, que a exigüidade de espaço (previsto para a presente argumentação) certamenteredime.

Page 6: DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA · DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA Contextualização sociodromológica da violência invisível da técnica e da civilização

1.1. Superação da superfície geográfica

(a) Veículos de deslocamento e transporte

A relação humana com a dimensão dromológica da existência está ligada àdescoberta (recorrente e aglomerativa, sem ser necessariamente complanada e, sobretudo,linear e/ou progressiva)7 de vetores de movimentação geográfica de corpos, objetos e valores(materiais e simbólicos). As origens mais remotas e significativas dessa relação antropológicaremontam – assim se pode convencionar, no que interessa ao presente estudo – a um dadocorporal específico: segundo Virilio (1984a, p. 35 et seq.), trata-se do dorso feminino. Nonomadismo tribal dos povos primevos, é a mulher que, explorada na aurora da longa série desuportes cinéticos em devir, leva os pertences domésticos e demais apetrechos, liberando ohomem para a caça e para a guerra; inédito “veículo metabólico” de transporte, convertida em“primeiro sustentáculo logístico” necessário à superação das situações inóspitas e de combate(ibidem), a mulher colabora, assim, para o eventual adentramento e ocupação do territórioinimigo e para a posse de seus víveres e pertences. A partir de então e ao longo do processohistórico, sucedem-se, por sobreposição cumulativa e valorativa (isto é, sem dispersão e/oueliminação do que resta preterido em importância), os vetores de processamentofenomenológico da velocidade ou, mais precisamente, de seu hipostasiamento em processoempírico verificável. À alta lentidão do desempenho motriz corporal, sobremaneiraagrilhoado ao solo, o futuro dromocrático acenaria, obviamente, com uma dissolução fatal eirreversível, mediante a chegada de vetores cada mais eficazes.

Com efeito, se o processo dromo-antropológico (e bélico) enceta em solofirme, a ordem mais provável dos contextos ambientais e do desenvolvimento dos vetorescinéticos, tal como se realizaram no transcurso histórico, é, a rigor, significativamente outra:o mar, pelo que, nas origens da constituição gregária da espécie, à luz das possibilidadestécnicas vigentes, representava em matéria de fonte de sobrevivência e oferecia em termos demenor resistência ao deslocamento, precede o território,8 o ar figurando obviamente comocontexto ambiental ulteriormente explorado.9

7 Resta, portanto, descartada, como equívoco metodológico primário, a legitimação da perspectiva positivista-evolucionistano campo de reflexão sobre as relações entre velocidade, organização social e história.8 Não por acaso, Virilio (1996, p. 55) registrou que a velocidade provém do mar.9

A história inaugural da navegação – segundo o consenso arqueológico e historiográfico presente – se desenvolve entreaproximadamente o sexto e o terceiro milênios antes da era cristã. A posteridade desse procedimento dromológico seprecipitaria, como nos âmbitos terrestre e, mais tarde, aéreo, em sua respectiva e conhecida cadeia diversificada de vetores:desde a canoa escavada, que marca o alvorecer dessa epopéia, na Europa e na Ásia, à jangada, utilizada no quarto milênioa.C., na China; do barco módico, a remo, presente no terceiro milênio a.C., no Mediterrâneo, entre os egípcios (e quechegaria ao Oceano Pacífico somente no século das Luzes), à caravela; do barco a vapor do início do século XIX aomoderno navio mercante e deste ao submarino, o destino reservaria à exploração do infinito marítimo, como espaço de fluxomilitar, comercial e civil e de competição entre impérios, classes sociais e países, uma escalada exitosa e híbrida dedesempenho técnico, glórias nacionais e barbárie. Por seu turno, o domínio da velocidade terrestre, que, na esteira da montaria rudimentar a cavalo (a qual, antes do oitavoséculo a.C. se realizava em pêlo), se reescalona enormemente com a descoberta e desenvolvimento da roda entre ossumérios, na Mesopotâmia, encontra o seu apogeu histórico preliminar na segunda metade do quarto milênio a.C. Adomesticação dromocrática do corpo animal, cujo início provavelmente mais consistente coincide com o aparecimento doarreio, aperfeiçoado no transcurso do terceiro milênio a.C., no Oriente Médio, culmina na descoberta da sela (que já existiano começo do segundo milênio a.C., mas se consolida somente entre os séculos VIII e II a.C., na China, e, no ImpérioRomano, no século I da era cristã) e do estribo (no século III d.C., embora só se consolide no século VI d.C., na China, noséculo seguinte, no Japão, e, depois, na Ásia central, no seio do nomadismo tribal turco). A otimização técnica da montaria,tecida nas estrias de quase três milênios, condicionará, mais tarde, no incessante gume político-militar, mercantil e citadinoque esgarça e costura o processo civilizatório, o advento da cavalaria militar medieval. Ambas as técnicas dromológicas – amontaria selada e a roda (de madeira ou ferro) –, conjuminadas, radicam na origem mais remota da carruagem de tração

4

Page 7: DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA · DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA Contextualização sociodromológica da violência invisível da técnica e da civilização

(b) Veículos de comunicação em tempo real

Não obstante, esse processo de maximização de vetores técnicos e tecnológicos dedromocratização progressiva da vida humana encontra, na história recente, um sobressaltode monta, uma dobra fenomenal, até então inteiramente imprevista. Após a dominância trans-histórica do mar, da terra e do ar (sobretudo conjugados), e para além deles, o final do séculoXIX registra – mantida a mesma perspectiva de abordagem – a inserção, na cultura, doespectro eletromagnético como oceano dromológico invisível de fluxos simbólicos eimaginários. O permanente intento de vitória cinética sobre o território geográfico alcança,assim, paradoxalmente, na intermitente linha do tempo histórico, o seu ponto-limite, a suacondição insuperável, de não-retorno, com a proliferação comercial dos meios eletrônicos decomunicação, especificamente no que dizem respeito ao tempo real.10 A gestação dessalinhagem heterodoxa de vetores remonta, basicamente, ao telégrafo elétrico, e a suarespectiva cadeia pontilhada de desenvolvimento se assenta no telefone, no rádio e natelevisão, ancorados no tempo live, enquanto a extremidade mais sofisticada de taisteletecnologias segue, até o presente momento, povoada pelo microcomputador (de base ouportátil) e pelas redes interativas (intranets, Internet, Web), próprias do tempo online.11

Em conjuminação ao largo expediente histórico de deslocamento geográficode bens materiais, desencadeia-se, pois, embaralhando os fatores implicados, a era dodeslocamento mediático de bens imateriais. Os vetores de produção de movimentoconvencional cedem espaço aos de transmissão e circulação de produtos simbólicos(informações e imagens), representativos ou não de referentes concretos. Sobredeterminandoo secular império dos veículos de transporte, sucede, nos termos de Virilio (1995, 2002, p.39-74), o “último veículo”, fadado à mais alta velocidade praticável e à sua luz – luz davelocidade da luz. A relação antropológica com a dimensão dromológica da existência atinge,assim, o seu ponto ômega, na forma intransponível do “muro” invisível da velocidade pura(ibidem).12

animal e da charrete urbana. O assenhoramento e “alisamento” dromológicos da superfície terrestre dispõe, a partir disso, deum altamente ondulado, mas claro, fio condutor (em matéria de vetores técnicos e tecnológicos), comumente bemconhecido, que se assenta na dobra entre a carruagem a vapor do século das Luzes e o automóvel do final do século XIX,entre a locomotiva e o bonde urbano de meados desse mesmo século, entre o caminhão e o ônibus e entre este e o metrô, e,paralelamente, com não menor importância, entre a bicicleta e a motocicleta. Por fim, a exploração do universo aéreo como ambiente dromológico efetivo, embora lastreada na prosaica percepçãomilenar do vôo dos pássaros (tão íntima aos interesses da ciência mecânica) – para subtrair o sonho de vôo, de Bachelard(2001, p. 19-64) do registro onírico e literário e inseri-lo no contexto concreto da gravidade propriamente dita –,desencadeia-se apenas no final do século XVIII, com a circulação do primeiro balão tripulado (de ar quente). A partir daí, os“obsessivos devaneios do ar”, os perseverantes delírios do imaginário aéreo não cessarão de encadear proezas: a plúmbealeveza do avião e do helicóptero, proveniente do início do século XIX, passou a ser partilhada, mais recentemente, por navesespaciais, estações interplanetárias e satélites de comunicação.10 Ficam, portanto, preteridos, nesse contexto, todos os meios impressos, o cinema, o vídeo e as demais formas tecnológicasde produção e massificação da cultura por recursos diversos ao da transmissão em tempo instantâneo.11 Uma sucinta historicização reflexiva sobre tais vetores foi, de certa forma, cumprida em outro lugar (cf. TRIVINHO,2001b), num contexto de discussão diferenciado – não propriamente dromológico em sentido estrito, mas a ele amplamenteligado –, em cujo centro se implicavam o fenômeno glocal (para além do global e do local como categorias distintas, mesmoem teoria) e o processo social dele derivado, a glocalização da existência e da experiência. Em relação à “natureza” dos dois tempos implicados – live e online –, lembre-se que ambos pressupõem simulaçãotecnológica do tempo que passa, próprio do contexto presencial da vida ordinária.12 O notável processo milenar, há pouco considerado, de consolidação da menor resistência possível – resistência zero – aodeslocamento de criações humanas vê-se, assim – por caminhos nada retilíneos na história das invenções técnicas e/oucientíficas –, plenamente consumado. Por conseguinte, realiza-se, nele e por ele, o processo de “alisamento” tecnológicototal – vis-à-vis, de subtração de toda eventual estria – do território geográfico, acontecimento que, de certa forma, seconfunde com o processo de progressiva diminuição anuladora do planeta.

Page 8: DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA · DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA Contextualização sociodromológica da violência invisível da técnica e da civilização

As identitárias relações epistemológicas entre veículo de transporte e meio decomunicação – pródigas na obra de Virilio (1980, 1984a, 1984b, 1995, 1996a, 2002)13 –sedevem à partilha de um mesmo fundamento: ambos são elementos estruturais devetorialização sociodromológica da existência. Se o veículo de transporte é um meioespecífico de comunicação (entre dois pontos geográficos), o meio de comunicaçãopropriamente dito é, de modo congruente, um veículo de transporte (de “coisas” espectrais,próprias do plano simbólico da cultura).14 Embora, a rigor, não pertençam, materialmentefalando, à mesma linhagem de objetos técnicos e tecnológicos, estão implicados em idênticainscrição ontológica na cultura, a da constante dromológica do processo civilizatório. Assima perspectiva sociodromológica compreende a significação social-histórica e tecnoculturaldos media, com a agravante diferencial – em comparação com os veículos convencionais detransporte – de que, no limite, o respectivo êxito sobre o território geográfico significa, maispropriamente, liquidação e superação do mesmo em favor da lógica pura do tempo.15

Nessas condições, partida e chegada não conformam mais relação dediferimento, a primeira sendo da mesma ordem da segunda: à partida sucede, célere, achegada (VIRILIO, 1995a, 2002), como num composto homeostático em que, de certa forma,tudo, pela imediatidade, se indiferencia; o atingimento do destino não depende mais domovimento físico propriamente dito. À longa preponderância histórica do nomadismoveicular sedentário – que testemunha, com todas as tintas, a progressiva e irreversíveltransição da condição rural da vida humana para o seu modelo citadino – segue-se osedentarismo comunicacional nômade como habitus sociocultural propriamente urbanitário(cf. TRIVINHO, 1999, Parte II, Cap. IV, tópico II, item 1, 2001, p. 117-131).

(c) Vetores de dromocratização e guerra

Vale enfatizar, neste ponto – em retomada de sinalização anteriormente feita– que todos os vetores de dromocratização da existência, inclusive os meios de comunicação,gravitam, em alguma medida, direta ou indiretamente, em torno de um traçado históricorecorrente: correspondem a reverberações de ou respostas instrumentais a processos bélicos.De fato, a história do domínio da velocidade está imanentemente atrelada à história dastécnicas e tecnologias de realização da guerra (cf. VIRILIO, 1996; TRIVINHO, 1999, Parte II,Cap. III, 2001a, 209-227) e, por esta, de consolidação, pela violência concreta e/ou simbólica,de conquistas territoriais e de vantagens logísticas e dromológicas em relação à alteridadeinimiga, em nome de Deus, do Rei, do Estado, da Nação, da Razão, do Homem, da Utopia,do Proletariado e/ou da Paz, e assim por diante. “A velocidade – assinalou Virilio (1977) – éa esperança do Ocidente. É ela que sustenta a moral dos exércitos”. O aperfeiçoamentoobservado, ao longo dos séculos, na forma, no funcionamento e na utilização dos vetores dosolo, do mar, do ar e das ondas eletromagnéticas se atrela, fundamentalmente, em últimainstância, ao princípio da eficácia nesses contextos, em atendimento a necessidades deestratégia e/ou de tática, não raro para otimizar o exercício da tirania (ostensiva ou velada)13 Provavelmente, somente nela poderiam sê-lo, em virtude do interesse de Virilio pela relação entre vetor dromológico edestino das cidades. (Ao tratar de objetos e temas comumente considerados da área de Comunicação, Virilio o faz sempre apartir do ponto de vista da arquitetura e do urbanismo.)14 Em todas as tipificações mencionadas na nota 9, tratando-se de vetores, são, aliás, na perspectiva sociodromológica,sempre fatores de condutibilidade, meios de transporte, que estão em jogo15 Na notação alegórica de Virilio, “a velocidade é a velhice do mundo”. Pelo que essa injunção implica a questão da mortesimbólica do planeta, então banido da experiência concreta e do campo de visão cotidianos – desterritorialização é, emsuma, desterro, se assim se pode jogar com as palavras –, pressupõe, igualmente, a questão da violência da técnica. Não hátergiversação ou descarte sumário – seja ele qual for (no caso, mediático) – que não a incorpore (TRIVINHO, 2004).

6

Page 9: DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA · DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA Contextualização sociodromológica da violência invisível da técnica e da civilização

e/ou para melhor espraiar o terror, tendo em mira, entre outros fatores legitimadores, aexpansão de poderio imperial, a glória de dinastias monárquicas e clericais, as tradições dehonra de reinados, a garantia de mercados nacionais e internacionais, o controle deabastecimento mundial e a preservação da supremacia tecnológica. Interesses mercantis e/oucivis correspondem, quase sempre, a álibis de dissuasão – não por acaso, matéria também deestratégia – da relação causal principal. Somente a partir da conjugação entre velocidade eguerra é que se pode, a rigor, considerar a constituição gradativa das cidades (VIRILIO,1984c, p. 15). A função da atividade comercial tem, nesse aspecto, menos importância do quecomumente lhe atribui a historiografia contemporânea.

1.2. Princípios e procedimentos operacionais Dromocratização da esfera da produção e do tempo livre

(a) Metanarrativa iluminista e liberal ou as origens da racionalidade dromocrática moderna

A esses vetores técnicos e tecnológicos de dromocratização progressiva daexistência a história mais recente – para ficar apenas nesse estirão – acrescentou outros,processuais, na modalidade diferenciada de princípios funcionais e procedimentosoperacionais, em grande medida possíveis em razão de condições social-históricas etecnológicas determinadas por forças produtivas não raro assentes nos vetores mencionados.A natureza básica desses princípios e procedimentos se nutre, mutatis mutandis, das mesmascaracterísticas da logística (na qualidade de previsão adequada de meios e fins) e da estratégia(na qualidade de planejamento eficaz da ação), pelo que não deixam de traduzir, para a esferada produção, o que esculpe, essencialmente, o campo da guerra.

Nesse âmbito, a história da aceleração sociotecnológica contemporânearemonta, a rigor – no que interessa ao presente ensaio –, ao final do século XVIII, berçorevolucionário da modernidade industrial cujo projeto de civilização, centrado no ideal doprogresso tecnocientífico e capitaneado pelo iluminismo francês e pelo liberalismo inglês,levaria apenas cerca de duzentos anos para redesenhar inteiramente a Europa e o mundo,aprumando-se em configurações urbanas, hierarquias e relações sociais, organizaçãosimbólica e de valores, processos de vida cotidiana e assim por diante, todos absoluta ourelativamente distintos dos de outras fases do desenvolvimento do capitalismo.

O manancial de irradiação (por assim dizer, centrífuga) dessa aceleração para avida em geral teve – como se sabe – tópica inaugural na esfera da produção. Em razão danatureza das práticas sociais aí envolvidas, consolidou-se, com maior envergadura, nessaesfera, a materialização do processo trans-histórico de racionalização técnica generalizada(vis-à-vis, de desmitificação ou desencantamento do mundo, operado pelo hipostasiamento dopensamento técnico em valor corrente) e de seu princípio correlato e específico, na forma da“racionalidade com respeito a fins”, ambos teorizados por Weber (1971, 1994), e cujacorrespondente empiria, no que tange à sua lógica, foi, mais tarde, recolocada, alternativa ediferencialmente, pelo prisma do conceito de “razão instrumental”, de Habermas (2001). Aracionalização instrumental generalizada está na base social-histórica de possibilidade dascondições humanas que Heidegger (1958, p. 9-48, 80-115), meio século depois de Weber,16

16 O original do livro (mencionado) de Weber (1971) é de 1905.

Page 10: DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA · DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA Contextualização sociodromológica da violência invisível da técnica e da civilização

apreendeu mediante o conceito de técnica como representação material da metafísicaocidental, então plenamente realizada. A mudança (aí pressuposta) de metabolismo no planodos valores e no da relação com a realidade fez com que a esfera da produção vigorasse comolocus privilegiado do alvorecer da sobrederminação (que depois se universalizaria) doprincípio de realidade, formulado por Freud, pelo princípio de desempenho, proposto porMarcuse (1967) como forma de politização daquele conceito (de base ontológica e abstrata,isto é, a-histórica, atemporal) e de sua necessária contextualização na história (mais recente,industrial) do capitalismo.

Essas injunções social-históricas – racionalização e tecnicização estendidas,instrumentalização cognitiva e tônica no desempenho – foram, certa e amplamente,condicionadas e, ao mesmo tempo, em processo reverso, levadas às últimas conseqüênciaspela conjugação histórica, na passagem do século XIX para o XX, entre, por um lado, osistema de organização funcional e parcelar do processo de trabalho industrial, voltado para aotimização e controle do desempenho individual e coletivo e dos respectivos resultados,(sistema) tal como fixado, em linhas gerais, por Taylor, e, por outro, o modelo deadministração, gerenciamento e controle de processos de produção, conforme concebido porFord.

Ambas as diretrizes de política industrial (ideológicas lato sensu) – taylorismoe fordismo – consolidaram, ao longo da primeira metade do século XX, a noção mais acabadae (até hoje) influente de produtividade: maximização racional e técnica de resultados emescala na menor fração de tempo e com o menor esforço possível. Mediante tal processo deracionalização tecnoburocrática e científica, os fundamentos das metanarrativas iluminista eliberal viram-se assim plenamente concretizados, no sentido literal do termo, instalando-se,de maneira imanente, nas estruturas materiais e operacionais de produção e, a partir delas, nocompasso das décadas posteriores – em bases sociotécnicas mais complexizadas –, nasrelações sociais em geral.17

(b) Comunicação em tempo real ou a generalização cultural da dromocratização

Por certo, a realização per se, numa importante esfera social específica, doprincípio dromocrático subsumido no ideal da produtividade industrial teve como resultadodifuso e inespecífico a aceleração da vida humana. Com efeito, a expansão desse valor, emforma de pressão social concreta, para a esfera do tempo livre e de lazer não teria sidopossível sem o concurso exponencial de outro vetor processual, a comunicação em temporeal,18 cujo advento e desenvolvimento, na primeira metade do século XX, alterou,significativamente, as bases sociais e culturais em que a vida humana – até então centradaabsolutamente em contextos presenciais, in loco – estava assentada. O modelo de civilizaçãoentão desencadeado, propriamente mediático (mais que meramente mediatizada) [cf.GUILLAUME (1989, p. 153-175)] – com muitas das práticas sociais se processando,exclusivamente, nas redes comunicacionais –, e que melhor se definiu a partir da Segunda

17 O sistema de administração conhecido sob a cláusula do pós-fordismo, baseado num conjunto distinto de princípiosoperacionais de acumulação flexível, preserva, inteiramente, de sua fonte histórica (de que só aparentemente é umcontradito), o imperativo dromológico. Sobre a flexibilização da acumulação capitalista, indiquem-se Harvey (1992) eKumar (1997).18 Para requalificar, por outro ângulo, o assinalado anteriormente, com base no conceito de vetor. Frise-se, por evocação à nota 10, tratar-se, no caso, exclusivamente, de tecnologias capazes de redes (cf. TRIVINHO,1998). No que isso se relaciona com a categoria do glocal, veja-se Trivinho (1999, Parte II, 2001b, 2004).

8

Page 11: DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA · DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA Contextualização sociodromológica da violência invisível da técnica e da civilização

Guerra Mundial, encarregou-se de inscrever e consolidar, em definitivo, a lógica davelocidade – o sprit du temps dromocrático –, para além da esfera da produção e do trabalho,no universo do tempo livre e de lazer.19 O que o taylorismo e o fordismo representaram dentrodo espaço fabril, a comunicação eletrônica em tempo real – sobretudo se depreendida a partirdas duas macroconfigurações social-históricas por ela conformadas, a sociedade de consumo(cf. BAUDRILLARD, 2000), ancorada na massificação cultural, e a cibercultura (cf.TRIVINHO, 1999, 2001, p. 39-79, 209-227) – representa, a rigor, na vida em geral:20 doponto de vista do processo civilizatório e, em especial, da transmissão cultural, a exploraçãodo filão eletromagnético (para povoamento das redes, por mediação do valor de troca e domercado) é um vetor processual que encerra um princípio operacional de dromocratizaçãogeneralizada da existência.21 Mais ainda, o processo modelar de produção e transmissãocultural levada a cabo pelo conjunto dos media de massa (sobretudo quando capitaneadospela TV, em meados do século passado), com contrapartida na instantaneização da recepçãoaos respectivos produtos, acabou por assimilar, de maneira fatal, a lógica da esfera daprodução e do trabalho à lógica da esfera do tempo livre e de lazer, com o conseqüente eprogressivo apagamento das diferenças estruturais (inclusive de velocidade das práticassociais) verificada entre elas. No que essa mistura homogênea implica especialmente aceleridade de signos da estrutura conteudística dos produtos e da própria oferta mediáticadiária – ambas subordinadas ao imperativo da reciclagem indefinida –, o frenesi cultural dacomunicação eletrônica significa, mutatis mutandis, inoculação do espírito da produtividade(industrial) no espaço cultural e perceptivo doméstico.22

(c) Velocidade tecnológica e excesso

A generalização tecnológica do sprit du temps dromocrático ocorreu, como sesabe, em conjugação, desde o início, com a tendência (econômica e cultural) de condução aoexcesso de todo resultado do trabalho (seja ele qual for), de tudo o que é gerido pelo valor detroca e dirigido ao mercado. Existem conexões íntimas entre a velocidade tecnológica comoprincípio de estruturação e modulação da vida social e o imperativo da saturação ad infinitumcomo telos inexorável de qualquer produção [o desperdício sendo, no caso, a resultantenatural e/ou naturalizada, não por acaso imune ao questionamento público conseqüente]. Aprimeira coordenada propende para a segunda, otimizando-a, e esta, por sua vez, fomentaaquela, num inacabável ciclo vicioso em que se confundem causa e efeito, origem e destino.Nessas condições, o que surge no mundo dos entes já se orienta, em regra, para o excesso –fato tanto mais patente numa fase social-histórica de sofisticação incomparável das forçasprodutivas, de consolidação da necessidade de satisfazer demandas macrossociais (de bens19 Nesse aspecto, os veículos de comunicação levaram incomparavelmente mais longe a roda-viva sociocultural eeconômico-financeira que os veículos convencionais de transporte já haviam posto em avanço na vida cotidiana.20 Não por outros motivos, essa similaridade de funções social-históricas reside na essência da apreensão do fenômenocomunicacional por parte de Adorno e Horkheimer (1970, p. 146-200), ao elaborarem, em 1947, o conceito de indústriacultural como metáfora teórica para politizar o debate a respeito, em confronto com a sociologia conservadora norte-americana de meados do século XX, ancorada no conceito de cultura de massa.21 Isto deve ser (ou deveria ter sido) previsto como característica fundamental da comunicação como utopia, tal comoforjada no momento de nascença da cibernética, com Winner (1996), na década de 40 do século passado (cf. BRETON,1992; BRETON; PROULX, 1991): aceleração simbólica e imaginária – glacial segundo Baudrillard – da existênciamediante alta reciclagem informacional operada pelas estruturas teletecnológicas em tempo real. Sobre as relações entrecomunicação e utopia, veja-se também Mattelart (1994, 2002).22 Fato com significação social-histórica talvez mais profunda (e, com efeito, pouco notada) do que o (e talvez em razãomesma do) processo gradativo de norte-americanização da cultura mundializada, preservado, basicamente, nos produtos doseguimento jornalístico, cinematográfico e fonográfico e, depois, nos modelos predominantes de hardwares e softwares.

Page 12: DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA · DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA Contextualização sociodromológica da violência invisível da técnica e da civilização

materiais e simbólicos) como valor inquestionável, de pulsação diuturna por consumo noimaginário social.

A tese fundamental (de caráter universal) de Bataille a respeito, segundo a quala produção econômica e cultural de grande soma de excedente se subordina à necessidadeantropológica de realização da despesa improdutiva (seja no contexto das relações de poder,competição e prestígio, seja no âmbito da guerra) – Guillaume (1989, p. 7) disse o mesmo:“l’excès est le destin du monde” – comunga, neste ponto, com o postulado sociológico deBaudrillard (1976, 1981, 1983, 1987) acerca da produção hiperreal, saturada, do simulacro(no que se implica toda a comunicação), com fatal repercussão em matéria de simulaçãodissuasiva do real pelo signo, postulado que, de par com a reflexão de Kroker e Cook (1988)sobre a “cultura excremental” (de “excrementos”) – que, não por acaso, muito se deve aosinsights de Baudrillard –, refere-se exclusivamente à fase contemporânea do capitalismoavançado. Por motivos óbvios, a conjunção entre aceleração e excesso é, de fato, maisflagrantemente perceptível no âmbito da própria cultura mediática. Na vigência das redes (demassa e interativas), a produção sígnica diuturna, proveniente de inúmeros pontos detransmissão ao mesmo tempo, culminou, nas últimas décadas do século XX, na formação deuma dromosfera simbólica e imaginária altamente saturada, condição histórica eantropológica inédita em que, segundo Virilio (1995, p. 35-48, 75-87), a “poluição” ruidosadas redes, vale dizer, do tempo real, faz par, ao seu modo, com a poluição sonora e visual daurbis e com a poluição carbônica do meio ambiente.23 A dromosfera mediática é – vale aindadizer – inteiramente sobredeterminada pela lógica tautística (isto é, autista, tautológica etotalitária) caracterizada por Sfez (1994),24 a qual demarca uma tendência estrutural de puracircularidade pantópica de informações e imagens, de puro fluxo recorrente, pleonástico esem finalidade de significantes, em que o sentido (dos enunciados, mas também o da própriavida, em sua circunscrição moderna) comparece como vítima mais notável em prol daconvalidação cega (à falta de melhor adjetivo) do funcionamento do todo (cf. TRIVINHO,1998, 2001, p. 39-58)

(d) Interatividade como protocolo conservador de dromocratização da existência

Na extremidade mais desenvolvida da civilização mediática, no trecho social-histórico mais sofisticado do processo de dromocratização da existência, constata-se, hoje, aplenificação extensiva da cibercultura. As características estruturais e dinâmicas dessacategoria de época já foram traçadas em momento pregresso à presente pesquisa(TRIVINHO, 1999, 2001, p. 209-227, 2003a, 2003b, 2004) e não precisam ser aquicircunstanciadas.25 Sublinhe-se, com efeito – no que interessa ao fluxo da argumentação –,que, se os media de massa consolidaram no social o sprit du temps dromocrático para além domuro fabril, o enraizamento mais agudo desse processo acabou por se realizar somente pormeio da proliferação social de computadores pessoais e redes interativas, com lastro nainformatização progressiva da esfera do trabalho e do espaço doméstico e na virtualização eciberespacialização do mundo. Nesse contexto, se, do ponto de vista histórico-antropológicoda cadeia de transmissão da cultura, comunicação eletrônica significa vetor processual de

23 Sobre a fenomenologia (empírica) do excesso no cyberspace, poluição virtual então apreendida pelo conceito de lixo –“lixo de dados” –, vejam-se Kroker e Weinstein (1994).24 Veja-se também (TRIVINHO, 1998).25 De toda forma, a temática é retomada no tópico seguinte.

10

Page 13: DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA · DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA Contextualização sociodromológica da violência invisível da técnica e da civilização

dromocratização da existência, na cibercultura, o procedimento prático-operacionalsocialmente padrão e protocolar correspondente, já instaurado como habitus (cf.BOURDIEU, 1982, 1983, 2001), chama-se interatividade. Sob a égide do comportamentointerativo, como modelo predominante de relação com a máquina, com a rede e, por meiodelas, com a alteridade [reduzida a espectros (cf. GUILLAUME, 1989)] e como modo deestar e de agir politicamente conservador, em atendimento às exigências de reproduçãosocial-histórica da cibercultura, “cotidianiza-se”, de modo radical (e como que a “docefórceps”), a relação com a velocidade tecnológica. A época a “tatiliza”, ou melhor, a“sensorializa” inteiramente, por assim dizer, na medida em que tal relação é, por mediação domercado, trazida para o centro da vida prosaica, para dentro do domo (no caso doscomputadores de base) e/ou acoplada ao corpo (no caso dos laptops, notebooks etc.),realizando-se por contato manual e subjetivo mais direto e contínuo do que na relação com osmedia de massa.

II – DROMOCRACIA CIBERCULTURAL TRANSPOLÍTICAOrganização invisível da violência da técnica

1. Dromocracia como macroconfiguração social-histórica

Entre a reverberação sociofenomenológica da velocidade (relativa) fincada emvetores convencionais de deslocamento (conforme anteriormente abordados) e aquela(absoluta) doravante especificada, há, com efeito, uma inflexão de monta, cuja notaçãoresulta essencial para a apreensão mais definida do estado da arte da matéria.

A consolidação transnacional da velocidade como comunicação em tempo realrepresenta, em si mesma, para além de sua expressão setorial, fragmentária, atrelada aoterritório geográfico, a vigência do dispositivo sociodromológico como regime estrutural euniversal, de caráter sistêmico definido, numa palavra, como dromocracia, em sua tipificaçãomediática. Nessas condições, o conceito de dromocracia expressa bem aquilo de que se trata:a velocidade técnica e tecnológica equivale a um macrovetor dinâmico exponencial deorganização/desorganização e reescalonamento permanente de relações e valores sociais,políticos e culturais na atualidade.

Se o imperativo dromológico tutelou a vida humana desde o início,confundindo-se com a própria gestação da técnica como invenção antropológica, deve-seressalvar que nem sempre ele se alçou a configuração social-histórica com legitimidade evalidade geral, dotada de autonomia em relação à capacidade política de controle por parte doente humano. Até que o império vetorial da velocidade se converta efetivamente emdromocracia estendida, um estirão temporal de longa duração terá, portanto, se processado.Em cumprimento à essência de seu conteúdo, a dromocracia só se evidencia em condiçõesavançadas de desenvolvimento tecnológico e social. Sua consolidação como regimepropriamente dito ou, melhor (à falta de sinonímia mais apropriada), como “sistema” globalconfigura, pois, matéria recente.

Tal dado não implica, necessariamente, que a dromocracia não existia –mesmo inscrita em gérmen, em processos locais e atividades parcelares ou como fonte dequalificação dos mesmos – em fases pregressas da história. Virilio (1996, p. 67-77) ilustra,com detalhamento factual, que os princípios constitutivos da dromocracia, atrelados aos

Page 14: DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA · DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA Contextualização sociodromológica da violência invisível da técnica e da civilização

interesses de guerra, já estavam assentes, no âmbito da inteligência logística, estratégica etática, na época da formação do Império Romano. A dromocracia assim comparece comestatura mais setorial e concentrada, embora com reconhecida expressividade e violência, porvinculação a grupos ou a estratos sociais de privilégio e/ou de ofício. Sua manifestaçãofenomenológica atinha-se, por isso, exclusivamente, à categoria de processo, não à deestrutura dinâmica a que porventura poderia pertencer.

Tomada desde os seus rudimentos vetoriais até a sua modalidade presente, adromocracia – vê-se, em suma –, de recurso estratégico ligado a tribos nômades e acoordenadas espaço-temporais específicas, vai, no compasso do desenvolvimento técnico etecnológico civilizatório, erigindo-se, de modo aleatório, e se conformando, em consonânciaauto-identitária – para além da hierarquia e/ou dominância de classes ou estratos sociais –,como regime social invisível (como tal, transpolítico, conforme adiante explanado)justamente no miolo íngreme de outro, bem conhecido da cultura ocidental, a democracia, emsua expressão formal (política, jurídica e, portanto, abstrata, derivada do legado burguêsoitocentista).

Nessa perspectiva, a historiografia contemporânea, se calcada em princípiosheterodoxos de reconstituição teórica e factual da aventura humana, haverá certamente dereconhecer – quem sabe em futuro próximo – que a história real do capitalismo foi e é menosa da consolidação da democracia a duras penas, à base de confrontos pungentes e perduráveis,do que a realização não-programada, tortuosa mas progressiva, indiscriminada e semresistência da dromocracia. Nesse contexto, sobreleva-se, por motivos óbvios e não semrequintes de racionalidade tecnocientífica, o braço industrial do capitalismo e, mais ainda, oseu estirão cumulativamente subseqüente e hegemônico, pós-industrial ou tardio, de basefinanceira e doravante hipermediática, articulada por satélites digitais e fincadas em redesvirtuais, de alcance regional, nacional e/ou internacional.

Assim se põe, portanto, o estado da arte da velocidade tecnológica: na medidaem que os seus vetores objetais e processuais predominantes – tecnologias e procedimentoscomunicacionais – são, ipsis literis, os mesmos que sustentam o modus operandi dacibercultura, ela, desde, ao menos, meados da década de 70 do século passado, arranja-se, noplano social-histórico, como dromocracia cibercultural (cf. TRIVINHO, 2001a, p. 209-227,2002, 2003a, 2003b, 2004). Se, por razões seja de política da teoria, seja de consistênciametodológica historicamente contextualizada, não é possível abordar os media e redes digitaissem levar em conta a sua ligação com a velocidade tecnológica e com o que social eculturalmente lhe diz respeito, também não é possível abordar o fenômeno da dromocraciasem, ao mesmo tempo, considerar a cibercultura, a relação inversa, no caso, sendo igualmenteverdadeira. Ao mesmo tempo em que a dromocracia assume a sua condição tecnológica plenacomo cibercultura, esta se insere plenamente na história dos vetores dromológicos objetais eprocedimentais, vis-à-vis, na história dos pressupostos empíricos e práticos sine qua non dopróprio processo de constituição da dromocracia.

12

Page 15: DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA · DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA Contextualização sociodromológica da violência invisível da técnica e da civilização

2. Modus operandi dromocrático-cibercultural Violência invisível da técnica sofisticada

Sob lastro na história de exclusão endêmica do capitalismo, uma nova lógicada desigualdade se estrutura obviamente à sombra da condição dromocrático-ciberculturalda existência. A matéria também foi abordada em outros momentos da presente investigação(TRIVINHO, 1999, Parte I, Cap. V-VII, 2001a, p. 209-227, 2001b, 2002, 2003a, 203b). Suamenção, neste trecho, deve-se menos a motivos de ênfase do que à oportunidade decontextualizá-la em bases epistemológicas complementares.

A velocidade tecnológica, quando urdida em estrutura dinâmica universal,cria, como que de forma endogenamente autônoma, a partir das pressões materiais,simbólicas e imaginárias da organização do trabalho e do lazer, as suas próprias demandasrecorrentes. A nova lógica da desigualdade gira em torno do imperativo da dromoaptidãopropriamente cibercultural (cf. TRIVINHO, 2001a, p. 209-227, 2002, 2003a) como capitalsimbólico necessário para a manifestação individual, grupal, empresarial e institucional nosocial em rede. A capacidade de ser veloz abrange a competência econômica orientada para aposse privada plena (isto é, a partir do domo) das senhas infotécnicas de acesso à época(objeto infotecnológico e rede digital à frente), a competência cognitiva e pragmática no tratoda sociossemiose plena da interatividade (isto é, o domínio das linguagens informáticassempre em mutação); e a capacidade (econômica e cognitiva) de acompanhamento da lógicada reciclagem estrutural daquelas senhas (vale dizer, do movimento progressivo deotimização da mais-potência de hardwares, softwares e demais fatores informáticos, quecompromete o que é anterior em nome do que vem depois, ideologicamente valorado comosendo melhor) (cf. TRIVINHO, 1999, Parte II, Cap. IV, 2001b, 2003a). Na medida em que adistribuição social das senhas infotécnicas, da dromoaptidão conforme e, portanto, dosacessos, realizada via mercado, é aleatoriamente desigual – e se, por um par de anos, fosseeqüitativa, não resistiria à lógica da reciclagem estrutural –, arranjam-se, como princípio sejade causação, seja de reverberação encadeada, as condições propícias de produção de umaestratificação sociodromocrática flexível em cujo topo figura a nova casta dos privilegiados,a elite cibercultural dromoapta, que opera quase inteiramente no filão virtual do tempo real ejá nem toca mais o solo próprio das zonas urbanas, então convertido em lugar (morto) depassagem (VIRILIO, 1984b), visto a partir do automóvel, do helicóptero ou do jato particular;e em cuja parte inferior se confina uma extensa e espessa área povoada por um “proletariado”historicamente reescalonado, assim converso em “camada social dromoinapta” pelo modusoperandi sistêmico da cibercultura, ordem renovada de seres descartáveis a cujos cérebros opresente lança a sobrecarga de defasagem patrocinada pela miséria informática socialmenteproduzida e a cujos corpos ele distribui, inapelavelmente, o universo atômico do territóriogeográfico, tão antigo e supostamente ultrapassado quanto aquela (parte da) humanidade quese serve dos pés como vetor de deslocamento.26 A lógica dromocrático-cibercultural da novasegregação se refrata a partir de e se alimenta desta hierarquização que re-valora a vidahumana em prol da continuidade indefinida de sua desqualificação ampliada, doravante sobos auspícios róseos das tecnologias e redes digitais.27 Esse modus operandi fomenta uma sorte26 Sobre os ombros de quem é (ou se dá o direito de ser) tecnologicamente “lento” a época faz recair o peso do preconceitodromológico em curso. Somente quem se mostra conforme a doxa (o que significa dizer: somente quem o consegue) escapaa essa forma de violência simbólica. A crítica a essa nova circunstância da moral prática deveria iniciar o seu mister pelarevisão das relações entre tolerância social como princípio ético desejável e velocidade como valor de referência para o juízosubjetivo sobre a alteridade.27 O fato de as potencialidades dessas tecnologias e redes não cessarem de ser celebradas, aos quatro cantos, de modofetichista, pelo ciberufanismo neo-iluminista, neo-humanista e pragmático-utilitário que adorna tanto as Universidades e o

Page 16: DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA · DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA Contextualização sociodromológica da violência invisível da técnica e da civilização

de hiper-reducionismo antropológico e tecno-operacional a vida social a uma condiçãoneomaniqueísta de extremidades estáveis – só mudam os respectivos ocupantes ou agentes –em cuja larga zona intermediária, lembre-se, coexistem, à sombra de uma insegurançasistemática, camadas sociais verticalmente escalonadas de acordo com a potência dadromoaptidão cibercultural conquistada e periodicamente reconfirmada. A esseneodarwinismo hiperdinâmico da cibercultura corresponde, em âmbito global, obehaviorismo calcado na (apropriação social da) interatividade que, por definição e condiçãode contexto (sobretudo em razão da lógica da reciclagem estrutural), não pode ser estendido atodos. O horizonte da dromocracia tecnológica avançada é fortemente identitário a umaespécie de eugenia simbólica tão dinâmica quanto surda, de amplos efeitos concretos eimprevisíveis.

Esses breves apontamentos bastam, com efeito – por razões que se reputamóbvias –, para recontextualizar a forma contemporânea e predominante da violência datécnica, em correspondência à fase histórica idiossincrática de organização planetária docapital como cibercultura internacional. Trata-se de uma violência sutil, estruturalmentematerializada e processualmente objetivada na dinâmica tecnológica, autônoma e impessoaldo social. Conforme assentado em outro lugar (TRIVINHO, 2001a, p. 219-220), a segundametade do século XX, em especial, as últimas três décadas, tornou-se – só em aparênciaparadoxalmente – não o locus histórico da democracia, mas o de uma dromocraciaimplacável, tomada como algo tanto mais inócuo quanto mais se a considere parte inelidívelda ordem natural das coisas.28 Em tintas enfáticas, se velocidade é, necessariamente, violência(cf. VIRILIO, 1977, 1984a, 1984c; TRIVINHO, 2001a, p. 209-227, 2001b, 2002, 2003a,2004), a dromocracia cibercultural, como não poderia deixar de ser, é, em essência, terror(TRIVINHO, 2002, 2003a) – aqui já não tanto pelos nexos imanentes entre velocidade eprocesso bélico ou em razão de a velocidade implicar-se na espiral da morte simbólica (dageografia, do corpo, da alteridade concreta etc.). A condição dromocrática da ciberculturaexige que a violência high tech seja introjetada e atuada: a dromoaptidão em relação às senhasinfotécnicas de acesso (ao mercado de trabalho, ao cyberspace, ao lazer digital, à alteridadevirtual etc.) deve se converter em habitus (cf. BOURDIEU, 1982, 1983, 2001), modo de ser,de estar e de agir diuturnamente reconfirmado até a simbiose imaginária e o acoplamentocorporal com o vetor implicado consolidarem o automatismo subjetivo e prático requerido. Oideal cínico da cibercultura é o homo dromologicus com a consciência feliz e despreocupadado homo ludens. Dessa maneira, a violência da técnica avançada adquire, de tão invisível, o arque lhe talha a sofisticação e a imunidade que também a redime de todo questionamentopúblico.

3. Transpolítica da condição dromocrática

Estado, quanto o chamado terceiro setor (ONGs) e o discurso empresarial em geral deve-se menos a uma visão ou concepçãocega sobre problemas e tendências da civilização mediática avançada do que a uma posição (política) consciente ouinconscientemente conservadora: com ele (o discurso pregador do momento), como com a interatividade diariamentepraticada (seja por prazer, seja por necessidade), faz-se o jogo (da reprodução) da ordem e da regra.28 A modalidade contemporânea de totalitarismo global – que, não obstante, se nega diuturnamente como tal –, Império, nacategorização de Negri e Hardt (2001), na medida em que só podia se realizar com base em tecnologias e redes audiovisuaisem tempo real, ou é uma construção social-histórica, econômico-financeira e político-militar própria da velocidade (nosentido de ser condicionada e conformada por ela, em versão mediática), ou não o é. Império, tal como então caracterizado,foco contextual privilegiado da crítica socialmente orientada, é uma realidade dromocrático-mediática, de forte base bélica.A coincidência histórica de sua estruturação internacional com a vigência da cibercultura não deve ser tomada como casual,muito menos ser objeto de condescendência.

14

Page 17: DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA · DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA Contextualização sociodromológica da violência invisível da técnica e da civilização

A invisibilidade do modus operandi dromocrático-cibercultural –invisibilidade fenomenologicamente paradoxal, como transparência marcantementeimperceptível (que indica que, para todos os efeitos, tudo se põe a olhos vistos, cabendo àpercepção realizar o trabalho de parto) – patenteia a sua natureza transpolítica. Talcaracterística requalifica, em cadeia, necessariamente, tudo o que por ele e a partir dele éengendrado.

O conceito de transpolítica já recebeu tratamentos distintos por parte deBaudrillard e de Virilio. Para Baudrillard (1983, 1985, 1990), a transpolítica nomeia acondição internacional do poder político (em seu sentido institucional e também extensivo,regrado pela dialética) na época da Guerra Fria. Equivale, basicamente, a uma condição decongelamento estrutural do movimento da história em função da racionalidade nuclear dosdois blocos de poder que se neutralizavam por ameaças e chantagens recíprocas, proibindo-se, ambos, de dar passos à frente (em matéria de expansão de domínios) pelo temor derepresálias. Como configuração social-histórica global, a transpolítica viceja somente a partirdo desenvolvimento tecnológico bilateral e relativamente eqüitativo da produção instantâneada morte em massa. Nessa bipolaridade estacionária do terror, a transpolítica evidencia,assim, a impotência ou, antes, a impossibilidade da política, mas num sentido que, comefeito, não deixa de guardar certa positividade: paradoxalmente, representa a única garantiaviável contra a aniquilação total da espécie.29 Em Virilio (1978, 1984a, 1984c), o conceito,igualmente referido à Guerra Fria, se liga, por seu turno, ao processamento da guerra pura,guerra no âmbito (do domínio) da velocidade, processada no hic et nunc, mas em totalinvisibilidade do ponto de vista das práticas civis. Realizando-se pelo vetor político,conforme articulado no e pelo Estado, a transpolítica, assim processada em dimensãoinsondável (fora do campo de percepção comum), faz-se, no político, para além dele, com aagravante de pressupor a liquidação de ambos, política e Estado, como instâncias legítimas deponderação, negociação, decisão e controle em e sobre situações extremas. A condiçãotranspolítica encerra aspecto necessária e totalmente prejudicial. Nela, multiplica-se eaprofunda-se a ameaça de destruição total, na medida em que a eventual resposta defensiva aum ataque nuclear real, cumprindo-se pelo acionamento de um botão de emergência em nomeda segurança nacional,30 resta inteiramente marcada (e corroída) pela ausência de tempo parao pensamento racional, esteio histórico, técnico e estratégico de toda ação política (sobretudo

29 A dissolução em cadeia do cinturão de países alinhados ao marxismo soviético (cf. MARCUSE, 1984) comprometeu,

evidentemente, essa caução vital ao dissolver a lógica do terror e o tênue equilíbrio de poder a ele subjacente. Sabe-se que ocenário internacional pós-Guerra Fria, marcado pelo antagonismo não dialético entre terrorismo de Estado e terrorismo degrupos-rede, vale dizer, entre estatização do terror como racionalidade legítima e “etnização” da política da violênciahistórica – situação que Virilio (2004) logo tomou pelo conceito (tão expressivo quanto auto-elucidativo) de época do“pânico frio” –, é, por incrível que pareça (e por mais alheio que tal cenário seja ao modus operandi da ameaça nuclear),pior que a fase bélica precedente. O descongelamento da política, selado pela suposta recondução desta ao patamar deorigem, não significa senão liberação (e multiplicação) do terror (como prática de destruição) da própria lógica do terror(como diplomacia institucionalizada), pelo que a gradação da barbárie vê-se assim descambada a níveis mais imprevisíveis.A conseqüente unilateralidade irrecorrível de uma supremacia bélica global – a da OTAN, que, sob a liderança dos EUA,assim se alça à condição de polícia planetária consuetudinária (isto é, não legítima, do ponto de vista internacional formal,aquele dos tratados) – afigura-se infinitamente mais perigosa (em nome da liberdade) que a virulência militarpermanentemente incutida, de modo obliterado, no tecido social, político e cultural na época da chantagem nuclear. [AGuerra Fria pode ter-se aplacado (relativa ou totalmente) com a queda do muro de Berlim, mas a condição transpolíticaperdura, comprovando o seu potencial de transcendência e de acomodação a contextos com modus operandi distinto.] Acerteza da ausência estrutural de contraponto eficaz – impossível (a contar pelas tendências presentes) de ser forjado em earticulado por organismos internacionais multilaterais, como a ONU – fustiga, com agrados sedutores, sob o esteio de umsistema financeiro concentracionário, a arrogância tão íntima de todo imaginário triunfal, ao invés de contribuir para a suacontenção necessária, função doravante assumida por uma comunidade internacional amputada de meios compensatórios, decontrabalanço ou de pressão eficazes e por uma sempre olvidada potência de resistência e de revolta de movimentosantiglobalizatórios, calcados num eixo articulatório intermitente e num projeto comum de caráter precário. (Não raro, sãoconfundidos como parte do jogo do terrorismo de grupos, em extemporânea reposição da paranóia macarthista dos anos 50do século passado).

Page 18: DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA · DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA Contextualização sociodromológica da violência invisível da técnica e da civilização

no sentido moderno da expressão) e que exige tempo (duração) (VIRILIO, 1984c, p. 35-37).Em suma, a necessidade legítima de revide fica, pois, entregue à incerteza generalizada eirreversível. Cumulativamente, a natureza dessa condição histórica se liga a (e se nutre de)uma mimese institucional fatal: para neutralizar o impacto peculiar ao terrorismo de grupos,os Estados nacionais precisam espelhar-se no que combatem; tornam-se também terroristas,subordinando-se à espiral de atos pilotos de assalto militar, de simulação tática, de tomadarepentina de espaços, de assunção de vantagens simbólicas, enfim, de luta por supremacia sobo crivo da urgência, que exigem sempre que o beligerante provocado firme posição a respeito,com a agravante de tudo se processar sem nenhuma declaração efetiva de guerra. Diante dofenômeno transpolítico, Virilio (ibid., p. 35), num claro empuxe modernista, advoga apremência de se impedir tanto a extemporaneidade do político (como vetor de articulação dadinâmica social), quanto a erosão de seu potencial ou a sua dissolução definitiva. O políticoprecisaria – tanto mais nesse contexto – recobrar, por assim dizer, a sua função social-histórica (como eixo) de restauração das medidas compatíveis com a negociação mínima e deconsolidação e regulação de um protocolo credível e viável de ação da comunidadeinternacional, em nome da economia do pior ou, em hipótese mais promissora, da reversãodesse estado de coisas. Entretanto, o Estado e a política, envoltos na produção e noreescalonamento da lógica do próprio terror, testemunham-se incapazes de lidar com asintempéries tecnológicas da condição transpolítica da guerra pura. O impasse, assim, se jogaem espiral viciosa e infinda, cuja permanência radica na necessidade obsessiva e sine qua nonde preservação da supremacia sob o fantasma da ameaça do outro.

Note-se, en passant, que, tanto para Baudrillard, quanto para Virilio, atranspolítica remete à questão bélica. Em particular, para Virilio (ibid., p. 33), política eguerra se postulam e se definem em relação inversa àquela proposta por Clausewitz: a políticanada mais é que a continuidade da guerra em outras bases, em contexto de armistício, de pazcontrolada (e armada), sob a égide da neutralização ou suspensão temporária (oficial ou não)da ameaça bélica total; e a guerra, a realização da essência da própria política. (Do que sedepreende, necessariamente, que, não havendo disjunção entre guerra e paz, a relação entreâmbito civil e campo militar é muito mais indistinto do que se imagina.) A transpolítica, porseu turno, não deixa de ser uma forma de, realizando a guerra pura, dissuadir tal relação.

Com nuances identitárias e, ao mesmo tempo, diferenciais em relação aoexposto, o conceito de transpolítica nomeia, no âmbito do presente ensaio, a naturezarefratária de acontecimentos, processos e tendências sociais que se autolegitimam e seconsolidam aquém ou para além do potencial de previsão, administração, gerenciamento oumonitoramento por parte da política e das instituições herdadas do projeto da modernidade. Adiferença se prende, em especial, à amplitude factual do significado do conceito.Independentemente de qual seja o processo bélico em curso, a transpolítica cobre todos osfenômenos sociotécnicos (duráveis ou efêmeros) – também aqui extremos, para evocarBaudrillard (1990), no sentido de heterodoxos, inesperados e impactantes – que, quandoinsurgem e lastreiam repercussões, não passam (ou provam não terem passado) nem direta,nem indiretamente, pela contabilidade do vetor político, tal como correntemente epicentradona esfera estatal; escapam, pois, ao olho das instituições, antes de vigorarem meramente comoobjeto de indiferença ou de negligência por parte delas. Vicejam, fundamentalmente, no epelo mercado e de acordo com as suas flutuações, que, hoje mais que outrora, tudo derampara “regular”; e o mercado são, efetiva ou potencialmente, multidões segmentadas (pordesejos-padrão de investimento em marcas, signos mediáticos e “valores agregados”) e

30 Botão que, como sinedóquica ponta de um sintomático iceberg, implica a instantaneidade do tempo real (velocidade-luz)em três fatores simultâneos e convergentes: tecnologia informática, tecnologia bélica e interatividade.

16

Page 19: DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA · DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA Contextualização sociodromológica da violência invisível da técnica e da civilização

estruturalmente desorganizadas, agindo de forma aleatória, segundo o imediatismo (legítimo)de necessidades materiais e/ou de desejos conscientes ou inconscientes.

De modo conexo, a transpolítica designa a condição da própria política nessecontexto de (experimentação historicamente inédita de uma) auto-extemporaneidade e auto-anulação íntima em relação à sua capacidade logística, executiva e/ou preventiva, de auto-estranhamento irresolúvel e inominável em relação ao cumprimento de sua função histórica,institucional e pública, seja por ter sido ultrapassada pelo turbilhão dos acontecimentos, sejapela sua compreensão lacunar a respeito da lógica do movimento e da complexidade do socialcontemporâneo, seja ainda por sua defasagem de desempenho diante da dromoaptidãofactual e operacional do mundo. Em síntese, a transpolítica diz respeito a tudo aquilo para oque a política, em seu modelo realizado, com seus recursos institucionais de praxe, não estápreparada.31

Por motivos demonstrados, quando a condição dromocrática estrutural daexistência – a das últimas décadas hipermediáticas – entra em sua fase transpolítica, são osprocessos e tendências idiossincráticos da cibercultura que, na verdade, assim se colocam intotum, de maneira autopoiética e auto-referencial. Esse liame inexorável justifica a melhorconjuminação e o polimento da epistème em curso. A dromocracia, em seu estado de arteatual, equivale, no fundo, à configuração sociotecnológica trans-institucional – dinâmica emsua inércia estrutural e intransitiva – da democracia formal (de base industrial e/ou pós-industrial) como configuração social-histórica do imaginário político moderno, doravantefincada na imaterialidade mediática em tempo real. Em palavras mais precisas, com efeito, aempiria de uma categoria em jogo transfere obviamente a sua carga de sentido para as duasoutras e das desta simultaneamente se alimenta, em retroação, numa cadeia desobredeterminação cumulativa e indefinida: dromocracia cibercultural transpolítica,organização social-histórica avançada e invisível da violência da técnica sofisticada. Atranspolítica envolve, portanto, o “edifício” inteiro da velocidade, sobretudo no que ele temde mais intersticial: a imperceptível hierarquia dromodarwinista vigente, a produção socialda desigualdade e segregação dromológicas e a silenciosa eugenia informáticadesqualificatória. A violência da técnica própria do modus operandi da condiçãodromocrática é transpolítica tanto por sua invisibilidade operacional, quanto pelo fato de –conforme anteriormente sinalizado – ela se realizar, idêntica e inteiramente, ao largo doregistro político institucional. (Não por acaso, os dois processos se remetem e se completamem via única.) Em particular, isso radica, antes de mais, no fato de que, diante da lógicadromocrática do parque cibertecnológico internacionalmente vigente, o aparato institucionalherdado da modernidade, considerado em sua atuação tanto nacional, quanto global, dispõede potência grandemente arrefecida, inferior mesmo à de um instrumento sem valor de troca.Diferentemente, o capital, em matéria de produção de padrões e ciclos de mudança, emconcatenação com as demais organizações e entidades não-governamentais – tomada, pois,aquela produção em bloco –, costuma ser mais veloz que a operação de todas as instituiçõesestatais somadas. Diante das injunções da dromocracia cibercultural, o Estado comparececomo instância politicamente dromoinapta. Essa impotência indexa, por seu turno, os demaisaspectos envolvidos. Inteiramente desguarnecido em relação à fenomenologia transpolítica dacibercultura, com um imaginário político extemporâneo à lógica dromotecnológica da históriae do contexto e aos problemas e necessidades sociais daí dimanados – lógica da qual édoravante mais produto que agente –; amplamente defasado, por isso, em matéria de

31 Constitui equívoco de base, portanto, considerar a transpolítica como ainda (pertencente aos quadros da) política. Atranspolítica é o que, de partida e em essência, se põe como protopolítico e/ou metapolítico – nos dois sentidos, aquém ealém de seu referente descartado.

Page 20: DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA · DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA Contextualização sociodromológica da violência invisível da técnica e da civilização

inteligência planificadora e pragmática para o fomento de políticas públicas compensatóriase/ou corretivas universalmente adequadas, consistentes e eficazes, o Estado não se apresenta àaltura da missão histórica que, na esteira do iluminismo de que é depositário e do qual écaudatário, lhe caberia cumprir:32 interromper a cadeia de reprodução social-histórica daviolência sociodromocrática cibercultural, mediante a geração de mecanismosmacroeconômicos de distribuição socialmente eqüitativa das senhas infotécnicas de acesso (oque começa com a desconcentração estrutural da riqueza e com a redistribuição da rendanacional) para condicionar o acesso coletivo (mais equilibrado e com menor taxa deexcepcionalidades) à sociossemiose plena da interatividade. É de se levar em conta e à frente,no entanto, a dúvida sobre se, de fato, o Estado deseja realizar algo na direção daciberaculturação em massa doravante socialmente demandada.33 [O sistema escolar privado eo cinturão de retaguarda social constituído por fundações, ONGs, instituições religiosas,meios de comunicação e demais entidades sociais (que oferecem cursos introdutórios paramembros de todas as faixas etárias e de categorias sociais desfavorecidas, no afã de“democratizar” o domínio daquela sociossemiose) encontram-se, igualmente, desarticuladas edespreparadas para solver definitivamente a questão.) O capitalismo cibertecnológicointernacionalmente entretecido pela Web e pela lógica da reciclagem estrutural, bem como omercado de trabalho que delas se alimenta nas metrópoles, grandes cidades e demais zonasurbanas relativamente abastadas podem – da produção ao consumo – se refazer, a cada ciclo,a partir de percentuais de adesão de massas relativamente mínimos. A fermentação doproblema aumenta ano a ano com a desqualificação progressiva da força de trabalho coletivapela reciclagem estrutural contínua e pela produção social do subemprego e do desempregotecnológicos. Nessa (des)medida, a condição dromocrática da existência contém, na essênciade seu conteúdo, uma necessidade compulsória insuperável de convivência e de jogo com esob tais injunções de época.

* * *

A demonstração e dissecação da violência sutil da técnica sofisticada –doravante organizada como dromocracia cibercultural transpolítica – sela, assim, o ciclo daargumentação sobre as relações entre condição dromocrática, história ocidental e processocivilizatório ou, num continuum, sobre o processo social-histórico de dromocratização técnicae tecnológica da vida humana, ciclo que se estima minimamente capaz de, a um só tempo,contextualizar melhor – reconsiderando, de modo heterodoxo, fatos, objetos, processos etendências – a cibercultura como época tecnológica contemporânea e, como contra-faceinextricável, a categoria da crítica teórica como princípio cognitivo e ético sine qua non, emprol de sua mobilização intelectual e cultural em bases teoricamente reconstituídas eepistemologicamente renovadas.

Referências bibliográficas

ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialéctica del iluminismo. Buenos Aires:SUR, 1970.32 A começar, aliás, pelo dever de ética institucional, visto que ele é sustentado para tal missão, via tributação generalizada.33 Em irônica paralelidade ao conhecido postulado de Marx, a dromocracia cibercultural cria problemas cuja solução, aindaque já disponível, não encontra mecanismos seguros para consumá-la com consistência e durabilidade, como forma decumprimento do princípio de universalização do benefício do acesso.

18

Page 21: DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA · DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA Contextualização sociodromológica da violência invisível da técnica e da civilização

BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento. SãoPaulo: Martins Fontes, 2001.

BATAILLE, Georges. A parte maldita. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

BAUDRILLARD, Jean. Simulacres et simulations. Paris: Galilée, 1981._______. Les stratégies fatales. Paris: B. Grasset, 1983. _______. What are you doing after the orgy?. Traverses, n. 29, p. 2-15, out. 1983._______. L'an 2000 ne passera pas. Traverses, n. 33-34, p. 8-16, jan. 1985._______. L'autre par lui-même. Paris: Galileé, 1987._______. Au-delà du vrai et du faux, ou le malin génie de l’image. Cahiers Internationauxde Sociologia, v. 82, p. 134-145, 1987._______. Asphyxie de la communication. Comunicação&política-Revista do CentroBrasileiro de Estudos Latino-Americanos (CEBELA), São Paulo, Oito de Março, v. 9, n. 2, 3e 4, p. 109-114, jun./dez. 1989._______. A transparência do mal: ensaios sobre os fenômenos extremos. São Paulo:Papirus, 1990._______. A sociedade de consumo. Lisboa: Ed. 70, 2000. (Col. Arte e Comunicação).

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. In: COSTALIMA, Luiz (Org.). Teoria da cultura de massa. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. p.209-244.

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1982. (Col.Estudos)._______. Esboço de uma teoria da prática; Gostos de classe e estilos de vida; O campocientífico; A economia das trocas lingüísticas. In: ORTIZ, Renato (Org.). Pierre Bordieu:Sociologia. São Paulo: Ática, 1983. p. 60-61, 82-121, 122-155, 156-183._______. O poder simbólico. 4 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

BRETON, Philippe. A utopia da comunicação. Lisboa: Instituto Piaget, s.d. [originalfrancês: 1992] (Col. Epistemologia e Sociedade, 11).

BRETON, Philippe; PROULX, Serge. L’explosion de la communication: la naissance d’unenouvelle idéologie. Paris; Montreal: La Découverte; Boréal, 1991. (Col. Sciences et Société).

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio deJaneiro: Ed. 34, v. 5, 1997.)

GUILLAUME, Marc. La contagion des passions: essai sur l'exotisme intérieur. Paris: Plon,1989.

HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como ideologia. Lisboa: Ed. 70, 2001.

HARVEY, David. A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudançacultural. São Paulo: Loyola, 1992.

HEIDEGGER, Martin. Essais et conferénces. Paris: Gallimard, 1958.

Page 22: DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA · DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA Contextualização sociodromológica da violência invisível da técnica e da civilização

KROKER, Arthur; COOK, David. The postmodern scene: excremental culture and hyper-aesthetics. Houndmills: Macmillan, 1988.

KROKER, Arthur; WEINSTEIN, Michael. Data trash: the theory of the virtual class. NewYork: St. Martin’s Press, 1994.

KUMAR, Krishan. Da sociedade pós-industrial à pós-moderna: novas teorias sobre omundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986._______. O pós-moderno explicado às crianças. Lisboa: Dom Quixote, 1993.

MARCUSE, Herbert. Ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro: Zahar, 1967._______. El marxismo soviético. 5. ed. Madrid: Alianza, 1984.

MATTELART, Armand. A invenção da comunicação. Lisboa: Instituto Piaget, s.d. [originalfrancês: 1994]. (Col. Epistemologia e Sociedade, 42)._______. História da utopia planetária: da cidade profética à sociedade global. PortoAlegre: Sulina, 2002.

NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Império. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2001.

SFEZ, Lucien. Crítica da comunicação. São Paulo: Loyola, 1994.

TRIVINHO, Eugênio. Cyberspace: crítica da nova comunicação. São Paulo: Biblioteca daECA/USP, 1999. 466 p._______. O mal-estar da teoria: a condição da crítica na sociedade tecnológica atual. Rio deJaneiro: Quartet, 2001a._______. Glocal: para a renovação da crítica da civilização mediática. In: FRAGOSO, Suely;FRAGA DA SILVA, Dinorá (Org.). Comunicação na cibercultura. São Leopoldo:Unisinos, 2001b. p. 61-104._______. Cibercultura, iconocracia e hipertexto: autolegitimação social na era da transpolíticae dos signos vazios. Galáxia: revista transdisciplinar de comunicação, semiótica, cultura-Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUC/SP, São Paulo,EDUC, n. 1, p. 111-125, abr. 2001c._______. Velocidade e violência: dromocracia como regime transpolítico da cibercultura. In:PORTO, Sérgio Dayrell (Org.). A incompreensão das diferenças: 11 de setembro em NovaYork. Brasília: IESB, 2002. p. 257-272. (Série Comunicação)._______. Cibercultura, sociossemiose e morte: sobrevivência em tempos de terrordromocrático. In Fronteiras: estudos midiáticos-Revista do Programa de Pós-Graduação emComunicação da Unisinos/RS, São Leopoldo, vol. V, n. 2, p. 97-124, dez. 2003a._______. Estética e cibercultura: arte no contexto da segregação dromocrática avançada. SãoPaulo: 2003b. 11 p. Cópia reprográfica. (Texto a ser publicado, em 2004, na revista DeSignis,editada pela Federación Latinoamericana de Semiótica)._______. Alteridade, corpo e morte no cyberspace: cicatrizes de um hipercrime na epifaniado virtual. São Paulo: 2003c. 21 p. Cópia reprográfica. (Texto a se publicado na revistaFamecos: mídia, cultura e tecnologia, editada pelo Programa de Pós-Graduação emComunicação Social da PUC/RS, n. 23, abr. 2004).

20

Page 23: DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA · DROMOCRACIA, CIBERCULTURA E TRANSPOLÍTICA Contextualização sociodromológica da violência invisível da técnica e da civilização

_______. Comunicação, glocal e cibercultura: “bunkerização” da existência no imagináriomediático contemporâneo. São Paulo: 2004. 26 p. Cópia reprográfica e digital (disquete 3 ½).[Texto apresentado no XIII Encontro da COMPÓS – Associação Nacional dos Programas dePós-Graduação em Comunicação (GT “Tecnologias Informacionais de Comunicação eSociedade”), realizado no período de 21 a 24/06/2004, na UMESP, em São Bernardo doCampo/SP. A ser publicado na obra mencionada na primeira nota do presente ensaio.]

VIRILIO, Paul. Bunker archeologie. Éditions du CCI, 1975._______. L’insécurité du territoire. Stock, 1976._______. Vitesse et politique. Paris: Galilée, 1977._______. Défense populaire et luttes écologique. Paris: Galilée, 1978._______. Esthétique de la disparition. Paris: Balland; Galilée, 1980._______. L'horizon négatif: essai de dromoscopie. Paris: Galilée, 1984a._______. L’espace critique. Paris: Christian Bourgois, 1984b_______. Guerra pura: a militarização do cotidiano. São Paulo: Brasiliense, 1984c._______. Logistique de la perception: guerre et cinéma I. Etoile; Cahiers du Cinéma, 1984._______. La máquina de visión. Espanha: Cátedra, 1989._______. L’écran du désert: chroniques de guerre. Paris: Galilée, 1991._______. La vitesse de libération. Paris: Galilée, 1995._______. A arte do motor. São Paulo: Estação Liberdade, 1996a._______. Cybermonde: la politique du pire. Paris: Textuel, 1996b._______. A bomba informática. São Paulo: Estação Liberdade, 1999._______. L’inertie polaire: essai. Paris: Christian Bourgois, 2002._______. Ville panique: ailleurs commence ici. Paris: Galileé, 2004.

WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1971. _______. Economia e sociedade. 3. ed. Brasília: Ed. da UnB, v. 1, 1994.

WINNER, Norbert. Cibernética e sociedade: o uso humano de seres humanos. 15a. ed. SãoPaulo: Cultrix, 1996.