dramaturgias

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Primeiras versões de dramaturgias pessoais, organizadas pelos atores no processo DJ MELODY

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Page 1: DRAMATURGIAS
Page 2: DRAMATURGIAS

Paulo

seguem (com cópias pra todos) as primeiras versões de dramaturgias pessoais, organizadas pelos atores

é um material muito cru, mas precisamos muito que vc conheça, comente, e sugira como trabalhar com ele

no caso da narrativa da Val, a abertura com "Eutanázio morreu" é uma opção que já colocamos em xeque (será

que empobrece a dimensão do drama da personagem? é uma questão)

Milton envia a primeira história pessoal no arquivo histórias de Piroquinha (está transcrevendo a segunda) e o

roteiro de uma cena que ele criou (cena-memória)

as escolhas de Vandi naturalmente recaem sobre situações da casa do seu Cristóvão, como lidar com isso em

relação ao prólogo, né?

Milton e Vandi, que vão pesquisar de forma mais direta com a mímesis, fazem a primeira viagem ao marajó neste

final de semana.

Tuas considerações são fundamentais para a retomada do trabalho na semana que vem: as dramaturgias estão no

caminho? como vês esse isolamento proposital dos gêneros como ponto de partida? já podes dar a elas um

primeiro tratamento para retornar aos atores? enfim.... aguardamos tuas considerações, se possível, até domingo...

Abraço de todos

Alberto

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Valéria Andrade Célula 1 - Excremento

Eutanázio morreu. Vinha sofrendo desde menino. Quem sabe se sua mãe não botou ele no mundo como

se bota um excremento? Sim, um excremento. Tinha uma certa pena de pensar assim sobre sua mãe. Não tinha grandes amores pela mãe. Ela morrera, e quando o caixão saiu, ele, sem uma lágrima, sentiu sede e foi fazer uma limonada. Aquele choro das irmãs, dos parentes, lhe pareceu ridículo. Enfim, sua mãe tinha morrido. Ele saltou de dentro dela como um excremento. Nunca dissera isso a ninguém. A sua própria mãe contava que o parto tinha sido horrível. Os nove meses dolorosos. Sim, um excremento de nove meses. A gravidez fora uma prisão de ventre.

Célula 2 – Apodrece em vida Enquanto viveu, Eutanázio pensava que doença do mundo ele tinha era na alma. Ninguém andasse se

preocupando com ele. Nem tinha sido de Belém que trouxera a doença. Dona Gemi lhe dizia: Mocidade é isso mesmo, meu filho. Ele ouvia com uma irritação crescente. Mocidade é isso mesmo! Mocidade é isso mesmo, uma ova! Um palavrão chocalhou na boca, como que rolou pelo estômago. Sentiu náusea de tudo. Uma vontade de esbofetear a velha, enxotá-la. Mocidade e ele quase com quarenta anos! Como foi que o tempo passou? Como chegou a ter vinte anos sem ter percebido? Um homem apodrecendo por falta dum cuidado, duma criatura mais corajosa que não tivesse medo dele. Um homem que morria podre.

Célula 3 – Perambulando pelos campos Eutanázio gostava um bocado de passear pelos campos. De atravessar os campos para chegar à casa de

seu Cristóvão que ficava na ponta da rua para os lavrados. Às vezes chegava, para ver Irene, com a roupa escorrendo, os cabelos pingando, Irene ria.

Tinha em certos momentos até vontade de receber mil insultos que o magoassem muito, humilhassem-no, sentia delícia na tortura. Mas em outros ficava sensível a qualquer brincadeira com ele. Não queria graça com ninguém.

Voltou-lhe a náusea daquela noite de luar em que sentiu sua desgraçada carne pedir, a sua carne fria, mas suada, o empurrar para a barraquinha de Felícia. Tinha saído da casa de seu Cristóvão. Tomou o rumo de Felícia.

Sentiu que devia se entregar a qualquer coisa que ao mesmo tempo contentasse a carne e castigasse sua impotência para resistir ao riso de Irene.

Célula 4 - Irene Sentia-se como podre. Irene, se soubesse daria a sua gargalhada. Quando ela ria, a boca, um pouco

grande, não se abria, mas arreganhava, era o termo de Eutanázio, e apesar de ser uma criatura moça e bonita era uma máscara odiosa. Um riso que o cortava todo, caía nos nervos como vidro moído. À noite, muitas vezes, quando os seus nervos se arrepiavam e sentia-se só, sem amigos, sem pensamentos, sem saudade, os risos de Irene se voltavam tenebrosos. Os risos o cortavam como chicotadas. E se Irene soubesse agora que ele estava com “aquilo”, então a antipatia dela aumentava, nasceria o nojo maior. Ela exclamaria o seu habitual axi! E

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cuspiria para o lado. Só vivia cuspindo. Seus olhos ocultavam sombras ruins, perversidades latentes. Os seios tinham um certo pudor, agrediam. No entanto não desejava tanto aquela carne. Instantes havia em que o corpo de Irene o agarrava, mas a crise era rápida. Eutanázio queria saltar sobre o tempo. Sobre dois anos, por exemplo. O tempo devia parar dentro dele. Ficaria então à margem e Irene passaria com as horas, desaparecia. As horas pingavam vagarosamente sobre sua solidão.

Os risos de Irene caíam sobre as horas como pedras pontiagudas. Os olhos de Irene em certas horas têm traços de paisagens desconhecidas, talvez um reflexo duma alegria

dela, perdida. Pudesse e entulharia aqueles olhos dentro do seu passado. Célula 5 – Ficava na moleza da noite, gozando o seu próprio aniquilamento. Um mundo de incoerências flutuava nas

suas fatigantes e infinitas auto-análises. Sentia um peso no estômago, os cacos de dentes lhe doíam. A noite o enchia de obsessões. Ficava num silêncio cheio de náuseas. O silêncio de exumação de Eutanázio.

Eutanázio criara os monstros que o devoravam, lentamente. Rompiam-se no seu silêncio dores fundas, pequenas dores, meias dores monótonas pingando das horas. Pequenos ódios, remorso de não odiar como devia, de não se maltratar como era preciso. Ter assim um desprezo de si mesmo. Queria identificar alguma coisa de sua vida no passado. Tudo é irreconhecível. Tudo entulhado naquele vagaroso e inevitável desabamento.

Célula 6 – Briga de infância Eutanázio se fechava no quarto, em resmungos e abalava a casa com as pisadas de bezerro brabo, aos

tombos, aos pontapés, machucando-se propositadamente nas paredes, nos bancos, nas mesas ou tinindo o caneco no pote quando ia beber água, esgazeado de raiva. Raquítico, tinha os olhos sombrios, os dedos trêmulos, contínuas dores de dentes. Apedrejava os cães que era uma danação. Chicoteava os carneiros de seu tio Bernardo, molestava galinhas, feria os pirralhos que só não se vingavam dele porque era filho do major Alberto. Mas uma vez empurrara no peito do moleque Marcel. O moleque não se fez esperar, a mão cantou em cheio na cara de Eutanázio que ficou atordoado. Os outros intervieram. Uma covardia o assaltou, fez ele sorrir para o moleque fingindo ter compreendido que aquilo não passara de brincadeira. Até morrer, Eutanázio sentia aquela bofetada.

Célula 7 – Brigava horas e horas com as irmãs, manhas sem fim, birras, quando não ficava no chão ou na mesa de

jantar, armando castelos de cartas, construindo navios de papelão e miriti, gaiolas e papagaios, folheando revista, vendo gravuras de livro. Cresceu em Belém com a ideia de ser general, um dia. Envergava uma sombria vocação para a chacina. A guerra era a sua fascinação. Gostava das pinturas de batalhas, morticínios e devastações. Saquear cidades, fuzilar, contar, com delícia, o número de mortos, ver os campos queimados e a metralha roncando longe. Morta a primeira aspiração, sonhava ser um enfermeiro. Viu, num hospital, um enfermeiro de avental, muito limpo, curando a ferida dum doente. Começou a praticar o ofício nas galinhas goguentas, cães batidos, perus esmorecidos, todos os bichos que lhe pareciam necessitados de socorro.

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Célula 8 - Como estudante, sempre descuidado dos sapatos e da roupa. Aprendia com aborrecimento ou

indiferença, frieza ou desapontamento. Ninguém se interessava por ele. O pai era indiferente. A mãe só dava pela existência da escola quando sentia a falta de Eutanázio em casa. Eutanázio acabou não adivinhando a utilidade de saber ler e escrever. Tudo seria a mesma coisa. A vida teria a mesma cara e a mesma coroa, quem era rico e os que eram pobres, o almoço e o jantar, a fome e a morte. Deus, os anjos e S. Pedro com as chaves no céu. O sol nascia e morria. Queria aprender para mudar a viagem do sol. O sol nascer na meia-noite. Mudar de rumo. Em vez de sentar no poente desaparecer no meio-dia. Que a gente não dormisse. Enfim saber ler e escrever para mudar a face das coisas. Nunca respondia mal ao mestre. Tinha, no entanto, uma submissão soturna e distraída. Estudava para não apanhar de palmatória. Se apanhasse, seria capaz de matar o mestre com uma pedrada.

Nem um amigo. Pouca intimidade com os colegas que só o atraíam quando brigavam. A bofetada o afastou da camaradagem com os moleques. Eutanázio ficava de parte deliciando-se com as brigas. E neutro, satisfeitíssimo, apertava a barriga, com as risadas curtas e abafadas, solitário e feliz, gozando a luta.

Célula 9 – O vento dos campos vinha dos outros campos, de outras luzes tranqüilas e ignoradas, dos vaqueiros

esquecidos, dos lagos mortos, dos horizontes que queria ter no seu destino. Os campos levavam-no para o riso de Irene, para aqueles olhos densos de feiticeira estupidez e nojo. Cada marcha daquela era uma dupla marcha, a dos pés fatigados, dos rins doendo, dos tecidos castigados. Era uma caminhada de meia hora, e dura, todos os dias, para o seu corpo. A outra marcha era a da obsessão, a das sensações confusas, dos conflitos que lhe deixavam na cabeça cinza e sombra. Mas lhe vem a lembrança dos charutos de Raquel. Comprar os charutos para Raquel, aonde? Percebe em Raquel uma estima meio oblíqua para o seu lado. Uma amizade cheia de perspectivas. Costumava trocar a pronúncia da palavra perspectiva...Se habituara a colher certas palavras mais ou menos difíceis para o seu uso íntimo. Ninguém o surpreendia soltando essas palavras de que tinha talvez pudor como de largar palavrões. Raquel lhe pedira charutos. É preciso de qualquer modo dar sempre presentes na casa de seu Cristóvão. Pelo menos manteria alguma autoridade moral. A sua pressão moral em cima das velhas, das moças. Irene mesmo não podia fazer uma hostilidade contínua porque era tolhida pelo desejo de umas chinelas, duns sapatos, um corte, que sua mãe arranjaria por intermédio de Eutanázio.

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Vandiléia Foro Página 152 - 159

Raquel pragueja e resmunga. Solteirona, ossuda e desiludida do mundo, Raquel acusava sua irmã Bita que havia sofrido seu sétimo desmanche de casamento. Raquel era filha em primeira núpcias do velho Cristovão. E com o filho chorando no braço, de vês em quando atacado por uma crise de coqueluche, Mariana, também filha em primeira núpcias... Raquel joga uma praga sobre Cachoeira. - Nem pra uma rapariga das mais ratuinas, digo mesmo, das mais relaxadas da porcaria desta terra... - um bandido, um bandido! - A única palavra que me vem na boca seu Eutanázio, é de bandido. Um bandido. Eu se fosse homem ia dar na cara, matava aquele bandido! - Agora eu... Ia bater com ele. Dava um tiro nele. Não sei atirar mas ia de faca e pegava ele pela costa. Matava. Esperava um momento e nunca mais havia de ele se gloriar. Bilhete desse, socava no nariz dele depois de ver ele morto. Bandido. Bita só nos tem arranjado vasilha dessa qualidade. Alisa banco, estraga cadeira, empata, o resultado é a gente se agoniar, se danar, perde até o gosto de viver... - Pois seu Eutanázio, com você sabe, sete noivados gorados com esse! Essa moça está mais que difamada, mais que rasa em cachoeira! Eu se fosse a Bita ia embora, me dava logo prum vaqueiro... - Pois é... me dava logo prum vaqueiro daí dos lavrados e cachoeira nunca mais me via. Nunca mais! - Tudo que esta acontecendo com papai se deve àquele bandido. Patife que é. Ir escutar quem logo... Quem!- Cerra a mão, estira o polegar pra trás num furioso escárnio que abala o mundo- quem, quem... Eu se fosse homem, ia tomar satisfações. Satisfação nada, pegava, cortava ele no meio da rua, dava, dava, cortava a cara dele a muxinga, a vergalho de boi. Cortava a cara dele a faca. Se eu,esta, esta mulher que está aqui fosse um homem! Mas infelizmente tem homem que de homem só tem as tristes calças...

Página 230 - 238 CAPITULO - VI - Também seu Eutanázio não é amigo da gente. Se fosse... - E o senhor não sentiu alguma coisa? Não se bateu? - Mas o senhor não caiu? - Estão aqui as marcas! O bandido do meu irmão pois não quebrou o violão no meu rosto? Eu não queria dizer, seu Eutanázio, porque já me sinto envergonhada do senhor ser nosso amigo, freqüentar nossa casa e apreciar desses papéis... Pois quebrou o violão em mim... joguei-lhe um banco que não pegou. O violão ficou ai no chão. Hoje, só de vingança, fiz café com ele. Botei no fogão. - A senhora também só culpa o papai. Quando a senhora se casou com ele, ele “tinha”! A mamãe tinha morrido. Nós é que podemos dizer que depois que a senhora se casou com ele é que tudo desandou... - Pelo menos a senhora diz que o seu casamento é uma desgraça. Pobre do papai que tudo fez pela senhora. A senhora com seu luxo, com a sua pompa, com seu estrago, foi que acabou com o dinheiro dele. Ele possuía a sua fazenda. A senhora fez ele vender para fazer não sei que negócio... - Mãe! mãe! - Mas foi a senhora que começou! Começou a meter o pau no papai que está na miséria graças à senhora! A senhora matou o Leonardo de desgosto porque não era séria pro papai. Não era séria! Porque quando a senhora,

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com seus ciúmes de andar cheirando cueca do papai, fez Leonardo gritar um dia, danado de raiva, que o pai cheirasse primeiro as suas calças! Eu estava entalada para dizer. Para dizer isto. A Senhora foi a maior desgraça do papai. Foi! foi! foi! - Bita, chora o teu casamento perdido é que é. Vai chorar o teu choro e me deixa. Mas há tempos que eu vinha “com essa conversa de se meter o pau no papai” atravessada na garganta. Digo o que meu peito sente. Ela traiu papai. Papai não sabe ou não quis saber. Leonardo foi que quis dizer, mas não pode e foi embora. O resultado foi ele se alagar como se alagou. - Proíbo-te, Bita, de falares dele! Já morreu! Era melhor do que todas as vasilhas dos teus sete noivos juntos! Já perdeste a conta dos noivados, a noiva crônica! Eu só namorei ele. Meu nome não anda na boca dessa canalha imunda por aí... - Bita, vai chorar a tua sorte de noiva sempre infeliz! Tu és a eterna noiva! Ordinária, vai-te... Não mexe com minha boca, sua tentação! Tu e Cristino são os dois diabos desta casa. As duas vergonhas. Meu irmão Leonardo morreu foi porque a tua mãe fez ele ir para aquela viagem. Andava com homens. Papai gemendo aí de reumatismo na rede a chamar por ela e ela na pouca vergonha... Foi, sim! Não, me olha com essa cara de anjo, não! Foi! - Axi! Axi! Não quero mais que tu digas o nome dele, Bita! Não quero! - Sim sou eu. Mas teu irmão Cristino não me pegou andando na rua feito matinta. E não escrevi bilhetes daquela tua marca para namorado. E te cala, Henriqueta. Mas também não admito que ela acuse papai! Diga que o casamento dela seja uma desgraça. Porque a desgraça foi para ele. Mulher e filha. Eu não queira dizer isso, seu Eutanázio. Mas foi uma coisa. Eu não queria. Foi a raiva. Me envergonha isso. Eu gosto muito do papai. Ela não tem sido ruim para mim mas ela fez e agora mete o pau no papai. Que vida, seu Eutanázio. Se eu pudesse... Se eu pudesse... Raquel chora ao peito de seu Eutanázio Página 233 - Esta casa tem sido um inferno! Todo dia é isto, seu Eutanázio. Página 234 “Eutanázio sentiu Raquel olhando-o obliquamente. Raquel queria ver em Eutanázio um novo Chico Barraca, perguntava ele. Por que seu Eutanázio não deixava Irene em paz e não procurava uma criatura de acordo com seu gênio, mais ajuizada? Refletia Raquel. - Sim, mais ajuizada, mais experimentada na vida. Uma mulher que o tratasse bem, não se incomodasse com a feiúra dele, se preocupasse de ser feliz com ele! Isso sim, era de que seu Eutanázio devia andar cuidando. Ora, Irene. Uma pequena como Irene. Uma moleca que fazia o que entendia com Eutanázio e ele, bestalhão, idiota, com aquela paixão recolhida. - Raquel imagina – Se Eutanázio sentisse uma qualquer coisa por dentro e se declarasse? Dissesse. - Raquel eu agora vou me explicar. Irene foi uma intoxicação minha. Irene era uma alucinação. Mas agora vejo que mereces muito mais. Precisas ter tua casa, viver dedicando a tua vida a um homem e um homem dedicando a sua existência a ti. Este homem sou eu. Que achas, Raquel? - Não sei, seu Eutanázio, o senhor conhece a minha vida, sabe que sou uma moça de ontem. Sou uma moça, sim, mas ajuizada... Sempre lhe digo que o que pode esperar de mim é lhe dar em troca a minha amizade...

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-Ah! Mas o senhor foi debaixo mesmo da chuva! Coitado- Raquel sentiu uma grande piedade por aquele homem andando debaixo da chuva com os charutos que eram para ela se estragando no bolso molhado. - Veio ontem de uma doença e já apanhando chuva. Que sacrifício! - Mas se molhou! E o senhor já não me trazia os charutos? Como comprou no Salu na volta Conte essa história direito... - Que está pensando, seu Eutanázio? - Ah! Lhe dou um remédio... Espere... Raquel sai para pegar o remédio. - Axi! Bita ficou mesmo mais rasa do que o chão. Trocada por uma piolhenta daquele tope... Axi! – Masca o tabaco e cuspiu. - Chica Piolho, sim. A gente chamava ela na escola de Chica Piolho porque a cabeça dela era uma mina dos bichos. Axi! - seu Eutanázio me compre um pacote de algodão. Página 287 - O senhor já vai tão cedo, seu Eutanázio? Não vá. E olhe, não esqueça dos charutos. Página 359 - Ah, seu Eutanázio. Dor de cabeça... Ficam em silêncio. Raquel espera que ele fale. (Fale, sim, seu Eutanázio?) Por que seu Eutanázio não a procura, não se desilude de Irene e vem, enfim, lhe pedir que arrume a sua roupa, marque no figurino da Duduca um vestido simples que seja, o tempo que ele vai enfrentar a neuratesnia do Viriato para aprontar os papéis. Um homem desse, veja, como está magro, acabado – devia procurar uma mulher, mas mulher! Não Irene! - Seu Eutanázio, o senhor não sente mais nada? - Nem dores na cabeça? - E a febre? - Mas então não venha com toda essa rompância de indagora. Ninguém está resolvida a ouvir os bonitinhos dos teus nomes como dissestes na cusinha. - Página 372 RAQUEL: Meu Deus! Meu grande Deus! Acabou-se o nosso homem! O homem da casa! O nosso homem! Página 395 Eu queria que o Sr., seu Eutanázio, soubesse que depois que o Sr. Adoeceu deixei de gritar tanto em casa. Agora só posso desabafar diante do Sr. Louca esperança a de ver o Sr. Bom. Calculo misturado com esta tristeza, esta tristeza que me rói as entranhas. Esta tristeza que é como tísica... Duduca é mais feliz do que eu. Nem se incomoda com a sua tísica. E eu sinto, venho sufocar o Sr. Com isso, com esse meu desabafo, essa minha tristeza, esta minha horrível inquietação. E como gostaria de dizer: - Se o Sr. me olhasse com mais brandura, com mais acolhimento, eu seria feliz, deixaria de pensar mal de Cristino, de minha madrasta, não deixaria que Rosália e Henriqueta seguissem o mesmo destino de Irene. Eu queria que o Sr. Enxergasse em mim o que eu podia ser, deixei de ser, para o Sr. Por que tudo faz para não se

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restabelecer? Por que não tem medo da morte? Parece suicídio. A sua presença em casa era sempre uma ilusão, uma esperança, uma possibilidade. Uma coisa enfim que não compreendo. Em casa, todos se separam, se odeiam, se entreolham com raiva. A morte do Cristino nos deixou em tal estado de ódio, de lástima, de isolamento que a vida lá se torna insuportável. O Sr. Imagina, seu Eutanázio. Se eu tivesse a coragem que tem o Sr. de morrer, eu me matava. Me matava. Mas a vida é um vício, seu Eutanázio, um vício. - Esta miséria prende a gente. Queria uma coisa que abrandasse os meus nervos, esse desespero, esta raiva, esta vontade de cortar a dente a cara de Irene, a cara de D. Djanira. Sinto que o padecimento de papai é intolerável para mim. Se eu pudesse dava-lhe remédio, um remédio que matasse logo, para deixar de sofrer. Basta de sofrer neste mundo. Papai tem sofrido demais. Bita vive chorando, chorando. Recebeu ontem uma carta anônima lhe fazendo proposta como se faz a Felícia. Aquilo deve ser do Carvalho. – (e sentir que a situação de Bita é para mim um consolo, uma desforra que tive sobre ela _ Raquel pensava sem ter força desta vez para confessar) – Queria que alguém me tirasse um pouco desta tristeza. Agora com as chuvas, tudo me dói, me fatiga, me atormenta. Não posso ver aquelas caras de casa. O senhor aí no fundo da rede... Sinto que tudo isto me queima por dentro, seu Eutanázio. Vejo nos seus olhos que o Sr. Começou a odiar-me, a desejar que nunca mais eu volte aqui. Não, não volto. Minhas palavras não tem mais sentido...

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Nani Tavares FELÍCIA FEDIA A FOME Felícia. Uma mulher que cheirava a poeira. Cheirava a terra depois da chuva. A terra dos caminhos pisada por todos os caminhantes. A fome. Felícia fedia fome. EUTANÁZIO TAPURU Eutanázio era feio e azedo. E ele começava a se arrastar também no seu desejo como um sapo e como se aquilo fosse uma maneira de sofrer, de se castigar. Homem esquálido e soturno que se mexia na sombra como um bicho tapuru. ONDE ESTAVAM OS OLHOS DE CRISTO NAQUELE CRUCIFIXO? No fundo de seu quartinho, em meio aos arranha céus de Nova York, e ao crucifixo de vagas costelas redentoras, lá estava, a tola, a lograda, a ingênua Felícia. Santa Felícia. Onde estavam os olhos de Cristo naquele crucifixo? Eutanázio teve a ilusão de que os olhos de Felícia procuravam na sombra os olhos de Cristo. Uma mulher com fome se prestando para homem. Por que Cristo não transformou a pequena cruz em pão para Felícia? O SILÊNCIO DE EZUMAÇÃO DE EUTANÁZIO O silêncio de exumação de Eutanázio. Quantas covas a abrir no seu passado. Uma infância doentia, infeliz! Obsessão de rever suas ossadas, os vestígios de certos sonhos, certos desejos que mal se completaram como fetos, na sua mocidade solitária e inútil. Talvez no meio das ossadas algum esqueleto esteja contorcido, denunciando um despertar de cataléptico no fundo da cova fechada. Via contorções desesperadoras dentro de seu passado. Para quê enterrar assim? Tudo foi entulhado pela náusea de si mesmo. Os sonhos vieram abaixo como paredões desabados. Mas nem tudo parece que está morto. No meio dos sonhos mortos, dos desejos extintos, das esperanças abortadas, haverá algum tímido desejo palpitando, algum sonho, alguma esperança como sinal de vida. DR. CAMPOS PROVANDO A EXISTÊNCIA DE DEUS Dr. Campos terminou o seu artigo sobre a sagrada Eucaristia que tem de mandar para a Verdade, órgão de interesse da sociedade e da família. Gosta de escrever os seus artigos sempre no interesse de Deus. Deus anda ameaçado pelos demônios. Dissolveu-se a família, extinguiu-se a propriedade, destruíram-se os templos, assassinaram os sacerdotes, negaram Deus. Pensam que essa onda maldita não pode invadir o mundo como uma onda de terror e de peste? Dr. Campos escreveu cinco artigos provando a existência de Deus. A exegese, meu amigo, no cristianismo adquiriu relevo sublime. Vocês não sabem o que está acontecendo no mundo? O apocalipse profetizou. Os homens estupram crianças, degolam velhos, dinamitam igrejas. Saqueiam, arrombam tumbas e castelos, vão talando tudo. São como bárbaros. DIONÍSIO E EUTANÁZIO RUMO AO QUARTO DE FELÍCIA Eutanázio vem com os sapatos ensopados, a roupa pingando, tropeçando nas pedras e nas poças de lama. Tem tonturas. Principia a ver uma quantidade de cabeças, de mortos conhecidos, algumas mulheres que vira ou desejara. O moinho do vento parece girar dentro de sua cabeça. Os gritos daquela gente perseguem-no. As roupas molhadas pingam e pesam. Está coberto de chuva e de ridículo. Como a miséria o atingiu tão

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profundamente, tão grotescamente. A sua marcha a gora é a de um humilhado sem remédio. O seu regresso é o de um Dionísio mais miserável, mais bêbado, mais devastado pela fome e pelo vício. Seria capaz agora de ser um grande companheiro de Dionísio? Vou com Dionísio a casa de Felícia. E onde está Dionísio? Tombou sem vida naquele capinzal. Mas sou o Cristo que ressuscita o novo Lázaro. Levanta-te, ó bêbado, vagabundo dos campos levanta, ó Dionísio e vamos à Felícia. Dionísio ergueu-se do Capinzal, ofegante e pesado como um boi. Eutanázio podia dizer: Quo vadis? Mas tu já vens crucificado. Cristo sofreu menos do que tu. Porque tu te crucificas todos os dias, desgraçado redentor! Os dois chegam na porta da barraca de Felícia e batem violentamente. -Ò Madalena, acorda que chegou aqui o Cristo! Ó vivandeira, sai dos braços de Morfeu, ó pútrida, e vem abrir a porta para dois viandantes que querem amor, que querem Vênus! Anda, Messalina! As pancadas de Dionísio fazem Felícia saltar da rede como uma alucinada, falando com voz surda. - Que é, que é?

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Milton Aires Páginas 120 e 121 SE COME. - Vou te comê de espeto. - Se come então um passarinho desse? - Se come. E no espeto. Não sabe o que é bom. Pra que tenho meã baladêra? Tu não gosta? - Eu não. - O que tu perde. És um branco... -Tua boca é doce pra dizer isso... que sou um branco. Tu não vês minha cor? Alfredo não queria ser moreno mas se ofendia quando o chamavam de branco. Achava uma caçoada d moleque. - Mas tu não é? - tu és moleque... - Que tem com isso? Sei balá um passarinho. Tu não bala. Vamo um dia no campo, tu arruma uma liga velha ou então me dá um cruzado. Tira do teu pai. Tira escondido. Não te incomoda que tu não come o passarinho que tu bala. Eu como. ........................................................................................................................................ PITIÚ Tinha um ar de menino branco. Dava sobras para os moleques, com desdém, negava as coisas, via que eles eram como bichos. - Olha, pequeno, deixa de pedir, vai-te embora! - Farinha não tem! (D. Amélia intervindo) ............................................. - Alfredo vai ver quem bateu. - Que é? - Ma... ma...mãe... Man... dou... que... qui... qui... - Qui,qui, o que, pequena? - Pra... pra... ela empres... ta... um... as... co... deee... faaa... riii... nha. - Qui, qui, o que, não tem! A pequena abria os olhos remelentos. Sua cara era encardida e gasta. Menina ainda e parecia uma velha. Gaga, quase todos os dias vem com aquele saco sujo, de pano, que D. Amélia enchia de farinha. - Mas, mas... - Me dá a vasilha, anda. Este... Mas que saco mais sujo! -------------------------------------- - Que pitiú que tu tens, Marialba, te lava!

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SÃO JOÃO Alfredo voltou da sua viajem a Belém, Lucíola contou o que formam as festas de S. João em Cachoeira... Boi chegou Morena vem ver Chega na janela Pra acabar de crer. E o topa-topa: Vamos vamos companheiro Com este boi aqui brincar E o que acontecer Pode comigo contar Vamos ver qual é o primeiro Que o bicho vai tocar Topa, topa tu primeiro Como vaqueiro geral; Quero ver fera com fera Cara a cara se topar. E o vaqueiro real cantava: Topa, topa, o Caprichoso Vaqueiro, fama real Pois já vejo que não cumpre O que me disse o geral. E era a hora do Pai Francisco: Pula, pula, pai Francisco Que o Real nada mais faz Quero ver se ainda se lembra

Do teu tempo de rapaz... E o Chico respondia:

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Pai Francisco tá sabido E o boi não vai topar Os vaqueiros matam o boi E o Chico velho vai pagar

E o padre batizando os caboclos: Batizo o caboclo - não namora mais...

E a surra no Chico: Chora, Chico, chora Chora que a coisa não de brincadeira Chora porque estás preso E o remédio que tens é apanhar.

Histórias de Piroquinha Deitado começo a cantar Quando o espírito de Deus se envolve em mim Eu canto como rei David Quando o espírito de Deus se envolve em mim Eu canto como rei David Eu canto, eu canto, eu canto como rei David Eu canto, eu canto, eu canto como rei David Quando o espírito de Deus se envolve em mim Eu oro como rei David Quando o espírito de Deus se envolve em mim Eu oro como rei David Eu oro, eu oro, eu oro como rei David Eu oro, eu oro, eu oro como rei David Quando o espírito de Deus se envolve em mim Eu amo como rei David Quando o espírito de Deus se envolve em mim Eu amo como rei David Eu amo, eu amo, eu amo como rei David Eu amo, eu amo, eu amo como rei David

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Apresentação Meu nome é Milton Santos de Jesus e eu represento o menino Alfredo do romance Chove nos Campos de Cachoeira do Dalcídio Jurandir e é incrível porque histórias, minha e do Alfredo são parecidas. Eu nasci no Marajó, sou da cidade ponta de pedras e o Alfredo é de Cachoeira do Ararí. Ponta de pedras é uma cidade pequena na ilha do Marajó... Tem uma igrejinha. Algumas casas... Mais antes mesmo de morar em ponta de Pedras, eu morava no sitio que era um pouco assim afastado da cidade e morávamos eu, pai, minha mãe e meus quatro irmãos. Aprendendo a nadar E eu lembro muito do dia em que meu tio tentou me ensinar a nadar, eu era pequeno e chegou um dia ele, chegou ele e os meus primos e disseram assim: “Ah! Hoje o piroquina vai aprender a nadar”, ai a minha mãe disse não mais o menino é pequeno anda, comé, ainda vai se afogar. Ai ele disse não, não, não se preocupa que eu vou cuidar direitinho dele. Ai ta, ele me pegou me tirou daqui me colocou aqui, aqui é o trapiche e daqui onde tem o trapiche fica o miritizeiro que quando a maré ta baixa ele fica assim baixo, quando a maré ta cheia ele fica alto. Nesse dia a maré tava baixa. Ai fizeram uma bóia de miriti pra mim, né, ai ficou eu o meu tio na beira do rio próximo do miritizeiro ainda e sentia o meu pé bater na lama, porque tava seco, mais depois o meu tio me levou pra cá pra fora, pro fora da beira, mais longe, ai depois ele me deixou sozinho lá. Ai eu já fique com medo. O que que eu ia fazer, eu não sabia o que fazer. Ai ele começou a dizer: Vem daí, vem, vem daí, vem piroquinha, vem,vem daí. E eu não conseguia sair não consegui ir. Ai eles achando que iam me ajuda começaram dizer “vem olha a pirarara vai te comê, a pirarara vai te comê ( a pirarara é um peixe grande que dá bem na beira do igarapé) ai ele começavam a gritar “vem vem daí” até que a minha mãe vendo essa confusão saiu correndo daqui de dentro de casa e ficou aqui bem na beira do trapiche e dizendo assim “hei Pedro tira esse menino daí que ainda vai se afogar” ai foi que o meu tio me tirou dali e em fim .... a intenção dele era me ensina a nadar, mais só que eu não aprendi a nadar, quase que eu me afogo, mas só que isso serviu porque pelo menos ajudou a perder o medo de ta no rio, de ta na água.

A FARSA DO MENINO E O BOI

UM CONTADOR:

Foi bem pela época de junho, quando bichos e homens estão soltos a foliar, que aconteceu a curiosa história que agora eu vou contar, favor preste atenção pra que nenhuma palavra lhe escape dos ouvidos, pra que a história saia por inteira sem nenhum prejuízo. No Marajó as festanças populares são muitas, muito ricas e muito boas pra danar de não deixa homem nenhum sem se mexer e Seu Duca sabia disso... Seu Duca, um ribeirinho (MANIPULA CHAPÉU), tinha uma penca dom dona Sabá (AMOSTRA A PANELA)... Seu Duca gosta muito de apreciar as danças e brincadeiras do seu povo. E fazia questão de que todos os filhos pudessem assistir também. Bem, dá sua penca de filhos, o caçula, pequeno ainda, pouco sabia das coisas que via, mas sempre muito cuíra pra tudo acontecia... E foi num desses dias que seu Duca decidiu: (COM O CHAPÉU) Hoje o Piroquinha vai conhecer o boi – Piroquinha foi apelido carinhoso que menino recebeu ainda bebê, por que não tinha nenhum fio de cabelo.

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Aí dona Sabá: (MANIPULA PANELA) não o menino é pequeno ainda vai se perder (CENA PAI E MÃE DISCUTEM: CHAPÉU E PANELA). Bom, aí foram no rumo da brincadeira... Neste dia o caminho do menino se cruzou com aquele ser chifrudo com o corpo coberto de tecidos, de apenas duas pernas, que com gestos fortes insinuava querer chifrá-lo (CENA O BOI E O MENINO MANIPULANDO: CHIFRE E UM BARQUINHO) era o boi bumba do Marajó e sua farsa da animar o povo. Numa mistura de medo e curiosidade o menino não se desligava, acreditava, e se encantava pelo boi e suas proezas. De repente o boi avançou com força pra cima dos dois. O menino se assustou e entre os gritos povo e fogos de artifícios que estouravam sem para, ele soltou da mão do pai e com medo saiu correndo, fugiu, ganhando o mundo... Para desespero de seu Duca, como iria voltar pra casa sem o garoto... Procurou, procurou... E depois ele ate achou o menino já no caminho de volta pra casa... Mas a verdade é que este encontro com o boi marca para sempre a vida do menino que de fato ele nunca mais voltou de sua fuga, saiu pelo mundo correndo atrás da saia do boi... E hoje é brincante,... Artista... Com a certeza que essa é a melhor herança que seu pai poderia lhe dá... (BEIJA O CHAPÉU, A APANELA E O CHIFRE) obrigado pai!

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